terça-feira, 27 de julho de 2010

O Corpo Enfermo


Meu corpo costurado sobre a cama
Repousa sobre o nada e nada ama.
Meu corpo costurado e solitário
Padece entre o presente e o tempo vário.

Meu corpo pela dor tão castigado
Rangendo num deserto inconsolado
Memora o quanto amou e foi amado
Num tempo que remoto e dissipado
Semelha um outro ser avesso arado
Do enfermo que aqui se dói deitado.

Meu corpo vã matéria contingente
Que o tempo vai curtindo impenitente.
Meu corpo que me dói, pois tudo sente
Doer em tudo, em si, no ser sofrente.

Meu corpo que entanto ama viver
Embora assim se finja aborrecer
Da dor cota fatal de se viver
Traindo em cada ardor novo prazer.

Meu corpo que repele assim sofrer
É sábio em sua dor para saber
Que o gozo jaz nas dobras do sofrer
E a dor enfim se dobra de prazer.

Fernando da Mota Lima.

Recife, 24 novembro 2001.

sábado, 24 de julho de 2010

Variações sobre a Solidão


Também fui leitor de Hemingway. Não dos mais entusiastas, mas fui. Quem hoje o lê? Meu preferido é The sun also rises (O Sol também se levanta), que fui incapaz de compreender à primeira leitura. Era ainda leitor jovem e bem limitado. Precisei ler mais tarde um belo ensaio de Otto Maria Carpeaux, de longe o mais erudito crítico que tivemos. Nesse ensaio, que lembro vagamente, Carpeaux procede a uma apreciação altamente positiva da obra de Hemingway sublinhando a precisão e objetividade do seu estilo, que então fez escola, e distinguindo The sun also rises como o romance fundador da moderna ficção americana; não porém sua obra mais importante, distinção que confere a Farewell to arms (Adeus às armas). Carpeaux procede então a uma interpretação iluminadora do romance. Lendo-a tive uma outra percepção da obra e então, vexado de minha ignorância, cuidei de a reler como se a lesse pela primeira vez. Mas seu romance de maior repercussão foi provavelmente For whom the bell tolls (Por quem o sino dobra).

Chega de divagação. Afinal, o parágrafo acima não passa de pura divagação, já que meu propósito não é escrever sobre Hemingway, mas sobre a solidão. Se Hemingway veio à tona, foi apenas devido ao fato de eu haver antes pensado em algumas palavras célebres assinadas por John Donne, palavras que inspiraram o título do romance de Hemingway sobre a guerra civil espanhola. Voltarei às palavras de Donne que importam.

A solidão é algo que sempre me interessou, talvez por estar tão enraizada na minha vida. Mais que isso, acredito que está enraizada na vida de todo ser humano, portanto na nossa própria condição. Em “La dialéctica de la soledad” – apêndice constante de El laberinto de la soledad – Octavio Paz ressalta sua importância crucial na nossa existência ao frisar que nossas experiências extremas, nascer e morrer, fundam-se na solidão. Nascemos e morremos sozinhos, é isto que certeiramente frisa. Nunca mais esqueci este fato tão evidente, tão revelador da nossa condição solitária, e todavia tão ignorado ou imperceptível. Este belo ensaio de Octavio Paz, que muitas vezes reli no curso de minha vida com admiração inalterável, é um dos pontos culminantes do gênero, de resto tão ambíguo quanto a natureza humana. Aludindo tão-somente a ensaios mais curtos, acomodáveis nos limites de um capítulo de livro, ocorre-me lembrar um outro de valor equivalente: To please a shadow, de Joseph Brodsky, inspirado por Auden,a quem Brodsky distingue como o maior e mais inteligente poeta do século 20. Mas continuo divagando.

As palavras de Donne que agora transcrevo apontam para o oposto da solidão, para uma dimensão de humanismo abstrato passível de dela nos salvar: “Any man´s death diminishes me, because I am involved in Mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls, it tolls for thee”. Minha transcrição é baseada no Dicionário Universal de Citações, de Paulo Rónai. Cotejei-a em seguida com o ensaio de Carpeaux e então notei variantes que deixo apenas assinaladas. Traduzindo livremente, o que Donne quer dizer é que a morte de qualquer ser humano nos afeta, pois somos parte da humanidade, pois em cada ser humano pulsa uma fração de humanidade comum a todos nós. Daí a verdade segundo a qual o sino que dobra como um ritual de morte do nosso semelhante dobra também por cada um de nós.

Durante minha juventude impregnada de humanismo de esquerda - qualificativo de amplo espectro que neste contexto inclui influências marxistas, liberais e católicas – acreditei profundamente no ideal de solidariedade abstrata implicado nas palavras de Donne que, como se sabe, inspiraram o romance famoso de Hemingway. A própria leitura do romance - também o filme nele baseado, que vi comovido diante da beleza de Ingrid Bergman – reforçou na minha consciência a crença na solidariedade do gênero humano. Hoje não mais acredito em nada disso. Acredito, sim, que há ainda, como sempre houve, seres humanos excepcionais capazes de renunciar à tirania do egoísmo dominante na espécie em favor da doação solidária orientada para o próximo. Isto é verdadeiro em escala quantitativamente modesta, portanto não anula em nenhum sentido a raiz solitária de nossa condição penetrantemente analisada no ensaio de Octavio Paz. Mais que a crença na revisão que faço destas considerações abstratas, importa o metro da experiência vivida. Se nele me detenho, não reluto em afirmar minha condição solitária. Não apenas aquela universal e abstrata, acima indicada, mas a mais rotineira e sensível inscrita no meu percurso biográfico. Sou solitário não apenas por reconhecer em mim a condição solitária que partilho com todo ser humano, e bem identifico nos extremos da existência enfatizados por Octavio Paz, mas também por tocá-la e vivê-la em muitas circunstâncias de minha vida.

