segunda-feira, 28 de junho de 2010

Agnieszka Holland e Christopher Hampton



O nome Agnieszka Holland atraiu minha atenção quando vi Europa Europa (título brasileiro: Filhos da Guerra), talvez o melhor filme que eu conheça sobre ideologias totalitárias (nazismo e comunismo stalinista, especificamente) e o modo complexo como atuaram sobre a consciência de alemães, soviéticos e judeus. Suponho que o tratamento impresso pela diretora polonesa a essa questão tenha mobilizado negativamente o governo alemão, impedindo assim que o filme concorresse ao Oscar. Afinal, o filme será tudo, menos uma reiteração do esquema maniqueísta muitas vezes difundido por Hollywood ao explorar à exaustão a atmosfera ideológica e política associada à Segunda Guerra Mundial.

Entre os muitos problemas propostos pelo filme, sobreleva o da identidade racial de um jovem judeu. Solomon Perel, em cujas memórias se baseiam o roteiro e a direção de Agnieszka Holland, luta para sobreviver num mundo retalhado por ideologias afins, no que segregam de representação totalitária da realidade, embora na prática empenhadas numa guerra de destruição recíproca. Este fato me lembra ecos de 1984, de George Orwell. Perel não se nos apresenta como um pobre diabo inocente ou como expressão do bem passivamente atropelado pelas forças do mal. O que acima de tudo o move a agir e recompor identidades é a necessidade imperiosa da sobrevivência. Assim, troca de lado e de identidade – ora judeu, ora comunista, ora nazista – inevitavelmente espicaçado pela culpa, mas sobretudo atormentado pelo medo de que o desmascarem. Seria nesse sentido, forçando aqui um paralelo, um primo europeu de Macunaíma, nosso emblemático herói sem caráter.

O quadro de representação das consciências e identidades vivas se compõe de modo ainda mais complexo que o sugerido no parágrafo acima. Deslocado para o lado soviético, evidencia os processos através dos quais a ideologia totalitária é introjetada nos jovens sob a ação decisiva de agentes ideológicos tais como educadores e intelectuais militantes. Detendo-se ainda mais na sua negação aparente, o lado nazista, demonstra com fatos perturbadores o funcionamento irracionalista de uma ideologia que celebra um modo de civilização, quando não seu triunfo, inconsciente dos mecanismos de barbárie devastadora intrínsecos à natureza do seu funcionamento. Mas os agentes humanos nos quais essa ideologia se encarna são seres humanos complexos, gente de carne e osso como eu e o leitor. Portanto, também nesse contexto regido por processos totalitários vibram forças humanas contraditórias e transgressoras, assim como cegamente conformistas.

Mas eis que Agnieszka Holland está de volta, agora dirigindo animada pela colaboração fundamental de um outro notável roteirista e diretor de cinema: o inglês Christopher Hampton. Se tem ela a seu crédito esse perturbador Europa Europa, deu-nos ele Carrington, filme decisivo para repor na cena cultural contemporânea o nome de Lytton Strachey (Jonathan Pryce) e sobretudo o da injustamente esquecida Dora Carrington (Emma Thompson). O filme de Hampton, que recria com fina sensibilidade estética a relação amorosa bem pouco convencional entre Lytton e Carrington, pontuada pela permissividade e o caráter excêntrico do círculo de Bloomsbury, concorreu de modo decisivo para imprimir notoriedade à pintura de Carrington. Eu próprio pude ler aqui mesmo em Recife, logo depois de conhecer o filme, um estudo acadêmico de uma feminista inglesa (Jane Hill, The Art of Dora Carrington), maravilhosamente ilustrado com reproduções da sua pintura. O próprio final do filme, aliás, justapõe aos créditos reproduções de suas obras fundamentais.

Agnieszka Holland e Christopher Hampton aliaram-se para dar materialidade fílmica a outra relação amorosa heterodoxa e visceralmente conflituosa: a de Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. Tal como ocorrera quando vi Carrington, o filme causou-me tão aguda impressão que voltei a revê-lo dois dias mais tarde. Vou porém antes anotar algo referente ao impacto imediato causado pela obra, no ato mesmo da sua recepção, antes de tratar especificamente do filme.

Se pudesse sugerir um teste puramente intuitivo e sensorial para a recepção de um grande filme, diria que tal ocorre quando, encerrada a sessão, preciso de vários minutos para gradualmente me reacomodar aos limites da realidade cotidiana e banal. Seria curioso ou talvez sintomático registrar que tal ordem de experiência estética raramente me tem ocorrido diante do grosso da produção cinematográfica dos últimos anos. Lembraria aqui casualmente, à deriva da memória involuntária, alguns filmes que em mim induziram a manifestação desse estado psicológico. Por exemplo estes: Dead Poets Society (Sociedade dos Poetas Mortos), Tous le Matins du Monde (Todas as Manhãs do Mundo) Hamlet (de Laurence Olivier) Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Rashomon, Citizen Kane, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Burn (Queimada), The Fixer (O Homem de Kiev), La Femme d´à Côté (A Mulher do Lado), Violência e Paixão, The English Patient (O Paciente Inglês), Amarcord.

Pois não relutaria em acrescentar a esta lista parcial o filme de Agnieszka Holland: Total Eclipse (Eclipse de uma Paixão). Antes de tudo, diria com certa intenção de humor que recria com cenas e diálogos cortantes uma época da história literária em que o próprio amor, a própria experiência passional, era um modo de épater la bourgeoisie. Rimbaud e Verlaine (Leonardo DiCaprio, David Thewlis) antes de tudo o primeiro, são a expressão paradigmática e arrogante da associação umbilical entre a obra criada e a vida vivida como se esta fosse uma tradução existencial da primeira. Rimbaud aspirou a ser na sua obra e ousadamente realizou na sua vida vertiginosa a conjugação entre o eu e o outro. Ao dissolver no plano da expressão estética quanto no plano existencial essa tênue fronteira, entretanto vivamente assinalada nos modos convencionais de relação e identidade social, gestou uma obra explosiva e fez da sua vida um redemoinho no qual eternidade e inferno se fundem e se repelem.
Recife, 14 de janeiro de 1998.
Ler também:
Carrington e o amor romântico.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Máximas e Mínimas III


Amigos? São os que ficam depois que a festa acaba. Quantos? É difícil estimá-los no país do carnaval, onde frequentemente confundimos festa com amizade. O brasileiro folião confunde sempre uma coisa com a outra. Por isso acredita ter tantos amigos, quando na verdade não tem nenhum.

Sei de um poeta famoso, imortal da Academia Brasileira de Letras, o que basta para esclarecer que falo de imortalidade tópica, que cultivava o hábito saudável de falar mal dos seus convivas tão logo se retiravam de suas festas. Alguns mais perceptivos, à força de lhe frequentarem a casa, acabaram notando-lhe esta particularidade e prudentemente passaram a retirar-se já no último minuto, quando a manhã já se anunciava. Sugiro que o leitor coteje esta anedota com a definição precedente de amizade e por fim tire suas próprias contas. Melhor dizendo, responda-me esta pergunta: quantos amigos tinha o poeta imortal?

Liberto enfim da esperança, eu nada espero. É portanto com fundamento no desespero que nego o absurdo da vida e na minha nudez acolho o quinhão de felicidade que me cabe ou tem a medida do meu contentamento.

Há muitos anos, bracejando no pessimismo atormentado, incorri num paradoxo inconsciente ao escrever: eu nada espero e assim me poupo de desesperar. Somente agora me apercebo do quanto era escravo de minhas esperanças malogradas ao escrever esta frase que apenas teria sentido na medida em que encerrasse um paradoxo intencional. Agora sei que ser livre para não ter esperança é escolher o desespero.

Esperança não é força, mas impotência, pois esperamos o que por definição está além de nossa vontade e realidade. Seria acaso dizer-se que a profissão do brasileiro é a esperança? Ou ainda e melhor: que o Brasil é o país do futuro?

Com frequência hoje me pergunto se minha vida progride (ou regride?) para uma atmosfera de serena reclusão. A esse propósito, é curioso ou sintomático observar como a memória – tocada por filmes que ninguém vê e livros que ninguém lê, salvo eu – me transporta para a solidão inglesa que profundamente me transformou ao enraizar minha maturidade num solo de vida habitada por modos de convívio muito restrito. Não brinco quando afirmo que o mundo, como idealmente o concebo, teria uma população de 1000 habitantes. É fato que não há muitas pessoas que verdadeiramente importem para mim. Direi que falo de um mundo de serena reclusão ou de quase misantropia? Terá a solidão voluntária, à força de repetir-se, me desabituado do mundo, ou merecerá o mundo insolúvel a redução de minha drástica medida?

A vida banal, feita de repetições e máscaras que nos protegem do outro, é talvez o que mais me desencoraja do convívio rotineiro. Sem pretender subordinar a vida à literatura, não me furto ao pensamento de que num breve capítulo de Brás Cubas penetro verdades humanas infranqueáveis a uma amizade de 10 anos, por vezes de uma vida inteira. Acaso insinuo nas linhas de tal contraste a convicção de que pessoas reais são rasas, quando não vazias? De modo algum. É por assim pensar que me inconformo com o fato de que seres humanos, dotados de possibilidades e experiências tão ricas e complexas, se acomodam a um convívio de trivialidade e desperdício. Prisioneiro da experiência trivial, quando enredado no convívio ordinário, mais e mais me recolho ao cultivo do meu jardim.

Most of my life I´ve been living in wrong places with wrong people. Learning to live by myself was a way of avoiding complete moral debasement.

Vivi a maior parte de minha vida nos lugares errados entre pessoas erradas. Aprender a viver sozinho foi um meio, entre outros, de não me acanalhar completamente.

O Brasil é uma porção de terra muito grande ocupada por uma porção de gente muito pequena.

If Brazil is the country of the future, then I can surely foresee that the future will be called Brazil.

A civilização é uma conquista penosa e sempre reversível.

Conflito de geração: Os pais desejam que seus filhos sejam o que eles não puderam ser, enquanto os filhos não querem ser o que seus pais foram.

