domingo, 27 de dezembro de 2009

Passagem do Ano


Como se um pouco morrêssemos. Como se algo em nós, assim vago e indefinível, já se fechasse ou se rompesse. Amanhecemos no entanto os mesmos, ainda que outros, ainda que nunca integralmente o que ontem fomos. Bem pensado, é antes um ano que se completa, que em cada um de nós se encerra ou se renova. Bem pensado, morre antes um calendário. Melhor pensado, não há senão um dia passando. Há porém ritos, há tradições, há criações dos homens que nos fazem viver como se tudo fosse um ano, talvez a própria vida, num dia transfundido. E tudo nesse cerrar de olhos se acumula. Como se muitos dias nos repassassem e tudo assim tão vário e longo fosse já longe, ou não tão perto.
Talvez porque falíveis, irredimíveis sujeitos de desejo, carecemos de celebrar num só tecido de sonho, poeira e esperança o rito de passagem do ano. E embora os fatos só fatos em tudo assinalem não mais que uma troca de calendário, o delírio de consumir uma infinita cadeia de objetos que em verdade nos consomem, no cerne do nosso desejo lutamos contra os opressivos limites da satisfação efetiva. Assim, se consiste o nosso desejo na busca de prazer e felicidade sempre precariamente realizados, uma força maior que a crua medida dos fatos move nossa humana oficina a forjar no chão da poeira vencida um modo de estelar transcendência.
Dorme em mim, meu fim de ano. Em mim sossega, meu simples dia. Mas tantos és, em tantos te prolongas, em tantos te multiplicas, que é impossível sejas um só. Dizer-te um dia quando tantos para ti convergem. Dizer-te um dia quando criações sociais que nos transcendem já te convertem em síntese de dias outros tão muitos e dessemelhantes. E não obstante ritmado pela rotina, cá dentro pulsa a certeza de que nenhum dia noutro se repete, que a cada manhã sou eu um outro acordado movendo-se para além do choque confortador da repetição.
Quero dormir, 2009. Acordar outro e todavia estranhamente eu mesmo. E amanhã abrir os olhos com a mesma serena desesperança com que agora te repasso e bem te deixo. E em mim nenhuma saudade, nenhuma dor a doer-me. Saber que há homens, que há amigos; que no corpo latejam vida, ânsias, desejo; que a mulher é meu princípio, naufrágio e fim. Querer meus vivos, poesia. Amar meus amigos. Com tudo embora, e apesar de tudo, saber que há campos e iguais caminhos. Que diferenças se encaram e se irmanam e se completam, também se chocam.
Ser sem tempo, ou imaginariamente de todos, não de hoje, não deste dia transpondo a fronteira do calendário, iluminando o umbral de um novo ano. Apesar de tanta divisão e finitude, apesar do culto contemporâneo da diferença e da particularidade, sonhar ainda e sempre o ideal universalista de Sócrates e Montaigne, dos iluministas do século xviii, de toda a tradição universalista inspirada pela crença de que somos antes de tudo materializações singulares do gênero humano.
Impossível já tanta coisa, coração. Mas saber que pulsamos. Entre amor e ruga, entre insônia e riso, saber que pulsamos. Há um calendário, sei, e ele segrega tempo e o tempo rompe a linha da neutralidade aparente. Mas saber que o ultrapassamos, saber que o vencemos. Ou que o suportamos. Alguns erros passaram, outros esquecemos, mais outros perdoamos. E nos perdoamos. E outros virão, saber eu sei. No fundo ensinam limites, aclaram nossa medida, estranha e humana medida.
E prosseguir a viagem. Rolar de esferas e trilhos. Saber que há múltiplos e incertos caminhos. Mas confiar, crer ainda que para algum improvável ponto muitos convergem e se enlaçam. Ou pelo menos se cruzam. Pelo menos se acenam: forma sutil de arar o caminho do outro. Poder ainda confiar em poucos e exatos homens. Confiar nesses que são eu quando fora de mim, modo de possibilidade que não pude nunca alcançar. Confiar nesses que incorporo, que além de mim me completam e nesse grau me pertencem. Acima de ilusões, do vão e vago consolo, acreditar que é ainda possível. E prosseguir a viagem. Gostando, malgrado tudo. Quanto a ti, 2009, não te dissolves senão nesse calendário de tão passado já frio.

És meu cá dentro e és presente.
Por meu direito e conquista
eu te incorporo e possuo.
Com tudo que a mim me coube
que me ofertaste e perdeste.
Com toda a dor e ausência
desejos nunca possíveis
fatalizadas passagens.

E que por fim nos encaremos. Que nosso olhar irradie essa franja de vida a desenhar-se nos trilhos onde na noite rolamos. Talvez até por acaso. Pois que hoje, pelo menos hoje, também acolhamos o acaso. Até porque temos sido demasiada necessidade. E o último dia ainda não veio. E talvez demore.


Fernando da Mota Lima.
Recife, dezembro 1996.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Silke Weber - A Queda


After the Fall
ou
Uma queda e algumas (di)versões

Silke (recolhendo, ou ocultando?, algumas provas do crime) - Quando dei por mim, Heraldo, Adriana, Jorge e Pope estavam como que miraculosamente suspensos no ar da varanda. Como se levitassem. Se eu me encontrava caída? Claro que não. Isso não passa de conversa de desafeto. Ou da oposição, se você prefere entender esse estranho episódio em linguagem política. Já lhe disse que não caí. Apenas escolhi ver o mundo de uma perspectiva inusitada. Alguma conexão entre a queda do muro de Berlim e a queda da cadeira? Mas que absurdo! O muro não caiu. Eles desceram. Do muro, claro. Se eu recomendaria uma poltrona Dolfin? De modo nenhum. Nem na varanda de um anfitrião insuspeito.

Pope (saindo do consultório do ginecologista) - Mas é claro que ele anda muito mudado. Como não, gente? Afinal, sem querer dar uma de esposa indiscreta, ele vinha tentando há mais de dez anos. Passado o susto e o alívio de não mais precisar repetir aquela frase sombria de Machado de Assis, que com certeza tentou mais do que o meu marido e sempre em vão, como atesta a história literária, ele logo cedeu a outros temores absurdos. De que tipo? Temor de o nosso futuro filho aprender a cantar como João Gilberto, ou ser uma filha paquita como a Xuxa, ou transformar-se num ator de teatro lépido e fagueiro. Espera aí: o que isso tem a ver com o serrote e a queda da Secretária de Educação? Se vi meu marido escondendo um serrote? Claro que não. Na verdade, ele falou, sim, algo parecido. Mas não sei se disse serrote ou Seurat. Por que Seurat? Ele estava folheando um livro sobre pintura impressionista. Por que serrote ou Seurat? Por que serrar?

Heraldo (envernizando uma cadeira de três pernas) - Quem disse que empurrei a cadeira onde a Secretária estava sentada? O gravador está desligado? Nesse caso vou falar a verdade: não empurrei, mas bem que gostaria de. Por quê? Porque talvez fosse esse o único meio de afastá-la da disputa sucessória. Meus motivos? Puramente egoístas. Sinto falta das piadas nos corredores da pós-graduação, das nossas pequenas disputas acadêmicas, dos chopes no fim do expediente. Não sabe que importância têm essas coisas banais? Também não sei muito bem. Acho que é porque uma grande amizade, resistente aos anos, rotinas e toda a sorte de divisão, é como um casamento sem sexo, comunhão de bens e sucessão de propriedade. Como há muito concluí que não valeria trocar meu cavalo (quero dizer, minha amiga) pela manutenção do meu reino, não hesitaria em empurrar a cadeira. Contanto que se fosse apenas a da sucessão, não a da minha amiga. É. Alguém disse, sim, alguma coisa sobre reino e cavalo. My kingdom for a horse, acho. Mas naquele tempo não existia ainda poltrona Dolfin. Apenas execução sumária nas disputas pela sucessão política. Também lamento. Era um método mais eficaz e suscitava versões menos fantasiosas do que essas inspiradas pela queda da Secretária do alto de uma reles cadeira.

Adriana (levantando-se da cadeira, que tinha quatro sólidas pernas e não era Dolfin) - Não, não vi nada. Quero dizer, quando vi, a Secretária estava já na horizontal. Como se levantou? Tão imperturbável quanto Heraldo diante de uma heraldete reprovada ou Thomas More diante do homem que lhe cortou a cabeça. Não vi nada disso. Acho que tanto um quanto o outro seria capaz de serrar a cadeira. Não, Moacir estava ouvindo Miles Davis. Era Jorge quem folheava o livro sobre pintura impressionista. Concordo que ele é muito impressionável, mas é preciso muita imaginação para transformar Seurat num serrote. Talvez a Secretária pense algo bem diferente, admito. Especialmente se a cadeira foi de fato serrada. Se eu empurraria a cadeira? Meu Deus, nem Heraldo chegaria a tanto.

Moacir Miles Angels (de costas para o interrogante como Miles Davis soprava o trompete de costas para a platéia) - Se a Secretária estava sóbria? Não posso garantir. Até porque não aposto em Lei Seca numa roda onde houver músico de jazz, político e intelectual, acadêmico ou não. O que vi? Mas eu não vi nada. Aliás, não costumo ver nada. Meu negócio é ouvir: jazz, Miles Davis, João Gilberto, Billie Holiday, Chet Baker. Quando estou desocupado? Ouço jazz. Ah, esqueci de dizer que vejo filmes. A queda? Que queda? Não me lembro sequer de cadeiras na varanda.

Jorge (dissimulando um objeto suspeito) - Eu estava serrando as páginas de um livro de arte. Quero dizer, estava folheando um livro de arte. Lembro, sim, que depois da décima lata de cerveja chamei a atenção de Pope para a foto de uma obra de Seurat e disse: É Seurat. Não, não me lembro se a Secretária caiu antes ou depois da invocação deste nome. Se tenho um serrote em casa? Claro que tenho. Se tanta gente tem revólver, cachorro, dólar e até fuzil em casa, por que não posso ter um serrote? Ah, é um instrumento de mil utilidades. Serve para serrar pão, antigas edições de livros com páginas lacradas, imagens de Cidadão Kane e cd de João Gilberto. Uma vez pensei em serrar o corpo de Pope. Mas foi só uma vez. Quando vi Janela Indiscreta. Mas nesse tempo eu era de fato muito impressionável. Hoje eu serraria a janela e ficaria com Grace Kelly. Quero dizer, ficaria com Pope. A cadeira da Secretária? Desculpa, eu tinha esquecido. Não, não serrei. Vai ver que foi Seurat.

Nona (removendo livros de economia da estante sólida como uma cadeira Dolfin) - Ele mudou muito. Acho que tudo começou no dia em que fez uma palestra no Mispe sobre jazz e cadeira elétrica. Perdão, eu quis dizer jazz e cinema. É verdade. Ele alcançou num dia a fama que Keynes, Delfim Netto e outros economistas lépidos e fagueiros não alcançaram depois de anos produzindo na área da ciência econômica. Ficou tão convencido que até comprou uma caneta de ouro para assinar autógrafo depois da segunda palestra. Hoje não faz mais nem orçamento doméstico. Somente pra provar que não é mais economista. Serrote? Não. Anda falando em comprar trompete, saxofone, clarineta. Falou até em comprar uma tuba. Mas serrote não. O que ele iria fazer com um serrote num conjunto de jazz? Serrar a cadeira da Secretária? Melhor serrar a de Fernando Henrique Cardoso.

O anfitrião (bocejando na manhã seguinte) - Mas como? Eu nem estava em casa.
Epílogo
A Rainha destronada - Quando me vi sobre o chão, tão nula e nua de poder quanto quando nasci, medi-me pelo metro da poeira que daqui de baixo nos espreita e afinal compreendi o que significa dizer: vaidade, tudo é vaidade.Mas de que me valeu essa lição tardia, se dentro de alguns minutos minha cabeça rolará para fora do meu corpo? Tudo como antigamente, como nos tempos em que havia reis e sucessão real. Muito, muito antes de inventarem a poltrona Dolfin. Já que vão mesmo me decapitar, por que afinal não me revelam que força me destronou?

