segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Nossa Incivilidade II




Nossa Incivilidade
Fernando da Mota Lima
Nota: Esta é uma versão mais desenvolvida do artigo homônimo antes publicado no blog Cazzo, da pós-graduação em sociologia da UFPE, e no meu próprio blog.

Sérgio Buarque de Holanda criou um conceito de larga circulação nas ciências sociais brasileiras. Como tudo que se rotiniza, o conceito logo foi incompreendido ou lido de modo divergente daquele proposto por seu autor. O conceito em questão é o da cordialidade. Meu propósito explícito é usá-lo, para os fins deste artigo, como correspondente de incivilidade. Ser incivil é, em suma, desprezar as normas básicas de convívio social; é não submeter nossas disposições livremente egoístas aos limites supostos na relação com o outro em todas as esferas sociais: na casa, na rua, no trânsito, na escola, no shopping... Assim, Sérgio Buarque afirma que somos cordiais. Nos meus termos: somos incivilizados.

O que isso tem a ver com a violência corrente na nossa sociedade? Acredito que tudo. Acredito que essa cultura da incivilidade está na raiz da violência social brasileira. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ou FHC, observou que nossas instituições socializadoras (a família, a escola, a religião) não funcionam, isto é, são incapazes de regular nosso comportamento. É nelas e a partir delas que toda sociedade civilizada se organiza. É nelas que aprendemos a respeitar os direitos do outro, os limites sociais impostos como condição de respeito mútuo e constrangimento coletivo. Desatados de tais limites, nossa tendência espontânea é fazer o que queremos indiferentes aos danos e abusos que impomos ao outro. É mais ou menos nesse sentido que Freud alude à civilização como repressão.

É sintomático o fato de tanto resistirmos a essa forma de repressão socialmente necessária. No Brasil, qualquer norma é sempre encarada como valor puramente negativo, como expressão de abuso contra a liberdade individual. Avessos à normatização das nossas relações sociais, tendemos a encarar a norma como imposição abusiva. Não nos passa pela cabeça o reconhecimento de que as leis do trânsito, por exemplo, visam primariamente garantir a segurança e a vida dos que circulam nas ruas. Daí a inoperância do novo código imposto, segundo as autoridades, com o fim de atualizar o anterior, já defasado. Ora, o problema com o outro código, assim como com o atual, não residia nisso, mas no fato de não ser devidamente aplicado. Veio o novo código, seguido de muita polêmica e conflito nas ruas, iludindo alguns otimistas com a perspectiva de civilizarmos nosso trânsito, mas logo tudo se acomodou e logo regredimos à bagunça rotineira. Aliás, se minha percepção não me trai, mudamos para pior. Aqui em Recife, por exemplo, bem poucos respeitam normas elementares de circulação nas ruas. A polícia não policia, o motorista e o pedestre não são e nem querem ser policiados e assim, a sociedade, afeita ao desregramento, segue indiferente a este e a todos os demais códigos.

Sempre que ocorre algum crime pavoroso, desses que fazem o lucro e a festa da mídia sedenta de sangue e sensacionalismo, voltamos à confusa discussão do nosso estado de alarmante violência social. A maioria acuada, temendo a insegurança geral em que vivemos, confunde violência social com violência policial. Encara apenas como violência, noutras palavras, a que a mídia e a delegacia documentam como tal. Vemo-nos como vítimas de um estado social violento inconscientes de que todos os dias, nas nossas ações mais banais e correntes fermentamos a desordem, as práticas de desrespeito que em muitos casos resultam em crime policialmente caracterizado. Não somos sequer capazes de respeitar os direitos do vizinho e todavia procedemos apenas como vítimas da violência social. Respeito? É aquilo que você dá para poder receber. Quantos brasileiros têm honestamente crédito a cobrar quando a moeda é respeito?

Seria oportuno, por exemplo, considerarmos a campanha eleitoral em curso. Isso que o discurso oficial da mídia chama de “festa da democracia” representa uma ilustração deplorável da nossa incivilidade. Antes de tudo, o grosso da campanha feita pela maioria dos partidos e candidatos não passa de vitrine publicitária. Partidos e candidatos se vendem como nas situações rotineiras se vendem detergentes, eletrodoméstico, frutas e legumes, grifes e todo o cortejo de bens negociados no mercado. Há problemas de extrema gravidade facilmente observáveis no cotidiano das nossas grandes cidades que não são sequer mencionados.

Um exemplo: pesquisa recente revela que a frota de veículos das capitais brasileiras cresceu no ano passado entre 10% e 16%. Ninguém precisa ter acesso aos dados da pesquisa para ver e sofrer nas ruas o impacto dessa mudança acelerada de consequências facilmente imagináveis no nosso cotidiano urbano. Ir para e voltar do trabalho era até recentemente descrever um percurso previsível em termos de tempo e circunstância. Agora é uma aventura, uma viagem incerta feita de imprevisto, tensão, atraso, luta por espaço numa cultura onde cada motorista se comporta como se fosse o dono da rua. Recife, onde vivo, está se tornando um inferno urbano e esse inferno se desenhou de forma mais nítida de um ano para cá. O fato sugere a velocidade da mudança e a necessidade da definição de políticas públicas urgentes. Do contrário, acabaremos consumindo boa parte da nossa vida engavetados em engarrafamentos insolúveis. Ninguém considera efetivamente a gravidade de problemas dessa natureza.