Sou humildemente um self-failed man. Posso portanto orgulhosamente afirmar que não devo meus fracassos a ninguém.

Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de suportação da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?

Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Um dia deixarei de ser Fernando para ser apenas Fernada.Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino. E nosso destino, universal e inescapável, é nossa medida mais humana suprimida pela cultura da alienação narcisista.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

José Saramago: Literatura e Ideologia


José Saramago tornou-se um escritor celebrado pela mídia desde quando recebeu o Nobel de Literatura. É certo que antes disso já conquistara um amplo público, inclusive no Brasil. Aliás, a recepção da sua obra no Brasil é um fenômeno literário inusitado, já que desde o advento do modernismo a literatura portuguesa ficou reduzida a uma faixa de circulação muito restrita entre nós. Sem dúvida, caberia lembrar o fenômeno Fernando Pessoa, escritor português de maior repercussão no Brasil no decorrer do século 20. Mas o reconhecimento da sua obra, do seu gênio único, foi tardio mesmo em Portugal. Em suma, diferentemente de Saramago, que gozou em vida de prestígio literário único no Brasil e em muitos outros países, Fernando Pessoa é um gênio de reconhecimento e fama póstumos.

A obra de Saramago importa por seu valor intrínseco, pelos valores irredutivelmente literários ou estéticos que são de resto os que asseguram imortalidade a uma obra. E esta, a imortalidade ou permanência no veio da tradição literária, esta é decidida por um juiz supremo e infalível: o tempo. Portanto, somente nossos pósteros poderão avaliar se a obra de Saramago sobreviverá ao juízo do tempo. Isso evidentemente não anula algumas evidências aferíveis no presente. A melhor crítica ainda em atividade aparenta endossar o consenso segundo o qual fração significativa da obra de Saramago sobreviverá à passagem do tempo. Como pouco a conheço, não seria honesto de minha parte propor apreciações que se sustentam na leitura de uma ou duas obras. Aliás, esclareço que foi esse declarado conhecimento restrito da obra de Saramago que me fez relutar em aceitar o convite de Daniel Lopes para registrar num artigo a morte recente do grande romancista português. Diante disso, conviria desdobrar o artigo retendo-o na franja de aspectos externos à obra. De resto, é isso o que a maioria dos artigos e notas correntes na mídia tem feito.

Saramago foi um autor deliberadamente polêmico. Sempre que solicitado a se pronunciar sobre seus pontos de vista, deu ênfase maior, senão quase exclusiva, a temas de natureza política e religiosa. O homem público, investido de um sentido de militância política e ideológica raro na atmosfera cultural em que passamos a viver depois do patente esgotamento dos ideais e utopias gestados pelos movimentos de esquerda, valeu-se sempre de sua fama literária para opinar, por vezes em tom áspero, contra o capitalismo, a religião, as formas correntes de opressão observáveis sob a hegemonia universal do capitalismo. Embora implacável na sua crítica recorrente ao capitalismo, raramente se pronunciou contra os horrores do chamado socialismo de Estado imposto pela União Soviética a grande parte do mundo. Aliás, leia-se totalitarismo onde escrevi socialismo de Estado. Embora sinceramente votado à causa dos oprimidos, dos levantados do chão, assim como daqueles impotentes para levantar-se em face de formas impiedosas de dominação, Saramago praticamente silenciou diante das tiranias impostas em nome dos ideais utópicos que abraçou e sempre defendeu.

Penso que essa é a restrição ideológica e moral mais grave que se deve fazer à militância intelectual de Saramago. Nisso, infelizmente, ele reitera o itinerário de muitos dos maiores intelectuais do Ocidente. Movidos por ideias de justiça e igualdade cuja sinceridade admito, o fato é que findaram sempre na prática silenciando sobre a opressão praticada em nome da ideologia que abraçaram. Falo nestes termos de Saramago assim como poderia falar da maioria dos intelectuais de esquerda que li e noutras circunstâncias inspiraram minhas convicções, assim como as de milhões que através do mundo lhes deram crédito. Falo de Saramago assim como poderia falar de Sartre, Georg Lukács, García Márquez, uma infinidade de comunistas e socialistas democráticos (designação que quase sempre significa comunismo isento de estalinismo) que curiosamente nunca criticaram o estalinismo com a veemência que imprimiram à crítica das ditaduras de direita.

Transpondo esta questão para a realidade ideológica brasileira, ainda hoje intelectuais e artistas silenciam sobre a ditadura cubana, último baluarte da tirania produzida pela utopia comunista. Intelectuais e artistas que profundamente admiro, como Antonio Candido, Chico Buarque e alguns dos mais importantes intelectuais acadêmicos da Universidade de São Paulo, teimam em silenciar diante da ditadura cubana. Esse silêncio cúmplice é de ordinário justificado em nome de uma noção pragmática da luta pelo poder, isto é, mesmo admitindo a tirania praticada pelo partido que adotam, esses intelectuais acreditam fazer em termos efetivos o jogo do inimigo quando a força da verdade ou o horror em face da injustiça se sobrepõe à parcialidade não raro criminosa da ação pragmática ou estreitamente partidária. Sendo assim, não apenas silenciam diante da opressão imposta pelo partido ou ideologia que abraçam, mas também atacam sem clemência os liberais ou ex-companheiros de militância que ousam denunciar a opressão exercida em nome das utopias de esquerda. Bastaria pensar nos ataques e na intolerância desfechados contra intelectuais corajosamente independentes como George Orwell, Arthur Koestler, Camus, Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, José Guilherme Merquior, Paulo Francis, Millôr Fernandes...

No plano que acima considero, o grande saldo da militância ideológica de Saramago consiste no combate que travou contra a religião no que esta encerra de superstição e intolerância. Não é sem razão que o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, desfecha dura crítica contra a posição que publicamente adotou em matéria de religião. A voz oficial do Vaticano acusa-o por recusar qualquer forma de metafísica e consequentemente pautar sua ação fundado nos valores de uma ética secular e materialista. Este é o Saramago ideólogo com quem simpatizo. Quanto à permanência da sua obra, que é de resto o que importa para a história literária, esta é uma tarefa que devemos humildemente entregar ao juízo infalível do tempo.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Nacionalismo, Futebol e Identidade Cultural


Como sabem os estudiosos da nossa história política e cultural recente, “Um dia na vida do Brasilino”, de Paulo Guilherme Martins, é uma fábula nacionalista publicada no outono de 1961. É assim que o próprio autor data muito anticonvencionalmente seu libreto. O texto está agora disponível na internet, como quase tudo. Passou a circular nela como edição comemorativa dos 41 anos do seu lançamento. Dado que retorna inalterado, é razoável supor que Martins se mantenha fiel à mesma ideologia, que a subscreva com a mesma convicção com que a escreveu no outono de 1961. O sentido ideológico da fábula é de uma transparência meridiana: o cotidiano do brasileiro, simbolizado na figura de Brasilino, é atravessado do primeiro ao último minuto pela dominação onipresente do imperialismo econômico e cultural. O processo de acelerada globalização disparado a partir de 1964, ano em que os militares impuseram às forças de esquerda uma derrota devastadora, tornou no presente o mote do nacionalismo e anti-imperialismo de esquerda inteiramente anacrônico. No entanto, a ideologia sobrevive aparentemente intocada.

Figura de mil faces, tal a variedade camaleônica com que se amolda a todos os grupos políticos, econômicos e culturais que a adotam, a ideologia nacionalista goza de excelente saúde repontando no discurso exaltado dos que defendem nossa particularidade lingüística, nossa integridade culinária, bastaria lembrar a hilariante apologia da broa de milho feita por um político de esquerda vindo do exílio, as políticas estatizantes como linha de resistência à dominação econômica imposta pelos Estados Unidos, nossa amada e ameaçada identidade cultural. Não se sabe bem o que seja, nossa identidade cultural, mas o fato é que todos os dias alguém aparece na mídia para defendê-la e não raro salvá-la. É tão viva e vigilante que ocupa lugar de destaque no seio da nossa política cultural dispondo de secretaria própria no Ministério da Cultura: a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural. O título soa um tanto paradoxal. Se celebramos a diversidade cultural, se o argumento da miscigenação cultural e racial tornou-se hegemônico na consciência brasileira, graças antes de tudo à obra admirável de Gilberto Freyre, como explicar a resistência imposta ao livre contato entre culturas em plena era da globalização? Como explicar a instituição de uma secretaria destinada a velar pela nossa identidade, além de a estimular com ações políticas concretas? Como explicar que até entre nós, entre brasileiros de uma região comum, acendam-se os ânimos de pernambucanos contra a invasão do carnaval baiano, que nos levantemos contra os sulistas, os baianos também, e portanto invalidemos um suposto princípio de unidade dentro da identidade nacional?

É também significativo o imenso prestígio político e intelectual de um ideólogo como Ariano Suassuna, defensor de uma noção de cultura e identidade cultural tão extremada que, perto dele, muitos dos nossos nacionalistas mais exaltados parecem cosmopolitas ou ainda entreguistas, se queremos usar um termo ancrônico, todavia ainda vivo na fala intransigente de Suassuna. Como ele próprio afirma sem meias medidas:
“Um prêmio chamado Sharp, ou Shell, Deus me livre! Não quero. Acho esses nomes feios. Não recebo prêmio de empresas ligadas a grupos multinacionais. Não sou traidor do meu povo nem estou à venda. (...) A globalização é uma arma que os países ricos têm para perpetuar a dominação sobre os pobres. O patrocínio de multinacionais nos eventos de nosso país é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais”.

Coerente com sua concepção extremada de nacionalismo cultural, antes de tudo regionalismo enraizado nas fontes da cultura rústica sertaneja, Suassuna abre fogo contra toda e qualquer expressão da cultura urbana de massas, assim como qualquer expressão da cultura erudita contaminada pelo livre circuito dos empréstimos culturais. Sendo assim, na entrevista citada dispara contra a bossa nova, o tropicalismo, o rock, Tom Jobim, Caetano Veloso etc. Para ele, globalização é apenas uma arma a serviço da dominação imposta pelos países do capitalismo central a países do tipo do Brasil. Para ele, os símbolos culturais americanos representam pura e simples dominação econômica e ideológica.

