sábado, 28 de agosto de 2010

Amor e Mentira




As mentiras do amor são tão comuns
Que ao cifrá-las a ciência perde o senso
Pois embrulha os enredos nus em uns
Gatos turvos pelas farsas que invento.

O que minto e não digo contamina
O amor que na outra ponta me engana.
Uns que mentem presto alegam ser a sina
A semente que do engano sempre emana.

Outros dizem que mentir é condição
Inerente ao amor e a quem ama
Pois o fogo que fervilha na paixão
É a mentira que fermenta toda chama.

Que diria eu de mim, do meu amor
Se a mentira é corpo estranho ao que me sei?
Se amei fui no amor um impostor
Se menti apenas provo que amei.

Recife, Hospital Santa Joana, 30 de julho de 2010
Fernando da Mota Lima.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Ethan Frome


Ethan Frome (U.K.-EUA, 1993) foi produzido no mesmo ano do grande e impactante A Lista de Schindler (Schindler´s List). O protagonista de ambos é interpretado por Liam Neeson, ator de ascendência irlandesa cuja aparição marcante e trajetória luminosa é assinalada, salvo engano, por Duet for One. Este é um dentre os grandes filmes que há anos tento em vão rever. Além da estreia de Neeson, superam-no em papéis memoráveis três atores que muito admiro: Julie Andrews, Alan Bates e Max Von Sydow. Existem ainda velhas cópias em VHS deste filme também perturbador como os dois primeiros, mas nunca encontrei vestígios dele nem no mercado norte-americano. Voltemos a Ethan Frome.

Ethan Frome foi inexplicavelmente injustiçado pelos resenhistas de filmes e pelo público. Talvez ainda pelos produtores e distribuidores, pois sequer entrou no mercado brasileiro. Liam Neeson (Ethan), mais uma vez demonstra sua grande força de ator. Além dele, brilham em papéis igualmente fortes Joan Allen (Zeena Frome) e Patricia Arquette (Mattie Silver). A primeira interpreta a mulher de Ethan. É uma histérica dominadora cuja hipocondria, manifesta num círculo aprisionador de doenças, funciona como força tirânica não só para ela, mas também para o marido e a prima (Mattie). A segunda compõe o contraponto liberador, a luz de prazer e felicidade arejando o mundo opressivo dentro do qual os personagens centrais se movem. A atmosfera desoladora e trágica do filme é composta num quadro de luz intensamente branca, a neve e os ventos cortantes assinalando a força impiedosa dos elementos sobre a luta cotidiana e as vidas fechadas de uma comunidade puritana da Nova Inglaterra.

O filme é baseado no romance homônimo de Edith Wharton, escrito por Richard Nelson e dirigido por John Madden, que daí ascendeu à gloria dirigindo Shakespeare in Love (Shakespeare Apaixonado). O modelo literário de Edith Wharton foi Henry James. Embora nativos dos Estados Unidos, foram ambos moldados dentro da mais alta tradição literária europeia. Daí não espantar o fato de acabarem trocando seu país de origem pela Europa, onde viveram até a morte: ela na França, ele na Inglaterra.
O problema da escolha ética está inscrito no cerne da obra de Henry James, assim como na de Edith Wharton, que confessadamente nele se inspira para compor sua obra. A imaginação literária de ambos baseia-se em escolhas e consequências éticas encarnadas nos seus personagens. Todavia, vale ressaltar que Wharton é guiada pela clarividência do grande criador de arte, isto é, não subordina a obra e os personagens a suas convicções éticas pessoais. As questões éticas são postas e imaginariamente recriadas a partir das características autônomas do personagem, daquilo que ele é, das forças e ações humanas que o singularizam enquanto entidade ficcional. Se estas qualidades estão presentes na obra de Wharton, na de Henry James encontram expressão ainda mais completa. Sugiro, portanto, que o espectador do filme o aprecie considerando esta questão de natureza ética e estética que identifico no cerne da obra.