Sou solitário, por exemplo, na doença. Como todo mundo, já adoeci. Mais que isso, fui vítima de doença grave. Mais que o medo da morte, na juventude, a doença revelou-me o desamparo da solidão, a indiferença dolorosa das pessoas nas quais presumia poder apoiar-me. Elas me faltaram. Por dever de justiça, antes de tudo de memória generosa, que comigo espero conduzir ao limite último de minha vida, a indiferença daqueles em quem em vão busquei apoio foi contrabalançada por uma solidariedade absolutamente inesperada, já que procedente de pessoas que sequer então conhecia. Acima das muitas que em circunstâncias penosas me ampararam, lembraria Ednaldo Batista, médico de bondade humana rara e talvez em vias de extinção imposta pela crueldade da medicina mercantil hoje generalizada. Ednaldo e Rejane, minha namorada, apareceram na minha vida num momento em que me via privado de tudo: saúde, emprego, residência, fortaleza moral e psíquica para suportar a situação extrema em que me vi mergulhado. Não fossem eles, a meio de circunstâncias tão adversas, não sei o que teria sido de minha vida. Por isso devoto-lhes minha gratidão que, reitero, espero sobreviver na medida em que eu próprio sobreviva.

Somos solitários no amor quando o amor nos abandona, ou trai, ou simplesmente acaba. Quem já não sofreu em algum grau essa forma de solidão? Refiro-me não só ao amor passional, o que nos ata a uma mulher, mas ao amor dos amigos, ou dos que tal supomos. O amor, quando excepcionalmente verdadeiro, é falível como toda forma de experiência humana. Por isso nos falha ou nos falta quando nos trai por vias imprevisíveis e obscuras. Quando assim nos castiga, no cerne da dor e da perda novamente defrontamos a sombra opressiva da solidão, da solidão dos que amam para perder.

Considerem, por exemplo, o amor que os pais de ordinário devotam aos filhos. Não duvido da sinceridade com que o vivem. Apenas acredito que com frequência amam de modo errado, por vezes com consequências desastrosas para o que eles, os filhos, serão na vida. Se amássemos com um pouco de discernimento e clarividência, aprenderíamos que amamos nossos filhos não para retê-los na rede do nosso egoísmo, do narcisismo que neles projetamos para que na vida realizem o que não pudemos ou desejamos ser. Houvesse um pouco mais de altruísmo e lucidez no amor dos pais, não tenho dúvida de que amariam para perder os filhos. Amariam para entregá-los à vida tão somente amando-os para que as vivessem, as vidas que são deles e intransferivelmente deles, do melhor modo possível.

Aprendi a duras penas o quanto esses modos de amor são inconstantes e vulneráveis. Aliás, em muitos casos eles sequer existem de fato. Se os tomamos como reais, é porque carecemos de neles acreditar. De resto, em país de laços tão frouxos quanto o nosso, onde qualquer conhecido transitório ou companheiro ocasional de farra é levianamente confundido com um amigo, a amizade é transacionada e esquecida a troco de bem pouca coisa.

Há uma ordem de solidão que se manifesta em situações rotineiras de nossa vida. Estamos todos os dias sozinhos: no sono, também na vigília, no vaso sanitário, nas apreensões palpáveis ou imaginárias que sofremos. Estamos sobretudo sozinhos na massa, em todos os tipos de massa concebíveis e rotineiramente presentes na sociedade que é por definição... de massas. Estamos sozinhos diluídos nas massas errantes e moventes das grandes cidades. Estamos sozinhos nos megashows onde regredimos à nossa ancestralidade tribal. Estamos sozinhos nos estádios de futebol, nas grandes celebrações coletivas. Estamos sozinhos nos bares e clubes bêbados de gente ruidosa e vazia. Estamos sozinhos diante do sexo que é hoje vendido e barateado em toda a sorte de comércio humano. Estamos sozinhos na cama onde todas as noites dormimos, mesmo quando acompanhados por imposição de cadeias legais que somos incapazes de romper. Estamos sozinhos na noite, na noite imensa dentro da qual vagamos sob o peso e suor do cansaço de um dia inutilmente gasto. Estamos sozinhos dentro de carros que rolam através de ruas indiferentes, ou ainda quando engavetados na maré congelada do trânsito que paralisa a cidade sem alma. Estamos sozinhos ao lado do vizinho com quem dividimos paredes grudadas, mas totalmente incomunicáveis. Estamos sozinhos diante do outro que amamos e todavia incompreendemos na mesma e insolúvel medida em que ele nos incompreende. O homem solitário, não esse das massas temerosas da própria sombra individual, mas o homem que se sabe solitário, irremediavelmente solitário, mas antes de tudo senhor de sua solidão, este é o que melhor preza o amor, a amizade, a vinculação solidária ao outro que por vezes nos salva da consciência de que somos sozinhos e sozinhos morreremos.
Recife, 20 de setembro de 2008.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Psicologia e percepção estética


Houve um tempo em que o amanhecer e a paisagem marítima, sobretudo ao anoitecer, roçavam minha sensibilidade com sopro quase místico. Lembro-me de que essas sensações inefáveis remontam à minha infância vivida em Igarapeba. Menino sensível e carente, privado de tudo que uma mãe amorosa e protetora concede a seu filho, tendia sempre a embrulhar-me em vagas melancólicas que semelhavam recobrir-me com a luz declinante do anoitecer. Costumava sentar-me solitário nos degraus de minha casa e de lá assistia, entre melancólico e embevecido, a lenta aproximação da noite. Em muitas outras circunstâncias e lugares sensações semelhantes a estas se repetiram. Eis que enfim chegou o tempo em que algo de vago e inexplicável alterou o tom de minha sensibilidade. Não sei bem quando isso ocorreu. Sei apenas que agora em mim prevalece um outro modo de percepção do ambiente, da paisagem, da natureza que me entra através dos sentidos. Estava há pouco sentado na varanda, tocando violão e cantando algumas canções de Tom Jobim quando esses pensamentos me ocorreram. Meus olhos miravam o mar, cada vez mais espremido entre os prédios que continuam brotando por obra e graça de construtores sedentos de lucro, os aviões decolando em direção ao sul, e mais uma vez considerei o possível sentido das mudanças obscuras que em mim se processam. O que sei é que algo se modificou na minha percepção da paisagem, na sensibilidade que já não responde a tais estímulos com a intensidade de outros tempos. Continuo amando o mar, sua imponderável imensidão, mas algo do seu mistério, algo de suas inefáveis emanações poéticas já não há. A poesia de Alberto Caeiro volta-me então à memória em tom de zombaria, a zombaria de um sensacionista radical rindo de tudo que transcenda a pura percepção visual. Caeiro diria que tenho a imaginação adoecida, que somente um escravo da subjetividade delirante pode conceber coisas como as que aqui canhestramente registro.