Ariano Suassuna fala todo o tempo pelo povo e em nome do povo. Infelizmente, o povo não parece nem um pouco interessado em seguir o enredo que escreve para a cultura e a identidade brasileira. Para desespero do nosso extremado ideólogo, os porteiros de condomínio querem mesmo dizer okei , não oxente. Nossos artistas primitivos, expressão da cultura rústica e pré-moderna celebrada por Suassuna, atendem alegremente ao convite que a cultura urbana de massas lhes acena. O povo brasileiro, não importando o sentido que desejemos atribuir a esse termo tão camaleônico como o nacionalismo cultural, persegue deslumbrado tudo o que o discurso salvacionista de Suassuna repele: o shopping Center, o consumismo desvairado, o lixo e o luxo da cultura americana, a língua inglesa disseminada em todos os poros da nossa sociedade, o batuque eletrônico da música sem fronteiras. Deixo Ariano Suassuna em paz com seu regionalismo intransigente e intolerante. Ele importa, para o meu argumento central, como evidência dos extremos a que pode chegar a ideologia que aqui me ocupa.

Se há um símbolo consensual na nossa indefinida e inapreensível identidade cultural, não duvido de que seja o futebol. Aqui vai uma ilustração que me parece mais persuasiva do que a mais refinada elaboração teórica que eu acaso pudesse acrescentar a este artigo. A seleção brasileira enfrentou a argentina na antevéspera do dia da Independência. Quatro horas antes do jogo ouvi vizinhos cantando festivamente o hino nacional. O fato me chamou a atenção o suficiente para que eu fosse até a varanda. De lá divisei grupos entusiasmados entoando o hino, alguns curiosamente perfilados em pose solene, como se tivessem a bandeira nacional tremulando à frente. Esta, aliás, não tremulava à frente desses grupos tomados de fervor nacionalista, mas tremulava em muitas das varandas e janelas que observei. Os jogadores brasileiros exibiram-se admiravelmente, venceram o jogo e a euforia atravessou sem exagero todas as nossas classes sociais de um extremo a outro do país.

Em contraste com esse espírito de autêntico orgulho nacional, de expressão de unidade cultural sobrepondo-se a divisões de classe e região, dois dias mais tarde vivemos o feriado que historicamente assinala nossa independência política. Preocupado em observar o fato cotejando-o com o precedente relativo à seleção brasileira, não deparei nenhuma expressão de autêntica e espontânea consciência nacional, nenhuma evidência coletiva de orgulho associado à nossa independência. A identidade cultural localizada por Mário de Andrade na inconsciência espontânea do povo parece emudecida durante o dia consagrado à independência política do Brasil. A julgar pela realidade visível, nosso sete de setembro é apenas um feriado qualquer que o brasileiro típico aproveita para desfrutar na praia ou dedicar ao lazer dissociado da memória histórica relativa à razão do feriado.

Mas o futebol compreendido como fator de unidade e identidade cultural justifica algumas ponderações que me parecem ainda mais relevantes do que tudo que acabo de anotar acima. Procedendo a um ligeiro exercício de imaginação sociológica, indago de mim para mim próprio qual seria a reação de um nacionalista empenhado na defesa de nossa identidade cultural se acaso vivesse na época em que o futebol começou a penetrar na nossa realidade cultural. Como sabemos, eis um fato importante para a maioria dos brasileiros, o futebol foi introduzido no Brasil por um inglês residente em São Paulo. Esporte de nacionalidade inglesa, o futebol chega à nossa terra no auge do colonialismo inglês, que de resto já dominava a economia brasileira há muito tempo. Ingressa no Brasil como esporte de elite, basta percorrer ligeiramente a iconografia relativa aos estádios de futebol nesse período inicial, e vai sendo gradualmente assimilado pelo povo. É um exemplo fascinante de assimilação cultural processado pela via do desnivelamento, como já nos ensinou Mário de Andrade. Se o jazz constituiu um exemplo de nivelamento, ascendendo de camadas negras socialmente marginalizadas para a elite, o futebol percorreu o percurso inverso.

Mas volto a nosso hipotético nacionalista paladino da identidade cultural. Seria razoável supor que no momento em que o futebol penetrava no Brasil ele reagisse indignado amparado no argumento da nossa autenticidade cultural, alegando provavelmente que o futebol não passava de um instrumento de dominação cultural imposto pelo colonialismo inglês. Falaria provavelmente em nome do povo, cuja integridade cultural precisaria ser por ele defendida, assim como no presente Ariano Suassuna e tantos nacionalistas e regionalistas generosos e abnegados o defendem. Infelizmente, o povo demonstra, mesmo quando tutelado politicamente, como é ainda fato no Brasil do século xxi, ser sujeito de determinados desejos e vontades. Assim, ignorando a alfândega cultural imposta por nosso intelectual nacionalista, foi se aproximando da bola de procedência inglesa, foi batendo bola aqui, mais adiante num terreno baldio, depois num campo de futebol e por fim chegou ao Maracanã, um dos palcos da universalidade futebolística. Como sempre ocorre em qualquer processo de empréstimo ou assimilação cultural, não adotou passiva ou mecanicamente o futebol. O que de fato fez foi adaptá-lo acrescentando-lhe sua ginga de corpo, seu modo próprio de assimilação. Sabem os entendidos, e neste assunto todo brasileiro é entendido, que nada afirmo aqui de original. Estou apenas repetindo com palavras próprias o que Gilberto Freyre e muitos outros intérpretes da cultura, nacionalistas ou não, já disseram bem antes de mim.

Mas o futebol representa no Brasil, além da unidade identitária acima argumentada, nossa maior fonte de orgulho nacional, até mesmo de arrogância nacional. Nem o avanço da globalização econômica e cultural, dissolvendo fronteiras e transportando jogadores através de nações, clubes e símbolos de paixão esportiva cada vez mais indeterminados, abala a estabilidade dessa potente raiz de orgulho e arrogância do brasileiro. O fato é que a globalização converteu a seleção brasileira numa autêntica legião estrangeira, como acertadamente observou Roberto Pompeu de Toledo. Os clubes competem agora em escala global e o jogador, apesar do costumeiro lero-lero nacionalista, quer antes de tudo fama e fortuna. Seu sonho é ir o mais cedo possível para a Europa, fazer vida e glória na Europa. Isso não anula o nacionalismo da torcida, que continua exaltando arrogante os triunfos da nossa legião estrangeira como se cada um daqueles heróis jogasse num clube nacional da nossa idolatria, mas confirma a prioridade objetiva da globalização do esporte.

Penso que as questões acima esboçadas merecem uma reflexão mais detida no momento em que o mundo inteiro acompanha a Copa do Mundo disputada na África do Sul. Ela constitui mais uma evidência da globalização que dissolveu as fronteiras do futebol. Quase todas as seleções competidoras têm de nacional apenas os símbolos estampados nas cores das camisas e no hino de cada seleção. Os jogadores e técnicos obedecem apenas ao critério do melhor contrato ou salário, acrescido da fama. Nossa legião estrangeira, que veste as cores do Brasil, é tão alheia ao cotidiano do nosso futebol que eu mesmo, apreciador deste esporte, desconheço vários dos atletas que nos representam. No entanto, a torcida brasileira, assim como a das demais nações, continua investindo paixão e sentimentos nacionais em símbolos globalizados pelo mercado. Esse fenômeno que no momento coloniza a imaginação das massas em escala global mais uma vez comprova o quanto a ideologia e a realidade objetiva se desencontram na história da cultura.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Nuvem Movente


Um homem acorda no meio da madrugada. Acorda como se fosse arrancado de um poço profundo e escuro, pois de fato emerge de um sonho angustiante, quase um pesadelo. É um sonho que se repete, sempre dentro de uma atmosfera sombria e opressiva cujas variações se enraízam em cidades monstruosas. Embora sempre identificável – a deste sonho era São Paulo, Recife é a mais frequente – a cidade é uma força destruidora, um labirinto onde cada rua, cada esquina ou passagem se desdobra em vias sem saída. Não há para onde ir, nenhum mapa ou guia confiável.

O homem sabe para onde quer ir: quer voltar para sua casa, quer encontrar um caminho de volta ou fuga das ruas atemorizantes que se sucedem numa cadeia interminável. São ruas que não conduzem a lugar nenhum, salvo essa corrida ofegante e desesperada dentro da cidade hostil e eriçada de perigos. A cada esquina ele esbarra nos deserdados da vida que dele se acercam como uma horda faminta, sedenta de destruição. Quer apenas voltar para casa, repor os pés em solo conhecido. Quer encontrar um estranho confiável, alguém que lhe indique dentro do mapa confuso e atordoante a via de fuga da rua sem lei para a casa perdida, a cidade apagada do mapa onde antes, numa vida remota, traçou linhas de reconhecimento e solidariedade com o semelhante que é agora pura e brutal ameaça à sua sobrevivência. Na cidade fantasmagórica do seu sonho, o outro, o habitante sem raízes e humanidade, brota de cada esquina como uma força votada à sua destruição. Até a avenida, os espaços abertos espraiando-se pela cidade noturna, até isso avança sobre ele como potência aniquiladora.

Enfim acorda dentro do quarto escuro, dentro da noite solitária, apenas cortada pelo ruído dos aviões e dos carros que rolam no asfalto. Então respira aliviado, ciente de que tudo foi apenas a repetição de um sonho ou pesadelo recorrente. Provando a si próprio que está reposto na realidade palpável e banal, como uma âncora na qual sua solidão respira, uma ilha repacificada, lê o e-mail de um amigo que parece encontrar na fotografia a âncora que encontra na realidade acordada, na vigília noturna. Pensa então que a fotografia é na vida do seu amigo órfão de certezas o que a lógica foi no universo sem certezas de Bertrand Russell. A vida humana, pondera, é apenas uma nuvem movente. É o que se diz contemplando a nuvem fixada na fotografia enviada pelo amigo fotógrafo, uma das muitas nuvens que ele congela na câmera e depois transporta para a escuridão do laboratório onde se entrega a pacientes experimentos de cor, sombra, tonalidade, volume... O homem volta a contemplar no silêncio da madrugada a nuvem congelada na fotografia e enfim repousa durante alguns vagos minutos. Depois escreve uma resposta para seu amigo fotógrafo.

