sexta-feira, 28 de maio de 2010

Dylan Thomas - Amor Extremo


Curioso como na sociedade da informação as pessoas sabem de tanta inutilidade que se dão ao luxo de ignorar Dylan Thomas. Pelo menos é isso o que sugere a sinopse do filme Amor Extremo (The Edge of Love, Inglaterra, 2008). A sinopse nos informa que o filme é baseado em personagens reais, logo a seguir identificados: Caitlin (Sienna Miller), Vera (Keira Knightley), William (Cillian Murphy) e Dylan (Matthew Rhys). Além de não vir identificado como o grande poeta que foi e é, para o autor da sinopse Dylan é apenas Dylan. E pensar que Dylan Thomas foi um poeta famoso muito além dos círculos literários, muito além das camadas letradas que leem poesia e conhecem a tradição poética de língua inglesa. Dylan foi tão famoso que emprestou seu nome à criação do nome artístico de um dos ícones supremos do pop universal: Bob Dylan, cujo nome verdadeiro é Robert Allen Zimmerman.

Dirigido por John Maybury, o filme foi escrito por Sharman Macdonald, que se inspirou em duas obras de parentes dos personagens envolvidos na trama: David N. Thomas, A Farm, Two Mansions and a Bungalow e Esther Killick, Personal Sketch of Vava and Personal Sketch of Papa. Importaria acrescentar a esses créditos seletivos do filme a fotografia esplêndida e a trilha sonora, da qual destacaria duas canções assinadas por Angelo Badalamenti e o próprio diretor John Maybury: Careless Love e Careless Talk.

A ação de Amor Extremo concentra-se na Segunda Guerra, quando Londres era impiedosamente bombardeada pelos aviões nazistas. Algumas cenas de devastação e horror causadas pelas temíveis V2 projetadas contra a cidade descrevem algo da vida londrina suspensa num fio tênue entre o agora e o nada, a vida e a morte. Esse fio invisível mas palpável, the edge of life and death, o limite entre vida e morte, pulsa no cerne do filme, das tensões nele expostas. É nesse contexto pontuado por situações extremas que os dois casais se associam: Dylan e Caitlin, Vera e William. Para complicar ainda mais as coisas, Dylan e Vera tiveram um caso quando adolescentes. Dylan foi o primeiro amor de Vera e ambos, por vias divergentes e conflituosas, repõem a paixão adolescente no solo turbulento do presente. Outra fração substantiva da trama decorre em New Quay, País de Gales, onde os personagens se refugiam dos terríveis ataques aéreos dos alemães sobre Londres e Swansea, cidade natal de Dylan. Esse é o cenário dos episódios finais cujo clímax é a separação dos casais amigos. O filme acaba quando cada um deles segue seu próprio destino.
Enquanto William foi à guerra e dela voltou psiquicamente traumatizado, Dylan ficou com a poesia, as mulheres e o pub. Não foi à guerra talvez também por covardia, medo de enfrentar as situações extremas nela supostas, sobretudo a que implica matar e morrer, mas antes de tudo por recusar as paixões associadas ao espírito de beligerância nacionalista. O fato é que na véspera de sua convocação militar tomou um porre monumental e no dia seguinte apresentou-se suando, pálido e trêmulo como um incapaz para a guerra. Foi dispensado. Isso tornou-o compreensivelmente impopular, exposto à crítica e ao ressentimento nacionalista da maioria que apoiava maciçamente os combatentes.

O filme inclui alguns versos de Dylan Thomas. O espectador de ouvido musical, ainda que ignore a língua inglesa, retém a musicalidade que inscreve a obra de Dylan entre o texto impresso e o texto falado, a ponte sutil que vincula Dylan Thomas a Bob Dylan. O próprio poeta confessa o quanto o seduzia o poder encantatório das palavras. Desde a infância, contemplado pelo privilégio de ouvir Shakespeare e outros grandes poetas, viveu embalado pela musicalidade da palavra, pela inefável sonoridade da palavra que associava a outros sons primevos: o do vento, do mar, da chuva, dos instrumentos musicais, dos sinos... Esses sons primevos são também sensíveis na tela como se traduzissem metaforicamente o enraizamento das vidas vividas no limite da natureza e das paixões.

Talvez a conjugação entre a palavra e a música explique o caráter obscuro de tantos versos de Dylan Thomas que, não obstante obscuros ou incompreensíveis, encantam pela pura musicalidade, envolvem o leitor como se este ouvisse uma canção sem texto, ou acrescida de texto cujo sentido lógico seria irrelevante. Não duvido de que grande parte da força e da sedução da poesia de Dylan Thomas decorre dessas características. Ademais, do ponto de vista temático, são também valores primevos que nela ressaltam: o amor e a morte compreendidos como pulsões entrelaçadas, um no avesso da outra, a energia elementar da natureza entranhada na nossa condição.
Como tantos poetas, sobretudo quando românticos, Dylan começou a escrever poesia precocemente. Mas vale acentuar que não foi um artista entregue às intuições fáceis do romantismo espontâneo, tão corrente na nossa tradição, por exemplo. Além de ter tido um pai que era intelectual e professor bem formado, dedicou-se desde cedo à leitura e reflexão sobre a poesia. Tanto isso é verdade que, a julgar pela sua correspondência, já por volta dos 20 anos tinha nítida consciência do que queria realizar como poeta. Além disso, também precocemente trabalhou num jornal de Swansea para o qual escreveu crítica de teatro e música. Também desde cedo distinguiu-se pelo talento com que lia publicamente sua poesia em pubs e no círculo dos amigos. É significativo o fato de preferir que ouvissem sua poesia em lugar de a lerem. Isso novamente denota o valor fortemente musical do seu verso, sua identidade de bardo que aliás induziu alguns de seus críticos mais severos a depreciarem seu valor como poeta.