Volto horas mais tarde à anotação precedente. Alguma coisa ficou em mim remoendo, algo como um vago descontentamento diante do que aí escrevi. Como se não soubesse bem o que escrevi, ou não identificasse nitidamente o que gostaria de me dizer sobre a relação entre minha sensibilidade e certas condições exteriores às quais atribuímos significados líricos: o amanhecer, o anoitecer, a paisagem marítima. Estava então relendo Luc Ferry, o que escreve sobre as possibilidades filosóficas de se lidar com a morte compreendida além de sua significação estritamente biológica, e então de repente intuí com mais viva nitidez o que tentava confusamente traduzir na anotação acima. Ora, acredito que minha sensibilidade já não se aviva ou deprime diante da paisagem marítima ou certos momentos do dia “investidos de significação lírica” porque a experiência libertou-me da necessidade de imprimir à contemplação do mar, por exemplo, estados de sensibilidade que não passam de projeção subjetiva. Neste sentido, preciso concordar com o sensacionismo poético de Alberto Caeiro, a quem antes me referi de forma negativa ou irônica. De fato, nada existe no crepúsculo, na luz matinal que inaugura o dia, nem tampouco na paisagem marítima, que suponha estados de sensibilidade que são do contemplador, não do objeto contemplado.
Retomando a cena que acima rememoro relativa à minha infância, mergulhava em estados de depressão ao anoitecer, sentado solitário nos degraus da calçada, porque aquela hora fronteiriça entre o dia e a noite inspirava-me sentimentos e estados imaginativos que eram no fundo puramente meus, projeções de minha infância infeliz de menino privado de amor materno. Os sentimentos que me oprimiam – ou também me embeveciam, como antes escrevi, sintoma provável de uma deleitação masoquista diante de minha infelicidade infantil – não encerram nenhuma conexão real ou objetiva com o anoitecer. Sofria por projetar dentro daquela situação meu desamparo em face da perda de minha mãe, assim como uma pessoa incapaz de aceitar a perda de uma mulher amada sofre ao ouvir uma canção romântica. Isso me parece explicar o fato de hoje amar uma bela canção e até cantá-la sem todavia associá-la à perda de uma mulher que amei.
Lembra-me agora, a propósito, uma observação que Bella fez certa vez ao me ouvir cantando canções de Tom Jobim e Chico Buarque acompanhado por Flávio Brayner ao teclado. Ela observou que eu estava muito comovido. O fato é que não estava, ou pelo menos não estava no sentido em que as pessoas convencionalmente traduzem os sentimentos de um intérprete, seja de uma canção, de um filme, de uma peça de teatro. A verdade é que não estava comovido, estava apenas interpretando as emoções implicadas na letra da canção. Tentei explicar-lhe a diferença entre as duas coisas, mas percebi que ela não me compreendia.
Também aqui fica agora evidente porque posso cantar canções profundamente emotivas, canções de elevada expressão lírica, como as letras escritas por Vinícius de Moraes para músicas de Tom Jobim, Carlos Lira, Baden Powell, sem todavia associá-las a algum amor que perdi, alguma situação amorosa que fosse parte de minha própria experiência. Se as canções já não me exaltam os sentidos ou me deprimem, é porque conquistei a liberdade de comandar “filosoficamente” minha experiência amorosa, que implica dor, separação, perda, tudo que entra como matéria das canções românticas e passionais. Se me torno capaz de me libertar das opressões emocionais associadas à minha experiência amorosa, sinto-me subjetivamente livre para cantar as emoções da canção isento de sofrê-las. Noutras palavras, posso simplesmente interpretá-la, assim como passei a contemplar a paisagem marítima sem melancolicamente associá-la a perdas e dores vividas, ou fantasiar possibilidades de vida que sei constituírem pura gratificação imaginária diante da vida.
Acho que agora afinal leio a poesia de Alberto Caeiro num sentido mais pleno. Julgo melhor compreender agora o que quer ele dizer ao reiterar sempre nos seus poemas que nada existe além daquilo que minha percepção visual objetivamente apreende. Em suma, mudei a qualidade de minha sensibilidade porque mudei os termos de minha relação com o amor, a perda, a inconstância da vida, a irreversibilidade do tempo. Posso voltar-me isento de nostalgia para o passado, a infância, o tempo irreversível, como tanto já o fiz neste diário, porque assimilei a verdade consistente no fato da irreversibilidade do vivido. Noutras palavras, sinto-me livre para falar de pessoas que amei e perdi porque posso agora aceitá-las como irreversíveis, como algo consumado no tempo. Aceitando a perda e até a mera possibilidade da perda dentro da experiência amorosa, torno-me mais livre para amar e perder. Acho que não consegui ainda dizer integralmente o que penso, talvez por incapacidade de encontrar o modo adequado de integrar forma e fundo, expressão e pensamento. Mas é certo que agora espelho com mais nitidez no texto o que queria exprimir na anotação precedente.