D.:

Sei do seu amor, do seu culto pela fotografia. Por isso não me surpreende tanto o fato de você agora devotar tanto do seu tempo e de sua necessidade criativa a ela. Acho isso bem mais belo do que as experiências correntes e possíveis nas nossas vidas. Como individualista e solitário, sempre acreditei que precisamos buscar algum sentido para nossa vida dentro do que somos, dentro da vida que apenas tem sentido a partir da nossa perspectiva. Se já acreditava nisso, a idade e a experiência apenas concorreram para reforçar essa minha convicção. Tolo é quem espera um sentido vindo de fora, vindo do outro, tão deslizante e compacto no seu egoísmo agora elevado a graus inconcebíveis.

O mundo tornou-se um grande espelho onde egos insignificantes, mas no geral arrogantes, se miram e exigem que o espelho reflita sua grandeza ilusória. Gostei muito de escrever uma crônica ficcional, de tom expressionista, ou coisa que o valha, no meu blog. Chama-se “O delírio de onipotência do narciso consumista”. É uma das poucas coisas que gostei verdadeiramente de fazer, pois expressa muito do que vejo e detesto na cultura contemporânea, nos modos correntes de convívio que já não tenho paciência nem interesse em tolerar. O que procurei sempre, dentro do individualismo acima mencionado, foi realizar no convívio com as pessoas um sentido de reciprocidade e compaixão (isto é, padecer com, sofrer, mas também gozar, com o outro). Duvido cada vez mais da possibilidade de realizar esse sentido de vida convivida. Drummond escreveu certa vez que viver é conviver. No entanto, penso que o sentido que encontrou para a própria vida foi criado a partir dele próprio, dentro da sua subjetividade intransigente. Um dia, quando visitei Antonio Candido em São Paulo, ele me deu o exemplo do quanto Drummond era um homem difícil, quase inacessível ao convívio espontâneo e caloroso. No entanto, ele escreveu isso que acabo de lhe escrever: viver é conviver.

Volto ao que mais importa, e deveria ter sido o centro desta crônica. Volto à sua foto, uma entre as milhares que você deve ter feito e refeito no seu laboratório ou coisa que o valha. Por que você não viu o filme sobre a vida e a obra de Georgia O´Keeffe? Acho que há nele uma mina de beleza exposta ao olhar plástico de uma pessoa como você. Há cenas, takes, enquadramentos, que valem por um quadro, uma paisagem congelada na memória. Continue devotado às suas nuvens, D., pois nossa vida é apenas uma nuvem movente e vale pela forma que para ela inventamos recortada na vasta paisagem do céu indiferente à nossa passagem por esse mundo tão incerto e fugaz.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Gildo Marçal e a Indesejada das Gentes


Começo por advertir meu suposto leitor, talvez um dos muitos amigos de Gildo Marçal, que esta é uma crônica de memória e perda escrita ao sopro do subjetivismo mais elementar. Acrescentaria que muito relutei antes de aventurar-me a escrevê-la. Afinal, não posso com justiça e verdade incluir-me na categoria dos amigos mais verdadeiros e constantes de Gildo. Assim, penso que outros testemunhariam com maior largueza de fato e sentimento, também com experiência mais intensamente compartilhada, o sentido da vida que Gildo entre nós viveu e a memória que dele reteremos. Penso, por exemplo, em Denis Bernardes, provavelmente sua mais íntima e duradoura amizade. Vieram ambos, imaginem, das noites na Praça Deodoro, em Maceió. Lá, numa já remota juventude, sem com isso insinuar que sejam velhos, começaram a conversar e a conspirar para mudar o mundo e nosso confuso sentido de justiça e beleza e nunca mais pararam de conversar. Dizem as más línguas que falavam de tudo, menos do marechal.

Penso ainda em Edmilson Azevedo, carinhosamente identificado numa crônica de memórias deste blog como o Filósofo Desvairado. A idade, novamente sem insinuar que falo de um velhinho, tornou-o tão mais sensato que agora é ele quem risonhamente se reconhece e reconcilia nos desvairismos vividos. Edmilson foi amigo de Gildo quando graduandos de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Aliás, confessa haver sido antes discípulo do que amigo. Dentre os amigos que Gildo deixou e preservou a vida inteira em Recife, poderia acrescentar Enilda e Emília. Também elas teriam incomparavelmente mais o que dizer e sentir do que eu.

Saltando para amigos de história mais próxima, penso também em Marcos Costa Lima. Com ele Gildo concebeu muito trabalho, política e aliança acadêmica e extra-acadêmica. Recentemente Marcos me falou de Hannah Arendt com o propósito de invocar a dignidade da política. Confesso que raramente identifico esta esquiva e equívoca senhora (friso aludir à dignidade da política, não à mais que digna Hannah Arendt) na política de que tenho notícia. Neste contexto, todavia, a alusão se faz oportuna, diria até necessária. Gildo Marçal foi um animal político como talvez não tenha conhecido outro. Dentro do meu livre entendimento, era político num sentido muito preciso e talvez arbitrário. Era político no sentido de aceitar e brigar com o outro respeitando-lhe a integridade de ser e viver. Embora militante da política, sobretudo em tempos de ditadura que exigiam coragem e convicção extremas dos poucos que a ela se opuseram com atos e palavra pública, nunca nele testemunhei a mais vaga intolerância ou sectarismo tão rotineiros nos círculos da esquerda que frequentei. Também lhe era estranho o ressentimento, outra doença juvenil e talvez ainda mais senil no círculo dos injustiçados e perseguidos.

Evoco um breve episódio do nosso convívio para melhor ilustrar a anotação do parágrafo precedente. Certo dia, hospedado por ele e Simone em São Paulo, conversávamos sobre política na sua biblioteca. Quando entramos a discutir alianças partidárias, esbocei uma crítica que poderia ser compreendida como ilustração do que Max Weber chama de ética de convicção. Ele então me fez um reparo que ainda hoje retenho como expressão de uma verdade indiscutível: disse que eu era moralista demais para fazer política. Confesso não lembrar com certeza se disse moralista ou puritano, mas no contexto da conversa os termos se equivaliam. Foi por esse e outros muitos motivos que me dei conta de minha insanável inabilidade e até inapetência para a militância política. Meu individualismo, não bastasse tanto, é tão insofreável que vivo discordando de mim próprio, discordando de mim e de todos e tudo, antes de tudo.

Gildo seguiu pela vida aceitando-me como sou e aceitando outros, talvez piores, assim como eram. Um bem melhor, mas impenitente gozador, é Paulo Carneiro, divertidamente tratado pelos íntimos como Capitão América. Aliás, o Capitão imita Gildo quase com perfeição. Queria tê-lo agora a meu lado para que melhor avivasse nos meus sentidos a fala inconfundível de Gildo. Pois Gildo gargalhava homericamente com o histrionismo e irreverência do Capitão. Outros ainda, logo desiludidos ou confusos na atmosfera da esquerda dos anos 1970, caíram no desbunde ou erraram pela vida desviando-se de Gildo e de tudo o que ele representava. Gildo aparentava compreender tudo isso, tanto que continuou lembrando com afeto, outras vezes com humor, muitos desses que seguiram ou se perderam por outras vias. Um outro, mais hipocondríaco do que amigo, perguntava-me repetidamente sobre a saúde de Gildo. Um dia ocorreu-me responder assim: Gildo já teve oportunidade demais para morrer. Se continua vivo, é porque é imortal. Logo, cuidemos da nossa mortalidade.

Mas que posso eu escrever do Gildo militante político? Deixo isso a cargo de Marco Antonio Coelho, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho e tantos outros que bravamente lutaram em tempos sombrios, novamente evocando Hannah Arendt, ou ainda in dark times, como escreveu no original. A luta destes e tantos outros não consistiu apenas em manter vivo o comunismo sob a ditadura, mas sobretudo em renová-lo democraticamente. Como fui quando muito companheiro de viagem, o que posso dizer é que tive sempre um fraco pelos comunistas vencidos. Melhor dizendo, é o comunista que nunca conquistou o poder.
Luiz Sérgio Henriques acaba de me enviar um e-mail ressaltando através da citação de um verso famoso de Mário de Andrade a admirável pluralidade humana de Gildo.
Procurei nesta crônica acentuar antes de tudo minha memória do Gildo devotado à amizade. Daí haver intencionalmente citado alguns dos muitos amigos verdadeiros que conquistou e manteve ao longo dos anos. Materialistas ou não, o que de nós sobrevive é a memória preservada no amor dos amigos, pois a mortalidade é a nossa condição comum. Ademais, como Shakespeare escreveu, devemos uma morte a Deus. Gildo pagou a dívida que nós outros também pagaremos. Por isso, e por amor à memória generosa do que amamos, prefiro reter nestas linhas o Gildo que amava a vida e os amigos, o Gildo das gargalhadas que continuarei ouvindo na solidão onde enterramos e cultuamos nossos mortos.

Pergunto-me por fim se Gildo acaso alcançou diante da morte a serenidade tão singularmente expressa por Manuel Bandeira em Consoada, o poema do qual extraí metade do título que conferi a esta crônica. Não seria belo e confortador imaginar que partiu deixando “...lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar”?
Recife, 21 de fevereiro de 2010.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Entrevistando Luciano Oliveira


Fernando – Luciano, você é conhecido nos círculos acadêmicos antes de tudo como sociólogo do direito. No entanto, seu interesse por literatura e cinema é também evidente, já que você publicou artigos ocasionais sobre esses assuntos e acaba de dedicar um volume integral a um paralelo crítico entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Sei também que você nada faz no sentido de melhor administrar sua carreira acadêmica. Diante disso, por que não escreve mais sobre esses assuntos que são objeto de sua paixão?