Poderia acrescentar a este vários outros problemas que clamam por políticas efetivas, por medidas de ordenamento de processos sociais complexos que não se resolvem com lero-lero. Nada disso é contemplado na campanha eleitoral em curso. Os políticos se vendem como sabão e eletrodoméstico, um grande contingente de desempregados crônicos lhes serve de massa de manobra nas ruas atulhadas por lixo eleitoral e a fração esclarecida do eleitorado, assim como as instituições que deveriam fiscalizar a qualidade política da campanha, cruzam os braços. Provando que somos um país de ideais muito pequenos, em contraste com nossa grandeza geográfica, acomodamo-nos passivamente à baixa política que escorre pelos canos e corredores dessa colossal operação publicitária. Políticos sujos sujam as nossas ruas sem civilidade. Se querem um retrato fiel da nossa incivilidade, observem a campanha eleitoral em curso. Respeito? É aquilo que você dá para poder receber. Quantos brasileiros têm honestamente crédito a cobrar quando a moeda é respeito?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Robinson Crusoé


Robinson Crusoé ou Etnocentrismo Invertido
Fernando da Mota Lima

Publicado em 1719, o romance de Daniel Defoe tornou-se obra fundadora de um dos mitos literários da modernidade. Uma das melhores evidências críticas deste fato é o excelente livro de Ian Watt, Myths of Modern Individualism (Mitos do Individualismo Moderno). Além de Robinson, Watt estuda Fausto, Don Juan e Don Quixote como expressões míticas da modernidade. Todos eles, ao longo da história, têm sido relidos e transpostos para outros códigos expressivos. Watt acompanha com olhar crítico agudo o conjunto das mutações que sofreram ao longo de séculos.

A releitura ou interpretação contemporânea de que cuidarei neste artigo é o filme escrito por Adrian Mitchell e dirigido por Jack Gold. O título original é Man Friday. A tradução brasileira repõe o título do herói Robinson que no filme, como adiante veremos, torna-se o vilão da história. Começo por assinalar que se trata de uma adaptação muito criticável sob muitos pontos de vista. A de Luís Buñuel, por exemplo, filmada no México em 1954, é bem superior. Por que então adotei-a como documento de referência sociológica para discuti-la com meus alunos? Precisamente porque, apesar das suas muitas falhas, encerra inegável riqueza de fundo sociológico para a exposição e esclarecimento de temas centrais do programa compreendido pela disciplina Fundamentos de Sociologia. Fica portanto claro que meu critério é antes pedagógico do que estético.

Importaria acentuar, já de partida, a questão relativa ao foco narrativo do filme, pois é muito reveladora da perspectiva ideológica adotada pelos realizadores. Estamos agora diante de uma recriação da história do romance que vira tudo pelo avesso, pois é narrada por Sexta-feira. Já nas cenas iniciais desenha-se o confronto entre duas formas de cultura radicalmente opostas: a europeia ou ocidental, cujos traços mais fortes são o cristianismo puritano e dominador, capitalista e colonialista, utilitário e repressor. A ela se opõe a tribal ou, mais amplamente compreendida, a colonizada e periférica. A primeira tem em Robinson um dos seus símbolos supremos; a segunda, Sexta-feira.

O filme expõe de forma nítida e redutora não apenas o conflito radical entre essas duas formas de cultura, mas também a raiz destrutiva e dominadora da cultura ocidental. Já na primeira cena fica evidente que a própria religião é um instrumento justificador da dominação do homem ocidental. A passagem da Bíblia lida por Robinson não dá margem a nenhuma dúvida. Quando os dois personagens se encontram, logo em seguida, a narrativa desdobra-se numa infinidade de situações que espelham os traços negativos de Robinson em contraste com os positivos de Sexta-feira. Ressalto abaixo os temas fundamentais da trama que confirmam essa oposição insolúvel e maniqueísta, isto é, uma oposição entre o mal (Robinson) e o bem (Sexta-feira).

Começando pela questão da linguagem, crucial para que se estabeleça a comunicação necessária entre os personagens antagônicos, as cenas relacionadas à instituição de uma língua comum entre eles destacam antes de tudo o caráter do poder contido na relação linguística estabelecida entre Robinson e Sexta-feira. Noutras palavras, a língua que se impõe é a do mais forte, Robinson, a do colonizador que empunha uma arma de fogo. Robinson impõe a Sexta-feira não apenas sua língua, mas também uma identidade nominal, pois lhe atribui um nome, sua religião monoteísta e puritana, sua ciência, seu nacionalismo inglês, capitalista e destruidor da cultura de Sexta-feira, seu regime econômico baseado na propriedade privada e na ganância orientada para a acumulação de bens e a exploração da natureza e do seu semelhante.

De início, Robinson escraviza Sexta-feira, ao mesmo tempo em que procura impor-lhe os aspectos fundamentais da sua cultura. O colonizado, de sua parte, vale-se de toda sua astúcia para resistir à opressão imposta pelo colonizador. Mas em várias circunstâncias ousa opor-lhe resistência explícita. Por exemplo: quando se recusa a continuar trabalhando para Robinson como um escravo. A solução encontrada por este é a instituição do trabalho assalariado, isto é, a substituição do trabalho forçado pelo pago na forma de um salário semanal. É claro que a economia monetária nada significa para Sexta-feira, assim como muitos outros traços da cultura de Robinson: o individualismo, o cristianismo monoteísta, a noção de um Deus cruel e punitivo, a propriedade privada, a acumulação de bens, a sexualidade puritana e repressiva, o esporte como competição. O que o seduz é o poder mágico da moeda que rebrilha na sua mão de primitivo crente nas forças anímicas (isto é, dotadas de alma ou espírito) que povoam a realidade natural e humana.