Dylan conheceu Caitlin Macnamara num pub e tudo aconteceu como amor ao primeiro porre, que durou até o último, quando ele morreu de uma overdose de álcool em Nova York. Caitlin era uma irlandesa passional e intensa, promíscua como ele, entregue às forças elementares da vida, também como ele. Em suma, tinham tudo para dar certo e errado, como o filme dirigido por John Maybury bem nos revela. Houve um tempo em que foram felizes o suficiente para que ela escrevesse que eram twin souls, almas gêmeas. Muita gente que ama acredita nesse mito romântico, ainda mais se são românticas, como era o caso.

Soa algo irônico o fato de entre tantos seres passionais, entre extremos inscritos na face da história e no corpo dos personagens, o mais extremo seja precisamente William, o militar que guerreava para saber que não tinha medo, ou que não podia ter medo. É o amor corroído pelo ciúme, ou já patológico, que o impele a desencadear a situação mais extrema e perturbadora do filme. Daí sobrevém o desenlace, a separação inevitável. Das duas mulheres, Caitlin e Vera, irradia o sopro de mais intensa e inusitada beleza do filme. A poesia que está na poesia e além da poesia de Dylan Thomas: a poesia das relações insólitas de amor e beleza que a arte eleva acima da banalidade em que nossas vidas de clipe publicitário se movem e desperdiçam.

Um dia fui a Swansea visitar amigos. Fazia um frio de doer, frio como o que gela Caitlin e Vera brincando na praia, na tarde em que fomos passear pelo centro da cidade depois de tomar algumas cervejas. De repente, no meio de uma praça deserta, deparamos a figura gordinha e baixa de Dylan Thomas imobilizada em forma de estátua. Uma justa homenagem prestada pela cidade a um dos seus artistas e alcoólatras mais eminentes, mais tarde acrescido de dois outros artistas e alcoólatras de peso similar: Richard Burton e Anthony Hopkins. Enfim, pensei comigo, ei-lo sóbrio, serenamente imóvel em meio às turbulências da vida que tanto o consumiram e tanto lhe serviram como matéria de poesia. Então fotografei meus amigos ao lado de Dylan Thomas, embora mal fizessem ideia de quem fora, e por fim eu próprio gravei na memória e no clique da câmera aquele momento único. Vamos reler Dylan Thomas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Georgia O`Keeffe e a Loucura do Amor Feminino


Faz anos que a crítica de cinema morreu, também a literária. Quero dizer, morreu no espaço da grande mídia cultural. Ambas se refugiaram em alguns nichos acadêmicos, não raro completamente inacessíveis ao leigo inteligente. Para ler e compreender parte dessa crítica esotérica, o leigo precisaria de um treinamento intelectual de dez anos, no mínimo, empanturrando-se de teoria, que aliás passou a importar muito mais do que as obras de criação artística. A grande mídia cultural teve durante algumas décadas o privilégio de educar o público de cinema e literatura através de críticos como Edmund Wilson e Pauline Kael, nos EUA, André Bazin e François Truffaut, na França, Antonio Candido, Paulo Emílio Salles Gomes e Sérgio Augusto, no Brasil. Cito apenas os primeiros que me vêm à memória. O que hoje prevalece fora dos nichos esotéricos da academia são exercícios sociológicos ou psicanalíticos livres e sumários, por vezes inteligentes e criativos, mas que pouco ou nada tem a ver com crítica. Diria que prevalece antes de tudo o infrene subjetivismo dos autores numa atmosfera cultural cujo narcisismo converte crônicas e artigos em pura projeção de egos olímpicos, ainda quando irrelevantes. Diante do quadro acima grosseiramente esboçado, entro na dança e logo alerto o leitor ocasional para o fato de que o que segue não é crítica de cinema.

Quando vi Georgia O`Keeffe (EUA, 2009), fui tomado por um choque de beleza. Incapaz de traduzi-lo em palavras, tudo que me veio à cabeça foi escrever uma crônica ficcional, se posso abusar desta expressão, sob o influxo do filme pulsando ainda na memória e na imaginação. Aliás, acho que fui inibido pelas cenas iniciais. Nelas Georgia (Joan Allen) afirma sem meias palavras sua desconfiança das palavras. Deixe que a pintura fale sua própria linguagem, diz ela. Que fazer de mim, coletor de palavras, incapaz de desenhar uma janela, uma face humana, a fuga da luz entre o olhar e o espelho? Se querem saber de Georgia, do que viveu e sofreu, descubram-no na obra que pintou. É ela novamente reprimindo meu discurso feito só de palavras. Seu tom, franco e direto, sugere a medida de sua integridade humana e artística.

Alfred Stieglitz (Jeremy Irons) entra em cena. Ele tem o poder de revelar Georgia para si própria ao indicar-lhe as fontes irracionais de sua criatividade. Stieglitz assinala o que todo crítico, todo tradutor de arte, ainda quando racionalista, precisa reconhecer: os móveis inconscientes da criação artística. Mas tudo que Georgia pontua no início do filme soa como uma ironia, pois ela desqualifica a palavra valendo-se... de palavras. Isso me fez lembrar uma das boutades geniais de Millôr Fernandes, que num passe de mágica inverte uma verdade consagrada: uma imagem diz mais do que mil palavras. No entanto, tente dizer isso sem usar palavras.
Mas o fato é que eu, racionalista quase autopunitivo, rendi-me à força milagrosa do filme. A beleza da fotografia, a força magnética de duas personalidades tão excepcionais, Georgia e Stieglitz, magnificamente interpretadas por Joan Allen e Jeremy Irons, a magia da pintura transposta para a linguagem do cinema, tudo isso anulou minhas intenções críticas. Quando dei por mim, ou por mim fora de mim, percebi que a arte é um milagre. O corpo da mulher, liberto do seu centro subjetivo, o corpo da mulher é também um milagre. Georgia é forte, de uma força estendida a um milímetro da aspereza dos fortes castigados pela vida; Georgia é orgulhosa na medida da sua força. Entretanto, ei-la vencida e dobrada pela fraqueza de toda mulher: a fraqueza entranhada no amor. Georgia ama e ao amar Stieglitz ela perde sua força, embora retenha seu orgulho. Sem forças para suportar o amor traído por Stieglitz, mas intransigente na fidelidade a seu orgulho, Georgia desaba. A dor do amor reveste-se de uma expressão tão dolorosa e sem palavras que se converte num mal orgânico. Georgia se dói e se sofre imobilizada na cama, sem forças sequer para traduzir em linha e luz sobre a tela a dor sem voz do amor traído.