Recife, 20 de setembro de 2008.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Memória e Nostalgia


Sempre me intrigou o fato de tantas pessoas retornarem nostalgicamente às memórias da infância quando entram na maturidade ou na velhice. Se recorrentemente meditei sobre este assunto, a ele retorno influenciado pela releitura de Nordeste, de Gilberto Freyre. De resto, talvez não exista autor brasileiro mais sugestivo e rico no que se refere a este assunto. Se o fato me intriga, é simplesmente porque nunca fui picado por essa doença tão sedutora. Acho saudável atravessar a maturidade como o tenho feito isento da tentação de remirar as paisagens da infância transfigurando-as com o colorido imaginário da nostalgia. Não tenho dúvida de que a infância e a juventude nostalgicamente revisitadas constituem, antes de tudo, um sintoma de mal-estar no presente. Nunca vi ninguém feliz, ou em bons termos com a vida presente, gastando tempo e imaginação compensatória com o que presumimos serem memórias da infância ou juventude. Portanto, o fato de hoje observar e ouvir tantos companheiros de geração chorando a perda de ilusórias fortunas do passado representa um sintoma adicional da nossa incapacidade de aceitar o peso e os limites da idade avançada. Se antes talvez nunca acolhemos resignadamente a velhice, hoje nos tornamos simplesmente incapacitados para sequer encará-la de frente com o realismo desilusório que ela decerto exigiria. Nossa adesão irrestrita e festivamente enganosa à cultura do narcisismo deixou-nos de mãos atadas diante da fatalidade que é a lenta, progressiva e insegura imersão na realidade da velhice.
Críticos mais severos de Gilberto Freyre observam, com razão, a componente nostálgica de sua obra. É isso de resto uma verdade tão flagrante que não vejo bem como alguém pretenderia negá-la. O que no entanto nego é a redução explicativa deste fenômeno a fatores puramente sociológicos. Noutras palavras, esses críticos assinalam o vinco classista da nostalgia de Gilberto Freyre. Se dentro desses limites endosso a crítica, deixo de fazê-lo se se pretende estender o argumento para a explicação da nostalgia em geral. Uma das evidências da insuficiência dessa explicação redutora consiste no fato de que é fácil observar como pessoas que nunca detiveram privilégios de classe no passado tendem na maturidade a idealizar a infância ou a juventude que viveram. O que sei e procuro ressaltar é a atitude saudável adotada pelos que procuram, ainda quando descontentes, viver no presente. A evidência disponível, já um tanto explicitada neste diário, não me franqueia aceitar satisfeito o presente, muito menos feliz. Aliás, felicidade, contrariamente ao que tantos imaginam, é apenas um estado, e bem transitório.

16 de setembro de 2008

Voltando à entrada precedente, é comigo próprio que me intrigo quando procuro compreender o caráter significativo dos elos que me vinculam ao passado. Quando adolescente, estudando em Recife, curti dolorosa nostalgia do campo, do mundo obscuro e remoto que ficou em Igarapeba. Nos primeiros meses, menino demasiado sensível e infeliz dentro dos limites apertados do presente, chorava com saudade dos campos onde galopava, do rio sujo onde me banhava durante horas inventando jogos, espionando excitado o corpo das mulheres, jogando futebol incansavelmente. Igarapeba era um mundinho onde todos se conheciam e as rotinas se reproduziam sem variação. Num mundo regido por forças tão paradas e iguais, o que reinava nas vidas e sensações daquele punhado de gente era o tédio e a estreiteza dos horizontes simbólicos e reais. Mas eu, menino infeliz e privado de mãe, atado a uma família em desgoverno, eu idealizava Igarapeba e sentia meu coração apertar-se todos os dias quando ouvia o trem rolando sobre os trilhos, apitando em direção ao mundo para onde queria regressar. No dia em que deixei Igarapeba, lembro-me ainda com admirável nitidez desta cena, sentei-me no trem oprimido por uma medrosa sensação de futuro incerto e assustador. Tinha então dez anos e até então vivera fora de Igarapeba apenas uma vez: um ano morando e estudando com a minha família em Catende. Perto de Igarapeba, Catende era uma metrópole. Quando inauguraram o cine Diamante, o fato parecia um acontecimento cultural grandioso. E eu, perdido na vida, me embriagava dentro do reino de fantasia que Hollywood exportava para o mundo.
Voltando a minhas memórias de menino crescendo em Recife, minha nostalgia por Igarapeba prolongou-se por bastante tempo. A grande coisa, minha noção mais nítida de felicidade, era sentir-me livre da escola para tomar o trem e ir correndo desfrutar minhas férias em Igarapeba. Lá chegava como um herói civilizador, transportando para a aridez da vila as novidades bebidas nos cinemas, os enredos e personagens que eu reencenava na rua principal mobilizando a garotada como se fôssemos combatentes de filme de cowboy ou espadachins. Quando afinal integrei-me ao ambiente cultural de Recife, a nostalgia do campo, a saudade de minha pobre e triste vila, tudo isso foi irremissivelmente murchando. Por fim, Igarapeba tornou-se um fundo de poço, uma paisagem da qual inteiramente me libertei. Voltei a ela uma única vez, por volta de 1986, para atender a um pedido irrecusável de papai. Temendo que o último sobrevivente de sua geração, Cícero Costa, morresse sem que antes o visse pela última vez, papai manifestou o desejo de o visitar. Além disso, Cilene muitas vezes manifestou o desejo de conhecer Igarapeba, o lugar onde vivi quase toda a minha infância. A viagem, de apenas um dia, foi portanto um modo de atender a dois desejos irrecusáveis. Lembro-me bem dela por guardar ainda fotos onde posso ver a imagem do meu pai congelada no tempo, também a de meus 30 e muitos anos, sobretudo a imagem sempre amada de Cilene.
Voltando ao cerne da questão, acredito haver idealizado Igarapeba, haver sofrido saudade de Igarapeba, antes de tudo como um sintoma da minha inadaptação desamparada no ambiente de Recife, que de imediato me pareceu um mundo imenso, cheio de possibilidades de vida, mas antes de tudo ameaçador. Tão logo ajustei-me a um novo metro de vida, a uma outra ordem de experiência, passei então a pensar Igarapeba e senti-la como uma realidade distante e crescentemente alheia, quando não oposta, às linhas que confusamente fui traçando para a minha vida de adolescente. Por fim, cheguei ao ponto em que dela me senti integralmente desligado. Igarapeba tornou-se então apenas uma fotografia na parede da memória e felizmente já não doía como dói no poema de Drummond. A propósito, ele alude, no Dossiê Drummond, à memória que na velhice, já passados os 80 anos, prende-o ainda a Itabira. São memórias assim, sentimentos assim enraizados nos lugares da infância, que me intrigam. Pois o fato é que rompi todos esses vínculos idealizados com a minha infância e adolescência. Há muito deixei de sentir saudade, de moer no silêncio da memória a nostalgia de um passado que, tenho plena convicção, não foi feliz, não foi nenhuma Pasárgada iluminando na bruma do tempo dissipado a vida pedestre que nos recusamos a ver como tal. Se eu idealizei Igarapeba, se a transfigurei na memória transpondo-a para elevações inexistentes, por que na velhice tantos não se abrigariam nesses mesmos refúgios de consolação?