Fernando da Mota Lima. - Recife, 12 novembro 1995.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A Modernidade nos Trópicos


Revisitando o leito promíscuo do nacionalismo

Valéria da Costa e Silva incorre num gesto de reconhecimento generoso que bordeja a ironia temerária: convida um obscuro estudioso de Gilberto Freyre e Mário de Andrade para assinar o prefácio de sua obra consagrada à interpretação destes representantes supremos do nosso nacionalismo cultural. Ela põe com isso suas cartas na mesa, ponho eu as minhas ao arriscar-me a escrever o prefácio, e seja portanto o que Deus quiser.
Valéria é uma das mais distintas expressões de uma geração pernambucana iniciada nos bancos acadêmicos das ciências sociais que mais tarde, seguindo vias retas e tortas, alargou seus horizontes mentais integrando a sociologia à literatura, à antropologia e aos domínios polivalentes dos estudos culturais. Falando dos poucos que conheço, e cuja obra em processo posso razoavelmente avaliar, acrescentaria a seu nome os de José Luiz Passos e César Melo - além de dois outros, Maria Eduarda Rocha e Brenno Kenji cujas trajetórias bem mais diferenciadas anulam qualquer tentativa de aproximação com os demais que brevemente associarei nos limites deste parágrafo. Desmamados no Curso de Ciências Sociais da UFPE, ali encontraram ambiente pouco propício às interações entre sociologia e literatura. Daí salientar que foi decerto a passagem de todos por universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro o estímulo maior para que encurtassem a distância entre campos de saber hoje prevalecentes na formação e na obra que estão amadurecendo. Ainda mais decisiva, e definidora, foi a experiência que viveram em universidades americanas.
Atendo-me ao caso específico de Valéria, pode o leitor criterioso de pronto observar que seu livro inscreve-se numa zona de intersecção onde se cruzam e não raro se enlaçam a sociologia, a literatura, a antropologia e a história social. Todos esses saberes, integrados de uma forma incogitável dentro das reduções correntes nos campos estreitamente especializados da academia, precisam ser de resto mobilizados pelo estudioso que se aventure a investigar obras como a de Gilberto Freyre e a de Mário de Andrade movido pelas ambições palpáveis no livro de Valéria. De certo modo, esses limites abrangentes são impostos pela própria natureza do objeto que ela elegeu. Afinal, ambos os autores acima se propuseram produzir uma obra caracterizada por ambições amplamente fundadoras de projetos de cultura e identidade nacional, assim como de interpretação literária e cultural. Coerentes com esse propósito, concentraram nas obras que mais os distinguem e lhes sustentam a posteridade – Casa-Grande & Senzala e Macunaíma – uma síntese da cultura brasileira. Some-se a tudo os meios expressivos empregados pela autora cuja prosa límpida e fluida, tão afim da nossa melhor tradição ensaística, é plástica o suficiente para à vontade incorporar tons confessionais e vivas ilustrações sócio-antropológicas recortadas do cotidiano que observa com notável sensibilidade interpretativa. Atente-se ainda para alguns tons e argumentos francamente polêmicos, que adiante melhor considerarei.
A geração de Valéria passou ao largo da obra de Gilberto Freyre. Melhor diria se frisasse que a ignorou. Sendo ainda mais preciso, negou-a quase sempre sem conhecê-la. Refiro-me aqui, fique bem claro, a um fenômeno geracional. Logo, não se aplica a nenhum indivíduo específico. Não se aplica a Valéria, que não sei até que ponto está individualmente implicada nesse fenômeno geracional. Mas o fato é que o apoio ativo emprestado por Freyre à ditadura militar decisivamente concorreu para seu isolamento intelectual antes de tudo na esfera acadêmica, ironicamente convertida em nicho do pensamento de esquerda sob patrocínio da própria ditadura. A contestação, explícita ou comprimida, aberta ou dissimulada, estendeu-se à obra de Freyre, que amargou durante duas décadas um misto de silêncio e refutação baseada na ignorância. Narciso acha feio o que não é espelho. Pior ainda: o que é indiferença. Trocando em miúdos: falem mal, mas falem de mim. Quase ninguém falava e bem se pode imaginar o quanto isso castigou a vaidade do nosso grande intérprete da cultura brasileira.
Mas o fator acima, decerto o mais decisivo para o isolamento que Freyre suportou até meados dos anos 1980, foi precedido por dois outros bem anotados por Peter e Maria Lúcia Burke em livro recente: Repensando os Trópicos. Ressaltam que a obra produzida por Freyre desdobrava-se a contrapelo da sociologia hegemônica instituída pelo grupo de uspiano formados sob a liderança de Florestan Fernandes. O primeiro fator refere-se ao modo como Freyre interpreta as relações raciais no Brasil. O segundo afeta o método – ou sintomaticamente falta de método, como acusou Dante Moreira Leite em O Caráter Nacional Brasileiro - e até de concepção sociológica estrita num intérprete que tão à vontade desrespeitava as fronteiras convencionais demarcadas no conjunto das ciências sociais. Num momento em que Florestan Fernandes e seus discípulos, somados a outras correntes nutridas pelos grupos acadêmicos em ascensão, lutavam para impor no Brasil um padrão científico, com ou sem aspas, à sociologia brasileira, Freyre reiterava e até excedia um procedimento hermenêutico patente desde sua obra inicial. Além de livremente mesclar disciplinas como a sociologia, a antropologia, a história social, a psicologia e tantos outros saberes de alcance mais restrito, vertia tudo isso numa prosa fluida e inventiva revestida dos mais altos valores ensaísticos. É sabido o quanto ele prezava esses seus valores antes de tudo literários, fato que enfatizava ao ponto de se dizer antes de tudo um escritor.
Presumo que as sumárias indicações acima concorrem para em algum grau esclarecer o ajuste de contas a que Valéria procede no seu livro. Sendo uma estudiosa empenhada e franca, já no prefácio anota ser uma admiradora convertida de Freyre. O qualificativo, tão concentrado no tom alusivo apenas para o leitor desatento, remete às questões indicadas nos parágrafos precedentes. Como intelectual empenhada, a obra de Valéria diverge dos estudos neutros, não raro expressos em estilo anódino. Mais que empenhada, ela vive e escreve calibrada pelo ritmo da paixão. Sendo assim, ela enquanto autora se espelha em linhas nítidas no conjunto da obra. Pois afinal este é um ingrediente definidor das obras empenhadas e passionais. É assim coerente que anuncie, já no prefácio, sua determinação de embrulhar-se em vários ajustes de contas. O primeiro, como já sublinhei, é com ela própria, com esse passado recente, individual e coletivo, tendente ao desapreço ou franco desprezo pela obra de Freyre.
O livro de Valéria sustenta, assim penso, um paralelo com a obra que me parece a mais renovadora dos estudos sobre Gilberto Freyre. Refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallares-Burke. Ela é a primeira a reconhecer a importância desta obra, fato que registra no seu prefácio. Isso todavia não desmerece os méritos de Valéria nas partes do seu livro em que explora temas semelhantes àqueles desenvolvidos por Pallares-Burke. Pelo contrário, entendo que em certos planos as duas obras se complementam. Por exemplo: Um Vitoriano dos Trópicos limita-se declaradamente a rastrear as fontes estrangeiras, notadamente inglesas, decisivas para a formação intelectual e ideológica do jovem Freyre, processo que culmina na composição de Casa-Grande & Senzala. Sua investigação se detém coerentemente nesse ponto. Valéria vai além, em certa medida confessadamente apoiando-se na contribuição renovadora de Pallares-Burke, ao estudo desta acrescentando as fontes brasileiras nas quais Freyre comprovadamente bebeu. É o caso, fiquemos neste, da contribuição que Joaquim Nabuco presta à interpretação de Freyre relativa à experiência escravista brasileira.
Além disso, o escopo do seu livro é bem mais abrangente, o que constitui outro elemento diferenciador significativo, além de acrescentar qualidades indiscutíveis à sua investigação. Não satisfeita de cobrir um amplo espectro de questões mapeadas na obra de Freyre, que pode de resto ser lida como uma micro-enciclopédia brasileira, Valéria salta para questões do presente, algumas prenhes de equívoco e matéria de controvérsia. Nesse sentido, ela antecipa o livro de Peter e Maria Lúcia Pallares-Burke recém-publicado: Repensando os Trópicos. Isso é evidente, por exemplo, na sua tentativa de articular um ponto de vista brasileiro em face do acelerado processo de globalização cultural em que vivemos. É ainda evidente nos argumentos que expõe relativos à política de cotas e suas implicações para as relações raciais no Brasil. Seu ponto de vista, neste passo, é nitidamente tributário da interpretação proposta por Freyre para um adequado equacionamento das interações entre raça e cultura. Embora refute a noção de democracia racial enquanto fato, assim como aliás procedem muitos dos que neste quesito substancialmente concordam com Freyre, ressalta com razão o significado positivo de uma política racial, melhor diria cultural, inspirada pelo mito da democracia racial, ou uma política que vise esse fim como horizonte utópico. Noutras palavras, sem negar o fato do racismo à brasileira, sobretudo as iníquas condições de desigualdade que nos distinguem daqueles países que efetivamente completaram seu projeto de modernidade, valendo-me aqui de uma alusão a argumento proposto por Habermas, Valéria aposta no sentido simbólico do mito da democracia racial. Isso ainda renderá muita briga e incompreensão, mas espero que ao cabo todos se salvem, sobretudo os valores de tolerância e equilíbrio de antagonismos, para lembrar uma expressão tão cara a Gilberto Freyre.
O zelo pelo mito da democracia racial, ou ainda a dimensão utópica inscrita no horizonte de nossas relações raciais, pode inspirar crítica ou franca aversão ao estudioso estreitamente positivista, assim como aos críticos da ideologia que nela identificam tão-só um instrumento simbólico a serviço da mistificação e dos interesses inconfessadamente orientados para a dominação. Parece-me que os que incorrem nessa clave analítica adotam uma concepção muito pobre da realidade social, assim como dos critérios de verdade entroncados nas práticas epistemológicas que sustentam. Pois me parece que só uma pessoa muito ingênua, ou intelectualmente bem apressada, teria a presunção de discriminar verdade e ilusão, mito e história em termos absolutos. Diante disso, prefiro ficar com o que chamaria de efeito de realidade. Isso quer dizer, em resumo, que a crença num mito racista, como o da pureza e superioridade ariana celebrada pelos nazistas, tem o poder de criar efeitos de realidade devastadores. Portanto, fico com Freyre, Darcy Ribeiro, Valéria, Peter Fry e Caetano Veloso, entre outros, que não obstante conscientes de que nossa democracia racial é um mito, assim como nossa iníqua desigualdade um fato que nos amesquinha enquanto povo e nacionalidade, reconhecem a força fecunda do mito e do ideal utópicos postos a serviço de fins humanistas mais altos.
Mito por mito, antes o da democracia racial. Talvez nunca alcancemos chegar lá, pois confesso ser bem menos otimista do que Freyre e Valéria. Ainda assim, antes um mito orientado para o bem do que para o mal. A propósito, gosto sempre de lembrar uma anedota relatada por Ray Monk na sua extraordinária biografia de Wittgenstein. Certo dia um discípulo deste procurou-o ansioso por saber o que deveria fazer para melhorar o mundo. Resposta de Wittgenstein: Procure melhorar a si próprio, pois isso é tudo o que você pode fazer para melhorar o mundo. Transpondo o conselho da esfera individual para a social, diria eu parafraseando o filósofo: procure cultivar e lutar por mitos culturais que concorram para melhorar a sociedade na qual vivemos. Assim você fará algo no sentido de melhorar o mundo.
Como ligeiramente já indiquei, Valéria com razão identifica na obra de Freyre uma referência crucial para orientar nosso processo de inserção no universo da cultura globalizada. Valéria é uma crítica enfática da globalização, tão enfática que em algumas passagens roça o limite de uma representação unilinear dessa rede complexa de interações. Mas ela está bem ciente disso, ciente do fato de que a globalização, embora posta a serviço, no plano das relações de poder, do capital e da hegemonia americana, supõe antes de tudo intercâmbio e negociação em todas as esferas de circulação dos bens negociados, sejam eles econômicos ou culturais. Tanto tem disso consciência que repõe a obra de Freyre na temporalidade mais inquietantemente presente, regida por essas forças globalizadoras, para simultaneamente formular uma crítica às forças dominantes do processo de globalização e assinalar as forças e vantagens culturais que o Brasil detém e precisa afirmar nesse processo. É precisamente aqui que uma atualização crítica da obra de Freyre lhe parece inestimável. A mestiçagem, fator tanto empírico quanto analítico que graças a ele tornou-se referente hegemônico na constituição da nossa identidade, converte-se agora, num mundo regido por inumeráveis formas de hibridização, em um precioso elemento de vantagem adaptativa ao cenário globalizado do mundo. Também conceitos de timbre freyreano, como plasticidade e equilíbrio de antagonismos, concorrem na visão de Valéria para melhor nos adestrarmos com vistas aos desafios e efeitos de realidade impostos pela globalização.
Há uma passagem de A Modernidade nos Trópicos que evoco com o propósito de chegar a uma breve consideração relativa à política ou ausência de política de expansão urbana do Recife. Recompondo com fina argúcia analítica as impressões que Freyre recolhe de seus primeiros contatos com a Nova York do início dos anos 1920, já em acelerado processo para converter-se no símbolo mítico da modernidade global, assinala a sensibilidade tradicionalista de Freyre. Daí em parte a crítica deste à arquitetura urbana recortada nas linhas verticais e febris dos skyscrapers. Isso me fez imaginar o horror com que ele hoje observaria essa expansão insensata e predatória do Recife tristemente expressa na corrida em que céu acima se engalfinham Moura Dubeux e Queiroz Galvão esfolando operários cobertos de cal e pó para ver quem primeiro assalta os limites da Torre de Babel. Seguindo sugestão semelhante já proposta por Peter Burke e Fernando Henrique Cardoso, eis aí um tema precioso para os atualizadores críticos da obra de Gilberto Freyre.
Um dos pontos mais altos de A Modernidade nos Trópicos consiste na aproximação que Valéria argutamente traça entre Sobrados e Mucambos e Orientalismo, de Edward Said. Começa frisando conceber Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos como uma unidade, além de ressaltar a beleza deste evocando juízo certeiro de José Guilherme Merquior. Vale a pena de passagem lembrar que o próprio Gilberto Freyre certa vez referiu-se a este livro como sendo sua obra-prima. Também Darcy Ribeiro propõe que se leia ambos como uma unidade, tanto que no seu entender as duas obras deveriam ser publicadas conjuntamente. Contrastando estas duas partes da celebrada trilogia de Freyre, opõe Valéria as relações de continuidade observáveis em Casa-Grande & Senzala ao rico e complexo tecido de polaridades que estruturam seu prolongamento publicado em 1936. Mas o ponto mais original e fecundo de sua leitura reside sem dúvida na já aludida aproximação entre Sobrados e Mucambos e Orientalismo. Depois de sintetizar o sentido substancial do conceito de orientalismo extraído da obra homônima de Said, passa ela a sustentar e sobretudo comprovar que a obra de Freyre constitui uma expressão de orientalismo às avessas.
A valorização inusitada de nossa herança oriental é já patente em Casa-Grande & Senzala. Ao retomá-la aprofundando-a na obra seguinte, Freyre sem dúvida procede a uma operação interpretativa que converte valores culturais tradicionalmente encarados como negativos, ou mesmo desprezíveis, os de matriz oriental assimilados através dos contatos estabelecidos entre Portugal e Espanha com o Oriente, em valores positivos. É isso, em suma, o que Valéria designa como orientalismo às avessas. Sua demonstração do conceito e do argumento acima esboçado constitui, já frisei, um dos pontos mais altos do seu livro. Melhor deixar que o leitor confira com seus próprios olhos.
Noto que já estiquei bastante meu prefácio sem no entanto sequer mencionar muitos outros aspectos igualmente fecundos e sugestivos de A Modernidade nos Trópicos. Diante disso, vejo-me forçado a encurtar minha incursão pela obra de Valéria. Se o livro é já tão extenso, mas nunca excessivo, é no mínimo inconveniente alongar o prefácio além de certa medida razoável. Concluirei, portanto, fazendo ligeira menção às relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife espelhado, como faz Valéria, na ação de liderança intelectual exercida pelos dois intelectuais brasileiros mais decisivos e seminais do século xx: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Valéria lê ambos, assim como os movimentos que lideraram, num registro pautado pelo princípio da convergência. Nesse sentido, propõe aproximações consistentes fundamentadas na obra destes intelectuais que melhor traduziram o sentido culturalmente renovador do modernismo e do regionalismo. A revisão a que procede parece-me ainda necessária, embora outros tenham já felizmente aderido a essa perspectiva. Meu intento, nesse sentido, é lembrar que durante muito tempo prevaleceu na nossa historiografia literária e cultural uma apreciação de ambos os movimentos baseada num princípio de oposição e não raro até de franca hostilidade entre eles. Valéria demonstra o quanto essa apreciação é infundada e foi em certo grau nutrida e incentivada pelos próprios líderes de ambos os movimentos, notadamente Gilberto Freyre. Não posso infelizmente expor aqui esta questão de modo mais adequado. Mas o leitor poderá fazê-lo indo diretamente ao livro de Valéria.
Assentada muita da poeira que por décadas turvou nossa percepção das relações controversas entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife, assim como as relações entre Gilberto Freyre e a escola uspiana de sociologia, questão acima considerada, parece-me que agora respiramos uma atmosfera ideológica bem mais propícia a apreciações mais precisas e isentas. No que se refere a este quesito, o das relações entre modernismo e regionalismo, importaria fazer a devida justiça cronológica a José Aderaldo Castello, que no seu livro consagrado a José Lins do Rego propõe uma leitura integradora de ambos os movimentos, leitura que Valéria e eu livremente refazemos. Importaria ainda lembrar outros críticos importantes seguidores da mesma pauta integradora: Gilda de Mello e Souza e Antonio Dimas.
Por fim, uma consideração relativa ao nacionalismo cultural que percorre muitas das entrelinhas deste prefácio. Gilberto Freyre e Mário de Andrade são, acima de qualquer dúvida, os grandes representantes brasileiros desta fecunda e controversa corrente cultural e ideológica que impregna o conjunto da nossa vida espiritual. A partir de um certo momento histórico ela se faz tão onipresente, acasalando-se assim com toda a sorte de ideologia e movimento de idéias, até de ausência de idéias, que me ocorreu caracterizá-la como um leito promíscuo, expressão que Valéria adota extraindo assim do anonimato, com um gesto de reconhecimento generoso, um obscuro artigo que escrevi sobre o assunto. Lamento frisar que neste ponto crucial do livro adotamos posições divergentes. Como Valéria, segui apaixonadamente durante anos o enredo do nacionalismo cultural assinado por Gilberto Freyre, no meu caso ainda mais Mário de Andrade. Hoje alcancei um processo de revisão cuja resultante é meu distanciamento de ambos no ponto em que se apóiam nessa ideologia nacionalista para interpretarem o conjunto da nossa experiência cultural, assim como problemas de ordem sociocultural que há muito entravam nosso pleno ingresso na ordem da modernidade ocidental. Mas isso não importa para o leitor, que afinal abriu este livro para ler a autora de A Modernidade nos Trópicos. Espero que a leitura que se segue confirme pelo menos um pouco deste muito que sinceramente nele encontrei: é um dos cinco melhores estudos sobre a obra e vida extraordinárias de Gilberto Freyre.
Fernando da Mota Lima.
Recife, 2 de outubro de 2009.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Flávio Brayner -como uma canção de Jobim