Fiel ao espírito das culturas tribais, o filme situa a narração de Sexta-feira diante da tribo reunida. A canção que abre e fecha o filme expressa claramente o abismo que separa o mundo cultural de Sexta-feira do de Robinson. No daquele, inexiste qualquer sentido de individualismo, fato que se traduz na letra da canção. Tudo é expresso na primeira pessoa do plural, nós, contrariamente ao individualismo de Robinson extremado no fato de ele viver na solidão de uma ilha deserta. Esta circunstância, aliás, muito concorre para que se compreenda o mito de Robinson e sua persistência no mundo contemporâneo.

Além de inverter o sentido fundamental da narrativa, Sexta-feira também inverte fatos consagrados da narrativa original antes respeitados mesmo em versões muito críticas do romance de Defoe. Melhor dizendo, inverte e recria livremente, ao ponto de no fim Robinson suicidar-se. Antes disso, Sexta-feira inverte o sentido da relação senhor versus escravo, ou colonizador versus colonizado. Assim, na parte final do filme é Sexta-feira quem empunha a arma de fogo, símbolo primacial das relações de poder observáveis entre os personagens, e impõe a Robinson o trabalho forçado. Depois disso, navegam na canoa construída por este e por fim chegam à tribo de Sexta-feira. É lá que a tribo decide sobre a aceitação ou rejeição de Robinson como membro do grupo depois de ouvir a narrativa do seu filho desaparecido que retorna e entretém sua comunidade contando-lhe suas estranhas e conflituosas aventuras vividas na companhia de Robinson. Em suma, Robinson é rejeitado e então retorna solitário e miserável à ilha deserta.

O filme se encerra com duas cenas justapostas que bem traduzem seu sentido substancial: de um lado, Robinson, expressão de uma cultura destrutiva, inverte sua destrutividade contra a própria vida e se suicida; de outro, Sexta-feira celebra a vida cantando feliz e reintegrado à sua cultura. Final feliz para o negro nativo, expressão de uma cultura vivida em harmonia com a natureza e com o próximo. Quanto a Robinson, o desenlace parece coerente, já que é produto e agente de uma cultura baseada na dominação destrutiva da natureza e da espécie humana em geral.

Esta versão invertida da narrativa original do romance pareceria extravagante, ou mesmo absurda, se não refletisse no presente muito da culpa cultural assumida pelo Ocidente em face da história. Na cultura acadêmica, sobretudo, há muito predominam teorias tendentes a depreciar ou punir o papel exercido pelas culturas colonizadoras no conjunto da história moderna. É o caso da teoria pós-colonialista, do pós-estruturalismo, do pós-modernismo, também do feminismo. O relativismo cultural em geral desacredita qualquer perspectiva racionalista e universalista. Nesse contexto teórico, a versão assinada por Adrian Mitchell e dirigida por Jack Gold é perfeitamente compreensível. O irônico é que o etnocentrismo pelas avessas espelhado no filme serve apenas para reiterar o caráter ocidentalista da obra. Afinal, foi no Ocidente que surgiram as ciências sociais, cujo desenvolvimento histórico é determinante para compreendermos e assimilarmos a crítica a todo tipo de etnocentrismo e dominação cultural.

Considerando o filme do ponto de vista da nossa cultura, importa salientar que nem somos Sexta-feira nem Robinson. O lugar que culturalmente ocupamos é uma complexa mistura, feita de acomodações e conflitos, da nossa origem associada a ambos. Acrescentaria que hoje somos mais Robinson do que Sexta-feira. Somente um observador preso a viseiras estreitamente nacionalistas seria incapaz de enxergar as evidências impositivas apreensíveis nas relações dominantes e cotidianas. Somos ocidentais periféricos, mas somos ocidentais. Mas o que dizer deles, os ocidentais situados geograficamente na Europa e nos EUA, seus herdeiros supremos na América? Também eles precisam cada vez mais redefinir seu lugar cultural num mundo cujo processo de globalização acelerada borrou todas as fronteiras e identidades estáveis ou enganosamente estabelecidas.

Por fim, importaria ressaltar que, ao investirem contra o mito de Robinson, os autores do filme apenas renovam um outro mito, o que há séculos induz as culturas civilizadas a idealizarem as culturas primitivas. O traço que esse mito no geral mais idealiza é precisamente o da pureza do primitivo, o da unidade tribal que tanta inveja inspira ao indivíduo ocidental pulverizado num mundo do qual desapareceram todos os vínculos comunitários que tanto alimentam sua infelicidade, seu desamparo e sua nostalgia.

Acho que nada aprendemos de nós próprios e do outro quando criticamos radicalmente o que somos tomando como referência positiva um outro completamente idealizado. Quase tudo de negativo exposto no filme contra Robinson, mito secular do individualismo ocidental, tem fundamento na realidade de uma cultura que precisaria ser profundamente modificada para atender a nossas aspirações humanas baseadas no amor, na solidariedade, numa ordem social mais generosa e igualitária. Não acredito porém que a idealização mítica das culturas tribais ou primitivas nos ajude a compreender ou mudar adequadamente a conturbada realidade cultural em que vivemos. A crítica necessária, para ser efetivamente transformadora, precisaria investir tanto contra o mito simbolizado na figura de Robinson quanto contra o outro simbolizado na de Sexta-feira.