sábado, 10 de julho de 2010

BBB (Bruno Brasil Barbárie)


Quem conhece algo da tradição dramática e literária relativa ao crime sabe o que é o mito do crime perfeito. Ele consiste na fantasia do planejamento e execução do crime indesvendável, o crime que nenhum Sherlock Holmes teria a inteligência e o poder de decifrar e portanto punir. Uma das coisas que me horrorizam nos grandes crimes correntemente praticados no Brasil é a presença do ingrediente de brutalidade sem cálculo. Mata-se não apenas com requintes de barbárie, com impiedade inconcebível na nossa noção de normalidade humana, mas também com imperfeição grosseira. Noutras palavras, são crimes praticados sem nenhum vestígio de inteligência e cálculo. Chocam ainda por serem também isentos de paixão. O crime passional, não importando seu horror, é humanamente compreensível. O que talvez mais me horroriza no crime bárbaro é minha incapacidade de compreendê-lo, de enquadrá-lo em alguma noção de humanidade votada à destruição. Portanto, este artigo, escrito por alguém que nada entende de crimes nem deles felizmente participa, não pretende explicar ou compreender o que me parece em último caso inexplicável e incompreensível.

Por que estão se banalizando no Brasil crimes como este que o goleiro Bruno e seus associados são acusados de cometer? Serão fruto de algum mal obscuro e ininteligível existente em alguns indivíduos? Serão um mero produto do meio, como sugere a pergunta feita por Sandra Annenberg, apresentadora do Jornal Hoje, a um psiquiatra forense? Melhor dizendo, ela perguntou se a causa do crime não estaria no fato de Bruno ter vivido uma infância sem pai e mãe, marcada assim por formas traumáticas de privação infantil. Isso é coisa de psicologia de folhetim, ou sociologia de almanaque. Milhões de pessoas no mundo, sem exagero, sofreram formas de privação semelhante sem todavia incorrerem em qualquer tipo de crime, muito menos um do tipo que é imputado ao goleiro.

Estou com isso isentando as condições do meio de qualquer responsabilidade? Muito pelo contrário. O meio importa, sim. Importa de forma poderosa, mas não desse modo grosseiro sugerido pela pergunta da jornalista. A pergunta dela é sintoma, antes de tudo, da cultura da vitimização corriqueira no presente. Quero dizer, estamos sendo condicionados a isentar-nos de qualquer responsabilidade moral com respeito a nossas vidas e ações. Somos, noutros termos, vítimas da vida e das circunstâncias. Ora, penso precisamente o contrário. Penso que todo ser humano é moralmente responsável pelas ações que pratica. Isso não anula, friso, o peso variável das circunstâncias, apenas afirma a necessidade do reconhecimento de uma instância moral regendo nossas ações. Se não aceitamos isso como um fato, então precisamos coerentemente inocentar qualquer tipo de ação humana, além de suprimir a noção de liberdade ou livre arbítrio do horizonte humano.

Vejamos agora como o meio importa. O capitalismo brasileiro já foi mais frequentemente qualificado como selvagem. Era moda assim dizê-lo durante a ditadura militar, quando foi imposto ao país um processo de modernização capitalista autoritário. Ele consistia, melhor dizendo, na mobilização de processos de crescimento econômico que modernizavam o país sem todavia eliminar as condições de atraso e opressão típicas das sociedades pré-modernas. Esta é precisamente uma das singularidades do nosso capitalismo, a que moderniza reproduzindo as condições de atraso. Trocando isso em miúdos, o Brasil entrou para o clube privilegiado das dez grandes economias do mundo sem no entanto suprimir suas características retrógadas ou iníquas correntemente supostas na expressão herança maldita. É uma expressão, sabem os leitores, muitas vezes usada pelo próprio Presidente da República. Ela supõe, entre outras coisas, a persistência das duas grandes pragas que marcaram nossa formação como nacionalidade e povo: o colonialismo e a escravidão.

Peço desculpas aos leitores pelo parágrafo acima, pretensamente sociológico, mas ele importa para compreendermos algo do nosso capitalismo. Mais importante ainda, ele nos ajuda a compreender alguns grãos da nossa barbárie. Deixando a sociologia de lado, essa herança maldita se manifesta a todo momento em fatos sociais como estes: a miséria visível nas nossas ruas, a hiperexploração da mão de obra, o trabalho infantil, a corrupção endêmica, a política do deus dará, a democracia seletiva, com perdão do paradoxo, a prostituição disseminada na sociedade etc. Sintetizaria tudo isso dizendo simplesmente que no capitalismo à brasileira nos tornamos mercadorias baratas, mercadorias expostas, tão sem máscara ou verniz de humanidade quanto os crimes que são objeto deste artigo.