Paulo Francis declarou certa vez que estamos ligados aos amigos verdadeiros pelos vínculos inapreensíveis da experiência geracional compartilhada. Noutras palavras, a amizade compreendida no seu sentido mais profundo seria inconcebível abstraída de um solo geracional comum. Penso que isso é discutível por anular uma noção de universalidade expressa na linha do tempo e do espaço que acredito verdadeira. Mas me parece inegável que sua afirmação contém muitos grãos de verdade. Amigos da mesma geração comungam uma unidade de sentido que é fruto de experiências sociais irrepetíveis e incomunicáveis a gente de outra geração, portanto singularmente associadas a determinadas circunstâncias infranqueáveis a quem viva antes ou depois delas. Pessoas pertencentes a uma geração distinta podem apreender o sentido dessas experiências, mas a apreensão será sempre de segundo grau, sempre mediada pela imaginação. Mesmo a imaginação empática, tão pouco comum, pode recriar o sentido do vivido, não a vivência. A vivência é privilégio ou desgraça exclusiva de quem viveu, não de quem pensa ou recria imaginariamente o vivido.

Vou falar de uma amizade perdida e no entanto presente na memória que no caso se traduz antes de tudo em memória musical. Se pudesse reduzir essa memória a elementos sensíveis constantes, minha descrição seria simples: dois amigos à volta de um piano, um tocando e outro cantando. O quadro se completa com alguma canção de Jobim, sempre Jobim, por vezes Chico Buarque, e bebida, cerveja e uísque ou vinho. Mas o solo profundo dessa amizade perdida, como acima sugeri, é incomunicável. Ele se enraíza na singularidade de situações próprias às pessoas que conviveram no contexto cultural típico de Recife e Olinda nas décadas de 1970 e 1980. Daí vieram desdobramentos musicais no cerne dos quais a música de Jobim se impõe soberana.

Flávio Brayner aprimorou seu toque de pianeiro durante os anos que viveu na França. O termo pianeiro, friso, nada encerra de pejorativo. Emprego-o com o propósito de sugerir que Brayner é um amador da música. Corrompido infelizmente pelo processo de mercantilização universal do amor, o termo amador hoje se reveste de sentidos depreciativos. Amador é agora oposto a profissional. Por extensão, o amador é aquele privado da competência ou qualificação do profissional, até porque não exerce seu ofício por dinheiro ou interesse, circunstâncias que adicionalmente o depreciam num mundo regido pela ideologia do mercado. Assim, foi sempre como amadores da música e da celebração da amizade e do convívio humano expresso em gratuidade e prazer que tocamos, bebemos e cantamos através de noites insones num país sem mapa ou exclusivismo de qualquer natureza. Sem nenhum ranço elitista, o que nessa atmosfera espontaneamente se manifestava era certa distinção de classe, traduzida no repertório ou gosto musical, hoje inconcebível nos círculos sociais que freqüentamos, o que nesse sentido justifica a observação de Paulo Francis relativa ao vínculo necessário entre amizade e unidade geracional. Como cantar e de fato ouvir as sofisticadas harmonias jobinianas dentro do tumulto que agora dá a nota a qualquer reunião social?

Flávio Brayner se gastou e nos gastamos em farras não raro sem hora ou lugar definíveis. Certa madrugada, acolhidos por amigos portugueses num hotel em Tomar, tocamos e cantamos para celebrar a passagem de três noivas cuja beleza deslizava pelo salão deserto alongando-se na cauda impecavelmente branca dos vestidos de casamento. Era como se do bojo daquele mundo remoto irrompesse uma cena felliniana pontuada pelos acordes do piano de Brayner. Poderia desfiar aqui um novelo infinito de memórias musicais variando os tons e circunstâncias da que acabo de sumariamente evocar. Mas ficarei na recomposição de apenas uma outra memória. É a que para mim mais importa, a que mais zelosamente retenho no baú das amizades idas e dissipadas, algumas irreversíveis, por ser a que melhor sintetiza o sentido da amizade que através de muitos anos me prendeu a Flávio Brayner. Antes mesmo de aventurar-me a esboçá-la na memória que aqui improviso, rendo-me humildemente à incapacidade de a contento traduzi-la. Seu sentido último e primeiro é intransferivelmente musical. Logo, não há para ele correspondente exprimível em palavras.