Luciano - Porque, retomando o título daquele livro de Orígenes Lessa, existe o feijão e o sonho, e esses assuntos, que são objeto de minha paixão, como diz você, não são meu ganha-pão! Dito isso, deixe-me reparar uma possível injustiça que minha resposta um tanto brincalhona contém: também gosto de muitas das coisas que faço dentro da sociologia jurídica, porque tenho também uma paixão, um engajamento com um tema ao qual tenho dedicado boa parte da minha vida acadêmica: o problema dos direitos humanos no Brasil. Mas realmente a literatura foi, intelectualmente falando, o meu primeiro amor, e o primeiro amor ninguém esquece! Gostaria, sim, de escrever sobre outros autores que amo além de Machado e Graciliano.

Fernando – No seu livro sobre Machado de Assis e Graciliano Ramos você dá ênfase a temas pouco explorados na obra do segundo. Penso antes de tudo no tema do humor. Aliás, adianto que essa é uma das singularidades do seu livro. No entanto, é curioso que um crítico de formação sociológica, como é o seu caso, não proceda centralmente a uma leitura sociológica de Graciliano, sobretudo nas condições culturais do presente, onde se observa a franca subordinação da literatura às ciências sociais. O que você diria sobre isso?

Luciano - Eu diria que estive menos interessado numa leitura sociológica de Graciliano, ou mesmo de Machado, e mais na leitura sociológica que esses autores fazem da realidade brasileira! É o inverso da questão. De resto, a subordinação da literatura às ciências sociais, a que você se refere, não é muito minha praia. Nem a sua, pelo que conheço de você. No fundo acho que não há sociologia que explique fenômenos literários. Entenda: o fenômeno propriamente literário! É lógico que é possível analisar sociologicamente a recepção favorável do chamado "romance nordestino" nos anos 30 do século passado. Mas explicar como e por que um sujeito como Graciliano, praticamente um autodidata, dono de loja de tecidos numa cidade inexpressiva do interior de Alagoas, escreve uma obra-prima como "São Bernardo"... Aí a sociologia tem que ter a modéstia de reconhecer que está diante de um mistério da criação que escapa às suas categorias explicativas.

Fernando – O Bruxo e o Rabugento não é um livro de concepção orgânica. Explicando melhor, é composto de um conjunto de ensaios autônomos, embora confiram ao livro certa unidade na medida em que reiteram um tema comum: um paralelo, feito de muitas variações, entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Apesar do que acabo de observar, pergunto se você acaso traçou algum projeto geral para guiar sua composição do livro.


Luciano – Na verdade, no começo a ideia era a de um artigo sobre Graciliano, apenas. Mas o artigo foi crescendo e, num determinado tópico, introduzi Machado, a partir de uma ideia que colhi em Roberto Schwarz, a de que Machado teria praticado o que ele chamou de "exercício da abjeção", que era falar da classe senhorial brasileira do seu tempo a partir dela própria, da sua visão do mundo terrivelmente malvada e insensível ao drama da escravidão, por exemplo. Achei que em "São Bernardo" Graciliano fazia isso, adotando a voz de Paulo Honório, um ser humano terrível, como a voz do narrador. Foi a partir desse primeiro insight que comecei a procurar outras aproximações. Por exemplo, a metalinguagem. Machado, como Graciliano, está o tempo todo refletindo sobre o próprio texto que escreve, mostrando como os dois eram grandes escritores conscientes do seu ofício. Depois cheguei ao humor. No caso de Graciliano, ao mau humor, que é também uma forma de humor. E como os assuntos foram se atropelando, se agregando, em determinado instante tinha muita coisa escrita da qual achei mais interessante fazer artigos separados e relativamente independentes do que um livro, que, como livro, ficaria meio mambembe...

Fernando – A resposta acima, referente ao processo de composição de O Bruxo e o Rabugento, levou-me a ponderar um pouco a produção corrente no âmbito das ciências sociais e a nossa tradição ensaística. Sabemos que esta está diretamente associada ao desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Bastaria pensar em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e outros. Aludo a este fato por identificar no seu estilo de composição traços nítidos dessa tradição. Talvez isso lhe desagrade, já que sei do seu apreço pela empiria, do rigor com que você pesquisa e se documenta antes de mergulhar na redação dos seus livros e ensaios. Apesar disso, insisto na observação acima e adicionalmente pergunto se você se reconhece em algum grau herdeiro dessa tradição. Perguntaria ainda se você não acha possível conciliar a escrita ensaística com o rigor compositivo dos autores fiéis ao primado do objeto empírico que estudam.


Luciano - Quem dera! Sentir-me herdeiro da tradição de Euclides e Gilberto... Ok! À condição, porém, de considerar-me um herdeiro bem menor, daqueles para quem o testamenteiro deixa generosamente um pequeno pecúlio. É verdade que fico lisonjeado com a ideia de inserir-me na tradição ensaística da qual fazem parte esses autores. Bem, indo à questão do rigor empírico, é verdade que o ensaísmo é um terreno perigoso, permite muitas derrapagens, porque a subjetividade daquele que escreve está toda lá, sem enganações. Mas eu ousaria dizer que isso não exclui o rigor, o cuidado com a competência empírica, como gosto de dizer. Observo que livros como Os Sertões e Casa-Grande & Senzala têm uma riqueza empírica muito grande. Euclides, nesse sentido, fez um esforço de objetividade enorme. Lembre-se de que as teorias racistas, que eram a moda na época, e com as quais ele foi a Canudos, diziam que aqueles sertanejos eram uns degenerados, uma sub-raça degradada pela miscigenação. E o que ele vê? Ele vê um povo bravio, forte, astuto, resistindo a três expedições armadas. E a cabeça de Euclides pira! Daí ele ter escrito, n´Os Sertões, aquele capítulo tão estranho e até um tanto negligenciado a que chamou de "um parêntese irritante", no qual confessa que os dados não batiam com a teoria! Não sei o que lhe faltou para assumir que aquelas teorias racistas eram empulhação. Esse passo vai ser dado por Gilberto, que em Casa-Grande estabelece aquela famosa distinção entre raça e cultura, e que essa, a cultura, era mais explicativa do que a raça. Ou seja: ainda que sem os cuidados metodológicos dos estudos monográficos que se tornaram moeda corrente na sociologia contemporânea, a tradição ensaística pode, sim, combinar intuição e rigor, e essa é a melhor tradição da sociologia, aliás. Tenho procurado fazer isso nos meus trabalhos. O meu livro, O Bruxo e o Rabugento, tem muita liberdade, mas tem também muito trabalho de composição. É porque o leitor não sabe. Mas às vezes uma frase, uma mísera frase num texto, demanda, para ser escrita, uma semana de pesquisa! Quando em determinado instante, por exemplo, desenvolvi a hipótese de que o "segundo Machado", aquele da ironia permanente de Brás Cubas, já está em embrião no "primeiro Machado", o da fase romântica, para escrever isso foi necessário parar o que estava fazendo e reler, com atenção, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia... Isso é uma semana de trabalho. Que, lógico, em se tratando de Machado, mesmo do "primeiro Machado", foi um trabalho prazeroso!

Fernando – Parece-me que sua resposta relativa à nossa tradição ensaística confirma a existência de uma linha de nítida conciliação entre o gênero ensaístico, tão próximo do estilo literário e especulativo, e a fundamentação empírica do argumento ou interpretação. Quando me ocorreu propor-lhe esta questão, pensava no traço diferenciador do seu estilo, nesse sentido tão divergente da produção acadêmica que habitualmente leio. Você poderia acrescentar alguma observação relativa ao estilo acadêmico corrente contraposto a seu estilo de composição? Sugerindo uma comparação provocativa, por que entre Antonio Candido e Florestan Fernandes prevaleceu o estilo do último como norma de composição acadêmica do texto sociológico?

Luciano - Curto e grosso, porque acho que produção em série desse tipo de trabalho é mais fácil! Na verdade, é fácil. Pelo menos na forma como as dissertações e teses passaram a ser armadas, com capítulos-padrão que terminam na maioria dos casos sendo capítulos-chavão! Pode ver, geralmente os projetos são assim: Objeto, Marco Teórico, Objetivos (tem sempre um principal e vários secundários), Metodologia, Cronograma e pronto. O negócio é você eleger um marco teórico, que é sempre um ou vários autores estrangeiros, e depois faz uma pesquisa empírica que "enquadra" naquele marco teórico. Digo enquadra no sentido quase jurídico do termo: você tem uma definição legal e colhe nos vários e complexos elementos da realidade aqueles que confirmam o que cabe na definição. Tem vezes que você vê as coisas sendo meio forçadas para se ajustarem ao modelo forçado... Bom, mas aí já é um problema de competência ou não de quem faz o trabalho, porque há trabalhos dentro desse modelo que são de ótima qualidade, entende? O que eu digo é que um modelo assim é mais reprodutível do que um trabalho ensaístico, que exige do seu autor, pra começo de assunto, um estilo particular, erudição (não a erudição pedante), poder de criatividade... É um tipo de trabalho em que não faltam elementos de composição artística. Nesse caso, como diria Noel, "ninguém aprende samba no colégio"... No colégio você aprende os segredos da partitura, o que é outra coisa. Então, há isso no meu modo de ver: no momento em que se constituiu no país uma pós-graduação em bases regulares, com exigências de prazos, produtividade, cientificidade dos trabalhos etc., lá pelos anos 70, e foi um momento de forte influência do modelo acadêmico americano de se fazer ciência, avesso ao ensaísmo tipicamente europeu, o "modelo Florestan", chamemos assim para simplificar, presta-se a isso que estou chamando de reprodução fácil. Mas deixe-me fazer uma pequena observação para não sermos injustos com o pobre do Florestan. A ciência brasileira deve-lhe muito. Muito mesmo. E, aliás, por ser um marxista de verdade e certamente estar mais ligado intelectualmente, doutrinariamente, ao mundo de Marx, Durkheim e Weber do que o do empiricismo americano, muitas vezes ingênuo, a designação "modelo Florestan" que usei precisa ser matizada. O que existe de Florestan no modelo é a exigência com o rigor metodológico, o cuidado com o embasamento empírico das afirmações etc. A eventualidade disso terminar gerando trabalhos acadêmicos medíocres, por parecerem a aplicação de uma receita de bolo, não tem nada com Florestan, que foi um dos maiores sociólogos brasileiros. Veja a contribuição enorme que deu para a fortuna bibliográfica de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto. No caso, uma fortuna crítica. Criticíssima! Na verdade Florestan, nome incontornável no modelo USP de sociologia, foi um dos grandes responsáveis pela ojeriza que boa parte da intelectualidade brasileira desenvolveu durante muito tempo em relação à obra-prima de Gilberto. (Num breve parêntese, observo que Florestan nunca escreveu uma obra-prima...). Gilberto, mesmo não tendo sido o autor da expressão, é verdade que deu munição teórica à tese da "democracia racial" brasileira, que hoje qualquer conhecedor de Brasil não hesita em considerar um "mito". Pois bem. Foi a produção uspiana, inclusive de Florestan, com o seu importante "A Integração do Negro na Sociedade de Classes" que erodiu o mito. E essa erosão se deu a partir de trabalhos sociológicos dotados de um rigor metodológico que a produção ensaística, pelo menos a princípio e a olho nu, não tem. Então, que fique bem claro que sou intransigente em relação ao rigor do sociólogo. Agora, se ele puder embalar esse rigor numa roupagem ensaística (que não se confunde com o mero discurso ideológico, note bem), ótimo! Ótimo sobretudo para o leitor, que vai saborear, e não estudar, a sociologia... Digamos que o ideal é o famoso dístico de Barthes, do saber com sabor. Não é fácil...