Voltando ao filme, ele começa quando o Reverendo Smith (Tate Donovan) chega de trem a Starkfield. É uma estação solitária e ele é o único a descer. Logo mergulha na atmosfera acima grosseiramente descrita: um mundo recoberto pela neve da primeira à última cena. A primeira imagem humana que capta vagamente intrigado é a de Ethan coxeando na paisagem deserta. A cena de pronto introduz na imaginação do espectador o nó da trama, uma porta fechada cuja chave retém a partir de um certo ponto no desenvolvimento do filme. Mas o acesso ao interior do quarto intrigante, último recesso do mistério, esse movimento da chave na fechadura somente se completa no final. Essa estrutura narrativa é uma das linhas de força da obra.

Por que ninguém fala com Ethan, por que se move penosamente coxeando isolado dentro do mundo recoberto pela neve? Seu isolamento dentro daquela restrita comunidade de puritanos é absoluto. O Reverendo, homem de alma sinceramente compassiva, a tudo assiste intrigado, mas também inconformado, pois o fato é incompatível com sua caridade cristã, assim como lhe parece igualmente incompatível com uma comunidade regida por uma ética cristã. Essa situação se desenha com nitidez quando o filme justapõe duas cenas que traduzem estes mundos divididos e incomunicáveis: a comunidade reunida na igreja, ouvindo a pregação do pastor, e Ethan lá fora, exposto à inclemência dos elementos, isolado e coxeante como uma árvore arrancada da raiz que a sustenta.

Dentro da igreja, diante da comunidade reunida, o Reverendo Smith prega seu sermão baseado numa das mais belas e comoventes passagens bíblicas: A Primeira Epístola aos Coríntios. A passagem, tão citada que até eu a conheço, inspirou já uma infinidade de obras de arte. Importa todavia salientar que a citação chave feita pelo Reverendo não segue as edições correntes da Bíblia. Ela compõe o versículo 13, capítulo 13, da Epístola. Indo ao que importa, sobretudo para a compreensão de aspectos fundamentais da trama, São Paulo alude à fé, esperança e por fim ao amor. Na maioria das edições da Bíblia que conheço São Paulo fecha o versículo asseverando que o amor é maior que a fé e a esperança. A King James Version, também sua edição norte-americana, põe caridade em lugar do amor afirmando sua supremacia diante da fé e da esperança. Ora, é este o texto citado no filme e a alteração do texto bíblico parece-me crucial na composição da obra. Pois é em nome da caridade cristã que o Reverendo procura Ethan e chega por fim ao fundo da história que paira na narrativa como um denso e inquietante mistério. É em nome da caridade que o Reverendo reprova seus fiéis. Diante da tenacidade com que busca desvender o mistério, Mrs. Ruth Hale (Katharine Houghton) se dispõe a fornecer-lhe a chave que a partir daí moverá a trama até seu momento final, quando o espectador gira a chave na fechadura do quarto sombrio onde Zeena e Mattei sobrevivem como se fossem almas penadas.

Retomando a narrativa, agora desdobrada na perspectiva de Mrs. Hale, o estado de saúde de Zeena se agrava e então decide fazer uma breve viagem à procura de um médico que poderia curá-la. A casa fica então sob os cuidados de Mattei que, de início doente como a prima, tornou-se uma jovem cuja beleza alterou-se em linhas irradiantes e sedutoras. O inevitável sobrevém sob o teto de uma casa antes envenenada pela rotina penosa, pela tirânica histeria de Zeena impondo-se na abafada atmosfera doméstica. Sozinhos e crescemente atraídos um pela outra, Mattei revela alguns dos seus traços aliciantes: além de tocar piano, ama cantar e declamar poemas. O desejo e o amor proibidos reinam enfim sobre as vidas sofridas de Ethan e Mattei. O filme se transfigura, muda radicalmente de tom e qualidade humana.