Um dia nos reencontramos no seu apartamento em Paris. Antes disso bebemos durante horas pelas ruas da cidade mais bela que conheço, não há bem como fugir no caso ao lugar comum. Com um litro de uísque diante do piano aberto, tocamos e cantamos até o amanhecer para matar saudades do Brasil. Vinha não apenas das ruas de um mundo estrangeiro, mas sobretudo de dois anos de absoluta ausência do Brasil, absoluta ausência da mais elevada expressão musical brasileira na companhia de brasileiros. Mais precisamente: da companhia do brasileiro com quem realizei um sentido de amizade intraduzível em palavra e gesto, em comunidade de confidência ou ofício.

Introvertido impenitente, Flávio Brayner pouco de si falava, salvo no que me dizia através da música de Jobim e Chico, nossa dupla suprema. Depois de mais de 30 anos de amizade, é espantoso considerar que nunca nos derramamos em conversas acaso comparáveis à magia da música através da qual sempre nos comunicamos e nos compreendemos e como amigos nos comovemos e sem palavras nos perdoamos o desleixo e o excesso tão freqüentes nos modos brasileiros da amizade. Foi no decorrer dessa madrugada que mais me senti amigo de Flávio Brayner, que, longe do Brasil, mais profundamente o senti revivendo em solo estranho, na inefável comunidade dialógica da amizade puramente musical, o que de mais alto e humano este país produziu. Cantamos Jobim e Chico, Lupiscínio e Caymmi, Noel e Pixinquinha, Edu Lobo e Antonio Maria, os frevos pernambucanos, a bossa e a fossa, tudo que é coisa nossa.

Quando enfim abrimos as altas janelas do apartamento, apercebi-me maravilhado de que a aurora já recobria os céus de Paris, seus telhados e boulevards. James Joyce celebra e recria na sua literatura os estados de epifania somente concebíveis através da experiência estética. Há outros modos de epifania, claro, mas o que para mim importa é o estético. Meu reencontro em Paris com Flávio Brayner foi um momento miraculoso, um momento de pura epifania que viverá em mim enquanto memória e enquanto sobreviva eu na matéria falível que sou.
Fernando da Mota Lima
Recife, 3 de dezembro de 2009.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Paulo Francis na Cabeça


Para Paulo Fradique e Tarcísio – amigos que saberão ler as linhas e sobretudo as entrelinhas deste texto.

Concebi estas breves notas opinativas, quando possível com seu grão de humor, em memória e louvor de Paulo Francis, um dos raros intelectuais brasileiros de opinião livre. Não raro divergi dele, do seu tom por vezes brutal, mas nele muitas vezes humildemente inspirei-me para ousar viver na contracorrente dos bem pensantes, do bom mocismo humanista, do servilismo mental que induz à adoção do juízo corrente. Sei bem disso porque foi nesse solo que me (de)formei: o do bom mocismo humanista de esquerda, o caldo de ideologia edificante correntemente batizado como o saber politicamente correto. Sapere aude, como reza a máxima procedente de Kant, tantas vezes amplificada no ensaísmo refinado e racionalista de Sérgio Paulo Rouanet, outra expressão de liberdade intelectual que também me inspira. Inspirei-me ainda no humor corrosivo de Millôr Fernandes, talvez o espírito mais livre que já existiu em toda a nossa tradição intelectual, tão afeita ao tribalismo ideológico, também ao radicalismo de cátedra, para evocar um outro intelectual que também me inspira: José Guilherme Merquior.
Foi com Paulo Francis e Bertrand Russell (um dos seus heróis intelectuais, também meu) que comecei a compreender o horror da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos. Mas logo também passei a compreender que a opressão política não tem bandeira, o que não quer dizer que seja a mesma em qualquer lugar, época ou circunstância. Mas acredito que pensar com liberdade é questionar qualquer poder, qualquer forma de dominação, não importando suas credenciais ou procedência. Acredito ainda que pensar com liberdade é aprender a discernir as infinitas tonalidades do mal e seu avesso, sobretudo a inesgotável cadeia de racionalizações de que nos valemos para mascarar ou justificar o que somos ou temos de pior. Neste quesito, o guia supremo talvez seja Freud, que também inspirou Russell, Francis e alguns dos outros modelos que procuro sempre lembrar quando tentado por todas as baixezas da nossa condição. Enfim, como diria Machado de Assis, longamente incompreendido por todas as correntes ideológicas como se fora apenas a estátua oficial erguida pela Academia Brasileira de Letras, tudo, menos ser empulhado. Repito Machado: tudo, menos ser empulhado. Encerro este intróito às breves notas opinativas que seguem citando com justiça e propriedade o próprio Paulo Francis: “Aceito os riscos e incertezas dessa liberdade, essencialmente modesta, pois me acho disposto a aprender do que e de quem me persuadir. Ainda que sozinho continuarei assim, pois sei que estou muito bem acompanhado”. Em suma, aludindo ao título de um dos seus livros, sigo as certezas da dúvida dentro da minha obscura solidão. Por mais metódica ou sistemática que seja, a dúvida encerra, sim, as suas certezas. Sem estas, ela está condenada ao niilismo inoperante e autodestrutivo.

Sou do tempo em que sexo era pecado.
Virgindade era virtude. Refiro-me evidentemente à virgindade feminina.
O Brasil parecia ter jeito, ou pelo menos a gente acreditava. Hoje a gente sabe que é insolúvel, mas finge acreditar que ainda dará certo.
Todas as pessoas de bem, ou supostamente de, tinham orgulho de ser de esquerda. Quem não era comunista era com certeza simpatizante ou companheiro de viagem.
Sou do tempo em que meus amigos brigavam por idéias, ainda que tortas e dogmáticas. Hoje brigamos apenas por cargos e escalas de renda e consumo.
Sou do tempo em que Gilberto Freyre era reacionário e liberalismo era um insulto ideológico. George Orwell era agente do imperialismo americano e Stálin era o grande benfeitor da humanidade. Che Guevara simbolizava um fuzil varrendo a América Latina com múltiplos focos revolucionários. Hoje, como o compram, é um mito romântico domesticado pelo consumo que o converteu em pura dureza enternecida.
Sou do tempo em que João Mohana era um iluminista da pedagogia sexual. Quem ainda sabe quem foi João Mohana? Pois esclareço: foi um padre e psicólogo autor de uma obra obscurantista que fez grande sucesso entre o público jovem e cristão: A Vida Sexual dos Solteiros e Casados. Punido por minha insaciável curiosidade juvenil, li a obra de ponta a ponta, entre excitado e temeroso. O efeito mais desastroso dessa insensata viagem no bojo do iluminismo católico da época foram as noites em claro atormentadas pela ameaça de contrair tuberculose e doenças ainda mais tenebrosas, pois esta era uma das mais doces consolações que o padre assegurava a quem ousasse masturbar-se ou ceder a outras práticas sexuais horripilantes.
Sou do tempo em que acadêmicos de esquerda iam fazer pós-graduação nos EUA e retornavam a suas universidades de origem para dissertar sobre paradigma histórico-estrutural com ares de quem estivesse fermentando uma revolução comunista nos minúsculos círculos elitistas da pós-degradação que se tornou uma fábrica de diplomas para doutores iletrados.
Sou do tempo em que pessoas de direita mascaravam seu direitismo alegando ser de esquerda. Com a derrocada fragorosa dos regimes supostamente comunistas, somada à ascensão da esquerda em países do tipo do Brasil, esquerda e direita foram ficando semelhantes ao ponto de em termos práticos se indiferenciarem. Sendo assim, não é de espantar que esquerdistas se orgulhem agora de ser de direita e direitistas se orgulhem de ser de direita. Enfim, parece que agora todos chegaram ao consenso tardio de que a realidade é de direita. Digo isso porque Freud – também eu, imodestamente – há muito sabia disso, fato que de resto não o torna necessariamente de direita. A propósito, quem sabe mesmo o que é ser de direita ou de esquerda?
A classe média ouvia Bossa Nova, Chico e Caetano, Edu Lobo e Gilberto Gil. Por isso olhava de cima, com patente desprezo, para bregas e bolerões como Waldick Soriano e Benito de Paula. Hoje, pasmem, Waldick, Benito e Ivete Seugalo são clássicos da MPB.
Filme de arte era atestado de identidade intelectual e ideológica. A gente morria de tédio, mas o tédio pagava os créditos do reconhecimento.
Sou do tempo em que Porto de Galinhas era um paraíso antropológico, uma povoação de pescadores de repente invadida por Marcelo Guerra, Maria, Maridite, o lendário Capitão América, Sueli, Zé Carlos, Bete, eu e outros bárbaros da civilização urbana. As meninas, pasmem novamente, acampavam a pretexto de dar plantão nas clínicas e hospitais. Era o único meio capaz de fazer a família, zeladora da virgindade feminina, afrouxar as rédeas de nossa liberdade juvenil.
Sou do tempo em que havia barulho no ar, nossa cultura foi sempre ruidosa, mas em algum remoto lugar era ainda possível captar no silêncio miraculoso da madrugada as ondas sutis de um acorde dissonante. Hoje, até dentro de minha casa, último e vulnerável reduto de minha liberdade, sou forçado a ouvir tudo que rejeito e odeio: o vendedor de gás, o traficante de cd pirata, o alarme dos carros, a febre trepidante da construção civil, o buzinaço dos torcedores de futebol eufóricos e toda a boçalidade repetitiva que designam como música popular contemporânea. A tortura mais inescapável e corrente do nosso tempo é a auditiva. Isso explica o paradoxo seguinte: num país orgulhoso de ser tão musical, bem poucos fazem e ouvem música. Ninguém precisa da idiossincrasia de João Gilberto, nem do recolhimento dos monges, para constatar o quanto fomos privados da liberdade de ouvir o silêncio.
Fumar era um ato de ingresso e afirmação dentro do mundo adulto. Era sobretudo sedutor e por trás da névoa de fumo a gente dissimulava a timidez e insegurança diante da mulher desejada. Hoje o fumante é o equivalente do comunista dos anos setenta.
Ah, o cinema ia morrer. Somente o livro, na crônica dos vaticínios catastróficos, teve e tem fôlego de sete gatos para morrer e ressuscitar mais que o cinema.
Como vêem, sou velho. Sou tão velho que nasci num outro século, num tempo em que palavrão era palavrão. Hoje é apenas refrão do vocabulário infantil.
Sou do tempo em que todo mundo era contra o mercado, tinha horror ao mercado. O mercado que reconhecíamos, e amávamos com tinturas de lírico esquerdismo populista, era o mercado popular com sua sujeira, seu tradicionalismo insalubre, sua inércia mercantil. Flávio Brayner e Luciano Oliveira, por exemplo, marcavam namoro aos sábados no mercado da Madalena, ou no de Casa Amarela. Em tempo: namoro com as namoradas, não namoro entre eles. Aliás, no meu tempo todos éramos machões, até as bichas. Shopping, invenção posterior agora convertida em templo do consumo, shopping era apenas chope.
Sou de tempo em que honestidade era virtude. Meu pai, já falido, vendeu os cacos sobrantes para pagar seus credores, não para antes investir num outro meio de vida. Bem, acho que ele confundiu honestidade com imprevidência. A prova é que durante anos vivemos apertados pela pobreza. Subi tanto, pasmem novamente, que hoje até pareço rico.
Sou do tempo em que havia apenas um marco teórico: o marxismo. Os outros estavam apenas condenados ao paredão da justiça pós-graduada. O mundo deu voltas tão alucinantes que até eu fui elevado à gloriosa categoria de marco teórico. O autor desta façanha, provável candidato ao Bobel das Ciências Humanas, é meu delirante amigo Flávio Brayner. E eu que sonhei ser apenas o marco zero. Friso a tempo, antes que me leiam como um seguidor da humildade, ou da nulidade intelectual, que o marco zero que tenho em mente é o fundador do Recife, a origem de todo esse vasto acampamento urbano que tantos orgulhosamente confundem com uma cidade.
Depois de transpor a barreira dos setenta, meu mítico amigo Daniel Lima divertia-se lembrando sua juventude de homem magro. Por isso ria repicando o mesmo e engraçado bordão: eu era tão magro... Pois também posso eu agora começar repetindo sua toada: eu era tão magro...
Por volta de 1915, Lytton Strachey, constrangido, declarava-se um velho à sua jovem amada Carrington. Tinha então 36 anos. Pouco mais tarde, aí por 1942, Drummond gravou este verso num poema: há muito pressenti o velho em mim. Tinha 40 anos. Não recuo ao século XIX porque então as diferenças eram ainda mais extremas. Basta lembrar que as pessoas já nasciam velhas. De lá prá cá, sobretudo hoje, essas medidas de idade sofreram uma autêntica revolução. Hoje os menores de 15 anos, incluídas as crianças, querem ser adultos apenas para exercerem o direito de praticar prazeres inacessíveis à criança e ao adolescente. Os adultos, maduros e velhos (perdão, quis dizer terceira idade) querem apenas ser adultescentes, isto é, aduladores dos delinqüentes. No futuro, não muito remoto, a cultura narcisista abolirá a velhice e a morte e então seremos todos eternos. Aviso que já sou.
Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de suportação da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?
Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Aliás, meu nome é gerúndio: Fernando. Faltou-me a coragem de ser Infernando.Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino.
Espanta-me ainda toda a cantilena que desenhamos em nome da felicidade. Dela falamos sempre e desejosos a evocamos como se ser feliz fosse um fim, quando não é sequer uma possibilidade. A felicidade é apenas um delírio obsessivo que inventamos, pois que seres feitos de nossa insensata matéria não podem nunca alcançá-la. Os afortunados, poucos mas reais, poucos mas empiricamente assinaláveis, provam-na enquanto estado, enquanto deleitação momentânea, não enquanto expressão de permanência. Se fôssemos capazes de ajustar a medida do que desejamos à medida do que efetivamente somos, regularíamos nossos desejos e fantasias imantados na medida da felicidade momentânea. Noutras palavras, não estamos no mundo para ser felizes.
Uma das mais graves e difundidas moléstias do nosso tempo é a compulsão de ostentar felicidade e otimismo. Pessoas visivelmente infelizes falam de si próprias como se fossem clipes publicitários ambulantes. O cúmulo dessa estranha forma de alienação é o slogan “sem medo de ser feliz”. Se bem o entendo, ele sugere que a única razão de nossa infelicidade radica no medo que sofremos de conquistá-la ou simplesmente fruí-la.
A mulher? Sei que é a grande ausência aparente deste delírio em que racionalmente me meço e me repasso. Como falar da mulher num texto em que ironicamente me cotejo no tempo neste acentuando as linhas indisfarçáveis de sua passagem e ação? Se de algum modo somos vítimas do tempo, ninguém o é mais que a mulher. Daí tantas vezes lembrar a amigos, em nossa correspondência mais íntima e livre, as formas mais cruéis de manifestação da mãe natura. A mulher não se espelha nas linhas deste discurso porque temo de algum modo feri-la aludindo aos estragos que o tempo risca sobre sua pele, sobre sua inefável beleza que é objeto de meu culto mais lírico e secreto. É preciso que num homem se combinem a privação de uma mãe e a fatalidade da poesia antes vivida que realizada para que bem se compreenda a razão do meu objeto de culto. A mulher é tudo e tudo é apenas a mulher. Por que então precisaria eu iluminá-la nas linhas tortas de minha noturna e encantada navegação?
Mas acreditem: meu tempo é hoje, como na canção de Paulinho da Viola.
No dia do meu aniversário – 03 de outubro de 2007.