Créditos:
Título original: Man Friday
Título em português: Robinson Crusoé
Ano de produção: 1975
Baseado no romance de Daniel Defoe e na peça teatral homônima de Adrian Mitchell
Roteiro: Adrian Mitchell
Direção: Jack Gold.
Elenco: Robinson – Peter O´Toole
Sexta-feira – Richard Roundtree
Carey – Peter Cellier.
Recife, 12 de abril de 2010.

sábado, 18 de setembro de 2010

A Vitória de Orwell


George Orwell é um desses raros escritores que se tornam parte de todo um clima de opinião. Aviso o leitor que esta expressão é traduzida de um poema de Auden: “In Memory of Sigmund Freud”. Talvez a maior evidência de tão elevado status consista no fato de que escritores dessa natureza influenciam a linguagem usada até pelos que nunca os leram, até por aqueles inconscientes de uma obra como 1984, e de personagens e conceitos como Big Brother, Polícia do Pensamento, Pensamento Duplo etc. Aviso novamente o leitor que traduzo aqui livremente conceitos fundamentais de 1984 sem cotejá-los com a tradução brasileira deste livro emblemático do pensamento antiutópico. Melhor diria se usasse a expressão pensamento antitotalitário, pois Orwell nunca renunciou ao seu ideal de socialismo libertário, que é ainda um modo de ser utópico. Em suma, você fala de Orwell mesmo sem saber quem é ele, mesmo ignorando sua obra que exerceu e exerce ainda um papel decisivo no clima de opinião dominante na história contemporânea assaltada de modo catastrófico por totalitarismos de esquerda e direita.

Orwell é talvez a mais alta expressão do intelectual independente que conheço. Não me esqueço de que alguns leitores puxaram minha orelha quando usei o conceito de intelectual independente para criticar a conivência de José Saramago com regimes totalitários ou ditatoriais de esquerda. Há quem considere a relação do intelectual com o partido, ou mais amplamente com a realidade política, e conclua em termos simplistas que não existe tal coisa, isto é, você é sempre contra ou a favor, está com o partido x ou com o partido y. Essa linha de argumentação é claramente maniqueísta e assim estamos conversados. Você está com o bem ou com o mal e assim qualquer nuance, qualquer possibilidade de inserção entre os dois extremos excludentes é automaticamente suprimida.

A grandeza ética e política de Orwell – ou sua vitória, assim traduzo o sentido do livro que Christopher Hitchens lhe dedica – reside na sua capacidade extraordinária de denunciar o totalitarismo gestado pelos ideais utópicos da esquerda, o nome mais simples desse Big Brother é Stálin, sem renunciar a suas convicções socialistas e libertárias. É claro que este fato foi refutado por seus críticos à esquerda e à direita. Os primeiros o perseguiram e caluniaram por supostamente trair a esquerda, ou fazer o jogo do inimigo; os segundos tentaram apropriar-se de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) e 1984 como se fossem simplesmente obras anticomunistas. O fato ilustra admiravelmente o quanto é difícil ser independente, mas não anula a possibilidade da independência ideológica do intelectual. Orwell converte a possibilidade em fato.

Um dos grandes méritos do livro de Christopher Hitchens, herdeiro do jornalismo libertário patente na obra de Orwell, consiste precisamente em demonstrar como Orwell foi incompreendido ou mesmo caluniado por grandes intelectuais de esquerda. O exemplo mais documentado no livro é o de Raymond Williams, que ocupa no Olimpo da esquerda inglesa papel semelhante ao de Antonio Candido na esquerda brasileira. Lembro-me ainda, introduzindo aqui um grão de memória pessoal, de um ano remoto, talvez 1990, quando compareci a um seminário marxista na Universidade de Londres. Assistindo aos debates acalorados em torno da figura de Orwell, notei o quanto ele ainda dividia os marxistas e outras correntes do pensamento de esquerda.

Acredito que hoje, diluídos os embates ideológicos que incendiaram as lutas políticas durante tantas décadas sangrentas, a obra de Orwell já não provoque reações maiores, divisões do tipo a que assisti no Brasil e na Inglaterra. Mas lembro ao leitor jovem que no Brasil sua obra foi implacavelmente rejeitada e caluniada. Friso que me refiro mais precisamente às duas obras acima citadas, pois é nelas que Orwell concentra sua força satírica contra o totalitarismo, é nelas que investe contra a opressão exercida em nome de ideais libertários. Assim como a direita procurou apropriar-se dessas obras como se fossem simplesmente anticomunistas, confundindo assim de forma desonesta sua crítica ao stalinismo com uma crítica à esquerda em geral, a esquerda identificada com o stalinismo tudo fez para rejeitar e suprimir sua crítica ao totalitarismo. Aliás, conviria lembrar que o totalitarismo não se esgota nas suas mais extremas e terríveis materializações na história do século 20: o nazismo, à direita, e o stalinismo, à esquerda. Resumindo, o intelectual que ousa ser independente leva pancada de todos os lados.