Como era previsível, Zeena retorna e agora o que era doença continuada e rotina tolerável converte-se num inferno comprimido, tensão crescente, a histeria cruel de Zeena desfechada contra a frágil e desamparada Mattei, forçada a ir embora, bater humilhada à porta de outro parente que acaso lhe dê abrigo. Ethan a tudo assiste atravessado por um estado de surda dor e ódio abafado contra a mulher. Tudo isso é agravado pelo desejo e o amor atormentados que o prendem a Mattei. Esta, num lance extremo, tenta envenenar-se, mas é salva pela intervenção providencial de Ethan.
Chega a hora da separação. Ethan conduzirá Mattei à estação ferroviária. Antes disso, sobrepondo o amor às convenções impiedosas da comunidade puritana de Starkfield, faz questão de dar a Mattei um presente simples, mas que é um símbolo evidente do seu amor por ela. As implicações pecaminosas da cena não fluem impunes à crueldade dissimulada de alguns puritanos mesquinhos presentes à loja onde Ethan presenteia Mattei. O sentido da impiedade puritana, traduzido em alguns comentários e olhares marginais à corrente central da trama, é preciso para o entendimento do espectador atento.

Antes da separação, Ethan decide ainda conduzir Mattei à colina nevada onde sonharam esquiar. Sei que o termo é impreciso, mas falta-me um mais acurado. Usando o veículo que os transporta sobre a neve de Starkfield como uma variante de ski, deslizam colina abaixo na paisagem recoberta pela neve. É um momento de miraculosa beleza e felicidade antes do desenlace que aprisionará Mattei e Zeena no quarto inacessível dos Frome, antes do acidente que os arrremessa contra uma árvore arruinando sem reparação a vida desses três infelizes.
Assim, a cena final desvenda os presságios sombrios que no início do filme cercam a figura de Ethan isolada dentro da neve, desterrada da pequena comunidade que habita. O desenlace é composto com recursos narrativos econômicos e dilacerantes. Como diz Mrs. Hale ao Reverendo Smith abalado no fundo da sua compaixão impotente: “Não diga nada. Ainda não”.

domingo, 15 de agosto de 2010

Fascismo Paulista




Li na Terra Magazine uma entrevista concedida por Willian (sic) Godoy Navarro. Ele se pronuncia em nome de um nascente movimento de jovens supostamente contrário à migração. Digo supostamente porque o buraco é bem mais embaixo. O sentido real do que diz vai bem além de uma mera – e necessária, acrescento por conta própria – política de migração. O alvo é antes de tudo o migrante pobre nordestino. Em alguns momentos, interpelado pela repórter Ana Cláudia Barros, Willian tergiversa, reluta e até se contradiz. Mas o sentido substancial desse movimento é, sim, fascista. Sei que este termo, barateado e até corrompido pelo excesso de uso e abuso, não é de entendimento unívoco. Por isso deixo bem claro o que quero dizer quando o emprego. Esse movimento é fascista por ferir os princípios fundamentais da democracia, por afrontar os direitos fundamentos de todos os brasileiros que não integrem o grupo em questão.

Como todo movimento inspirado na tradição do irracionalismo de direita, ele contém uma enxurrada de disparates, contradições e erros que agridem os fatos mais elementares da realidade que pretende criticar e corrigir. Por exemplo: os termos fundamentais envolvidos no movimento e na polêmica, pois o caldo já entornou no chão minado da polêmica, como seria inevitável, não têm nenhuma consistência. O que quer dizer cultura paulista? Ou nordestina? São Paulo se constituiu como uma mescla errática de gente de todas as procedências e culturas. Também o Nordeste, que a estupidez e o preconceito sulista reduzem a estereótipos grosseiros. Willian Godoy afirma besteiras do tipo: foram os paulistas que fizeram a riqueza de São Paulo. E notem que é um dos moderados confessos do grupo. Imagino o que Fabiana, a extremista desse movimento, não diria. Diz ainda que São Paulo foi sempre um estado rico. Onde esse rapaz estuda, o que leu na vida?