Rubem Fonseca para César Melo


Dedicatória para César num livro de Rubem Fonseca

Se leio Rubem Fonseca
Eu rio e faço careta
E o livro me faz feliz.
Esse malandro capeta
Ouviu as nossas conversas
Gravando o que a gente diz.

Nossa vingança e humor
O espinho picando a flor
Ah, como isso é cruel!
Fonseca vai reto e fundo
Revira as pernas do mundo
Com corte de faca e fel.

A gente lá na Jaqueira
Brechando a mulher faceira:
Carne solar e nudente.
E Rubem no nosso andar
Gravando as nuvens e o ar
Roubando os contos da gente.

Retrato Ideal



Ser vário como foi Mário
E o homem renascentista.
Buscar o uno no vário
O plástico na voz do artista.

Ir de algum som a Drummond
Do fato a Wittgenstein
Em cada escala de tom
O voo de tudo que cai.

Na malha do transitório
Reter o que vai passando
Ir do mais alto ao inglório
Ser muitos sendo Fernando.

Fernando da Mota Lima
Quem muito ou pouco se estima
Não sabe a própria medida
Humana que nos conforma.

No conteúdo e na forma
É una e universal
Mescla de voo e norma
Do bem no avesso do mal.

Natura ambivalente
Razão no corpo que sente
Mistério exposto na cifra
O homem se pensa em vão
Pois não tem fim, solução
E nunca a si se decifra.