Como acabo de observar, a crítica de Orwell ao totalitarismo não se esgota nos alvos que prioritariamente visou: o nazismo e o stalinismo. Sem querer banalizar o conceito, alerto para o fato de que a tentação totalitária está sempre presente no imaginário dos extremistas e dogmáticos, nos fundamentalistas de qualquer natureza, assim como nas forças de reificação inerentes ao capitalismo. Somente um tolo ou inconsciente suporia que essas forças desapareceram do mundo em que vivemos simplesmente porque o triunfo do capitalismo de consumo e da cultura narcisista pulverizaram qualquer possibilidade de pensamento totalitário. Aliás, bastaria imaginar o que Orwell diria sobre a forma como seu símbolo supremo da sociedade totalitária, o Big Brother, foi apropriado pela cultura de massas do presente. Quanto ao conceito de Newspeak, ou Novilíngua, tão engenhosamente ilustrado em 1984, bastaria pensar em expressões hoje correntes como “fogo amigo”, “terceira idade”, “boa idade”, “Brasil, um país de todos” e “sorria, você está sendo filmado”. Estes poucos exemplos da Novilíngua que irrefletidamente reproduzimos constituem algumas evidências exemplares do uso corruptor da língua, da mentira e da alienação disseminadas através da indústria publicitária e marqueteira administrada como o ópio da cultura de massas. Portanto, a vitória de Orwell é apenas parcial, já que a possibilidade ou mesmo o risco da tentação totalitária nunca desaparecem do horizonte da história humana. Acredito que esta era a convicção de Orwell, até porque ele foi um pessimista impenitente. Ele é a prova viva, talvez pouco comum, do pessimista ativo ou militante, do pessimista superado pela vontade de ação sobre o mundo incompatível com qualquer ideal utópico.

Christopher Hitchens descreve e analisa no seu livro múltiplos aspectos da obra de Orwell além do que centralmente me ocupou neste texto que é antes um breve artigo inspirado pela leitura de sua obra do que propriamente uma resenha. Sendo assim, contempla não apenas traços relevantes da biografia de Orwell, mas também sua relação com o imperialismo inglês, temperado por sua discutida anglicidade, com os Estados Unidos, com as feministas, os pós-modernistas etc. Convém todavia ressaltar que o livro de Hitchens é antes de tudo uma consistente apreciação da obra de Orwell centrada na sua dimensão intelectual e ideológica. Para o leitor que lê fluentemente inglês, recomendaria as biografias escritas por Bernard Crick e Michael Shelden. O melhor de Orwell, na minha opinião, está nos seus ensaios postumamente reunidos e publicados pela Penguin Book. Também sua obra de jornalista e suas cartas foram reunidas e publicadas pela mesma editora.

No Brasil, a Companhia das Letras publicou uma seleção que abriga praticamente seus melhores ensaios. Salvo engano, cito de memória, a seleção e o prefácio do volume foram obra de Daniel Piza. Acrescentaria, como indicação para o leitor curioso, que em 1986 Ken Loach dirigiu o filme Terra e Liberdade, baseado em Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha, traduzido no Brasil sob o título Lutando na Espanha). Esta é uma das obras fundamentais de Orwell, diretamente inspirada na sua participação na Guerra Civil Espanhola. Ele se alistou como combatente do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), corrente de tendência trotskista que acabou esmagada pelos franquistas, de um lado, e pelos stalinistas, de outro. Foi aí que Orwell sentiu na própria pele o que de fato significava stalinismo. Indicaria ainda o último capítulo de A History of Britain, de Simon Schama, também lançado em DVD no mercado brasileiro. O título do capítulo é “Os dois Winstons”, alusão a Winston Churchill e a Winston Smith, protagonista de 1984.

Concluindo, se você quer ter sucesso na vida, sobretudo na vida política, não incorra na insensatez de seguir o exemplo de George Orwell. Ele rompeu com o imperialismo inglês, dentro do qual foi educado para agir no mundo como um instrumento dócil da dominação imposta a povos colonizados; mergulhou no mundo da miséria e da marginalidade social para escrever de forma honesta e documentada sobre párias e trabalhadores esfolados pela espoliação capitalista; foi perseguido e caluniado por ousar denunciar o totalitarismo de esquerda numa época em que a maioria dos intelectuais de esquerda se aliavam ao stalinismo ou eram usados como inocentes úteis e por fim morreu relativamente pobre e jovem. Tudo que nos transmite como legado ético através de sua obra é a convicção e a coragem com que lutou em defesa das coisas em que acreditava e uma noção de integridade rara entre intelectuais. Como notamos, o legado de Orwell não é nada atrativo para os tempos em que vivemos.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A Musa do Parque



Tua beleza que passa
passante como quem passa
como quem passa e nem vê
a minha sombra na tua
ausência que te cultua
onde te vê e te quer.

Tua movente beleza
iluminando a tristeza
que a luz do parque ensombrece.
Por onde moves o dia
a luz do parque anuncia
tua lua luz que me aquece.

Tua beleza abstrata
passa e nem olha, distrata
o teu secreto cantor.
Ai, musa, que graça é ver-te
que dor no parque perder-te
como quem perde uma flor

ou só desejo, miragem.
Que mapa, estrada, viagem
tua passagem irradia?
Se a noite enfim se apagasse
e o céu do parque raiasse
ensolarando meu dia...