As mulheres são loucas, dizia minha amiga que tanto roeu a corda do amor enlouquecido. Se Stieglitz revelou Georgia para si própria, Lúcio Bacamarte, neto renegado do personagem de Machado de Assis, revelou à minha amiga sua própria loucura, que é a loucura de toda mulher. Quando ama, a mulher transfigura a vida, reverte o círculo das estrelas e alastra o fogo da paixão no centro da floresta ardente. E assim, perdida de si própria, desavinda do seu centro, mesmo quando seja uma Georgia O`Keeffe, ela enlouquece como todas as loucas de amor internadas na Casa Verde de Lúcio Bacamarte.

Li em algum lugar, em algum livro, uma anedota atribuída a Gertrude Stein. Perguntaram-lhe qual a diferença entre a libido feminina e a masculina. Esta começa aqui, disse apontando a zona genital, e acaba em qualquer lugar; aquela começa em qualquer lugar e acaba aqui, concluiu apontando novamente a zona genital. Traduzindo de modo mais complicado, homem e mulher estão condenados à incompreensão amorosa, pois, enquanto a libido do primeiro é centrífuga, a da segunda é centrípeta. Há no filme uma cena que me parece ilustrar muito bem esta anedota. Georgia está no hospital sob os cuidados de um médico que é irmão de Stieglitz. Este vai ao encontro de Georgia, quando encontra o irmão no corredor. O irmão, que antes tanto o ajudou, acusa-o de ser cruel com Georgia e proíbe que a visite. Mais tarde autoriza a visita. Stieglitz entra no quarto e depara Georgia afundada numa depressão tão profunda que não tem forças nem para falar. Ele a ama profundamente, apesar de traí-la. No entanto, fala apenas, com franco entusiasmo, da exposição da obra de Georgia que planeja para sua galeria.

Voltando a Lúcio Bacamarte, as mulheres sofrem de uma loucura estranha à libido centrífuga do homem, estranha à sua sensibilidade difusa capaz de expressar seu amor à mulher paralisada num leito de hospital pela depressão, cujo culpado é ele próprio, falando não de amor, mas de negócios, de ambições profissionais, da pintura transposta para o código do mercado. Confesso duvidar de tudo isso que acabo de escrever, pois amei e sofri o amor por vias e códigos muito distintos. Se assim me contradigo, de outro lado não duvido de que a natureza e a cultura se conjugaram de modo muito confuso para juntar na mesma casa e na mesma cama seres tão irredutíveis nas linhas do amor ao qual fatalizadamente se abandonam. Como diz a canção de Dorival Caymmi, não tem solução.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Máximas e Mínimas II




Um dia visitei Antonio Candido supondo que ele me abriria as portas da imortalidade. Abriu-me apenas um guarda-chuva, que foi providencial, pois chovia. Abriu-me o guarda-chuva, insistiu em que eu o levasse de presente e lá fui eu rua afora, já noite, mortal como antes chegara, mas a salvo da chuva. Essa é uma das verdades (estoicas?) que a vida me ensinou: se você saiu em busca da imortalidade e encontrou apenas um guarda-chuva presenteado por um estranho generoso, então você é um homem de sorte. Quantos expostos à chuva e a outras intempéries podem dizer o mesmo?

Genealogia – alguns dos meus amigos mais cultos já me perguntaram se eu acaso seria parente de Pedro Mota Lima. Sinceramente não sei, embora no fundo o desejasse. Afinal, dizem que ele foi o melhor amigo de Graciliano Ramos, além de jornalista de valor e militante comunista. Admirei e continuo admirando muitos comunistas vencidos, isto é, comunistas que nunca chegaram ao poder. Mas nem a vaga admiração que nutro por Pedro Mota Lima me tenta a escavar minha árvore genealógica. Algum pressentimento obscuro me diz que lá encontraria traficantes de escravos, exterminadores de índios ou ainda escravos remotos, ou índios assimilados. Já me basta ser o que sou.

Eis uma pérola da educação universitária brasileira: O professor propõe aos alunos, como exercício de avaliação, uma dissertação sobre o tema Hobbes e a Violência. Resposta de uma aluna : Depende do hobbes. Tem gente que tem o hobbes de colecionar selo. Tem gente que tem o hobbes de colecionar figurinha, revista de sacanagem, álbum de fotografia. O problema é quando a pessoa gosta de colecionar armas. Aí o hobbes se transforma em violência.

Ninguém ainda escreveu, que eu saiba, a história dos movimentos revolucionários e pseudorrevolucionários enfatizando devidamente uma categoria analítica chamada ressentimento social. Quando um dia alguém o fizer, saberemos afinal que muito do que na história passa por revolução ou desejo de revolução é apenas ressentimento social. Trocando em miúdos: quero revolucionar o mundo não para abolir a opressão ou a injustiça, mas para me apropriar daquilo que invejo. Sem desmentir o fato de que houve na história muitos revolucionários autênticos inspirados por verdadeiro desejo de amor e justiça, a maior parte da horda revolucionária é movida pelo ódio contra o que não pode ter.

Nostalgia é um sintoma de mal-estar no presente. Logo, a suposta felicidade da infância ou da juventude reencantada pela memória é apenas um mecanismo de consolação para os tormentos sofridos no presente.

Solidão não é isolamento, mas irredutibilidade. Sou sempre eu, não importando o quanto ame ou queira ser o outro. Perder-me em quem amo, ao mesmo tempo desejo e temor de quem ama, é uma impossibilidade sempre desejada e temida. Nascemos e morremos sozinhos. Entre estes extremos, estamos igualmente sozinhos, pois o que no outro amamos é o que não somos. Por isso estamos sozinhos; por isso Narciso está isolado.

A brevidade poupa o leitor.

Às vezes é fácil ser profeta: basta prever o pior.

No Brasil é fácil ser profeta: basta sempre prever o pior.

O que o Brasil tem de pior são os brasileiros.