Fernando – Refletindo um pouco sobre os paralelos que você traça entre o bruxo Machado e o rabugento Graciliano, retenho a impressão, não sei se equivocada, de que você se inclina mais para o segundo. Fale-me um pouco, muito livremente, sobre sua leitura de Machado e de Graciliano.

Luciano - Machado, literariamente falando, é insuperável.Os seus textos, pelo menos a partir de um certo momento (digamos, o "segundo Machado"), são tão graciosos, tão engraçados, tão elegantes, que às vezes faço como o crente que abre a Bíblia em qualquer página e começa a ler. Dela ele sempre extrairá algo para o seu senso ético e estético. Pois bem, de qualquer página de Machado sempre extraio qualquer coisa que causa prazer ao meu senso estético. Mas Machado como pessoa é uma figura completamente desinteressante! Foi um funcionário exemplar, deferente, um mulato que subiu na vida graças ao próprio gênio e apagou os rastros da origem pobre, da qual se envergonhava. Foi um dissimulado. Vingou-se escrevendo uma obra tão corrosiva que não conheço autor que, como ele, deixe pedra sobre pedra da suposta grandeza do homem. Já Graciliano, como procuro sustentar no ensaio "O Caçador de Hinos", que é o último do livro, foi um herói brasileiro. Somos um país com uma vocação tão grande para a molecagem, ao mesmo tempo tão aferrados a um incrível bacharelismo oco em que ninguém acredita, que você falar em herói brasileiro já parece que está de gozação. Mas, não! Graciliano foi isso. Além de ter sido o extraordinário escritor que foi, o velho Graça era um sujeito de uma integridade moral tão grande que nem parece ter existido um sujeito assim num país como o Brasil. Célebre e amigo do ministro da educação Capanema, poderia ter sido um sinecurista de primeira, sobretudo depois que saiu da prisão e virou uma celebridade que todo mundo queria reverenciar... Pois só conseguiu empobrecer ao longo da vida. Terminou seus dias vivendo como copy-desk de jornais e inspetor de ensino secundário no Rio de Janeiro, onde passava as tardes pegando ônibus e gastando a sola do sapato para visitar as escolas que devia fiscalizar... Dos onze meses no inferno que passou nos cárceres da ditadura de Getúlio, extraiu uma obra-prima da literatura mundial, "Memórias do Cárcere", um livro que todo brasileiro deveria ler. Enfim, entre Machado e Graciliano, minha razão balança. Mas se for escutar o coração, um carinho especial vai para o alagoano, sem dúvida. Que escritor! Aquela primeira página de "São Bernardo", acho a melhor primeira página de toda a literatura brasileira... Ih, estou me deixando levar pelo entusiasmo. Digo isso porque me lembro que uma vez lhe disse isso e você, muito maliciosamente, perguntou: "Mas você já leu toda a literatura brasileira?..." Lembra da risada que demos?

domingo, 6 de junho de 2010

Mário de Andrade e alguns contemporâneos


Mário, G. Freyre, Graciliano...

Durante anos fui leitor apaixonado e acrítico de Mário de Andrade. Somente bem mais tarde me dei conta de que a paixão, fundada em altas motivações intelectuais e humanas, praticamente anulara em mim a percepção crítica de algumas insuficiências flagrantes no caráter e na prática intelectual de Mário. Poderia hoje com segurança assinalar alguns exemplos. Foi lendo com maior escrutínio crítico a obra de escritores como Gilberto Freyre e Graciliano Ramos que me apercebi do silêncio aparentemente inexplicável com que Mário tratou a ambos. Poderia ainda acrescentar, ocorre-me agora, Monteiro Lobato, além da corrente introspectiva e metafísica das décadas de 1930 e 1940 , na qual sobrelevam nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Clarice Lispector.

Como explicar que um crítico e leitor tão generoso e onívoro tenha ignorado de público ou considerado muito parcialmente a obra de contemporâneos tão importantes? No que se refere a Monteiro Lobato, é claro que o affair Anita Malfatti, inscrito nas origens remotas do movimento que Mário desde cedo liderou identificando-se confessadamente com seus ideais mais profundos, desempenhou papel decisivo. É compreensível que a luta por hegemonia estética e intelectual tenha dividido ambos em campos convencionalmente opostos. Digo convencionalmente opostos por ter hoje nítida consciência de que Lobato não era um pré-modernista, para ficar numa distinção superficial consagrada pela historiografia oficial do modernismo. É portanto compreensível que se tenham enfrentado nestes termos; não é porém aceitável o fato de Mário não haver nunca reconhecido de público os méritos literários e intelectuais do seu adversário, que de resto supera boa parte da corte medíocre que cercou o autor de Macunaíma. Mais que isso, os méritos do grande agente modernizador do Brasil que foi Monteiro Lobato. A omissão é ainda mais intrigante se consideramos o quanto a prática pública de ambos convergia.

A omissão de Gilberto Freyre na obra de Mário é uma injustiça ainda mais grave, indigna de um intelectual que pelejou por ser isento de paixões mesquinhas no trato das questões culturais. Decerto afetado pela antipatia recíproca que desde cedo os separou, é também compreensível, dentro destes limites, a reserva e frieza com que tratou o pernambucano. Quando porém Casa-Grande & Senzala vem a público, já não há como objetivamente silenciar sobre a grandeza do feito de Gilberto Freyre. Se a isso acrescentarmos o fato de que compartilhavam ideais nacionalistas convergentes, como explicar que Mário jamais tenha escrito e publicado sequer uma nota crítica reconhecendo os méritos extraordinários da obra marco de Freyre?

Ocorre-me neste passo evocar dois fatos provindos de fontes insuspeitas para evidenciar a parcialidade crítica de Mário e sua vulnerabilidade à ação ressentida contrária a tudo que de público pregou em nome do seu humanismo cristão. O primeiro está contido em Ramais e Caminho, ensaio de biografia intelectual assinado por Telê Ancona Lopez, zeladora fiel da obra e do acervo de Mário. A pesquisa em que o livro se apóia deixa claro não somente o fato de que Mário leu cuidadosa e anotadamente Casa-Grande & Senzala, mas que também distinguiu a obra como uma das fontes do seu projeto cultural em defesa dos valores nacionalistas.

O segundo fato provém de uma longa conversa com Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, que em 1995 franquearam-me o privilégio de uma demorada visita à sua casa. Conversamos livremente sobre muitos assuntos. Por motivos óbvios, os dominantes foram Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Confesso que me retirei levando comigo algumas grandes revelações e surpresas ouvidas do nosso grande crítico. Registrei um tanto extensamente a visita e a conversa no diário que então escrevia em São Paulo, onde provisoriamente residi, pela última vez, no primeiro semestre de 1995. Dada a oportunidade do assunto, aqui registro de memória o que importa para os argumentos desta entrada.

Ouvi de Antonio Candido a revelação de que Casa-Grande & Senzala era o livro que gostaria de ter escrito. Embora tenha feito severas restrições a Gilberto Freyre e a seu comportamento ideológico, sobretudo nos anos tardios deste, restrições que substancialmente endosso, foi de isenção exemplar no reconhecimento dos méritos da obra na medida em que independem da biografia do autor. Pena que de público tenha sido omisso por tanto tempo, o que novamente prova que o juízo e a ação de nenhum intelectual se manifestam integralmente a salvo do ressentimento e até das paixões mesquinhas.

Mas o que desejo observar a propósito de Mário é o fato de que, ainda segundo Antonio Candido, lá pelos idos em que Gilberto sofreu tenaz perseguição do interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa louvável de mobilizar publicamente a opinião intelectual paulista em defesa do escritor pernambucano. Teve então a idéia de circular um abaixo-assinado recolhendo assinaturas ilustres como ato de denúncia contra o arbítrio do interventor. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento, recusou-se a assumir qualquer posição pública em defesa de Freyre.