Exemplos? O Jornal Hoje, novamente ele, apresentou ontem, em meio às repercussões sensacionalistas do crime imputado a Bruno, uma reportagem sobre a fortuna que ele perderá se for condenado. Vemos então um economista expondo, do alto de sua ciência sem alma, do seu saber inconsciente, quanto Bruno perderia se continuasse jogando no Brasil, quanto se se transferisse para a Europa, sonho de todo atleta brasileiro. Isso diz tudo sobre a banalidade do mal no noticiário da mídia, que aliás mais uma vez espremerá o crime até a última gota de sangue. O público, por sua vez, ávido de sangue, acompanha fascinado esse circo de horrores produzido pela mídia a cada crime sangrado na nossa realidade. Outros virão.

Exemplos? O acusado do crime a mando de Bruno, cujo cognome é Bola ou Paulista, foi expulso da polícia civil em 1992. Depois disso foi acusado de muitos crimes sem todavia sofrer qualquer punição. A própria polícia admite agora que é um homem frio e perigoso. A julgar pelo pouco que vi e ouvi, o dossiê do tipo é bem fornido de crimes. No entanto, viveu todos esses anos sob completa impunidade. Aliás, a julgar pelo que circula agora sobre a ficha corrida dos envolvidos, quem nessa história é inocente? Aliás, quem acaso teve a curiosidade de contabilizar o número de crimes que envolvem policiais ou ex-policiais?

Voltando ao contexto geral, nosso capitalismo continua sendo, reafirmo, capitalismo selvagem. Como acima frisei, longe de mim a presunção de propor qualquer explicação para o crime que aqui discuto. Mas como não perceber a sombra nefasta desse capitalismo pairando sobre nossos horrores? Como não perceber que no cerne da nossa anomia social, no cerne de uma sociedade privada de regulação civilizada, as instituições socializadoras fundamentais não funcionam? Melhor esclarecendo, a família, a escola, a religião, a mídia, nada disso funciona de acordo com ideais e valores inerentes a uma sociedade verdadeiramente civilizada. Por isso repito, sem pessimismo ou bola de cristal, que outros crimes virão, iguais ou piores, enquanto a roda viva do nosso capitalismo brutal continuará girando e faturando, vertendo sangue e consumindo vidas que valem zero. Não sou eu quem o diz, são os fatos apreensíveis na mídia, na indústria publicitária, na máquina produtiva, no circo de horrores que é o capitalismo à brasileira.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Amor, Memória e Morte


Antes da morte definitiva – a que por fim nos apaga e enterra – morremos, ou vivemos, muitos modos de morte. Cada separação e perda amorosa, por exemplo, constitui um modo de morte simbólica. Ao perder minha mãe na infância – ademais de forma irreversível, pois corretamente intuí que nunca mais a veria – vivi e sofri uma das piores formas de morte simbólica. Cada amor perdido que se vai, podendo até definitivamente nos esquecer, representa uma morte simbólica. Assim, ao longo da vida morremos repetidas vezes para o outro - a cada vez que dele nos separamos ou o perdemos, a cada vez que nos rejeita e esquece – tanto quanto inversamente morre ele em nós e para nós. Todo ser humano, não importando quanto feliz e afortunado seja, vive em si inescapavelmente todos esses modos de morte. É isso o que significa morrer simbolicamente no outro e para o outro. Se somos incapazes de assimilar esses modos de morte, não somos livres para viver e menos ainda livres para viver as experiências fundamentais da vida, pois todas implicam algum modo de morte antes da morte definitiva.

De certo modo, é verdadeiro dizer-se que amamos para a separação e a perda, já que tudo na nossa condição é imperfeito e finito. Quem teme amar e perder, amar e sofrer, faces do amor entrelaçadas no seu modo ontológico de ser, não pode verdadeiramente amar. Ou recua antes mesmo de qualquer envolvimento efetivo, ou então ama sem verdadeiramente se dar aceitando no amor todos os riscos e padecimentos da perda, da traição, do vazio que sobrevém depois que o amor se rompe. As mulheres são mais íntegras e corajosas no amor do que os homens. Talvez porque para elas a realização amorosa esteja investida de um significado ausente na capacidade amorosa do homem, que de ordinário tende para a expressão centrífuga de sua energia libidinal.

O que nos salva da dor da separação, da perda e do esquecimento dela no geral decorrentes, é a memória. Diria mais que a memória, faculdade demasiado genérica e inapreensível em sua espantosa multiplicidade de manifestações; diria a memória generosa, capaz de acolher o amor, sobretudo depois de perdido, como o que ele de fato é dentro de nossa imperfeita medida humana de amor. A nostalgia é precisamente o oposto de tudo isso que aqui intento grosseiramente exprimir. Sei que é possível salvar na memória, quando tudo já se perdeu e no amor acolhemos sua dissolução irreparável, a beleza, o prazer inefável da felicidade que foi o que é dentro da ordem de seu modo de ser: a felicidade provisória, a que vem e um dia parte sem qualquer possibilidade de regressão. A memória generosa do amor perdido, da perda de tudo que nos dói perder, esse tipo tão raro e precioso de memória acolhe no fundo da perda sua perda irreparável.

Portanto, há verdade no paradoxo que me leva a acreditar que amamos para perder, nunca para esquecer. O amor verdadeiro e sábio, já que passível de salvar sua perda e imperfeição através da memória, esse modo de amor sobrevive em cada um de nós até o momento da morte definitiva, já não mais simbólica. Quero dizer: aquela que algum dia, bem o sabemos, nos colherá com ou sem aviso deste mundo. Sou livre para continuar amando meus amores perdidos se sou capaz de aceitá-los na fatalidade de sua condição e de minha condição humana: provisória, falível, sempre condenada a dissolver-se na mobilidade e finitude de tudo.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Solidão e Solitários


Já antes louvei, em algum volume do meu diário, um livro que amo reler: Solitude, de Anthony Storr. É a mais equilibrada, sensata e penetrante apreciação psicológica que conheço relativa à experiência da solidão. Sendo eu próprio um solitário, sei bem quanta incompreensão grosseira esta condição suscita mesmo em comentários de amigos íntimos. Tendem de imediato a crer que o solitário é um incapaz de manter vínculos estreitos e constantes com alguém. Presumem ainda que é vítima de algum trauma irreparável, ou alguém psiquicamente inabilitado para os comprometimentos e responsabilidades da vida casada – da vida convivida em geral. Ora, Storr demonstra com argumentos e fatos irrefutáveis o quanto há de solitários amáveis, generosos e apreciadores do bom convívio humano. Em suma, seriam gente como toda gente, gente saudável ou doentia como o comum da espécie.