Sou eterno quando sou: presente do indicativo.

Tem gente que recorre à citação apenas para confundir cultura com impostura.

Publicitários, marqueteiros, relações públicas, porta-vozes e ideólogos tout court são os oráculos que produzem perólas da liberdade de mercado como as que abaixo transcrevo:
Sorria! Você está sendo filmado.
Seu filho morreu. Tudo por causa de uma bala perdida.
Seja livre, seja você mesmo: beba Coca-cola.
Beba a lourinha geladinha que desce redonda na praia, na festa, na cama, na estrada, no futebol, no carnaval, no trânsito... beba com moderação.
Você pode ser tudo que quiser.
Sem medo de ser feliz.
Deus é fiel.
Brasilbrás ou Utopia: um país de todos.
Amar é dar presente.
O amor é como uma prateleira do shopping. Você ama o quiser. Basta pagar no caixa.

terça-feira, 18 de maio de 2010

A Irrelevância Normativa do Catolicismo




Mesmo quando o catolicismo exercia efetiva função normativa no Brasil, já se observava a frouxidão dos seus meios de controle sobre o comportamento dos fiéis. Há registros históricos de viajantes estrangeiros assinalando o caráter exterior do nosso catolicismo. O fato era correntemente notado nas procissões, missas e outros serviços religiosos. Se naquele tempo, refiro-me genericamente ao século XIX, já era assim, o que dizer da atualidade regida por uma cultura orientada para o prazer e a permissividade? Nosso catolicismo foi sempre um catolicismo festeiro e sincrético, livremente mesclando traços das culturas formadoras do Brasil: a portuguesa, a indígena e a africana. Isso explicaria, sem nenhum espanto ou incorreção, o fato de uma antropóloga francesa, Marion Aubrée, afirmar que nosso catolicismo é permissivo.
O parágrafo acima concorre para contextualizar a recente excomunhão de alguns católicos de Pernambuco envolvidos num caso de aborto de natureza excepcional. O decreto partiu do arcebispo de Olinda e Recife. Dado que o episódio foi amplamente noticiado e comentado na mídia, há cerca de um ano, poupo-me do trabalho de reconstituí-lo neste artigo ligeiro. Meu propósito é tão-só destacar a irrelevância normativa do catolicismo, diria das religiões em geral, na nossa atualidade cultural. Parte desse poder normativo derivava do poder secular antes exercido pela religião. A separação dos poderes do Estado e da Igreja, fruto do advento da modernidade ocidental, encurtou drasticamente o poder da religião num mundo regido pela autonomia das esferas de poder.
No caso do catolicismo brasileiro, atuam singularidades históricas que não posso detalhar neste artigo. O que ressalto, em benefício do meu argumento, é que foi sempre mais frouxo, sempre mais permissivo do que suas contrapartes européia e norte-americana. Se era tradicionalmente festivo, marcado pelo tom exterior de suas práticas, os estragos causados pela liberação dos costumes a partir dos anos 1960 tornaram-no o que é hoje: um catolicismo à maneira do padre Marcelo Rossi e outros artistas pop. Nosso catolicismo de conveniência e fachada induz supostos fiéis a praticarem livremente o aborto sem dramas maiores de consciência. Assim como o aborto, outros pontos dogmáticos da doutrina católica são rotineiramente ignorados pelos fiéis. Não raro, ignoram-nos por pura e simples inconsciência religiosa. A prática dominante aparenta confinar-se aos limites exteriores da fé, a um catolicismo festeiro, como acima frisei citando indiretamente Darcy Ribeiro.
Configurado o quadro acima, qual a conseqüência efetiva da excomunhão ditada pelo arcebispo? Diria que quase nula, pois poucos católicos vivem com efetivo engajamento religioso nossa fé de conveniência e foguetório. A prova da irrelevância da excomunhão está no fato de o próprio arcebispo vir novamente a público para acenar com o perdão e conseguinte anulação do interdito que acaba de decretar. Eis aí uma variação sintomática da nossa cultura regida pela falta de caráter, compreendido este no sentido em que o utiliza Mário de Andrade em Macunaíma. Trocando em miúdos, fica o dito pelo não dito.
O mais grave de tudo é constatar que a excomunhão foi imposta a todos os envolvidos, salvo àquele que é o verdadeiro executante do mal: o padrasto estuprador. Isso sugere com evidência exemplar a margem de responsabilidade da nossa tradição religiosa na realidade corrente da violência exercida contra a mulher. Apesar de todas as nossas peculiaridades de ocidentais periféricos, felizmente somos há muito modernos o bastante para consolidar em termos práticos e legais a distinção fundamental entre poder religioso e secular. Do contrário, nosso clero estaria ainda ditando normas sobre o que podemos e não podemos fazer, fôssemos ou não católicos.
Recife, 9 de abril de 2010

sábado, 15 de maio de 2010

A Ética Religiosa da Sexualidade




Bertrand Russell foi provavelmente o filósofo que no decorrer do século XX mais tenazmente combateu a religião. Melhor dizendo, mais combateu o Cristianismo, que é a tradição religiosa hegemônica no Ocidente. Nisso, como em tanto mais, Russell renovou nossa memória de Voltaire, o mais virulento anticlerical dentre os grandes secularistas do Iluminismo. Assistimos hoje a uma renovação da crítica à religião em geral, não apenas ao Cristianismo e suas múltiplas ramificações. A crítica procede de fontes filosóficas e sobretudo científicas. Procede ainda da aceleração dos processos de secularização e racionalização impostos pelo desenvolvimento da ciência e do capitalismo que, tudo convertendo em mercadoria, tende a suprimir o sagrado do horizonte da cultura contemporânea. É certo que o sagrado se refaz noutras formas, o que leva alguns estudiosos a postularem um reencantamento do mundo em oposição a Max Weber, que previu o desencantamento do mundo como consequência dos processos de secularização e racionalização acima mencionados.