São Paulo era um fim de mundo na época em que Pernambuco e a Bahia constituíam o centro da riqueza colonial brasileira, que depois se deslocou para Minas. Não lembro isso com o propósito de afirmar nenhuma superioridade regional, apenas para alertar a estupidez intolerante para o fato de que a produção de riqueza e desenvolvimento econômico independem de algum suposto caráter racial, regional, nacional ou coisa que o valha. São Paulo é evidentemente a força hegemônica do Brasil. Mas este fato não tem nada a ver com superioridades ou separações intolerantes como essas reivindicadas por esses jovens paulistas. As razões da hegemonia paulista podem ser explicadas em termos históricos e sociológicos que esses intolerantes deveriam ocupar-se em aprender, ao invés de se mobilizarem para organizar movimentos fascistas no Brasil.

Grande parte dos horrores do século 20, de resto um século de horrores, derivou de ideologias intolerantes, de movimentos que afrontaram e por pouco não destruíram as bases da civilização penosa e lentamente construídas sobre valores de tolerância e esclarecimento humanista. O racismo e outras formas de intolerância não são estranhos à nossa formação histórica. Como conceber a inexistência de racismo num país que desgraçadamente foi o último a abolir a escravidão, num país que ainda hoje retém em situações sociais rotineiras os vincos iníquos dessa herança maldita: o colonialismo e o escravismo? Mas como negar que felizmente nunca vivemos, em meio a nossos horrores irrefutáveis, os extremos do racismo e da intolerância política e religiosa observáveis na história de outros povos?

A julgar pelo açoite do feixe de varas brandido por esses belicosos e intolerantes paulistas, está a caminho um movimento empenhado em fechar fronteiras dentro do Brasil, em instituir um apartheid tropical. Como reconduzir cada brasileiro à sua região de origem? O presidente Lula, por exemplo, deve voltar para sua terrinha pernambucana? Chico César deve ser recambiado para Catolé do Rocha? Os japoneses e italianos devem ser expulsos de volta a seus países de origem? Se houvesse um pingo de coerência ideológica nesse movimento nefasto, aposto como nenhum dos 600 signatários do manifesto teria o direito de continuar vivendo em São Paulo, usufruindo a riqueza e a insanidade paradisíaca dos puros. A solução, portanto, é destruir São Paulo, pois nem o moderado Willian Godoy é portador dos traços de dignidade e pureza necessários à sobrevivência dessa cultura paulista ideal.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carpeaux e Merquior


Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, com uma visibilidade claudicante no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzido em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias. Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Democracia Internética




A Democracia Internética

Embora há muito desejasse expressar pública e livremente minha opinião, somente agora, graças à generosa acolhida de dois ou três editores de blogues, posso fazê-lo com alguma regularidade. O fato cuja manifestação individual represento é uma das muitas consequências da democratização gerada pela internet. Durante muito tempo o exercício da opinião pública, também do debate e do confronto ideológico, foi privilégio dos poucos que praticavam o jornalismo impresso. Essa restrição tinha a virtude de funcionar como conduto seletivo. Apesar dos desníveis e privilégios de praxe, a hegemonia ou o prestígio da opinião refletia, no geral, os méritos e virtudes dos autores. Ficando no exemplo do Brasil, foi assim que se consolidou uma tradição de excelência na crítica de rodapé testemunhada por gente como Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e muitos outros.