Que me lembre, pois faz já algum tempo não o releio nem dele fiz anotações, Storr pinta um quadro tão positivo do solitário e da condição solitária que acaba silenciando, ou pelo menos obscurecendo, um veneno perigoso que segrega. Refiro-me ao veneno do egoísmo mantido em estado de prontidão, um egoísmo talvez mais sensível do que o observável nos que se entregam ao gosto ou necessidade de convívio corrente. Percebo-o em mim, antes de tudo. Percebo-o ainda em amigos solitários, seja por escolha, seja por imposição ou castigo das circunstâncias. É patente, em ambas as categorias, o peso primacial desempenhado pelo egoísmo. Um dos seus sintomas mais nítidos radica na impaciência diante do semelhante, diante das azucrinações rotineiras no convívio humano.

Tende ainda o solitário, talvez de forma excessiva, ao zelo pela própria independência, mesmo quando é um dependente crônico do outro. Este outro é de ordinário uma mulher. Embora dependente, resiste ele ao comprometimento que implique vidas conjugadas, casamento, coisas assim. Corre disso como o diabo corre da cruz. Desdobrando essas idiossincrasias, o solitário é com frequência hipocondríaco. Mais que doente, é um cultor da doença, na qual se entranha decerto como sintoma da excessiva fixação em si próprio, na vida insular que habita e defende de toda a sorte de invasão.

Outro traço notável é sua intolerância para com as crianças, ainda mais se ele próprio é prisioneiro de fixações infantis. Em contrapartida, o solitário dotado de tais características pode ser um grande sedutor, tendendo a exercer evidente fascínio sobre as pessoas com as quais convive, especialmente as mulheres. Não é sem razão que o solitário desse tipo é bem amado por elas, mesmo quando no fundo encerra, a sete chaves, um gosto incontido e divertido pela misoginia.

Mas por que não falar mal também de mim próprio, do solitário que deliberadamente quis ser e sou? No que se refere ao egoísmo, tenho perfeita consciência de que o exercício prolongado da solidão o exacerbou. Antes era e desejava ser um homem mais solidário. Por isso coerentemente participava da vida dos que viviam próximos a mim: parentes, amigos, colegas de trabalho, até estranhos. Fiz coisas que bem sei não mais me disporia hoje a fazer. Como acredito ter certo dom para ouvir e orientar pessoas confusas, durante muitos anos fui confidente espontâneo e sempre disponível de gente atormentada por problemas. Algo que concorreu para alterar essa minha disposição foi a consciência do quanto essas pessoas que me solicitavam eram egoístas ou narcisistas. Procuravam-me, acima de tudo, por ser lisonjeiro dispor de ouvidos receptivos e sensíveis onde vertiam narrativas intermináveis sobre o próprio umbigo. A evidência disso é constatável no fato de que essas pessoas sumiam completamente de minha vida quando estavam bem. Procuravam-me sempre quando crivadas de problemas, quando carentes de consolação narcisista.

Sem depreciar a possibilidade de que muitas buscassem no jogo de confidências alguma via de esclarecimento e catarse compreensível, não duvido de que eram no geral dirigidas pelo próprio egoísmo, pela carência de gratificação narcisista. Também constatei, depois de alguma experiência, que eram indiferentes a minhas carências e necessidades. Como toda pessoa carente de ajuda, como todo dependente narcisista, viam em mim apenas o espelho em que se refletiam. Esta foi a razão decisiva para que eu fosse discretamente arriando a tenda, desfazendo o divã ambulante e gratuito e por fim recolhendo-me mais livremente a minha ilha simbólica. Hoje, de fato já há muito tempo, frequento bem poucas pessoas e já não me solicitam de ordinário movidas pelas expectativas antes predominantes. Ah, ninguém imagina o quanto dei ouvidos e gastei meu tempo ouvindo problemas insolúveis, quando não imaginários.

As pessoas sofrem muito. Aprendi algo disso graças ao convívio solidário e interessado que com muitas entretive. Vale aqui evocar as palavras do padre e confessor citado no livro Le Bonheur,désespérément (A Felicidade, desesperadamente), de André Comte-Sponville. Vai aqui o registro baseado apenas na minha memória. Atendendo à curiosidade de André Malraux, que lhe perguntou o que mais o impressionara na sua longa experiência de confessor, respondeu assinalando que as pessoas são mais infelizes do que aparentam e, ademais, não existem grandes pessoas. À parte esta observação, que tomo como verdadeira, aprendi que pouco poderia fazer para suprimir a dor das pessoas que me solicitavam como confidente, para não dizer simplesmente abrandá-la. Antes de tudo, aprendi talvez tardiamente que apenas elas podem fazê-lo. Não obstante minhas ações e intenções, a vida é irredutivelmente delas. Portanto, somente elas podem vivê-la e consertá-la, ou agravar o que já encerra de dor e infelicidade.

Em suma, recolhi minha tenda ou divã ambulante. Ao fazê-lo, tornei-me menos sensível à dor e à infelicidade alheias. Esta, acredito, é uma das consequências inevitáveis da solidão, da vida tendente a fechar-se à volta de si própria. Mesmo aqueles capazes de manter sentimentos e praticar ações altruístas, mesmo esses se vão até inconscientemente distanciando dos dramas rotineiros sofridos pelo semelhante, por aquele que no geral procuramos manter a cautelosa distância. Adicionalmente, fiz-me também menos tolerante, menos paciente diante dos entraves rotineiros da vida, notadamente a brasileira, no geral desatada de ordenamentos e processos sociais mais democráticos ou civilizados.