Em meio a essas turbulências profundas que tanto desnorteiam nossos referenciais culturais e éticos, o Cristianismo – para não falar das religiões marginais aos processos de modernização do Ocidente – persiste no seu combate à sexualidade. Em meio a uma atmosfera de franca permissividade sexual, sobretudo em países como o Brasil, a religião mobiliza ainda e sempre suas armas enraizadas na tradição, saturada de componentes patriarcais, para vetar a legalização do aborto, o casamento dos padres católicos, a prática sexual independente do casamento, a legitimidade dos direitos da mulher e dos homossexuais etc. Como não tenho nenhuma competência religiosa e muito menos teológica para examinar este problema, atrevo-me a sugerir algumas razões históricas passíveis de lançarem alguma luz sobre os fundamentos da ética sexual adotada pelo Cristianismo.

Em sua monumental História da Filosofia Ocidental, Bertrand Russell dedica um capítulo aos doutores do Catolicismo: Santo Ambrósio, São Jerônimo e Santo Agostinho. Além de contemporâneos, importa ressaltar o fato de que testemunharam a decadência do império romano e as invasões bárbaras que mergulharam o Ocidente em séculos de atraso. Embora vivendo durante uma das mais profundas crises da história da humanidade, todos deram mais ênfase à luta contra o pecado, em particular o pecado da carne, além de velarem pela preservação da virgindade feminina. Mesmo Santo Ambrósio, que se distinguiu antes de tudo na luta travada entre a Igreja e o Estado, conferiu prioridade à ética de natureza sexual.

Como grande historiador da filosofia, Bertrand Russell procura compreender essa realidade dentro das condições próprias à época em que os doutores sagrados do Catolicismo viveram. Ainda assim, não contém o espanto com que narra a obsessão dos santos com os pecados da carne. É interessante salientar que a obsessão com os pecados da carne impõe vetos e punições sobretudo à mulher, que desde o mito da expulsão do Éden é representada como um ser seduzido pela carne, além de representar uma permanente ameaça para o homem. Considerando que o Cristianismo foi forjado em sociedades agrárias de rigorosa orientação patriarcal, nada há de surpreendente no fato que acabo de assinalar.

Santo Agostinho, como Santo Ambrósio e São Jerônimo, coloca o pecado no centro de sua concepção teológica. Quando irrompe a Reforma Protestante, Lutero herda da teologia agostiniana a mesma obsessão com o pecado. Seguem-no nessa tendência todos que lideraram ou seguiram as diferentes seitas de inspiração protestante, sobretudo as puritanas. Bastaria observar, nessa perspectiva, filmes como A Letra Escarlate e As Bruxas de Salem, o primeiro baseado no romance homônimo de Nathaniel Hawthorne, o segundo numa peça de Arthur Miller.

Suponho que a tradição acima grosseiramente esboçada explica a leniência, quando não cumplicidade, com que o Catolicismo, notadamente brasileiro, considera o mal corrente no universo da política, por exemplo. Confesso ter ainda grande dificuldade para compreender tamanha disparidade do ponto de vista racional. Mesmo admitindo-se que uma pessoa peca ao adotar práticas sexuais contrárias a nossas crenças religiosas, o mal em que incorre afeta apenas a ela, ou a quem com ela livremente se envolva. Ora, o mal praticado por um político corrupto, por exemplo, é de consequências incomparavelmente mais graves. O que representa o “pecado” de um homossexual, o “pecado” de uma adúltera, ou de uma mulher que incorre no crime do aborto, comparados aos bandidos que saqueiam cofres públicos privando milhares de brasileiros de serviços sociais necessários à sua sobrevivência, à possibilidade de uma vida elementarmente decente?

Enquanto bandidos e corruptos saqueiam impunemente recursos públicos colossais, as necessidades sociais básicas vivem entregues à ineficiência e à carência que impõem terrível opressão cotidiana a grande parte da população. Em suma, que mal representa para o mundo um “pecador” da carne comparado à corrupção endêmica das práticas políticas que envenenam nossas relações sociais? No entanto, a maior parte dos religiosos deplora e quando pode persegue e pune apenas a quem cede às tentações da carne.

Quando inverto o lugar comum afirmando que a carne é forte, não pretendo com isso implicitamente aprovar a sexualidade infrene dominante na cultura do presente. Meu intento é apenas denunciar o absurdo de qualquer ordenação ética da sexualidade que incorra na insensatez de determinar a supressão de forças que são parte da nossa natureza. Foi com esse propósito que num outro artigo – Uma Passagem pelo Mosteiro - aludi à inoperância de uma ética religiosa orientada para a supressão da sexualidade. Disse e reitero que isso é pura perda de tempo. Toda a história da humanidade, mesmo nos períodos de mais profunda e contrita religiosidade, testemunha a presença de nossa energia libidinal que, como escrevi, pode ser em certo grau reprimida, noutro sublimada, mas nunca suprimida.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma Passagem pelo Mosteiro



Diante da imensa repercussão da Jornada Mundial da Juventude liderada pela figura carismática do papa Francisco, parece-me oportuno voltar a postar no meu blog a crônica abaixo, escrita originalmente para o blog Amálgama, editado por Daniel Lopes. O essencial do que escrevo é memória pessoal. O que sobra, e talvez mais importe, sobretudo nas circunstâncias presentes, é matéria de controvérsia. O leitor religioso, ou demasiado otimista ao sopro do extraordinário impacto da Jornada que por pouco não monopolizou a programação semanal da Rede Globo, pode de imediato contestar o que afirmo acerca da irrelevância normativa da religião no mundo em que vivemos. Admito o caráter discutível das minhas afirmações mais extremas. Nâo tenho a presunção de ser detentor de verdades, apenas portador de uma voz crítica que tem o direito de ser ouvida e discutida.

A leitura de um artigo de Christopher Hitchens – The Pope is not above the Law, conferir tradução de Daniel Lopes no blog Amálgama – lembrou-me minha remota passagem pelo mosteiro de São Bento, Olinda, no início dos anos 1970. Embora já afastado de minha formação católica, que foi de resto muito permissiva, tinha e continuei tendo grandes amigos religiosos, não apenas católicos, ao longo da vida. Dentro de minhas convicções liberais e radicalmente individualistas, procurei sempre respeitar a liberdade de religião e credo em geral, contanto que fundados em valores de tolerância e respeito pelos direitos humanos, com perdão da fórmula abstrata. A leitura de alguns iluministas, sobretudo o anticlerical Voltaire, de Bertrand Russell e da cultura marxista da época afastaram-me por completo da religião. Essas marcas do meu passado intelectual reforçam o apreço que tenho hoje pelo combate antirreligioso travado por críticos militantes da religião como Richard Dawkins e Christopher Hitchens.

