segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Nossa Incivilidade



Sérgio Buarque de Holanda criou um conceito de larga circulação nas ciências sociais brasileiras. Como tudo que se rotiniza, o conceito logo foi incompreendido ou lido de modo divergente daquele proposto por seu autor. O conceito em questão é o da cordialidade. Meu propósito explícito é usá-lo, para os fins deste artigo, como correspondente de incivilidade. Ser incivil é, em suma, desprezar as normas básicas de convívio social; é não submeter nossas disposições livremente egoístas aos limites supostos na relação com o outro em todas as esferas sociais: na casa, na rua, no trânsito, na escola, no shopping... Assim, Sérgio Buarque afirma que somos cordiais. Nos meus termos: somos incivilizados.
O que isso tem a ver com a violência corrente na nossa sociedade? Acredito que tudo. Acredito que essa cultura da incivilidade está na raiz da violência social brasileira. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ou FHC, observou que nossas instituições socializadoras (a família, a escola, a religião) não funcionam, isto é, são incapazes de regular nosso comportamento. É nelas e a partir delas que toda sociedade civilizada se organiza. É nelas que aprendemos a respeitar os direitos do outro, os limites sociais impostos como condição de respeito mútuo e constrangimento coletivo. Desatados de tais limites, nossa tendência espontânea é fazer o que queremos indiferentes aos danos e abusos que impomos ao outro. É mais ou menos nesse sentido que Freud alude à civilização como repressão.
É sintomático o fato de tanto resistirmos a essa forma de repressão socialmente necessária. No Brasil, qualquer norma é sempre encarada como valor puramente negativo, como expressão de abuso contra a liberdade individual. Avessos à normatização das nossas relações sociais, tendemos a encarar a norma como imposição abusiva. Não nos passa pela cabeça o reconhecimento de que as leis do trânsito, por exemplo, visam primariamente garantir a segurança e a vida dos que circulam nas ruas. Daí a inoperância do novo código imposto, segundo as autoridades, com o fim de atualizar o anterior, já defasado. Ora, o problema com o outro código, assim como com o atual, não residia nisso, mas no fato de não ser devidamente aplicado. Veio o novo código, seguido de muita polêmica e conflito nas ruas, iludindo alguns otimistas com a perspectiva de civilizarmos nosso trânsito, mas logo tudo se acomodou e logo regredimos à bagunça rotineira. Aliás, se minha percepção não me trai, mudamos para pior. Aqui em Recife, por exemplo, bem poucos respeitam normas elementares de circulação nas ruas. A polícia não policia, o motorista e o pedestre não são e nem querem ser policiados e assim, a sociedade, afeita ao desregramento, segue indiferente a este e a todos os demais códigos.
Sempre que ocorre algum crime pavoroso, desses que fazem o lucro e a festa da mídia sedenta de sangue e sensacionalismo, voltamos à confusa discussão do nosso estado de alarmante violência social. A maioria acuada, temendo a insegurança geral em que vivemos, confunde violência social com violência policial. Encara apenas como violência, noutras palavras, a que a mídia e a delegacia documentam como tal. Vemo-nos como vítimas de um estado social violento inconscientes de que todos os dias, nas nossas ações mais banais e correntes fermentamos a desordem, as práticas de desrespeito que em muitos casos resultam em crime policialmente caracterizado. Não somos sequer capazes de respeitar os direitos do vizinho e todavia procedemos apenas como vítimas da violência social. Respeito? É aquilo que você dá para poder receber. Quantos brasileiros têm honestamente crédito a cobrar quando a moeda é respeito?

O Caráter Humano Mudou II



Diante da recepção em certo grau equivocada que meu artigo suscitou, julguei conveniente acrescentar-lhe algumas considerações que talvez melhor esclareçam o sentido dos argumentos nele expostos. Acrescentei ainda, nos parágrafos finais, minha apreciação de alguns desenvolvimentos do caso Geisy Arruda entre os poucos dias que separam este e o artigo inicial. Por fim, uma previsão do desfecho de toda essa celeuma que prescinde de bola de cristal, presunção profética ou pura e simples clarividência. Basta simplesmente comparar o caso presente com outros episódios momentosos que com freqüência irrompem do bojo de nossa barbárie rotinizada.