Fernando da Mota Lima.
Recife, outubro 2000.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Liege e a Mulher que Passa




Ela passa andando contra a luz fosca do crepúsculo. Pisa a areia com uma delicadeza de garça e a cada passo deixa impresso na areia o rastro do seu pé. Não é uma mulher, mas um milagre da natureza que bruscamente irrompe no universo recortado por meus sentidos até então amortecidos. Andava àquela hora na praia, como de hábito, já resignado à paisagem sem variação. E eis que ela chega e passa assim inesperada e indiferente à revolução cósmica que se move no compasso do seu corpo moreno e alto cujas linhas insinuam abismos, vendavais e precipícios. De repente caiu sobre mim a consciência do meu desamparo diante da beleza infranqueável ao meu desejo. De repente me vi perdido em meio àquela imensidão que me abraçava num abraço que era antes sufoco ou abafamento do que essa misteriosa fusão que por vezes num lampejo sobrevém e logo se desfaz, a fusão do corpo individual com a paisagem humanizada pela beleza da mulher subvertendo a ordem cósmica.

Na areia da praia, entre a imensidão do mar e o ruído da cidade sem alma, eis-me confuso e indestinado. A mulher sem nome e origem passa e segue atravessando a faixa de areia em direção ao calçadão da praia. Sem que me decidisse, puramente arrastado pela força dos meus sentidos, segui-a sem vontade ou governo que dela me desviassem. A mulher passa e num minuto alcança o calçadão onde segue deslizando como uma força obscura da natureza. E assim segui-a ao longo de uns cinco quilômetros. Apertava o passo para não me distanciar dela, que marchava inconsciente de sua vitalidade, inconsciente de que eu a seguia. Era insensato seguir assim uma mulher que sabia inacessível ou simplesmente inabordável, pois a timidez me paralisa diante da beleza estranha.

Por fim consolou-me pensar no prazer decorrente da pura contemplatividade lírica, o prazer que se contenta em ser prazer tão só fruição visual e imaginativa de um objeto infranqueável. Seguindo-a já resignado a catar a poesia que inconscientemente ela entornava à luz do crepúsculo, parafraseando o belo verso de Chico Buarque, num instante saltei da imaginação para a memória. E assim a mulher que passa já não é uma beleza sem nome, mas Liege ou a mulher que Bernstein, personagem de Cidadão Kane, vislumbra no bonde em movimento para retê-la na memória por toda a vida. Ah, as veredas indecifráveis da memória, o sutil arbítrio com que zomba da nossa vontade e manobra nossa consciência tão vulnerável. Deslizei assim da realidade tangível e perturbadora, a visão da mulher que passa, para os labirintos da memória que me devolvem Liege como uma miragem transportada por um sopro misterioso.

Entro no avião, aeroporto de Recife, que me levará a Bruxelas, onde farei conexão para enfim chegar a Londres. Sento-me a seu lado, que vinha de Fortaleza ou Manaus, já não me lembro. Raramente converso com estranhos quando viajo. Os motivos imediatos são minha timidez e sobretudo meu receio de enfronhar-me numa conversa com algum estranho desinteressante. Com ela, no entanto, tudo foi diferente. Mal ouvi seu nome, logo o associei à cidade belga onde Georges Simenon nasceu. A feliz coincidência valeu-me como uma luva na mão então íntima desse voraz criador de romances e insaciável amante. Sem que me lembre como, o fato é que logo entabulamos conversa, antes mesmo de o avião levantar voo. Logo ficamos à vontade, como se nos conhecêssemos de outros encontros e conversas. E assim falamos um ao outro, em tom baixo, como dois interlocutores que se confidenciam. Num dado momento revelou-me seu medo de viajar de avião e logo me perguntou se eu acaso teria um tranquilizante que pudesse tomar. Nesse tempo também eu tinha medo de viajar de avião. Por isso cuidava sempre de ingerir um comprimido, além de trazer outros de reserva na carteira. Ofereci-lhe um.

Disse-me que em Bruxelas tomaria um voo para a Alemanha. Ia ao encontro do namorado. Em seguida, falou-me em tom amoroso de sua cachorra. E assim derivamos por assuntos mais íntimos. Como a noite já descera enquanto o avião boiava nos espaços infinitos, mergulhamos numa atmosfera de penumbra, com as luzes do corredor apagadas, o que propiciou ainda mais as nuances íntimas de uma conversa que mais e mais nos envolvia. Foi decerto o efeito relaxante do tranquilizante a razão de sua evidente sonolência. Baixou ainda mais o tom, acomodou melhor o corpo na cadeira e por fim adormeceu suavemente a meio de uma frase interrompida. Quedei-me enlevado na contemplação de sua beleza tão delicada e inconsciente. Como é comovente a beleza da mulher adormecida, assim como a da criança que tantas vezes surpreendi na paz da sua inconsciência do mundo.

Seu corpo relaxado afrouxou ainda mais e então moveu a cabeça deitando-a sobre meu ombro. Sentindo o prazer daquele sutil contato, seu estado de abandono escorado em mim, precisei de muito autocontrole para não ceder à tentação de acariciar seus cabelos, deslizar minha mão pela beleza da sua carne, beijar sua pele tão desejável. E assim seguimos dentro dos espaços infinitos atravessados pelo voo potente do avião que nos levaria a Bruxelas. Quando acordou, logo retomamos nossa conversa recaindo naquele tom de confidência, de falas que se sussurram e se entregam confiantes. Tanto nos desligamos do tempo e da atmosfera ambiente que esquecemos de logo trocar endereços e telefones.