Fui levado ao mosteiro de São Bento por um amigo cuja coerência religiosa muito admirava. Admitido no mosteiro para viver a semana santa em estado de voluntária reclusão e penitência, obteve junto à abadia autorização para levar-me como acompanhante (favor não confundir o termo com o sentido que os sites pornô lhe emprestam no presente). Confesso haver seguido meu amigo com altas e líricas expectativas. Tinha enorme desejo de conhecer a famosa biblioteca do mosteiro. Além disso, era então leitor apaixonado de Hermann Hesse, que me perturbou a imaginação romântica com obras como Sidarta e Narciso e Goldmund.

Fui muito bem acolhido no mosteiro. Mal cheguei, o irmão hospedeiro surpreendeu-me ao me ceder o quarto de hóspedes em caráter exclusivo, enquanto meu amigo ficou recolhido em outro bem mais modesto. E logo as coisas começaram a desandar. Encurtando a história ao ponto de suprimir todos os detalhes embaraçosos, fui tão assediado sexualmente no decorrer de algumas horas que prontamente pedi socorro a meu amigo. Quando a história chegou ao conhecimento do irmão hospedeiro, este procurou-me visivelmente constrangido, pediu-me para não considerar casos excepcionais como prática normal dentro da instituição e logo providenciou minha transferência para o quarto do meu amigo, onde afinal me senti a salvo das tentações movidas contra minha carne. Como hoje diria Severo Machado, ressoando palavras de Boris Pasternak e Luciano Oliveira, a carne é forte até dentro das santas paredes dos mosteiros.

Na manhã seguinte, reunidos no refeitório, onde me impressionaram o excesso de comida e a voracidade de alguns monges em plena semana santa, nenhum dos que me assediaram na véspera sequer ousava olhar para mim. Em paz comigo, também com a bela paisagem histórica de Olinda, então isenta do batuque e da violência hoje correntes, refugiei-me na biblioteca. Foi lá que pela primeira vez encontrei a edição integral da obra de Freud e comecei erraticamente lendo-a. O fato logo desagradou ao irmão hospedeiro, cujo generoso acolhimento acima louvado encobria uma intenção que muito me incomoda: a bondade e a suposta compreensão praticadas com propósitos de conversão. Noutras palavras, a intenção dele era converter-me, ou reconverter-me. O fato de reiteradamente surpreender-me com um volume de Freud nas mãos logo o contrariou e logo passou da contrariedade à crítica impaciente.

Conversei livremente na biblioteca e no pátio com alguns noviços durante meu retiro no mosteiro. Dois claramente sofriam dramas morais decorrentes de homossexualidade reprimida. Ambos admitiram haver optado pela conversão à ordem regular movidos antes pelo desejo de suprimir suas tendências “pecaminosas” do que pelo apelo da fé. Apesar de então agnóstico, hoje sou ateu, chocaram-me as evidências rotineiras de futilidade e fuga negativa do mundo a que assisti durante minha passagem pelo mosteiro. Jovens privados de autênticos ideais espirituais ou intelectuais dissipavam sua vida de reclusão ouvindo lixo cultural com o ouvido colado ao radinho de pilha. A biblioteca, que tanto me encantou e revelou tesouros largados à poeira do tempo, vivia entregue ao abandono. Apenas um velho monge, de origem belga, dela cuidava catalogando zelosamente milhares de volumes e documentos que aparentemente a ninguém interessavam.

Se à volta de 1970 as coisas dentro da ordem regular já eram assim, o que dizer hoje, dentro e fora dos mosteiros? Tenho um jovem amigo, um dos melhores indivíduos que conheço, que certo dia cotejou sua experiência de interno num seminário católico com minha passagem pelo mosteiro acima condensada. O que mudou para pior, em tudo que se possa conceber, salta aos olhos de quem tenha a coragem e a honestidade de mantê-los abertos.

A verdade é que a Igreja católica teima hipocritamente em vedar o sol com a peneira. Não sou cristão, muito menos teólogo ou autoridade religiosa, para propor qualquer solução. Sei apenas, no que sigo a lição de Freud, que somos movidos por pulsões incivilizáveis. Ou algo que seria nosso cerne biológico indomável pela civilização. Aludiria, mais claramente, ao sexo, ou à fortaleza da carne, que desafiou sempre com astúcia e energia irrefreáveis todas as interdições impostas pela cultura, a religião, os códigos penais etc. É perda de tempo tentar suprimi-la. Tudo que podemos, e é o melhor que podemos, é elevá-la a formas de sublimação patentes na história da arte, da literatura, da própria religião, das forças humanas mais civilizadoras compreendidas no sentido positivo do termo. Noutros termos, nossas pulsões incivilizáveis podem ser parcialmente controladas, parcialmente convertidas em força sublimadora da destrutividade humana, mas nunca suprimidas.

O problema é que as forças civilizadoras do Ocidente estão reduzidas a bandalhos. A irrelevância normativa do catolicismo, assim como da religião em geral, salta novamente aos olhos de quem tenha a coragem de abri-los. Religião tornou-se antes de tudo investimento, show business, como diria um executivo da Globo, ou um pastor bem sucedido no mercado da fé. O maior espetáculo midiático da semana santa, sediado em Nova Jerusalém, Pernambuco, neste ano contratou a atriz Suzana Vieira para interpretar Maria, mãe de Jesus, símbolo milenar da castidade e das virtudes femininas pregadas pelo catolicismo. No comments. Um ladrão roubou uma igreja em São José dos Campos e se apropriou até da cabeleira que adornava a imagem do Cristo. Não bastasse tanto, levou o sacrilégio ao extremo de roubar todo o estoque de hóstias da igreja, que assim ficou privada de meios para prestar serviços de confissão e comunhão durante a semana santa. No Maranhão, medidas adotadas contra roubo, depredação e sacrilégio reduzem igrejas a autênticas penitenciárias ou fortalezas. Deus é fiel? E nós, a que somos fiéis?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dia das Mães




Zélia é uma mãe antiga, de um tempo cujos traços mais nítidos sumiram do horizonte do presente. Tão antiga, ou já tão irreal, que é do tempo em que as mães casavam para sempre e ao casarem consagravam sua vida ao marido, aos filhos e à casa. Quando casou com Eduardo, a quem maternalmente habituou-se a tratar como Dudu, o mundo da mulher e das suas relações com o mundo do homem parecia muito simples. Enquanto ele reinava na rua, ou no mundo, ela reinava na casa.