Sabia que meu artigo seria lido de muitos modos e provavelmente nenhum corresponderia integralmente às minhas intenções. Visei muitos alvos ao escrevê-lo, mas previa que o leriam como se se referisse exclusivamente ao caso Geisy Arruda. Ora, ela é apenas um sintoma do que entendo ser, e deixo isso claro no artigo, uma mudança radical no caráter humano. Esta idéia central do artigo ocorreu-me recentemente em conversa com amigos cuja percepção da realidade social brasileira muito se aproxima da minha. Há algum tempo convenci-me, de certo modo contra mim próprio, de que houve uma mudança profunda no nosso modo humano de ser. Ele é sensível nas nossas relações íntimas, na forma como passamos a nos relacionar com a idade, a morte, a sexualidade e outras expressões humanas fundamentais. Ele se manifesta ainda no tipo de mentalidade capitalista que desenvolvemos, também nas nossas expressões morais e religiosas. Em suma, ele afeta de modo radical nossas expressões mais substantivas de humanidade.
Como frisei no meu artigo, tomei conhecimento do caso Geisy Arruda através de um artigo de Contardo Calligaris. Vivendo deliberadamente desinformado, pois confesso já não ter estômago para digerir o circo previsível da miséria humana reiteradamente veiculado pelos meios de massa, somente tomo conhecimento de episódios dessa natureza quando filtrados pela intervenção crítica dos poucos articulistas que leio. Foi ao ver dois vídeos na internet que passei a me interessar ativamente pelo assunto. Ressalto ainda que somente procurei ver os dois vídeos abaixo identificados depois de saber da expulsão de Geisy da Uniban. Estava até então considerando o caso puramente do ângulo dela, já que me chocara diante do comportamento da turba da Uniban, para lembrar a expressão usada por Calligaris. Quanto à expulsão de Geisy, ela representa uma pura e simples punição da vítima, acrescida do agravante de que, na outra ponta, aqueles que perpetraram a barbárie são vergonhosamente inocentados. Há a essa altura vários outros vídeos disponíveis, além de considerável volume de artigos e reportagens relativos ao assunto, que ganhou destaque previsível.
Foi vendo os vídeos que passei a considerar em registro mais complexo a questão atinente à mudança do caráter humano. Impressionou-me, antes de tudo, a docilidade com que Geisy relatava a experiência brutal a que foi submetida. Nenhum sinal aparente de indignação moral, sequer a mais vaga consciência de sua liberdade ultrajada. Sentada no centro do programa de auditório apresentado por um certo Geraldo Brasil, sobrenome demasiado sugestivo, ela não se dava conta do modo como ele explorava a questão em termos sensacionalistas dissimulados por um tom de aparente protesto contra a violência a que ela foi exposta. Foi nesse momento que me vi moralmente perplexo diante de tudo e logo me dei conta de que minha consciência já não visava mais o problema nos mesmos termos. Em suma, já não via Geisy como uma simples vítima da barbárie, mas como parte dela, como quem se rende à barbárie com completa inconsciência das implicações morais do jogo que está jogando.
Quando amadureci a idéia de escrever o artigo, em parte animado por conversas livres que tive com amigos igualmente chocados com a manifestação de barbárie ocorrida na Uniban, lembrei-me de que certa vez lera Virginia Woolf aludindo à mudança do caráter humano em 1910. Minha associação era no entanto vaga e não conseguia localizar precisamente onde ela escrevera isso. Foi quando tive a idéia de reler The Modern World, de Malcolm Bradbury. De fato, lá encontrei a referência que constituiu meu ponto de partida para escrever o artigo. Além dessa idéia relativa à mudança do caráter humano, quis também ressaltar nossa rendição às formas de poder social, notadamente a mídia, que hoje devassam nossa privacidade invertendo um dos sentidos profundos da distopia escrita por George Orwell: 1984. Foi também aí que me ocorreu, seguindo a noção de marco histórico presente nas citações que faço de Virginia Woolf, D.H. Lawrence e Eric Hobsbawm, datar essa mudança com o ano que dá título ao livro de Orwell.
Luciano Oliveira amigo cuja opinião muito considero, convenceu-me a mudar o título do artigo, que antes era O Caráter Humano Mudou. Este título não contém o apelo jornalístico que conteria um que de pronto chamasse a atenção do leitor para o caso Geisy Arruda. Persuadido por seu argumento, troquei o título por este: “Geisy Arruda e a Servidão Voluntária”. Aludo evidentemente ao título do livro de Étienne de la Boétie, o amigo supremo de Montaigne. Agora arrependo-me por haver adotado este título. Se antes o clima de recepção geral já estava posto em termos polares ou maniqueístas, contra ou a favor de Geisy Arruda, agora o próprio título do artigo já favorecia a leitura redutora do meu artigo, que pode ser tudo, menos um ponto de vista fechado, aderente aos extremos imediatos da questão.