Quando dei por mim, o avião já pousara no aeroporto de Bruxelas. E então sobreveio o absolutamente inusitado: mergulhamos no black out, o apagão tão comum nas nossas cidades, coisa que nunca antes vivi na Europa. O desarranjo do aeroporto – meu em particular, ansioso por chegar a tempo de alcançar o avião que me transportaria para Londres – deixou-me tão transtornado que nos despedimos às pressas. Foi quando afinal me sentei aliviado no avião prestes a levantar voo para Londres que me dei conta de que não trocamos endereços nem telefones. Assim um infeliz imprevisto rompeu nosso fio de Ariadne, o fio que me guiaria através do labirinto em que para sempre dissolveram-se os rastros de Liege. Evocando novamente a cena de Cidadão Kane acima referida, fui misteriosamente marcado pela mulher que passa, pelo inexplicável sortilégio da sua beleza que nunca possuirei, que nunca mais verei e todavia viajará para sempre no horizonte iluminado da memória que se nutre não apenas do que carnalmente gozou, mas sobretudo do que desejou. Talvez seja verdadeiro afirmar que o desejo mais imperecível é precisamente o irrealizado.

Recife, 1 de setembro de 2010.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Rouanet e Machado de Assis



Releio Riso e Melancolia, de Sérgio Paulo Rouanet, com o propósito de esboçar algumas notas ainda relativas a Machado de Assis. Antes de tudo, leio sempre com prazer e esclarecimento tudo que Rouanet escreve. Há muito, desde provavelmente minha leitura de As Razões do Iluminismo, passei a distingui-lo como um dos mais notáveis ensaístas de língua portuguesa. Ele assimila e prolonga de um modo feliz e bem incomum no nosso cenário intelectual o melhor da tradição iluminista e mais amplamente racionalista. Numa época desgraçadamente caracterizada pelo ataque sistemático a essa tradição, tem ele demonstrado uma atitude de admirável coerência e coragem na defesa intransigente de valores racionais e universalistas. Se dele discordo, é exatamente por pretender aplicar à realidade brasileira um projeto iluminista que me parece simplesmente inviável.

Às vezes, lendo muito do que reuniu em finos e eruditos ensaios, tenho a impressão de que escreve para um país e um público irreais. Penso ser isso sintoma de desenraizamento mental. Antes diriam, notadamente os nacionalistas culturais mais empenhados, que sua obra ilustraria um caso típico de alienação intelectual; sintoma, noutras palavras, de colonialismo mental. Poderia ainda apropriadamente lembrar uma expressão cunhada por Mário de Andrade com franca intenção pejorativa: doença de Nabuco. Joaquim Nabuco foi um intelectual tão enraizadamente europeu quanto Rouanet. Aliás, além da formação nitidamente européia, ambos foram diplomatas e consequentemente viveram muitos anos ausentes do Brasil. É claro que todo intelectual brasileiro que se preze, mesmo alguns incuravelmente provincianos na sua expressão de nacionalismo militante, é formado dentro de matrizes européias. Em tempos mais recentes nossa matriz formadora deslocou-se para os Estados Unidos. Mas tal deslocamento, no sentido em que o compreendo, não passa de um prolongamento da mais alta tradição intelectual européia.

Parece-me um tanto intrigante o desapreço com que nossos círculos acadêmicos tratam a obra de Rouanet. Cheguei momentaneamente a supor que a razão disso consistisse na independência da sua identidade de intelectual de esquerda. Embora se declare um iluminista bem próximo da esquerda de corte marxista, esteve sempre muito próximo do liberalismo postulado por Merquior, com justiça um dos seus modelos intelectuais. Como Merquior foi um intelectual muito hostilizado pela esquerda acadêmica, sobretudo a partir do momento em que publicamente assumiu posições nitidamente liberais, além de comprometer-se com o governo de Fernando Collor, presumi que a rejeição poderia chamuscar igualmente Rouanet.

Mais tarde concluí, em termos puramente hipotéticos, que talvez seu desprestígio junto aos intelectuais acadêmicos derivasse da circunstância de haver traçado um percurso largamente dissociado dos círculos universitários. Embora ensine ou tenha ensinado na Universidade de Brasília, ignoro dentro de que vínculos institucionais, sua obra é fundamentalmente a obra de um ensaísta ambíguo em termos institucionais. Digo ambíguo por considerar sua condição de membro da Academia Brasileira de Letras, o jornalismo cultural que regularmente pratica, além de suas incursões na esfera universitária. Não obstante todas essas evidências, seu estilo ensaístico e a independência de suas interpelações críticas não me parecem facilmente acomodáveis em qualquer desses nichos institucionais.

Uma evidência louvável de sua independência crítica encontra-se assaz documentada nos seus livros mais fortes e polemicamente empenhados. Refiro-me a As Razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade. Argumentando em defesa de um universalismo de raiz iluminista, investe com singular brilho polêmico contra todas as tendências irracionalistas do nosso tempo, especialmente aquelas distinguidas por alta recepção nos círculos de esquerda, acadêmicos e extra-acadêmicos. Os ensaios reunidos nestas duas obras são de fato admiráveis. Embora cético quanto à propriedade do aparato conceitual que emprega para analisar nossas pequenas e grandes misérias, como é o caso dos ensaios que abrem Mal-estar na Modernidade (Iluminismo ou barbárie e A coruja e o sambódromo), reconheço serem de grande penetração e esclarecimento para qualquer leitor interessado no debate relativo a polaridades como racionalismo versus irracionalismo, civilização versus barbárie, universalismo versus nacionalismo.