Dudu foi o único homem que conheceu e amou na vida. Casaram-se logo que ele se formou em medicina. Ele tinha então 23 anos de idade; ela, 17. Maria Vitória, a filha mais jovem, diz agora, com certo travo de amargura, que ele é apenas uma fotografia pendurada num móvel da sala. Ela não sabe, ou é incapaz de compreender, que Dudu está vivo. Apesar de morto há cinco anos, sua presença é tão dominante na vida de Zélia que nem consegue imaginá-lo morto. Agora que é viúva e velha, ou está na boa idade, como dizem por aí, Zélia tem a solidão dos dias que lhe restam para conversar com Dudu. Nada faz na vida, nada sobre ela decide sem antes consultá-lo. É sobretudo na hora de dormir, quando reza suas orações e pede a Deus pela vida dos filhos e netos, que senta no sofá ao lado de Dudu e conversa sobre os dois, sobre os 60 anos vividos um ao lado do outro. Um dia, tem fé, deixará de conversar apenas com o espírito de Dudu, apenas com a memória que dele preserva, e irá a seu encontro. E assim a vida e o amor que aqui compartilharam serão transpostos para uma eternidade sem incerteza ou sobressalto.

Faz dois anos que Zélia escolheu viver sozinha num pequeno apartamento. Deixou a cobertura luxuosa que dividia com arthurzinho e Maria Vitória para viver solitária na sua concha de 60m2. Ainda hoje os filhos e demais parentes são incapazes de compreender sua decisão de ficar sozinha na velhice avançada. Somente Fernando, o amigo que a escreve e assim a recria como abstrata figura tecida com palavras, somente ele aparenta compreendê-la. Sua explicação é simples: não quer morrer sem antes saber o que é ter seu próprio lugar, a pequena ilha onde precisa aprender a experiência da solidão antes da morte, da viagem última que a levará ao reencontro com Dudu.

Amanhã todos estarão aqui. Será um domingo de festa dentro da sua ilha que mal contém espaço para acolher tantos filhos, netos e outros parentes. Faz uns quinze dias que a televisão não fala de outra coisa que não seja o seu dia. Tudo isso lhe confunde a inteligência afeita apenas às práticas da vida simples que vive. De repente elevam-na a tantos modos de amor, a tantas provas de carinho, reconhecimento e importância que desacerta até o modo inconsciente de andar entre a sala e a cozinha, a TV e o telefone que amanhã tocará sem repouso.

Perplexa diante de tantas imagens sedutoras, erra estrangeira e anônima entre comerciais do shopping center e de um banco que nem conhece, entre geladeiras, móveis, farmácias, supermercados, lojas de roupas e joias, sapatarias e locadoras, sociedades comerciais e beneficentes e toda uma infinita sucessão de lojas, bancos, mercados , comerciantes, publicitários... Não bastasse tanto, ouve tanta gente famosa falando dela com amor, tanta gente que nunca a viu nem a conhece... “Meu Deus, como guardar em mim meu anonimato humilde depois de tanta celebração, depois de tantas provas e promessas de amor? Como comprar tudo que me querem vender em meu nome, tudo que me vendem do que não preciso? Até parece que gerei meus filhos e eduquei-os apenas com o propósito de que no meu dia me dessem presente. O mais engraçado de tudo é que também meus netos me querem presentear. Como não têm renda própria, me pedem dinheiro para me dar presentes que ironicamente acabo pagando”.

Maria Vitória virá com novo marido, que é já o quarto. Os filhos, saídos de amores tão desencontrados e instáveis, brigam tanto que precisa sempre testar sua paciência e compreensão do seu amor de avó para apaziguá-los quando a seu lado. Ana Célia, a primogênita, separou-se do último marido, que foi o terceiro. Queixa-se sempre da solidão da casa, da ausência dos filhos já crescidos e soltos na vida. De repente, deu para morrer de amores por cachorros e parece andar mais equilibrada. Já que nos desavimos como seres de convívio e vida rotineiramente conjugada, resta-nos agora o amor dos cachorros. Marluce, depois de tanto errar de amores, arranjou uma companheira com quem vive dentro de uma comunidade mística que criaram em Brasília. “E Arthurzinho, meu Deus, bebendo tanto que já precisou até fazer tratamento no AA... Tudo isso me confunde a cabeça e a imaginação, tudo isso desconcerta meu coração de mãe estrangeira num mundo tão desequilibrado”.