Fernando da Mota Lima
Recife, 29 de novembro de 2009

Mário de Andrade e as duas Éticas



Ética da Forma e Ética da Participação

Orientado para a atualização estética do Brasil, como bem sintetiza Oswald de Andrade na frase “Acertar o relógio império da literatura brasileira”, o Modernismo inicial se desdobra sob o signo da experimentação. Acertar o relógio significava regular nossa expressão estética em consonância com as vanguardas européias, atualizar nosso código expressivo assimilando-o às trepidações estético-culturais da modernidade. Já aí, no alvorecer modernista regido pela revolução da forma, ou da linguagem artística, Mário de Andrade se distingue como o mais informado participante das hostes modernistas. Essa circunstância, somada a outras de lastro moral necessárias ao exercício da militância artística, concorre para logo convertê-lo num dos dois líderes incontestes do movimento.
No curso dos anos vinte, incorporados à nossa historiografia literária como a fase heróica do Modernismo, a ética da forma se exprime na obra de Mário tanto na dimensão teórica, contida na formulação de uma poética da nova arte, quanto na prática (o poema e a narrativa ficcional materializando as proposições teóricas na criação literária estrita). Se nesse momento de ruptura dos códigos expressivos o projeto estético se sobrepõe ao ideológico , logo mais ambos se contaminam, sobretudo a partir do momento em que a dinâmica do processo modernista assimila o nacionalismo e a busca da nossa identidade cultural como dados fundamentais de particularização. Este ponto de inflexão está bem documentado, entre outras múltiplas fontes, na correspondência que em meados do decênio Mário de Andrade mantém com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, além da colaboração ativa que empresta às páginas do periódico nacionalista Terra Roxa e outras terras. Em suma, a conversão do Modernismo internacionalista em nacionalismo militante vai gradualmente imprimindo nitidez ao relacionamento complexo entre a estética e a ideologia no cerne movente do movimento.
Retomando a distinção proposta por Lafetá entre projeto estético e projeto ideológico, pode-se corretamente repetir que o primeiro prevalece no curso dos anos vinte, enquanto o segundo rege o processo artístico-cultural do decênio seguinte. O processo é todavia complexo, como já o sugeri antes, pois na prática viva da arte e da cultura ambos se contaminam e interagem. Especificando essa relação – melhor direi correlação – tensional e ambígua na obra e na militância intelectual de Mário de Andrade, intentarei demonstrar como ele luta fora e dentro de si com e contra esses dois demônios: a ética da forma e a ética da participação. Embora o processo de maturação criadora concorra para que mais tarde encontre meios de imprimir mais nítida formulação a esses termos ora polares, ora paralelos, ora convergentes, mas sempre indissociáveis, o fato é que não logrou até o fim da vida repousar numa solução definitiva ou conciliadora.
Intentando, já um tanto em lugar impróprio, precisar o título desta comunicação, talvez a alguns cause estranheza a expressão Ética da Forma. Um exame apressado do fluxo das vanguardas deste século poderia induzir à crença de que muitas delas, inspiradas numa militância belicosa e destrutiva, cindiram na prática qualquer elo significativo entre ética e forma. Se é fato que Mário, como os vanguardistas em geral, usou e abusou da arma do choque - épater le bourgeois, como é evidente num poema como Ode ao Burguês - da irreverência, do escândalo, da provocação dirigida pelo cálculo pragmático, sua ação de vanguardista não deslizou nunca para o cinismo, a negatividade absoluta ou o niilismo. A história, seja a política, seja a cultural, não se faz, nos momentos de ruptura ou mudança brusca, à margem da destrutividade e da violência. O Modernismo brasileiro constitui uma ilustração amena desta verdade, mas é de qualquer modo um momento de eclosão destrutiva comandado pelas correntes renovadoras do nosso processo artístico-cultural. Assim, Mário de Andrade foi muitas vezes irreverente, muitas vezes cabotino, muitas vezes agressivo e destrutivo, mas há sem dúvida uma intencionalidade ética dirigindo sua ação substantiva.
A intencionalidade ética se evidencia, por exemplo, em pleno fervor experimental das vanguardas, quando exigia do artista o domínio artesanal – e mais amplamente estético – da arte que se propunha transformar. Crítico impenitente do vanguardismo, assim como do formalismo (entendendo-se aquele e este como inconsequentes ou gratuitos, friso), reclamou sempre do artista um princípio de responsabilidade social e estética perante a obra, em primeiro lugar, e em seguida perante o público. Do mesmo modo que dizia não acreditar na obra gratuita, esteticamente desinteressada, também criticava qualquer tentativa de experimentalismo que não se baseasse no conhecimento daquilo que se queria transformar, ou “fazer errado”, como dizia, no sentido de transgredir a norma, qualquer tipo de norma contra a qual o artista investisse sua negatividade. Noutras palavras, só se transforma consequentemente aquilo que se conhece.
Como se evidencia no parágrafo precedente, embora tenha eu condensado fatos e argumentos atribuídos a Mário de Andrade sem me deter em citações diretas, há uma ética dirigindo sua ação intelectual em pleno fervor da revolução formal. Ela se adensa e tensiona a partir do momento em que ele abraça o nacionalismo cultural com ênfase militante e até proselitista. É aí que emerge a questão: como conciliar arte experimental e funcionalidade social? Pode o artista ser ao mesmo tempo socialmente útil e esteticamente hermético? Mário se propõe de modo explícito esta contradição já em 1924, antes mesmo de a corrente da vida e da política exacerbarem o conflito entre a ética da forma e a da participação.
Eis o que diz a respeito escrevendo para Manuel Bandeira no ano acima indicado: “Toda e qualquer rebusca literária que prejudicar a clareza da expressão literária relacionada é defeito. Daí o pouco interesse que tenho por Mallarmé, Góngora, Reverdy e porção. O próprio Rimbaud em muitas das suas páginas me desagrada agora. Só foi supremo no Saison en Enfer. Daí também a minha evolução para uma arte cada vez mais simples e natural, arte de conversa que toda a gente entenda”.
Mário de Andrade nunca solucionou essa contradição compreendida entre a forma e a participação, entre a liberdade expressiva e a arte dirigida para um fim utilitário ou momentâneo. Traduzindo a contradição em outros termos alternativos, a função expressiva e a função comunicativa da literatura lutam no cerne da obra de Mário uma luta sem repouso, embora antes mesmo de 1930 se tenha empenhado em acentuar a segunda em detrimento da primeira. Talvez não exista simplesmente solução para o problema e ao cabo reste ao artista optar seja pela soberania da expressão – como o fizeram James Joyce, os pintores abstratos e a vanguarda musical erudita, para ficar nestes exemplos imediatos -, seja pela arte participativa tantas vezes diluída em banalidade e fôrma sem forma.
Mas se com uma mão confere prioridade à função comunicativa, com outra - a que redige Macunaíma, por exemplo – repõe a contradição. Uma mão, observe-se, escreve esta autêntica profissão de fé participante na qual a obra, enquanto valor especificamente estético, se dissolve em pregação utilitária: “Minha arte, se assim você quiser, tem uma função prática, é originada, inspirada dum interesse vital e pra ele se dirige. (...) Minha arte aparente é antes de mais nada uma pregação. Em seguida é uma demonstração. (...) Minha vida é uma erupção de ardências de amor humano, eu só vivo pensando nas realizações desse amor. É natural pois que os motivos da inspiração nasçam do que toma todo o meu motivo de viver. Daí o lado intelectual, pregação, demonstração da minha pseudo-arte. Arte que se o for tem sempre um interesse prático imediato que nunca abandonou”.
A outra mão, todavia, já o frisei acima, entrega-se com rigor e paixão à longa e maturada forma de Macunaíma. E esta obra, que é em termos de criação ficcional a mais alta expressão do nosso nacionalismo cultural, reitera em Mário a contradição entre expressão e comunicação na medida em que imprime relevo e prevalência ao primeiro termo, daí resultando uma obra inventiva no andamento deliberado e consciente da composição formal, uma obra polissêmica e como tal crivada de ambiguidade, ironia e inversão paródica dos códigos convencionais.
Esticando ainda um pouco mais a corda das tensões dialéticas no intento de precisar essa contradição vivida por Mário de Andrade, ela não se esgota na formulação polar acima impressa. Mário vai além do questionamento da literatura experimental incorporando à contradição o artista que opta pela obra, ou pela literatura, em lugar da vida generosamente vivida. O exemplo aqui suposto nos remete para o seu ensaio sobre Machado de Assis. Escrevendo sobre o nosso artista supremo durante as celebrações do seu centenário, começa Mário por se propor uma pergunta retórica: amas Machado de Assis? A tentativa de resposta é já a imediata transpiração de uma luta que se estende pelo corpo do ensaio sem que ao cabo se resolva. Mário admira Machado de Assis, curva-se humilde diante da sua supremacia literária, nele identifica o grande vitorioso da forma, o dominador irrecusável de todas as técnicas e meios expressivos, mas lhe recusa amor, mas conclui por admitir a impossibilidade de se entregar amorosamente à obra de Machado de Assis. Em suma, Machado deve ser objeto de admiração e de culto, mas não de amor. Na visão exaltada e missionária de Mário, faltou a Machado o sopro de amor generoso recobrindo a aspereza do gênio. No plano da linguagem e do estilo, de uma ética da forma, Machado a tudo se impõe e serenamente se guarda na sua permanência de gênio da arte brasileira; no plano da ética da participação, entretanto, Mário decreta sua influência negativa:
“... Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido e muito honesto, afastando de si os perigos visíveis. Mas as obras valem mais que os homens. As obras contam muitas vezes mais que os homens. As obras dominam muitas vezes os homens e os vingam deles mesmos. É extraordinária a vida independente das obras-primas que, feitas por estas ou aquelas pequenezas humanas, se tornam grandes, simbólicas, exemplares. E se o Mestre não pode ser um protótipo do homem brasileiro, a obra dele nos dá a confiança do nosso mestiçamento e vaia os absolutistas raciais com o mesmo rijo apito com que Humanitas vaiou o sedentarismo das filosofias de contemplação. E se o humorismo, a ironia, o cepticismo, o sarcasmo do Mestre não o fazem integrado na vida, fecundador de vida, generoso de forças e esperanças futuras, sempre é certo que ele é um dissolvente apontador da vida como está”.
Espichei intencionalmente a citação para bem sugerir a natureza fraturada da crítica que Mário endereça a Machado, para igualmente sugerir o modo como a contradição, aparentando de início resolver-se, se repõe e se instala atravessada entre o coração e a consciência crítica do nosso Mário tão vibrantemente passional e desavindo de si. Sei que me excedo no tom e no estilo, sei que não convém à suposta objetividade do discurso acadêmico de corte positivista derrapar no tom confessional e amoroso, mas o fato é que Mário é assim: não se contendo no metro apertado da nossa humanidade convencional, ele vem e se derrama e quando o leitor dá por si já está também se derrramando.
Exigente e contraditório, exige Mário antes de tudo de si próprio em si próprio se contradizendo de forma continuada. Se combate a própria supremacia olímpica de Machado de Assis, como acabamos de observar, supremacia que supostamente lhe teria fechado as portas de uma expressão artística mais humana e calorosa e mais generosamente repartida com os leitores dele, combate a forma impermeável à participação, assim como combate a participação desarmada do rigor construtivo da forma artística. Por isso coerentemente entra em desacordo com o experimentalismo mais radical de Oswald de Andrade nos anos vinte para logo mais tarde, no decênio assinalado pelo predomínio do projeto ideológico, combater tanto a literatura participante de esquerda acomodada no gosto fácil da mimese naturalista quanto o absenteísmo metafísico de Tasso da Silveira, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e outros escritores de formação católica.
Como está visto, eu não resolvo a contradição que pontua este texto. Não a resolvo, antes de tudo, por estar consciente de que o próprio Mário de Andrade não a resolve no conjunto da sua obra, nem tampouco da sua vida sob muitos aspectos indissociável daquela. Acrescentaria que, até onde alcanço compreender, a contradição não se resolve aqui por ser ela própria insolúvel. Sendo assim, talvez o mérito desta comunicação consista em trazer a público uma questão ideal para o exercício do debate: a questão insolúvel. Não concluiria, entretanto, sem antes procurar sugerir grosseiramente algumas linhas de avanço na reflexão de Mário apertado, e até atormentado, pela tensão irredutível entre a ética da forma e a ética da participação.
Em 1938 Mário de Andrade escreve um texto, “O Artista e o Artesão” , no qual procura refinar conceitos estéticos passíveis de resolver, ou pelo menos conciliar em termos práticos, a contradição que observava existir entre a liberdade expressiva do artista e a função utilitária e comunicativa compreendida na arte que pratica. Operando com os conceitos de artesanato e técnica, principia frisando a necessidade universal do primeiro. Todo artista verdadeiro, enfatiza, tem que por força ser um artesão, isto é, dominar os processos e exigências compreendidos pelo material da sua arte. O artesanato, ou o conjunto dos meios elementares envolvidos na fatura da obra, é uma necessidade e é também a parte verdadeiramente ensinável da técnica. Esta, por sua vez, compreende um outro grau, que Mário designa como sendo a virtuosidade ou, noutras palavras, a ciência da técnica tradicional. Embora frise que esta parte da técnica é também ensinável, observa não ser ela imprescindível. Aliás, Tomá-la por imprescindível seria correr graves riscos. Como ele próprio assinala, a virtuosidade pode representar um grande perigo “Não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais para se tornar simplesmente ´passadismo` ou, se quiserem, ´academismo`; como pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um ´virtuose` na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade pessoal, entregue à sensualidade do aplauso ignaro”.
Por fim, a técnica compreenderia um último e mais importante grau, aquele que Mário designa como sendo a técnica pessoal. Se de um lado compreende os dois modos antes referidos, o artesanato e a ténica tradicional, a ambos transcende não só por ser inensinável e imprescindível, mas sobretudo por ser uma expressão do que chamamos de ´talento`, por encerrar na sua manifestação complexa “a solução pessoal do artista no fazer a obra de arte”.
Seria demorado discutir as implicações técnicas e estéticas desses conceitos e distinções propostos por Mário de Andrade. O que me interessa acentuar, tendo em vista a natureza desta comunicação, é a articulação desses conceitos, sobretudo o de técnica pessoal, com o problema que nos ocupa: a contradição entre liberdade expressiva e funcionalidade social na obra de arte moderna. Segundo entendo, o conceito de técnica pessoal proposto por Mário em “O Artista e o Artesão”, tenderia a retificar a contradição que enquanto tal repousaria mais na formulação conceitual do que na natureza da relação que encerra. Ao propor um conceito de técnica pessoal passível de compreender não só o artesanato e a virtuosidade, mas também “a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista” , Mário tenta, segundo me parece, uma formulação conciliadora dos pólos contraditórios que atravessam muito da sua obra e das suas reflexões e dilaceramentos estético-ideológicos.
Se esta interpretação é sustentável, convém todavia lembrar que nela Mário não encontra repouso ou solução pacificadora para a sua obra posterior. Bastaria pensar em textos como “A Elegia de Abril”, de 1941, e “O Movimento Modernista”, do ano seguinte, ambos reunidos em Aspectos da Literatura Brasileira, e um conjunto de crônicas musicais inicialmente publicadas na Folha da Manhã, em 1944, nos quais a contradição entre o individualismo expressivo do artista e os imperativos de funcionalidade social da arte se elevam a um nível extraordinário de tensão.
Concluiria aludindo a um verso que, sei, já se tornou clichê. Se Mário foi 350, muito dessa multiplicidade significou não só alargamento de experiência e expressão, mas também de fratura e dilaceramento. Parte disso deriva por certo dessa luta sem trégua travada no trato com a obra, dentro de si próprio e nos embates contra o meio social. Disso também resultou um modo de superação dos fatores adversos sem a qual seria bem mais falível a dimensão de beleza e permanência, o sopro de humanidade conquistada que lhe surpreendo na obra entretanto bastante desequilibrada. O fato é que Mário está morto enquanto matéria física e tangível, mas a contradição prossegue seu curso imperturbável através da história da arte. No entanto, me pergunto, que artista perderia hoje o sono lutando em si e contra o mundo movido pela ambição de resolver a contradição entre a ética da forma e a ética da participação?

Recife, 19 de Junho de 2000.

Gilberto Freyre de A a Z


Elementar, meu caro Edson
Anunciado já há alguns anos, e desde então aguardado pelo leitor crítico ou meramente curioso, vem enfim a público o livro de Edson Nery da Fonseca sobre Gilberto Freyre . Diante da obra lida e anotada para a redação deste artigo, principiaria afirmando que, se é possível que seja útil ao segundo tipo de leitor, o meramente curioso, é provável que decepcione o primeiro, o leitor crítico. Bastaria um ligeiro cotejo entre o subtítulo anotado pelo autor – Referências essenciais à sua (de Gilberto Freyre) vida e obra – e a matéria dos verbetes para que logo se notasse o que contém de superficialidade e omissão. Como os termos com que o autor grosseiramente historia a composição da obra (pp.9 e 10) anulam a hipótese de pesquisa e redação apressadas, soam um tanto incompreensíveis o tom de superficialidade e as muitas omissões que nela observo.
Mas é dever do articulista passar à matéria da obra para substanciar o tom negativo com que introduz sua crítica. Um dado que de imediato chama a atenção é o fato de que Edson Nery dá crédito a uma infinidade de autores ocasionais cuja contribuição para o estudo da vida e obra de Gilberto Freyre é nula. Ilustres desconhecidos são arrolados, por vezes generosamente aquinhoados com verbetes extensos, tão-só por merecerem prefácio cordial de Gilberto Freyre quando da publicação de alguma obra obscura. Noutros casos, figuram no dicionário dada a razão aparente de terem escrito algum artigo ou ensaio de ocasião em louvor do mestre de Apipucos. A inclusão de tais autores seria acaso justificável na hipótese de Edson Nery adotar para a composição do dicionário um critério cuja abrangência favorecesse tanto a quantidade quanto a qualidade dos nomes contemplados. Considerada porém a omissão de nomes merecedores de registro obrigatório em obra de semelhante natureza, tal a qualidade inegável da contribuição efetivamente crítica que trazem ao estudo da obra de Gilberto Freyre, fica evidente a omissão e parcialidade do livro.

Ilustrando um pouco o que a obra encerra de omissões inexplicáveis, como entender a ausência de verbetes referentes aos modernistas de São Paulo e aos representantes da escola paulista de sociologia liderada por Florestan Fernandes? A não ser que se entenda a obra e a vida de Gilberto Freyre como uma seleção arbitrária de nomes, fatos e registros anedóticos, há que situá-las na interação viva com as idéias e autores que lhes especificam o perfil histórico. Ora, a obra capital de Gilberto Freyre emerge no contexto de duas décadas, as de trinta e quarenta, assinaladas por amplas e intensas mudanças culturais e literárias. O Modernismo, compreendido enquanto processo de renovação literária e sobretudo cultural, condensa as grandes questões e realizações do período. Embora nada deva diretamente ao Modernismo de extração paulista, Gilberto Freyre e sua obra são indissociáveis do espírito e da obra do Modernismo. Tanto é isso verdade que ele explícita ou implicitamente dialogou e polemizou com o legado do movimento. Tanto é verdade que certa feita ele se declarou modernista, embora tradicionalista e regionalista, como admitiu ao frisar a particularidade da sua inserção no movimento cultural da época. A presença de Mário de Andrade, por exemplo, é tão inevitável que, se de um lado Edson Nery lhe recusa um verbete próprio, de outro vê-se forçado a citá-lo mais de uma vez em verbete alheio.