É fácil ou pelo menos previsível tomar posição contra ou a favor de Geisy Arruda. Isso é o que quase todos estão fazendo nos artigos e comentários circulantes na mídia. O humanismo simplista de pessoas como Contardo Calligaris, Eduardo e Marta Suplicy e muitas outras que se têm manifestado, além da inteligência bem pensante da academia e da mídia, fere essa tecla previsível. Endosso esse discurso enquanto expressa repúdio à intolerância e aos insultos morais que Geisy sofreu, mas procurei antes de tudo ir além disso, pelo menos sugerir num breve artigo polêmico as raízes profundas dessa celeuma. É curioso, não fosse previsível, o fato de identificarem os termos da minha intervenção como justificativa implícita da barbárie que ostensivamente repudio no meu artigo. Por que sempre entendem que estamos inocentando o culpado quando ousamos afirmar que a vítima não é inocente?
Propor a questão dentro do parâmetro maniqueísta recorrente em controvérsias tingidas de paixão típicas de episódios momentosos como o que aqui considero é algo que pode sem dúvida, num dos extremos do processo, concentrar argumentos e ações em defesa da liberdade e portanto contra a intolerância e o preconceito. Mas duvido que nos ajude a penetrar as dimensões mais profundas do problema em foco. Deixando-as intocadas no calor das disputas presas à linha aparente dos fatos, estamos desarmados para sequer assinalar as causas operantes da barbárie. É por isso que teimo em repetir que encaro Geisy Arruda apenas como sintoma de causas suprimidas do debate. Longe de mim a presunção de integralmente descrevê-las, menos ainda analisá-las. Mas tenho consciência de que pelo menos ousei ir além dos esquemas maniqueístas que são a tônica da controvérsia efetiva. Os que justificam a intolerância desfechada contra Geisy Arruda alinham-se com as forças mais conservadoras e autoritárias sempre poderosas na nossa história social; os que a defendem nos termos restritos ao reducionismo maniqueísta enxergam apenas a inocência da vítima recobrindo-a com tons de paternalismo moral que implicitamente confirmam a minoridade ética e intelectual da vítima. É exatamente por essa razão que sublinho no meu artigo a responsabilidade moral da vítima em face da barbárie. Enfatizei esse argumento ao lembrar que a defesa da nossa liberdade subjetiva diante de qualquer poder corrente na sociedade é a última e a mais poderosa força de que dispomos para preservar nossa autonomia. Recuso-me assim, ainda que isso me custe o risco de me confundirem com a justificação implícita da barbárie, como de resto aconteceu, a tutelar a liberdade de Geisy. Pois é esse o sentido implícito do discurso paternalista comum a tantos bem pensantes, assim como ao humanismo simplista que identifico no debate.
A essa altura é mais que evidente o modo como Geisy frui deslumbrada seus 15 minutos de fama. Isso já estava registrado no meu artigo e qualquer crítico isento de reduções maniqueístas poderia facilmente enxergar os refletores no palco. O desfecho é também previsível. Geisy aproveitará avidamente a celebridade fugaz assegurada pela máquina impiedosa do espetáculo, cujo alvo fundamental é faturar audiência. A Uniban, evidência ululante da degradação do nosso sistema educacional, maquiará sem danos maiores sua imagem de instituição universitária que somente num país do tipo do Brasil pode funcionar do modo como funciona. Seria exemplar descrever, com base numa investigação isenta, o processo que a transformou na quarta maior universidade e décima sexta pior do Brasil. A inércia política e moral dominantes, para não dizer cinismo moral puro e simples, garante a manutenção desse estado de coisas. O circo da barbárie continuará faturando sem alterações significativas enquanto nós, professores, intelectuais e formadores de opinião, continuaremos deseducando a turba da Uniban e mulheres dóceis à opressão como Geisy Arruda. Daqui a alguns dias ninguém mais lembrará quem é Geisy Arruda, mas as causas determinantes da nossa barbárie prosseguirão seu curso produzindo novos algozes e novas vítimas, nenhuma delas inocente.

O Caráter Humano Mudou


Geisy Arruda e a Servidão Voluntária

Virginia Woolf escreveu que o caráter humano mudou em dezembro de 1910, ou perto disso. Para D. H. Lawrence o fato ocorreu em 1915. Passando dos romancistas para um historiador, já que afinal periodizar é parte substancial do ofício deste, lembraria que para Eric Hobsbawm a data decisiva é 1914, quando a eclosão da Primeira Grande Guerra fechou o longo século xix para inaugurar o curto século xx. Como periodizar é matéria de permanente controvérsia, fico mais à vontade para enfiar minha colher de pau nessa salada. Afirmo, portanto, que o caráter humano mudou novamente. Querem uma data precisa? Escolho 1984, que com certeza importa enquanto símbolo supremo do pensamento distópico. Além disso, seu símbolo totalitário, o Big Brother, tornou-se paradigma moral do nosso tempo. Veremos abaixo o que isso tem a ver com a mudança do caráter humano.