Quanto a Graciliano Ramos o juízo do tempo o confirma como a expressão máxima da corrente literária hegemônica a partir dos anos trinta: o Romance Social do Nordeste. É certo que à época era bem maior o prestígio de José Lins do Rego, prestígio confirmado e reforçado pela apreciação crítica de Mário que chegou ao extremo de nele identificar o maior romancista brasileiro. Isso está explicitamente anotado num artigo que dedicou à obra de Lins do Rego, como qualquer interessado poderia comprovar lendo O Empalhador de Passarinho. Que eu saiba, Mário nunca escreveu qualquer artigo sobre Graciliano Ramos. É um outro fato de difícil explicação. Seus contemporâneos de mais alto valor crítico (como Carpeaux, Álvaro Lins, Antonio Candido, para ficar na menção dos mais notáveis) foram unânimes em reconhecer o valor da obra de Graciliano. O juízo do tempo, como acima ressaltei, veio apenas confirmar a melhor apreciação literária brasileira. Hoje pode-se com segurança afirmar que o prestígio de Lins do Rego encolheu um pouco. O de um outro concorrente de peso, Jorge Amado, encolheu ainda mais, pelo menos aos olhos da crítica especializada. Eu mesmo há muito me desinteressei pela obra do baiano, que hoje releria muito seletivamente.

Dado o fato de que a orientação crítico-ideológica fundamental de Mário estava associada a esta corrente hegemônica da literatura brasileira, não há como explicar por aí sua resistência ou silêncio perante a obra de Graciliano. Embora dissentindo da orientação dos nordestinos quando estes tendiam a sobrepor a ideologia regionalista e política aos valores prioritariamente estéticos da obra, Mário alinhou-se substancialmente a esta tendência, tanto que foi talvez o crítico mais entusiasta da obra de Lins do Rego. Ora, dentre todos os nordestinos Graciliano foi o mais coerentemente literário no sentido de que sempre se recusou a subordinar a obra a interesses ideológicos. Qualquer leitor corrente da nossa literatura sabe que foi único entre seus pares na prioridade que sempre conferiu aos valores estéticos da obra, único no rigor ideológico e formal com que construiu sua obra sem qualquer concessão às pressões políticas do tempo. Seria um motivo adicional para Mário reconhecer-lhe a superioridade perante os outros, já que este era um dos critérios inegociáveis da crítica militante que exerceu no período. Como então explicar o fato de que nunca dedicou qualquer estudo ou artigo à apreciação do romancista alagoano?
Era por identificar-se com as tendências e valores expressos na corrente do romance nordestino, assim como na literatura compreendida em geral como uma complexa articulação de valores estéticos e pragmatismo social, que Mário fazia reservas ao romance socialmente desinteressado. Isso explicaria, presumo, suas restrições – às vezes asperamente injustas, como foi o caso da sua apreciação de Lúcio Cardoso – ao romance de corte psicológico e metafísico. Que eu saiba, não registrou de público, com o entusiasmo devido, a extraordinária estréia de Clarice Lispector. Outros contemporâneos, igualmente sensíveis aos valores ideológicos da obra, souberam identificar em Perto do Coração Selvagem um sopro surpreendente e renovador da ficção brasileira. Foi o caso de Sérgio Milliet – acho que também Álvaro Lins, não lembro agora com certeza – e sobretudo o então jovem crítico Antonio Candido, que soube perceber os méritos extraordinários da estreante. Mário, entretanto, passou ao largo de Clarice e de um outro importante romancista de orientação artística similar: Lúcio Cardoso.

Durante muito tempo, como principiei assinalando nesta entrada já extensa, não me apercebi destas insuficiências de Mário, algumas comprovadamente indignas do grande homem e escritor que foi. Não as percebia devido a minhas limitações intelectuais. Mas pondero haver um outro fator concorrente, talvez mais decisivo. É que li Mário com grande paixão desde que tomei contato com sua obra. Admito que a influência que exerceu sobre mim foi imensa, provavelmente maior que a exercida por qualquer outro escritor. Hoje conscientemente dou prioridade a vários outros, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A importância e influência da obra e da vida de Mário persistem em mim, claro, pois é em muitos sentidos um escritor definitivo na nossa cultura e literatura. Mas posso hoje medi-lo com uma isenção e uma consciência crítica que sem dúvida pesam no sentido de encurtar sua medida. Noutras palavras, acredito ler hoje mais a medida real e falível, como de resto a de qualquer indivíduo criador, do que a ideal nutrida por um leitor inexperiente, menos cultivado intelectualmente e demasiado apaixonado pelas virtudes humanas do escritor. Por isso já escrevi, e repito, que Mário de Andrade é um dos raros escritores que gostaria de ter conhecido. Segundo minha experiência, antes lida do que vivida, a maioria dos escritores importa pela obra que realiza, não a vida que viveram. Aliás, esta é com frequência decepcionante do ponto de vista ético e amplamente humano. Por isso há muito aprendi que o que verdadeiramente importa é a obra. É ela quem salva o melhor da nossa humanidade, a começar pela dos próprios que a inventam.

A paixão a que aludo deriva em particular da humanidade generosa que Mário de Andrade imprimiu a tudo que criou e escreveu. Neste sentido, diria ainda que é um artista único. Apesar de hoje pôr o dedo em algumas das suas insuficiências mais evidentes, acima grosseiramente indicadas, continuo distinguindo-o como nosso escritor mais generoso, como um artista tocado por valores humanistas palpitantes na obra quanto na biografia. É esta associação que me parece excepcional na maioria dos artistas. Até onde minha experiência de leitor e minha experiência de convívio intelectual (esta bem mais modesta) me autorizam ajuizar sobre o assunto, afirmo hoje com serena convicção que me desinteressei largamente das possibilidades de convívio com intelectuais. A razão disso, como acima salientei e não me poupo de repetir, radica na consciência de que o melhor deles está contido na obra produzida, não na biografia, não no convívio convencional com seus pares ou com o semelhante em geral. Vistos e vividos de perto, os artistas denunciam no que são e fazem as mesmas imperfeições da nossa humanidade pouco atraente ou edificante, se a despimos das idealizações narcisistas com que a vemos e nos vemos.

Mário de Andrade é talvez o único exemplo de artista cuja vida no sentido acima proposto é passível de ombrear com os méritos da obra, senão mesmo superá-la. Esta verdade é aferível antes de tudo na leitura da sua correspondência e no depoimento muitas vezes comovente dos que tiveram o privilégio de merecer sua amizade e dedicação. Sua correspondência, documento único na cultura brasileira, está aí para quem queira verificar o quanto imprimiu de humanidade generosa a tudo que criou e sobretudo às amizades que soube conquistar e manter. É esta para mim a grandeza maior da obra de Mário de Andrade. A ela devo, quando ainda mais jovem e carente de um sopro de humanidade substitutiva na minha solidão amargada no meio em que vivi, uma inesquecível experiência de beleza e generosidade simbolicamente compartilhada.

31 de julho de 2004.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Modernismo e Ciências Sociais


Para César e Brenno, por tudo que só a amizade convivida traduz.

Como há ainda quem confunda o modernismo brasileiro com um movimento restrito ao campo das artes e da literatura, talvez convenha começar este artigo ressaltando seu caráter de movimento cultural muito mais amplo. Antes de tudo, por ser esse o modo adequado de fazer justiça à sua real amplitude; em seguida, porque meu propósito, já explícito no título deste artigo, é descrever algumas das suas conexões mais fortes com o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido frisa num dos seus ensaios mais citados, "Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, que a literatura ocupou posição central no desenvolvimento da nossa vida espiritual. À diferença de outros países, onde a filosofia e mesmo as ciências sociais desempenharam papel similar, aqui a literatura incorporou à sua expressão propriamente estética um caráter de função socialmente interessada à margem da qual seria impossível compreender o sentido abrangente e sociologicamente relevante da obra de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre... Suponho que duas razões óbvias desse fenômeno radicam na ausência de uma sólida tradição universitária e no consequente desenvolvimento tardio das ciências sociais. Privado de uma tradição rica e intelectualmente diferenciada, o escritor brasileiro sente-se investido de uma missão socialmente elástica inexistente nas culturas cujas instituições e processos de divisão do trabalho intelectual já estão consolidados. Este é um fato facilmente aferível na obra dos autores acima citados, assim como em muitos dos seus contemporâneos.

O ensaio de Antonio Candido acima referido contém ainda uma outra intuição que igualmente tomarei como ponto de apoio para muitas das considerações deste artigo. Aludo à intuição segundo a qual ele sugere que o conjunto da nossa vida espiritual é regido pela dialética entre localismo e cosmopolitismo. Variando os termos, até por melhor convirem a escritores como Mário e Oswald de Andrade, diria nacional versus universal, que no caso equivale à tradição intelectual europeia. A distinção parece-me exata para que melhor se compreenda a evolução do modernismo que logo nitidamente se diferenciará dos congêneres europeus nos quais de resto se inspirou.

Mesmo os estudiosos aderentes a uma perspectiva nacionalista do modernismo reconhecem que ele se formou sob o influxo das correntes vanguardistas de procedência europeia. Mário de Andrade, por exemplo, reconhece este fato no seu ensaio de síntese do movimento, “O Movimento Modernista”, no meu entender ainda insuperado não só como lúcida apreciação panorâmica do movimento, mas diria que sobretudo devido à intensidade dramática do texto que, nas suas páginas finais, reveste-se de inusitado tom de exame e exasperação moral. É nesse ponto que Mário procede a um impiedoso balanço ideológico do movimento, chegando mesmo às raias de uma injustificada apreciação autopunitiva.

Embora rebata no seu ensaio os críticos que acusam o modernismo de excessiva subordinação às modas e correntes estéticas europeias, Mário de Andrade não deixa de reconhecer o quanto os impulsos iniciais do movimento deviam à Europa, notadamente à França. Talvez sua crítica visasse indiretamente Gilberto Freyre, já que à altura da sua conferência de celebração de vinte anos do modernismo, cujo texto é o já citado “Movimento Modernista”, Freyre e seus discípulos, sobretudo José Lins do Rego, reivindicavam para o regionalismo nordestino um papel de pioneirismo nacionalista e de valorização da cultura brasileira opostos ao modernismo paulista, que erradamente caracterizavam como subserviente às modas culturais europeias.