02 de outubro 2008.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Igarapeba: Uma fábula nordestina


Por duas vezes Igarapeba foi arrancada da sua vil e sofrida obscuridade. A primeira, no início do remoto ano de 1964; a segunda, no dia 29 de junho deste ano, quando entrou no noticiário estadual e nacional graças às enchentes que devastaram muitas cidades e vilas de Pernambuco e Alagoas. A primeira data está associada à passagem de Antonio Callado por Igarapeba, então assaltada por um clima de mudança e agitação política absolutamente inéditas na sua história sem história. Callado veio do Rio de Janeiro para escrever uma série de reportagens sobre a tensa e potencialmente explosiva situação política de Pernambuco, sobretudo na região dos canaviais ainda amarrados a relações de produção e trabalho típicas do Brasil colonial. As reportagens, mais tarde enfeixadas no volume Tempo de Arraes, foram publicadas no Jornal do Brasil poucos meses antes do golpe militar que sufocou as transformações em curso no país e particularmente em Igarapeba.

Na reportagem, depois capítulo de livro, intitulada “Fábula da Igreja e do Partido Comunista”, Callado descreve a atmosfera de tensão social liderada pelas duas forças empenhadas na hegemonia do nascente movimento dos trabalhadores organizados em sindicatos rurais: a Igreja católica, tradicional aliada da oligarquia regional, e o partido comunista orquestrado pelo combativo Gregório Bezerra. Callado foi a Igarapeba entrevistar o padre Edgar Carício, líder do sindicato rural na região que compreendia a vila de Igarapeba. Citando o próprio Callado, o encontro ocorreu “... em Igarapeba, um fim de mundo a 175 km de Recife, à beira do grandioso e pérfido Rio Piranji”. O adjetivo grandioso entra na frase, convenhamos, como um cochilo retórico do admirável romancista. Pérfido, com suas águas contaminadas pela calda das usinas e da miséria ribeirinha, o Piranji sempre foi; grandioso, apenas quando seu volume ameaçador transbordava durante as enchentes ocasionais. É o que agora volta a acontecer, só que num grau de devastação sem precedente.

Liguei a TV ontem à noite para ver o noticiário sobre as enchentes na tradicional zona canavieira de Pernambuco. De repente, vejo Igarapeba enquadrada em planos gerais filmados de um helicóptero. Em seguida, cenas filmadas na própria vila: as águas do rio grandioso e pérfido rolando barrentas, os vestígios da ponte destruída, único ponto de conexão entre a vila e a estação ferroviária, que há muito não acolhe trens, e a estrada sinuosa e lamacenta que conduz à rodovia e à “civilização” pernambucana. Por fim o povo, o mesmo povo da minha infância. Vê-lo na TV, com seus corpos retalhados pela miséria e o obscurantismo daquele mundo sem história é repor na minha consciência e memória o pior de minha infância. Quando Antonio Callado passou por Igarapeba, eu, ainda menino, vivia já no Recife, onde vim estudar com toda a minha família. Sendo assim, nada sei em termos de experiência vivida de tudo que aconteceu naquele remoto e turbulento ano do governo Arraes.

O que sei, ouvindo o repórter da Globo enquanto a câmera enquadra planos da vila, é que três coisas cresceram em Igarapeba desde a esquecida passagem de Antonio Callado pelas suas poucas ruas: a população, a miséria e a força destrutiva do pérfido Piranji, agora justamente grandioso. À fábula ironicamente esboçada nas páginas das reportagens e do livro de Callado soma-se uma outra, ainda mais terrível: a da inércia social e política que há séculos castiga uma região assolada pela miséria e o desamparo das gentes. A enchente traz para Igarapeba e sua população irreparavelmente sofrida apenas essa dádiva divina: Igarapeba está na Globo, Igarapeba enfim existe para o Brasil, talvez para o mundo que sopra histericamente suas vuvuzelas para animar em escala global uma Copa do Mundo que tem mais ruído do que futebol.

Por fim, um outro sopro de memória acionado pela reportagem da Globo. Custa-me ainda compreender o arbítrio da memória humana que recria num passado tão brutal apenas os traços nostalgicamente transfiguradores da realidade. Aludo, noutros termos, aos processos psíquicos que nos transportam de volta à infância vivida entre escravos, desvalidos e tantas outras formas brutais de opressão selecionando desse mundo submerso apenas as memórias de beleza e gratificação egocêntrica. Penso, por exemplo, na célebre passagem de Minha Formação na qual Joaquim Nabuco, nosso grande abolicionista, recria nostalgicamente sua infância de senhor de escravos; penso nos meus parentes e amigos provenientes de Igarapeba, que organizam anualmente um Encontro dos Amigos de Igarapeba para celebrar um passado que idealmente recorta apenas a memória conveniente à nossa natureza egoísta. É por essas e outras que cultuamos o mito da infância feliz. Em contraponto, penso em Infância, de Graciliano Ramos, obra rara na grandeza com que investe contra nossas entranhadas mitificações do passado e da infância.

Passada a enchente, que deixará rastros de miséria ainda maiores do que aqueles secularmente enraizados na vida dos igarapebenses, Igarapeba afundará novamente na sua vil e sofrida obscuridade. Seus poucos privilegiados, os que de lá saíram para viver uma vida melhor, certamente renovarão o encontro anual no qual confraternizam por um dia na igrejinha da vila com os humilhados e ofendidos condenados a mofar naquela Sibéria tropical. Como a fábula da miséria nordestina se prolonga através de séculos sem vestígios de solução aparente, é provável que no futuro próximo sobrevenha outra enchente de semelhante magnitude para repor Igarapeba no noticiário do Brasil, talvez do mundo.
Recife, 30 de junho de 2010.