O advento da televisão, que logo se tornaria veículo de comunicação supremo, notadamente num pais ainda assolado pelo analfabetismo, não abalou de imediato esse quadro. Pelo contrário, no curso dos anos 1950 e 1960 emergiram figuras que muitas vezes ditavam os padrões de opinião cultural: Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, estes vieram antes, Paulo Francis, Glauber Rocha, Merquior, Sérgio Augusto, José Lino Grunewald, Ruy Castro, O Pasquim, e o ainda onipresente Otto Maria Carpeaux pairando acima de todos com sua erudição estonteante. Mas logo a massificação provocada pela televisão acelerou-se, fruto imediato do capitalismo imposto pela ditadura, e logo em seguida a privatização do exercício do jornalismo. Noutras palavras, salvo as exceções de praxe, o exercício do jornalismo tornou-se direito e privilégio dos diplomados em jornalismo. Um dos problemas decorrentes da restrição imposta por essa lei corporativa reside no fato de que muita gente de talento comprovado, quando não superior, é impedida de escrever, de opinar em termos correspondentes ao do jornalista de ofício simplesmente por não ter um diploma. Ensinei sociologia da comunicação durante muitos anos na Universidade Federal de Pernambuco a alunos incapazes de escrever um parágrafo correto e legível. Mas um dia punham o diploma debaixo do braço e através de muitas vias, não poucas tortas, acabavam ditando opinião na mídia.

Por fim sobreveio a internet, a mais extraordinária revolução já ocorrida na história da comunicação humana. Sua força de difusão e desestabilização dos controles tradicionais é tão extraordinária que está arruinando jornais e veículos impressos de grande poder, assim como símbolos de autoridade intelectual, política, religiosa, moral... No caso, falar em revolução não é banalizar um termo já tão banalizado e desacreditado na história humana. A internet gerou condições objetivas para a generalização de processos democráticos sem precedentes. Como tudo, há aí muito de bom e de ruim, se me perdoam o lugar comum. Ressaltarei apenas uns poucos pontos que me parecem importantes.

Sartre observou certa vez que estávamos vivendo numa época em que se sabia de tudo, ou em que já não era possível esconder mais nada. E notem que o disse antes da internet. O que dizer hoje? De fato, hoje sabemos de tudo, pelo menos teoricamente. Escrevo nestes termos por considerar que é impossível um indivíduo saber de tudo. Mais grave ainda, há muitos que preferem não saber sequer o pouco que poderiam, pois acomodam-se na estupidez que tudo ignora e assim tudo aceita e todas as noites dormem em paz o sono alienado do gado tangido pelos donos da vida, como há muito dizia Mário de Andrade.

Outra coisa: a universalização da democracia midiática produziu inevitavelmente a babel das opiniões e dos costumes. Hoje todo mundo tem umas e outros e todos se sentem investidos do direito de exercê-los. Nada contra, pois continuo acreditando que a democracia é o menor dos males e o mundo, salvo o engano renitente dos otimistas, que não passam de pessimistas mal informados, é um mal sem conserto. Tudo que podemos e devemos fazer é torná-lo menos ruim.

A universalização da democracia internética, e portanto da opinião, acaba convertendo o cenário cultural num vale-tudo, ou terra de ninguém. Se todos têm direito à opinião, logo parece justo que todos opinem e todas as opiniões valham a mesma moeda. É aí que o cano estoura e a água suja, também a limpa, vaza por todos os espaços, que vão do megashow à universidade, dos salões supostamente educados ao bate-boca de botequim. Um pouco dessa água vaza, por exemplo, nas páginas do Amálgama, blog do qual sou colaborador regular. Mesmo eu, que raramente me pronuncio sobre temas polêmicos em tom idem, já saí de roupa suja na página de comentários onde o leitor exerce seu direito de opinar.

O livre exercício da opinião, que em princípio anula o princípio da autoridade, induz muitos ingênuos a suporem que agora fazemos o que queremos e pensamos o que nos convém. Os donos da vida, à falta de expressão menos imprópria, são os primeiros a difundir essa ilusão lucrativa para o balanço das suas empresas e a elevação das ações que negociam no mercado financeiro. Não se enganem. O espectro da informação, do intercâmbio e da circulação de ideias e mudanças sem dúvida alargou-se de modo inusitado, já o observei. Daí a concluir que agora somos todos iguais e que tudo vale tudo no reino da desigualdade e do privilégio, daí a passada é bem mais longa que a perna. É ilusório, por exemplo, supor que as figuras de autoridade social e cultural foram abolidas. O que mudou foi seu modo de ação, que foi despersonalizado. É isso o que explica a perda de poder das figuras de autoridade tradicionais como os pais e professores, além das prescrições antes impostas por instituições como a religião, a tradição, os agentes diferenciados pela idade ou o saber reconhecido dentro de determinados grupos. Reafirmo: não se iludam, pois a autoridade e seus artifícios de controle e poder mudaram de mão e de forma, mas continuam sendo autoridade, controle e poder. O problema é que se tornaram quase sempre invisíveis. Nessa medida, torna-se bem mais difícil identificá-la, a autoridade, para assim melhor combatê-la. Fomos liberados da autoridade doméstica e escolar, mas caímos nas mãos invisíveis e muito mais nefastas do publicitário e do formador de opinião, do pastor de auditório e do especialista armado com uma máquina de calcular.