Pondo à margem essas disputas polêmicas, não raro deformadoras do real sentido aferível na análise do processo cultural efetivo, os fatos evidenciam que, a partir de 1924, o modernismo desloca sua rota em direção a um nítido nacionalismo programático. É a dialética do nacional e do universal mais uma vez operando no desenvolvimento da nossa vida espiritual, como assinalaria Antonio Candido. Pois, se de fato precisou beber nas fontes europeias para atualizar-se esteticamente, para produzir uma arte consentânea com a realidade urbano-industrial emergente sobretudo na capital paulista, logo ficaram também evidentes as especificidades artísticas e sociais observáveis entre os movimentos de vanguarda europeus e o brasileiro.

De certo modo, foi a própria presença no Brasil de um dos símbolos da poesia de vanguarda europeia que favoreceu o deslocamento do modernismo para a realidade brasileira. Aludo, noutras palavras, à presença de Blaise Cendrars no Brasil, sobretudo à viagem que fez às cidades históricas mineiras ciceroneado pelos modernistas de São Paulo. Essa viagem foi tão decisiva para a nacionalização do modernismo que seus próprios líderes passaram significativamente a designá-la como a viagem de descoberta do Brasil. Dela procedem não apenas a redescoberta do barroco mineiro, a composição de um poema seminal como Noturno de Belo Horizonte, de Mário de Andrade, mas também o contato fecundo dos paulistas com a nova geração de escritores mineiros. É daí que nasce a correspondência entre Mário e Drummond, documento valioso para que melhor se compreenda o amadurecimento da poesia do segundo, que em Mário encontrou um orientador qualificado e generoso, além de evidências do adensamento de uma consciência nacionalista na obra de Mário e na daqueles expostos à sua influência. Eis aí mais uma vez reposta a dialética do nacional e do universal. Trocando em miúdos, a presença viva e concreta do outro europeu, Blaise Cendrars, atua como rebatedor especular no qual os próprios intelectuais brasileiros melhor reconhecem sua diferença.

Importaria ressaltar, tendo em vista os propósitos deste artigo, que a inflexão nacionalista do modernismo não fica de modo algum restrita ao campo artístico e literário. Maior que a ambição explícita de criar uma arte nacional, o que Mário e os modernistas mais consequentes ambicionam é realizar um projeto de cultural nacional, pesquisar suas fontes e definir sua identidade, combater ostensivamente a influência europeia para reforçar um sentido de diferenciação particularista típico, aliás, de todos os movimentos de inspiração romântica. E aqui ressalta um outro dado significativo: a revalorização da nossa tradição romântica. Ela se traduz na ênfase sobre a particularidade ou diferenciação da cultura brasileira compreendida em sentido amplo: diferenciação artística, linguística, musical, histórica, etnográfica etc.

Uma das expressões mais nítidas dessa valorização entusiasta do Brasil, da busca de suas raízes populares mais profundas, espelha-se nas duas viagens que Mário de Andrade empreendeu através do Nordeste e Norte do Brasil entre 1927 e 1929. É sintomático que ele as identifique como viagens etnográficas. De fato, elas representaram um outro capítulo, ainda mais amplo e rico, das suas explorações, da pesquisa, descoberta e interpretação da cultura brasileira e daquilo que muitos estudiosos, não apenas Mário, presumem ser a nossa identidade cultural. Muito da documentação que então coligiu foi assimilado à composição de Macunaíma, obra suprema do modernismo nacionalista.

A leitura atenta das matrizes sócio-antropológicas de Macunaíma demonstra isso que venho assinalando como sendo o caráter abrangente do modernismo. Se os escritos de Mário convencionalmente classificados como literários encerram tantos elementos de interesse para as ciências sociais, sua obra de interesse diretamente sociológico reforça o sentido que venho reiterando para a justa compreensão do movimento. Além de pioneiro na compreensão sócio-antropológica do folclore nacional, assim como no conjunto das nossas expressões culturais, Mário distinguiu-se como musicólogo, crítico de arte, agente modernizador do aparelho institucional da educação e da cultura brasileira.

O estudo dos periódicos produzidos pela história do modernismo, que infelizmente não caberia apreciar nos limites deste artigo, também representa outro dado significativo para a compreensão do caráter amplamente nacionalista do modernismo. Na história desses periódicos, assim como no rico processo de institucionalização da cultura nos anos 1930, que Antonio Candido apropriadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, ou sua conversão de movimento de desagregação em movimento triunfante, ou assimilado às estruturas de poder social, atuaram intelectuais cuja obra transbordou para o plano das ciências sociais. É o caso de Sérgio Buarque de Holanda, que se inicia precocemente como crítico literário e co-editor de um dos periódicos mais importantes do movimento, a revista Estética, e acaba escrevendo uma das obras fundamentais de interpretação do Brasil. Daí orientou seus estudos de forma definitiva para a pesquisa histórica, da qual resultaram obras marcantes da historiografia brasileira. Outro que também orientou parcialmente sua obra para os estudos de sociologia e história foi Sérgio Milliet. Antes dele, um paulista da geração precedente, mas ostensivamente vinculado ao modernismo desde suas origens, escreveu um ensaio de interpretação histórico-sociológica também fundamental num gênero típico do processo de constituição das ciências sociais no Brasil: o ensaio de interpretação da nossa formação cultural e histórica. Refiro-me evidentemente a Paulo Prado e sua obra mais importante: Retrato do Brasil. Alias, acrescentaria assim de passagem que a crítica não deu ainda atenção devida aos vínculos observáveis entre esta obra e Macunaíma, de resto publicadas no mesmo ano, 1928.

Do processo de institucionalização cultural acima aludido brotaram a Universidade de São Paulo e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Um projeto ambicioso, infelizmente logo sufocado pelas forças políticas conservadoras, propiciou a mais renovadora experiência de democratização institucional da cultura, também em São Paulo. Refiro-me à instituição do Depto. de Cultura ideado e liderado por Mário de Andrade e Paulo Duarte. Para o seu sucesso contribuíram de forma decisiva vários dos modernistas provenientes dos anos 1920, como Sérgio Milliet, diretor da seção de pesquisa social, e Rubens Borba de Moraes, diretor da seção de biblioteconomia. A essas realizações poderíamos associar, em âmbito nacional, a instituição do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, baseado em projeto encomendado a Mário de Andrade, e o projeto da enciclopédia brasileira, também obra de Mário de Andrade.

Voltando ao exemplo da Universidade de São Paulo, acima indicado, seria sustentável afirmar que a solidez de sua eminência cultural e institucional deriva de duas fontes fundamentais: da lição dos professores franceses, formadores da geração fundadora da universidade, e do legado procedente do modernismo, notadamente aquele transmitido pela obra e a viva participação de dois nomes seminais: Mário de Andrade e Sérgio Milliet. O legado de Sérgio Buarque de Holanda é também notável, sobretudo na esfera da historiografia. Mas, como se sabe, sua atuação institucional mais decisiva ocorreu a partir dos anos 1950. Também o de Oswald de Andrade mereceria alguma menção, embora importe acentuar que foi muito limitado devido ao papel institucionalmente marginal que sempre desempenhou.

Importaria ainda acrescentar que Florestan Fernandes, expressão máxima da chamada escola de sociologia paulista, formou-se também sob os influxos do modernismo. Embora nitidamente se diferencie de Antonio Candido em termos de trajetória sociológica e formação, com quem consensualmente divide a honra de representar o legado intelectual mais elevado da USP, sofreu nítida influência de Mário de Andrade, sobretudo dos estudos deste referentes ao folclore e à etnografia.

Para que este artigo de síntese apressada não resulte demasiado omisso, importaria concluir relacionando em traços corridos o modernismo e o regionalismo nordestino que se concentra em Recife sob a poderosa liderança de Gilberto Freyre. Já acima brevemente aludi à atmosfera polêmica que cerca a relação entre ambos. A própria natureza polêmica que os cerca, assim como as relações de competição e luta por hegemonia cultural observável entre Mário de Andrade e Gilberto Freyre, tem de ordinário embaçado uma compreensão mais lúcida e isenta desses movimentos. Um dos primeiros a propor a questão em termos mais adequados foi José Aderaldo Castelo numa obra há muito esgotada: José Lins do Rego – Modernismo e Regionalismo. Mais recentemente, assentada a poeira de rivalidades antigas devido ao abrandamento das tensões ideológicas mais intransigentes, além da própria morte de Gilberto Freyre, pode-se felizmente observar a publicação de artigos e livros mais isentos na consideração do problema. Seria o caso de mencionar dois artigos assinados por Gilda de Melo e Souza e Antonio Dimas, além do livro de Valéria da Costa e Silva: A Modernidade nos Trópicos. Este, bem mais recente, constitui contribuição importante para o estudo da questão, embora reponha em tom por vezes francamente passional o caráter polêmico dessa desavença regional simbolizada no parentesco turbulento que divide e aproxima paulistas e pernambucanos. Como não sou daqui, deixo que se entendam, ou desentendam.

Nenhum desses estudiosos, diria ainda nenhuma pessoa hoje devidamente formada e bem informada, ignora a importância fundamental desses dois movimentos na história da cultura brasileira do século XX. Ambos, dentro de suas especificidades evidentes, concorreram como fontes seminais para a revalorização necessária da nossa cultura; ambos se inscrevem nesse longo e ainda atual processo de nacionalização da cultura brasileira, ou valorização nacional da nossa cultura em face da nossa ainda insuperada herança colonial crivada por relações de dependência e, internamente, relações de atraso, padrões iníquos de desigualdade social e privilégios também inconcebíveis numa sociedade legitimamente moderna. É esta, em síntese, nossa herança maldita, como por aí dizem os próprios que dela se beneficiam. Enquanto não superarmos esses problemas, que vão muito além dos generosos sentimentos e interpretações nacionalistas dos apóstolos da nossa identidade, continuaremos procurando o homem brasileiro, a mulher brasileira e a identidade de ambos no lugar errado.