Passando ao plano da sociologia e da história social, sabe-se que a interpretação do Brasil proposta por Gilberto Freyre compete sobretudo com as de Sérgio Buarque de Holanda e a de Caio Prado Jr., além de, a partir dos anos cinqüenta, confrontar-se com a obra de Florestan Fernandes e em seguida a dos seus discípulos. Antonio Candido escreveu em 1967 um ensaio dedicado à celebração dos 30 anos de publicação de Raízes do Brasil. Tomado desde então como texto de referência obrigatória nos estudos sobre os intérpretes do Brasil - fato que Edson Nery ignora no verbete Candido, Antonio, visto que sequer o menciona – nele o ensaísta postula a adoção de uma trilogia clássica composta pelas obras mestras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado Jr. Boa parte dos estudos sobre o assunto envolvem direta ou indiretamente as visões do Brasil propostas por estes autores. Uma outra parte confronta a obra de Freyre com a de Florestan Fernandes e seus discípulos mais notáveis: Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Emília Viotti da Costa. As referências que faço, meramente indicativas, têm o propósito de sugerir o contexto intelectual e ideológico dentro do qual a obra de Freyre deve ser considerada. Edson Nery passa ao largo de tais questões expondo-se assim ao risco de compor uma obra restrita à dimensão do verbete de curiosidades e registros anedóticos.

Outro aspecto fundamental da obra de Gilberto Freyre liga-se às controvérsias e contestações que inspirou, sobretudo a partir dos anos sessenta. É surpreendente, portanto, a completa omissão de autores, alguns de inegável mérito, na obra de Edson Nery. Dante Moreira Leite foi dos primeiros a investir contra as interpretações fundadas na noção de caráter nacional. Identificando em Gilberto Freyre um dos alvos centrais da sua análise, de certo modo antecipou o movimento de negação crítica procedente de São Paulo e fortalecido ao longo dos anos sessenta e setenta. No rastro de Moreira Leite vieram Carlos Guilherme Mota e vários nomes destacáveis da esquerda uspiana. Do Rio irromperam vozes discordantes como a de Luiz Costa Lima e Luiz Antônio de Castro Santos. Este, aliás, mereceu de Edson Nery um artigo áspero, em parte justificável, publicado no periódico Ciência e Trópico.

Não posso, dentro deste espaço limitado, citar todos os críticos de Gilberto Freyre. Mas posso, e devo, ressaltar a omissão de todos no dicionário de Edson Nery. O fato torna-se ainda mais estranhável quando considero que ele teve a liberalidade de dedicar um verbete a Assis Claudino, talvez o crítico mais estreito e panfletário de Gilberto Freyre. Também Joaquim Inojosa é brindado com um verbete. Sua importância histórica é inegável. Não obstante, era um modernista de palanque, tão medíocre que se distingue por ser um diluidor da primeira hora. Os modernistas de São Paulo nunca o levaram a sério. Mário de Andrade deu-lhe importância porque dele se valeu como propagandista útil e inocente do Modernismo em Pernambuco e outras partes do Nordeste. Que critério justifica a inclusão destes autores no dicionário de Edson Nery enquanto Moreira Leite, Luiz Costa Lima e outros de importância similar são omitidos?

Voltando ao tema das muitas controvérsias suscitadas pela obra de Gilberto Freyre, um livro como o de Edson Nery deveria não apenas registrá-las, se possível situá-las criticamente, mas também indicar o ritmo de suas oscilações, nestas incluídas atos de mea culpa e revisões públicas como as tantas manifestas à volta do centenário de Gilberto Freyre. Afinal, se este teve comportamento ideológico deplorável durante a vigência da ditadura militar, seus críticos e inimigos ideológicos foram de uma intolerância grosseira impondo-lhe em muitas universidades um silêncio de duas décadas. O fruto mais pernicioso dessa intolerância patenteava-se na hostilidade ignorante que minha geração, formada a partir de 1968, desfechava contra Freyre. Dando provas de que somos um país sem nervura ética e ideológica, críticos implacáveis e intolerantes de ontem somam-se hoje ao coro dos louvadores acríticos. O que fazem, em suma, é meramente inverter o sinal da adesão intolerante e iletrada. Conhecendo muito bem o assunto, Edson Nery bem poderia esclarecê-lo no corpo da sua obra à margem de acertos de contas mesquinhos.

Passando à cena internacional, onde a projeção e influência da obra de Gilberto Freyre supera a de qualquer outro brasileiro, soa também estranhável a omissão de estudiosos que a festejaram com entusiasmo talvez maior que o dos críticos nacionais mais calorosos. Digo estranhável por saber que o autor tem pleno conhecimento do assunto. No seu artigo polêmico contra Luiz Antônio de Castro Santos acima citado, ele arrola muitos sobre os quais inexplicavelmente silencia no dicionário. É o caso de Alistair Hennessy, autor de uma excelente resenha crítica publicada no Times Literary Supplement. Escrita com o fim de saudar a republicação da trilogia de Freyre (The Masters and the Slaves, The Mansions and the Shanties, Order and Progress), Hennessy revisa com fino discernimento crítico a obra de Freyre cotejando-a com a dos seus competidores brasileiros e a de brazilianistas incapazes de adequadamente dimensioná-la. Acrescento a esta omissão mais algumas igualmente graves: David Haberley, autor de excelente estudo sobre literatura e relações raciais no Brasil, Thomas Skidmore, Eugene Genovese, Ludwig Lauerhass Jr., Daniel Pécaut.

A prata da casa, por outro lado, é a mais generosamente aquinhoada no conjunto do dicionário de Edson Nery. Variando a forma do que de início frisei sobre o assunto, muitos são os chamados e bem poucos os merecedores de crédito. Dado porém o fato de que o autor a tantos distingue com sua apreciação generosa, como explicar a completa omissão de muito do que na cena local se publicou sobre Gilberto Freyre? Refrescando um pouco a memória do autor, assim como a do leitor que tem ainda a paciência de seguir-me, Edson Nery não registra o massudo volume organizado por Fátima Quintas para celebrar os 95 anos do nascimento de Gilberto Freyre. Incluindo cerca de cinqüenta colaboradores, alguns procedentes de outras terras, a obra contém matéria de estudo para uma grande variedade de gostos e modos de apreciação.

O periódico Estudos de Sociologia, do programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, consagrou seu número inicial a Gilberto Freyre. Compreendendo temas e abordagens diferenciados, mereceria também um registro ainda que sumário. O mesmo se aplica ao número especial dos Cadernos de Estudos Sociais, periódico publicado pela Fundação Joaquim Nabuco. Integrando o imenso e variado programa composto para celebrar o centenário de Gilberto Freyre, o periódico somou os estudos que publica a outros veiculados pelo caderno semanal Mais, da Folha de S. Paulo, caderno de cultura do Estado de S. Paulo e os dois principais diários de Recife: Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio. É ainda estranhável a omissão do livro O Imperador das Idéias, organizado por Joaquim Falcão e Rosa Maria de Araújo. Reunindo ensaios e artigos de notáveis estudiosos, encerra colaboração do próprio Edson Nery. O estudo de maior fôlego, e provavelmente o melhor, é assinado por Joaquim Falcão e trata com discernimento e humor da longa e insolúvel querela envolvendo Freyre e a USP. Por fim, pois já receio parecer exaustivo, a omissão de dois volumes academicamente muito úteis organizados por Lourenço Dantas Mota sob o título Introdução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. Escrito por um grupo de especialistas em estudos brasileiros, contém substanciosos capítulos que valem como introdução sintética às obras mestras dos nossos melhores intérpretes. De Gilberto Freyre constam Casa-Grande & Senzala e Ordem e Progresso, apresentados por Elide Rugai Bastos, e Sobrados e Mucambos, por Brasílio Sallum Jr.

A matéria de alguns verbetes merece do crítico reparos obrigatórios numa apreciação isenta. No verbete referente a Hermilo Borba Filho, Edson Nery erra ao entender que O Cavalheiro da Segunda Decadência é um romance publicado em 1967. Na verdade, o título foi escolhido por Hermilo para designar uma tetralogia composta pelos seguintes romances: A Margem das Lembranças, A Porteira do Mundo, O Cavalo da Noite, Deus no Pasto. Noutro verbete, este dedicado a Otávio de Freitas Júnior, o autor menciona o prefácio que Mário de Andrade escreveu para Ensaios do Nosso Tempo, livro assinado pelo médico e ensaísta pernambucano. Erra porém ao afirmar que o prefácio de Mário de Andrade foi agregado ao volume O Empalhador de Passarinho, já que de fato ele é parte de um outro livro de Mário: Aspectos da Literatura Brasileira. São reparos menores, evidentemente, que em nada comprometem os méritos da obra. Faço-os aqui visando alertar o autor no caso de a obra merecer uma nova edição.

Verbete que com certeza mereceria revisão mais séria é o que dedica a Luís Roberto Salinas Fortes. Antes de registrar a colaboração de Salinas Fortes integrada a Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte, escreve candidamente o autor: “Infelizmente, faltam-nos informações sobre este estudante de Direito de São Paulo na década de 60...” Ora, este suposto desconhecido foi professor de História da Filosofia da USP, além de bastante citado devido a alguns livros que publicou. O mais divulgado foi com certeza O Iluminismo e os reis filósofos, volume integrante de uma coleção ainda muito popular publicada pela Brasiliense. Discípulo de Claude Lefort, traduziu conjuntamente com Marilena Chauí um conjunto de ensaios assinados por seu mestre e reunidos no volume intitulado As Formas da História. Salinas Fortes foi preso e torturado pela ditadura militar e morreu prematuramente.

Interrompo por aqui a lista das omissões antes que o leitor erradamente entenda mover-me neste artigo o propósito de lançar sobre o autor mais fatos, muitos até miúdos e dispensáveis, do que argumentos de peso. Se me detive na indicação de tantas fontes omissas foi por dever de fundamentar minha crítica. Mais que tudo, intento captar por sob a rede de lacunas identificáveis na obra um critério coerente de composição. Chegado a este ponto, depois de tantos fatos e argumentos acima acumulados, devo concluir pela ausência de um tal critério. Em suma, a obra de Edson Nery padece de uma insuficiência estrutural: a ausência de um princípio de composição passível de imprimir-lhe organização consistente e qualidades críticas que a credenciem como fonte de referência essencial para o estudioso da obra e vida de Gilberto Freyre.

Ariano Suassuna na Bravo


Uma Nova Conciliação Cultural?