Na babel em que vivemos e passamos a atuar culturalmente, o nó cego está na opinião relativa às artes e às ciências humanas. Como no caso somos sujeito e objeto, todo mundo sente-se à vontade para opinar sobre tudo. Explicando melhor, o objeto de saber do psicólogo, do sociólogo etc, é parte íntima e corrente da nossa experiência social. É por isso que todo mundo supostamente tem opinião pronta sobre qualquer questão religiosa, moral, estética... Não raro, um simples exame demonstra que muitas dessas opiniões não passam de preconceito grosseiro ou crendice assimilada de modo inconsciente no meio em que nos formamos. Uma das funções do saber crítico compreendido em sentido amplo é precisamente partir da varredura dessa névoa de lugares comuns que embaçam nossa percepção da realidade. O exemplo mais antigo e notório dessa saudável pedagogia é a chamada maiêutica socrática. Noutros termos, era o procedimento dialético adotado por Sócrates nos lugares públicos de Atenas onde sem reservas abordava alguém com quem iniciava um processo de perguntas e respostas que ia gradualmente expondo, sob a pele da suposta opinião refletida, os preconceitos e ideias feitas que entulham nossa consciência da realidade. Mas isso foi há muito, muito tempo e já não se punem seres perigosos como Sócrates com uma dose letal de cicuta. Saltando de volta para o presente, o limite irônico da nossa liberdade está no fato de repetirmos o publicitário que nos ensina a dizer: seja você mesmo, beba coca-cola.

No reino da democracia internética, todo mundo tem opinião ou assim supõe e assim se sente prontamente qualificado para exercê-la. É a nossa babel cultural, como antes salientei. Se Deus, segundo a tradição bíblica, não criou uma linguagem universal passível de forjar a concordância substantiva entre os seres humanos, o que dizer de mim? Diante disso, prefiro humildemente rematar o artigo propondo algumas perguntas cuja resposta deixo a critério do leitor. Quem discordaria de mim se eu afirmasse que Pelé é o melhor jogador de futebol do mundo? Quem afirmaria que a seleção brasileira tem algum perna de pau, mesmo quando a seleção é desclassificada? E mais: quantas pedras cairão sobre a minha cabeça se eu afirmar que Wave, Águas de Março ou Corcovado valem todo o rock do mundo? O que dirão certos leitores se eu disser que esse ruído repetitivo e grosseiro que sou forçado a ouvir nas rádios, ruas, supermercados etc nada tem a ver com música? O que dirá o leitor apaixonado por Paulo Coelho se eu disser que perto de Machado de Assis ele é apenas um escrevinhador de livros baratos que logo desaparecerão como desapareceram tantos best-sellers celebrados pela mídia, o mercado e o público desprovido de cultura literária? Pedras e tijoladas para a redação, por favor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Sete Sonetos para Sônia S. - II




A Musa Virtual - V

Eu fiz de Sônia S. uma miragem
Tão plena de ideal, tão virtual
Que a linha entre a mulher e a personagem
Dissolve-se na bruma do portal.

As portas e janelas, os portais
Canais vertendo sonho e ilusão
Convertem a paisagem dos mortais
Num céu de esplendor e ideação.

Mas ai, o que fazer de ideais
Atados à soleira dos portais
Sem trânsito pra vida e a ação?