Mas amanhã todos estarão aqui. Farão tanto barulho com televisão ligada, celular, videogame e telefonemas simultâneos, conversas desencontradas em meio ao ruído do apartamento... “Meu Deus, confesso que preferiria a companhia silenciosa de Dudu. Com ele, na solidão da noite antes do sono, sinto-me afinal reconciliada comigo própria, com os valores e a atmosfera de um mundo apagado das trepidantes linhas do presente. Depois da festa, como sempre acontece, todos partirão e durante um ano viverei como uma ausência sem queixas na memória volúvel desses pedaços de mim nos quais já não me reconheço nem eles em mim se reconhecem. Não sei o que seria de mim e da minha velhice solitária, não houvesse o amor sempre fiel e presente de Dudu iluminando minha vida. Um dia viajarei afinal a seu encontro e então já não haverá dia das mães na vida de filhos e netos que gastam tanto tempo e dinheiro no shopping para me dar o que não preciso e enganar a falta do que tanto neles e em mim me dói: o sentido de um amor sem comércio”.

domingo, 2 de maio de 2010

Penelope Lively


Literatura Inglesa: Penelope Lively

Concluo a leitura de mais um romance de Penelope Lively: Perfect Happiness. Lançado 3 anos antes de Moon Tiger, livro que conferiu a P. Lively o Booker Prize de 1987, nele é possível identificar elementos antecipadores da inquestionável obra-prima da romancista. De resto, é o que de melhor nele existe. Um esboço da técnica narrativa primorosamente realizada no romance de 1987, por exemplo, está claramente inscrito no princípio de construção de Perfect Happiness. O papel da memória, central em toda a obra ficcional de Penelope Lively, é já explorado a partir da pluralidade de focos narrativos que se de um lado relativizam e enriquecem a percepção dos personagens principais, doutro abandonam a meio, sem motivos convincentes, situações e conflitos insatisfatoriamente desenvolvidos. Disso resulta uma narrativa esgarçada, esboços de figura sem resolução, um certo tom de fragmento que não me parece derivar da perspectiva realista e das técnicas a ela conexas mobilizadas pela autora.

Dadas as evidentes características da ficção de Penelope Lively, parece-me justificado identificar nas irresoluções aqui grosseiramente indicadas a inabilidade com que a autora movimenta seus personagens. Tanto me parece ser isso verdadeiro que Moon Tiger, obra derivante de perspectiva e técnicas similares, transmite ao leitor a força de personagens tais como Claudia Hampton e seu irmão Gordon. Em Perfect Happiness, porém, é impossível identificar semelhantes elementos de força e desenvolvimento em personagens como Frances Broolyn e Zoe que, mais que a primeira, me parece sugerir alguns dos traços mais marcantes de Claudia Hampton.
Tendo chegado a Penelope Lively a partir de Moon Tiger, o entusiasmo da descoberta induziu-me a ler outros dos seus romances. Depois de ler, e em alguns casos reler vários deles, vejo-me constrangido a admitir, repetidas tantas decepções, que Moon Tiger é não apenas a obra-prima de Penelope Lively, mas também seu único romance de verdadeira importância. Tão grande é o desequilíbrio entre ele e os demais que li, notadamente Treasures of Time, que quase chego a encará-lo como uma espécie de feliz acidente em meio a uma tediosa sucessão de banalidades.

Meu desconforto ou insatisfação de leitor francamente interessado pela ficção inglesa contemporânea estendeu-se a outras autoras que também andei lendo: Barbara Pym, Anita Brookner, Muriel Spark. A primeira, sem dúvida uma das piores romancistas que li nos últimos anos, foi estranhamente louvada por Philip Larkin como sendo uma das grandes e injustiçadas romancistas inglesas deste século. Foi de resto este juízo infundado, emitido por poeta e crítico de notável influência, que repôs Pym no centro da cena literária inglesa. Agora me parece que o juízo do leitor corrente, no caso bem mais agudo que o de Larkin, devolveu-a ao lugar medíocre que lhe cabe.

A leitura recente de longa entrevista concedida por Carlos Fuentes ao crítico inglês John King, incluída em Modern Latin American Fiction: A Survey, livro organizado e co-escrito pelo próprio John King, fez-me novamente considerar minha insatisfação com grande parte da ficção inglesa contemporânea que li. Referindo-se ao entusiasmo que lhe inspira a literatura americana, Fuentes lamenta não poder dizer o mesmo da inglesa. Embora admita estar propondo na entrevista explicação pouco convincente (“The more important point is that when you have a very well-developed civil society as in Britain or France, you feel that society takes care of itself and you don't feel like writing about it so much, because it will appear in information, on the news or television”. p.l50), ele me parece acertar quando observa no mesmo parágrafo que muito da ficção inglesa produz a sensação de que tudo já foi dito.
De fato, o terreno percorrido e explorado por autoras como Penelope Lively, Anita Brookner e outras que se fixam nas formas de paralisia e tédio inscritos no horizonte da classe média inglesa de que são parte parece transmitir ao leitor não mais que formas correspondentes de paralisia e tédio.

Parece-me significativo que a grandeza de Moon Tiger, e particularmente de Claudia Hampton, derive do fato de que o romance se inscreve num campo de tensões absolutamente alheio à atmosfera rotineira das obras produzidas pelas escritoras que aqui critico. Claudia Hampton, historiadora não-acadêmica e jornalista atenta às turbulências da história e da política internacionais, é uma mulher generosamente aberta para o mundo. Seu interesse apaixonado pela história humana transporta-a do ramerrão representado na obra de Muriel Spark, Barbara Pym, Anita Brookner e em muitos romances da própria Penelope Lively, para o som e a fúria produzidos por Cortez e seu bando de aventureiros no México. Daí para os campos de batalha em que os desertos egípcios foram convertidos durante a Segunda Guerra Mundial; depois a colonização inglesa nos Estados Unidos; depois a Hungria ocupada pelos tanques russos em l956; depois o mundo da infância e da adolescência marcados por cenas incestuosas de perturbadora beleza ... tudo isso servido por uma técnica narrativa capaz de exprimir não só a complexa organização psíquica de uma personagem tão impressionante como é Claudia Hampton, mas também outros pontos de vista: o de Gordon (irmão de Claudia), o de Laszlo, o de Lisa (filha de Claudia e Jasper), o de Sonia (mulher de Gordon). Em meio a esse entrecuzamento de forças e tensões, até personagens humanamente medíocres e típicas do universo classe média inglês (como é o caso da mãe de Claudia, também o caso de Lisa e de Sônia) tornam-se importantes quando contrastadas à vitalidade de Claudia, Gordon e Laszlo.
Chega de romancistas inglesas presas à recriação ficcional de uma realidade cujos traços dominantes de paralisia e abafamento de possibilidades existenciais apenas servem para inspirar no leitor o tédio estampado em cada gesto e palavra desses personagens infinitamente desinteressantes. Já me basta aturá-los na vida real.
Colchester, 12 de maio 1992.