Alguns dos mais agudos críticos da história cultural brasileira têm com propriedade acentuado o caráter conciliador que permeia seu desenvolvimento. A argumentação geral se desdobra com igual propriedade para o domínio correlato da história política. Dado que as formas culturais não são nunca inocentes, ainda quando se possa argumentar em defesa da autonomia relativa dos produtos estéticos, como dissociar arte e ideologia, mais ainda quando a expressão artística segrega nítidos valores ideológicos?
Especificando as questões acima propostas em termos genéricos, como ler a ampla matéria sobre Ariano Suassuna publicada na revista Bravo! passando ao largo de alguns problemas ideológicos implicados nos juízos e formulações de louvação quase irrestrita dirigidos à obra e à ação intelectual de um escritor que se tem distinguido como um opositor intransigente das formas culturais e ideológicas geradas pelo capitalismo na era de sua triunfante globalização?
A conciliação aparente entre a orientação ideológica da revista e a do escritor fere o leitor atento com um inquietante rumor de perplexidade. Senão vejamos. Bravo! constitui em muitos sentidos um fato notável na cena cultural contemporânea. O que no caso importa acentuar com vistas aos propósitos deste artigo polêmico é o que simboliza como fator de aceleração mercadológica da cultura. Ostentando credenciais de requintada modernidade estética, assinaláveis na seleção geral das matérias e sobretudo na produção gráfica que lhe imprime inusitada vestimenta, a revista pode bem ser distinguida como um sopro revitalizador do acéfalo jornalismo cultural brasileiro. Sei que a modernidade, estética ou não, é impura e talvez indefinível. Ainda assim, reitero a perplexidade derivante da conciliação observável entre a revista e a obra e a ideologia de Ariano Suassuna.
A ideologia mercadológica da revista reponta, como frisei, em toda a sofisticada composição gráfica e na documentação fotográfica que imprimem relevo estético aos textos publicados. Assim, se Ariano Suassuna tem fundamentalmente concorrido para nobilitar o passado cultural nordestino, dissolvendo as bases da dominação patriarcal e oligárquica em mitologia sertaneja, convertendo a tradição artística popular em reacionarismo estético erudito, tudo isso operando no sentido de cimentar ideologicamente a manutenção das formas tradicionais de dominação no Nordeste, Bravo!,em contrapartida, mercantiliza, em termos capitalistas avançados ou sulistas, o folclore e a cultura da miséria nordestina. Em suma, Ariano Suassuna e Bravo! constituem uma variante cultural da aliança entre o Brasil do atraso e o Brasil moderno.
Observe-se, a propósito, a foto que ocupa toda a página 61 . Sugeriria que fosse interpretada em três planos distintos, e no entanto entrelaçados. No primeiro plano, a figura ambígua do mandarinato patriarcal. Ambígua porque, retendo na identidade individual de Suassuna símbolos vivos da nossa miscigenação cultural, alia o medalhão ostensivamente exibido sobre o peito à face matreira do popular, o ar bonachão dissimulando o mandarim gestor e protetor da identidade cultural do povo disposto no plano intermediário da foto. Esse povo, dançando sobre a poeira e difusamente enquadrado entre o primeiro plano, o do mandarim-popular, e o plano de fundo, onde se elevam as pedras míticas do reino sertanejo, paga o ônus secular do atraso e da dominação oligárquica.
Seria incapaz de negar a devoção sentimental de Ariano Suassuna a esse povo. Ele encarna, de fato, na arte que produz, assim como na viva figura humana que seduz e cativa a admiração de tantos que o lêem e convivem, valores fundamentais do povo brasileiro e especificamente nordestino. Essa verdade não é entretanto incompatível com a verdade da dominação ideológica que exerce no plano das relações simbólicas entre grupos e interesses sociais. Aparentemente, nada disso é merecedor de relevo no conjunto da matéria publicada pela revista Bravo!.
O tom laudatório dominante no artigo de Reinaldo Azevedo vale-se do artifício do elogio contra o outro para ressaltar os méritos de Suassuna. Assim, o outro desqualificado é ora o vanguardismo modernista de São Paulo, ora Caetano Veloso e os tropicalistas, ora os círculos acadêmicos colonizados, ora os intérpretes “derrotistas” do Brasil. A evidência maior desse artifício retórico está registrada na página 63. Contrapondo Ariano Suassuna a Mário de Andrade nas representações míticas e ficcionais de João Grilo e Macunaíma, louva no primeiro o tom otimista dirigido pela intenção de converter João Grilo em herói triunfante, enquanto o segundo, vítima de melancolia tropical, encarna no anti-herói Macunaíma o derrotismo que pontua muitas das nossas interpretações do Brasil. Não bastasse isso, alude ainda a Mário de Andrade como um mero turista descritivo, ou compilador de cocos.
Proposto nos termos acima, o paralelo neutraliza, antes de tudo, o caráter incaracterístico, o paradoxo é intencional, de Macunaíma. Ora, se Reinaldo Azevedo lesse as entrelinhas polissêmicas de Macunaíma não poderia deixar de perceber essa extraordinária representação do herói popular como um ser crivado de ambiguidades e contradições. Qualificá-lo como anti-herói é, em suma, privá-lo de seus traços substanciais. Por extensão, criticar Mário de Andrade como um derrotista é desconhecer por completo o fato de que nenhum outro intelectual brasileiro tanto concorreu, neste século, para o aprimoramento da nacionalidade inspirado por um desejo generoso e tenaz de reforma das nossas instituições culturais, de valorização das tradições móveis, friso bem o adjetivo, que sustentam essa suposta e controvertida identidade cultural brasileira. O período precedente não traduz um juízo de onisciência crítica, como procedeu Reinaldo Azevedo ao referir-se a Suassuna como “o maior prosador vivo da literatura brasileira”, mas um fato da cultura verificável por quem se dê ao trabalho de investigar a historiografia cultural do período.
Ao fazer de Macunaíma não um anti-herói, como quer o articulista, mas uma representação complexa do brasileiro distintamente incaracterístico e móvel – mobilidade que é tanto geográfica quanto psicológica e moral – Mário nos comunica uma noção muito mais fecunda e transformadora da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que não nos ilude quanto aos seus impasses, daí a atmosfera “derrotista” e “melancólica” que reponta no fecho da obra. Por outro lado, ao idealizar as virtudes mágicas e tradicionais do povo oprimido do Nordeste, Ariano Suassuna ratifica os mecanismos da dominação tradicional da qual é, aliás, o supremo representante intelectual e ideológico na cena contemporânea.
O mote do nacionalismo cultural, sempre explícita ou implicitamente reposto no debate intelectual brasileiro, sem dúvida aproxima, de modo genérico, Mário de Andrade, Ariano Suassuna, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Jorge Amado, Glauber Rocha, Villa-Lobos e outros que decisivamente contribuíram para o nosso desenvolvimento cultural. Dada porém sua óbvia generalidade, tendente a dissolver num autêntico saco de gatos todo tipo de orientação estético-ideológica, impõe-se a necessidade de distinções qualificativas. Noutras palavras, importa acentuar não apenas o que os aproxima, mas sobretudo o que os diferencia, quando não os opõe. Ora, o que se observa é precisamente o contrário. Subordinando essas distinções fundamentais a valores de ordem mercadológica, cada vez mais favorecidos pelo empobrecimento do debate de idéias, inclinam-se os agentes do processo cultural para os parelelos e analogias carentes de qualquer exame criticamente sustentável.
Uma evidência é o paralelo acima proposto por Reinaldo Azevedo. Outros, antes dele, já propuseram parelelos regidos pelo desejo de aproximar Mário de Andrade e o que Ariano Suassuna e seus seguidores têm realizado culturalmente em Pernambuco. A apropriação do título “na pancada do ganzá”, convertido em bloco carnavalesco de identidade nitidamente conservadora, além de música idem composta e gravada por Antônio Nóbrega, ilustra bem o fenômeno. Despreza-se, no caso, entretanto, uma distinção essencial entre a militância nacionalista de Mário de Andrade, de um lado, e, de outro, a generalidade dos que no Nordeste, e sobretudo em Pernambuco, reivindicam o nacionalismo cultural e seus correlatos ou implícitos: a identidade cultural, a resistência à dominação cultural, o culto da tradição.
É sabido o quanto Mário de Andrade se empenhou na conservação e valorização da cultura popular, na qual discernia o fundamento da brasilidade cultural. Neste sentido, seria justificável aproximá-lo dos nacionalistas em geral. Não sendo entretanto um conservador cultural – para não dizer um reacionário, como é nitidamente o caso de Ariano Suassuna e seus seguidores mais fiéis -, resulta descabido aproximá-lo dos nacionalistas conservadores pela via equívoca dos paralelos e analogias sem rigorosa apreciação das afinidades e diferenças envolvidas.
Procurarei demonstrar ligeiramente meu ponto de vista tomando como referência uma questão essencial suposta no nacionalismo cultural: a relação entre a identidade cultural e a tradição. Embora Reinaldo Azevedo critique Mário de Andrade de passagem chamando-o de turista descritivo, conviria observar uma anotação feita por este durante sua viagem pelo Nordeste. Propondo a distinção entre tradição móvel e tradição imóvel, depois de acentuar que sua identidade de modernista não significava desprezo pelas tradições brasileiras, escreve ele:
“O que a gente carece, é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, as danças populares”.
Assim, se de um lado defende e acolhe as tradições móveis, de outro repele as imóveis. Quem quer que tenha lido atentamente O Turista Aprendiz terá com certeza observado que Mário de Andrade nada tem em comum com um “turista descritivo”. Selecionando criticamente o legado da tradição, ao mesmo tempo que consciente de algumas relações fundamentais entre as formas de criação cultural e as bases materiais em que se inscrevem, chega mesmo a fazer restrições virulentas a Os Sertões, de Euclides da Cunha, por entender que seu apuro estético teria concorrido para estetizar a miséria da seca. Tendo visto de perto o que significa a devastação humana gerada pela seca, repele indignado as formas de representação ideológica que, ainda hoje, servem objetivamente à manutenção desse estado de coisas no Nordeste. Compreende-se, assim, as duras palavras que desfecha contra Os Sertões:
“O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante. Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez pra encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopéia... Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora”
.
Será de fato possível qualificar passagens como estas, e tantas outras que pontuam a narrativa do diário de viagens de Mário de Andrade, como próprias a um “turista descritivo”, ou ainda como típicas de um observador derrotista dos problemas básicos da sociedade brasileira? Um dos grandes méritos do nacionalismo cultural praticado por Mário de Andrade – seja como artista, seja como intelectual militante – consiste no modo inventivamente crítico como soube combinar a tradição e a modernidade, a lição das correntes estéticas internacionais e os traços específicos da cultura e da sociedade brasileira. É isso, em síntese, o que o distingue como um nacionalista renovador. Os conservadores, em contrapartida, têm aversão incontida às forças da modernidade. Celebram esteticamente a tradição brandindo idéias em princípio louváveis, como a integridade da identidade cultural brasileira, concorrendo de modo objetivo na esfera ideológica para legitimar as formas tradicionais de dominação que se nutrem do nosso atraso e da miséria tão belamente emoldurada nas páginas da revista Bravo!.
A afinidade ou mesmo a aliança substancial observável entre as formas tradicionais de dominação e esses nacionalistas conservadores é exemplificada pelo próprio Ariano Suassuna, que se tem servido do exercício de um cargo público, o de Secretário de Cultura do Estado, para conceber e executar um projeto que é uma expressão do seu projeto pessoal de cultura, não dos distintos grupos sociais identificados com interesses, aspirações e representações coletivas irredutíveis a um projeto unilinear e excludente como é o dele. Essa questão, que me parece de interesse político fundamental no terreno da cultura, é entretanto obscurecida ou simplificada no artigo de Paulo Carneiro.
Outro fato que me parece sugerir o estreitamento do nosso debate ideológico transparece no louvor que se presta a Ariano Suassuna por se distinguir, no clima de conformismo dominante, como um suposto socialista empenhado na resistência à dominação cultural imposta pelo capitalismo na era da cultura globalizada. Não nego que seja um opositor irredutível do capitalismo e da expressão de modernidade que este hoje triunfantemente impõe. Mas o que propõe ele, ou o que sonha ele, senão uma utopia regressiva que delirantemente associasse a preservação de uma cultura mitológica do sertanejo a formas de organização social enraizadas nas tradições rurais? Em suma, uma manifestação delirante de socialismo primitivo.
Concluindo, o anticapitalismo representado esteticamente na obra de Ariano Suassuna é um anticapitalismo de natureza regressiva. Noutras palavras, nega de costas para o presente. Ou ainda, traduzindo de outro modo, desta vez citando palavras de inspiração legitimamente crítica estampadas numa das páginas da revista, “de frente para o passado”.

Nota: Não cabe numa nota sumária esclarecer devida e factualmente alguns processos correntes de censura ou silenciamento de textos incômodos, sobretudo quando o autor, como é o meu caso, é praticamente um anônimo. Esclareço apenas que este artigo me foi encomendado por Reinaldo Azevedo, então editor da Bravo! Foi solicitado sob a condição de ele, R. Azevedo, publicar uma réplica. Aceitei prontamente a proposta, pois meu propósito é discutir ideias. Ele nunca respondeu, sequer acusou recepção do artigo. Assim, esta nota explica um pouco melhor os dois comentários abaixo postados: o de César Melo e o meu.

Recife, 20 de maio de 1998