Adeus a essa mulher, flor de ideais
Gestada na poeira dos quintais
Varrida pela astúcia da razão.


Fatalidade - VI

Quem diz que o amor consome sua dor
Ardendo nas fogueiras da paixão
É antes do amante o impostor
Traído pela voz da sedução

Que mente até no cerne da verdade
Do sopro em que se esgota a duração
Atada à dor do fim, fatalidade
Humana, que é acaso e extinção.

Quem diz que o amor perdura em cada jura
Jurada à infiel que ora é doçura
E ora a cada hora é sempre um não

Não sabe que o amor é senda escura
Fadada a afundar na sepultura
Onde por fim repousa o coração.

Recife, 04 agosto 2004.


Como um Soneto de Adeus - VII

O que fazer do amor quando o amor
Sequer roçou no outro o ser real
Se a chama que o requeima é só o ardor
Tecido da ilusão, do virtual?

Que mais dizer do amor, dos rasgos seus
Ausentes do objeto em que se abisma
Se tudo chega ao fim antes que os céus
Concedam contemplar-lhe sua cisma?

Portanto, adeus amor, o amor morreu
Bem antes de estreitar no corpo seu
A sombra fugitiva em vagos véus.

E tudo assim acaba e pouco dói
O amor já não consome o que destrói
Com a dor o que feria a voz do adeus.

Recife, 07 agosto 2004.
Fernando da Mota Lima.

domingo, 1 de agosto de 2010

Sete Sonetos para Sônia S. - I




Sete Sonetos para Sônia S. - I

Sete Meses - I

Sete meses sem ela ele viveu
Sete meses sem ler um só e-mail
A chuva da cidade ele bebeu
Cansado de esperar e ela não veio.

Sete meses de orgulho e nula espera
Em vão afugentando a sombra dela
Mas ela a refluir em primavera
Voltava ainda mais alta, ainda mais bela.

Voltava e todavia aonde vê-la?
Em que cristal gelado, em que estrela
Tecer a aparição que em si se esquece?

Que vida em sete meses dispersou
Ao vento, à noite em fuga, onde vagou
O corpo em que se esconde Sônia S.?


Amor Sem Paga - II


Sete meses por ela ele velou
Os bens da devoção sem esperança
Curtindo a solidão ele oscilou
Do sonho à mais estrita temperança.

Sete meses a grão em grão medido
Um tempo além da conta e medição
À espera do que ausente e inesquecido
Renova a cada nada a negação.


Sete meses e tudo é só seu nada
À força de medir a mesma estrada
Que ele estoicamente em si refaz

Semelha rendição a um neutro amor
Que nega o que acolhe de um cultor
Fadado a amar sem paga e ainda mais.



A Imortal e o Ateu - III

Sete meses por ela ele comeu
O pão que o cão do inferno fermentou
Enxofre e coca-cola ele bebeu
Tingidos pelo sangue que jorrou

Das fontes da ilusão, do desamparo
Dos párias que a cidade castigou.
Amor assim sem metro, assim tão caro
Que outro insano amante assim amou?

Por ela ele rasgou e enfim queimou
e-mails que lavrou e esqueceu.
Insone ao pé do fogo em que ardeu

Sem água pra sustar o que acendeu
Ceifou tudo que à volta se mexeu
Mas ela é imortal e ele ateu.



Enigma do Silêncio - IV

Silêncio, ele indagava e repetia
Que som paira na voz que emudeceu
Que som traduz a voz desta poesia
Que antes de viver nela morreu?

Silêncio, que palavra abalaria
A espessa fortaleza do teu véu.
Que som vertido em sopro de magia
Iria do deserto ao vasto céu?

Que nome de mulher ou poesia
Raiando sobre o asfalto e a serrania
Faria a voz do ateu curvar-se à prece?

Que pulsa entre o sonho e o inefável
Que nome de beleza caroável
Se cala no olhar de Sônia S.?

Recife, 30 de julho de 2004