O intróito acima valerá como moldura para mais um momentoso evento tratado a clarinadas por boa parte da mídia sensacionalista: a turba da Uniban que agrediu com ferocidade inusitada a estudante Geisy Arruda. Não perderei tempo detalhando o episódio, já que se tornou matéria de domínio e controvérsia pública. Sempre mal-informado, tomei conhecimento do caso ao ler artigo de Contardo Calligaris publicado na Folha de S. Paulo de 5 de novembro. O relato do fato chocou-me tanto quanto parece haver chocado o próprio articulista. No primeiro momento endossei na íntegra o ponto de vista de Calligaris, que ressalta, como psicanalista, a ameaça que o desejo feminino representa para nossa tradição machista enganosamente enterrada por algumas décadas de autêntica revolução dos nossos costumes, sobretudo os atinentes à sexualidade. Até aí parecia-me fácil determinar a linha entre o certo e o errado. Variando os termos com a ênfase definidora da linguagem clichê, entre o algoz e a vítima, o bandido e a mocinha.
Sucede que li ontem, novamente chocado, a decisão tomada pela Uniban depois de apurar o caso: Geisy Arruda foi sumariamente expulsa. Mais uma vez a culpada é a vítima. Tudo indica que, para as autoridades acadêmicas, a turba da Uniban foi vítima das provocações diabólicas da estudante insultada. Foi aí que decidi informar-me melhor acerca do processo. Depois de ver dois vídeos dentre os muitos agora disponíveis na internet, afundei num estado de perplexidade moral. Foi então que mais uma vez, diante da nossa barbárie rotinizada, convenci-me de que o caráter humano mudou. Vi afinal Geisy Arruda no centro de um programa de auditório da Record. O apresentador, Geraldo Brasil, simulava um tom de denúncia moral típico das coberturas sensacionalistas correntes na mídia brasileira. Já vi esse filme, pensei comigo, mas interessava-me observar o comportamento de Geisy. Vi-a desfilando diante da platéia com o vestido que supostamente provocou o tumulto na Uniban. A câmera voraz devassou-lhe o corpo lambendo-o com closes semelhantes aos olhos da turba que a agrediu. E ela a tudo assistia, de tudo participava com a insanidade dos inocentes, para lembrar a frase indelével de Graham Greene.
Em seguida, entrevistada por Geraldo Brasil, Geisy Arruda relatou com docilidade e pura inconsciência moral os assobios e galanteios, também o assédio moral que correntemente recebia na escola. Relatou ainda sua complacência narcisista diante dos rapazes que a cortejavam. Mais que isso, deixou evidente sua docilidade diante de muitos dos galanteadores. Se não me engano, ela agora se deleita com os quinze minutos de fama, para valer-me da metáfora célebre de Andy Warhol, que a resgatam da miséria suprema imposta pela sociedade do espetáculo: a miséria do anonimato. Noutros termos, a vítima é vítima, mas não inocente.
De repente, senti que já não podia encarar e medir Geisy Arruda como uma simples vítima da barbárie, mas sim como uma evidência unitária e empírica dessa massa anônima escolada pelo Big Brother e outros termômetros da mudança radical que se processou no nosso caráter humano. Na distopia de George Orwell, o Big Brother encarna o poder totalitário ao qual se opõe nossa última reserva de liberdade individual: a defesa da nossa privacidade, antes de tudo do amor, da intimidade erótica antagônica à devassa imposta pelo poder. Hoje a mídia e todos os poderes que anulam nossa privacidade já não precisam de teletelas, já não precisam arrombar portas, pois a privacidade nos oprime como um castigo, não como expressão última da nossa liberdade. Negociamos tudo, contanto que nos reconheçam. Em suma, tornamo-nos não apenas mercadorias livre e consentidamente cambiáveis, mas sobretudo mercadorias baratas.
A docilidade inconsciente de Geisy Arruda parece-me tão chocante quanto o espetáculo da barbárie manifesto na turba da Uniban. Ela simboliza um gesto de rendição da vítima à barbárie. O que resta em nós de civilizado quando renunciamos à civilização? O Big Brother já não precisa policiar nossa consciência, pois esta se tornou o espelho da barbárie que sempre nos ameaçou. Big Brother c´est moi.
Recife, 8 de novembro de 2009.