O fato de uma obra intelectualmente tão empenhada e consistente na força de sua argumentação não provocar qualquer repercussão crítica significativa constitui evidência inegável do esvaziamento do debate cultural e ideológico no Brasil. O que sobrevive como arremedo mesquinho de um efetivo clima de debate intelectual é o que o leitor ávido de pasquinadas encontra em colunistas do tipo de Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, João Pereira Coutinho e, alguns degraus acima, Paulo Arantes, Jurandir Freire Costa e Olavo Carvalho. Este, assim como Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, é em certos termos um direitista intratável, mas não lhe posso negar méritos intelectuais que com certeza nego a Mainardi e Azevedo. Não obstante as diferenças nítidas observáveis nesse insólito grupo, prezo em todos a combatividade opinativa que em algum grau imprime um arremedo de debate intelectual à estropiada cena cultural brasileira.

Mas é tempo de entrar na matéria que desejo anotar baseado na minha releitura de Riso e Melancolia. Antes de tudo, é um belo ensaio que se desdobra num campo movediço: o da literatura comparada atinente às relações de influência. Rouanet explora uma pista, ou já evidência, fornecida por Machado de Assis, linha terminal num trajeto que parte de Laurence Sterne passando por Diderot, Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Ciente da falácia contida em elos superficiais observáveis no paralelo entre dois ou mais autores, em coincidências temáticas e leituras cujo grau de aderência à fonte citada carece de apreciação metódica, o crítico justifica seu argumento apenas quando alcança apreender uma forma passível de unificar os autores compreendidos na sua investigação.

É o caso da forma shandiana. Trata-se precisamente de uma forma literária cuja matriz é o romance Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Não foi este, todavia, quem a definiu, mas um dos seus seguidores confessos: Machado de Assis. A evidência está inscrita no prólogo acrescido à terceira edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas e no intróito da narrativa sob o título Ao Leitor. É aí que Machado de Assis expressamente reconhece a filiação do seu romance ao modelo procedente de Sterne e prolongado em Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Ao mesmo tempo, alega com razão acrescentar à forma que adota um ingrediente de pessimismo fundido em ironia e humor, em troça e melancolia condensadas neste passo à exaustão repetido e glosado pelos críticos: “Escrevi-a com a tinta da galhofa e a pena da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.

O passo seguinte dado por Rouanet consiste na especificação das “características estruturais da forma shandiana: hipertropia da subjetividade, digressividade e fragmentação, subjetivação do tempo e do espaço e interpenetração do riso e da melancolia” (p. 33). A partir dessas discriminações preliminares o autor dedica capítulos individuais a cada uma das características acima referidas. A obra culmina na composição do capítulo A taça e o vinho, onde Rouanet examina a contribuição original de Machado acrescentada à forma shandiana procedendo entretanto a uma correção. Embora Machado distinga sua obra da dos seus predecessores opondo ao tom risonho destes suas “rabugens de pessimismo”, Rouanet argumenta que o binômio riso e melancolia encontra-se dialeticamente entrançado em todos os autores shandianos.

Já que esta anotação não pretende constituir um resumo do ensaio de Rouanet, importaria concluir ressaltando que, ao adotar a forma shandiana, Machado torna-se exemplo singular da narrativa ficcional no momento em que a literatura européia e latino-americana baseavam-se numa noção de estreita aderência à realidade social. Em plena vigência das estéticas objetivas, realismo e naturalismo, Machado emprega deliberadamente uma forma que a todo momento constrange o leitor à quebra do vínculo ilusório que o prende ao texto como se este fosse investido de existência ontologicamente autônoma. Era esse um dos fundamentos do realismo e do naturalismo: o do tratamento objetivo da realidade incorporada à esfera ficcional. Inspirado na forma shandiana, Machado força o leitor constantemente a perceber que o texto literário é um artefato ilusório, uma convenção normativa que desvenda o real sendo ela própria irreal.

O narrador caprichoso, volúvel e opinativo minuciosamente escrutinado por Roberto Schwarz, Rouanet e críticos menores, funciona também no corpo da narrativa machadiana como esse freio de mão que repetidamente arranca o leitor do seu assento ilusoriamente acomodado à atmosfera de uma realidade de segundo grau, supostamente uma representação especular da realidade propriamente dita, para lançá-lo numa outra ordem de representação: a da ficção fruída como instância conscientemente ficcional. É como se Machado a todo instante nos advertisse para o fato de que o que lemos, a esfera imaginativa em que imergimos, é apenas ficção, apenas recriação intencionalmente artificial da realidade.

Vale a pena, neste passo, voltar a um excelente ensaio que Carlos Fuentes dedica a Machado de Assis. Fuentes ressalta que Machado reaviva no Brasil a tradição narrativa cuja matriz, bem anterior a Laurence Sterne, é Cervantes. Até porque Sterne alude expressamente a este como modelo do seu Tristram Shandy. Seria Machado o caso único na América Latina de um escritor que adere à forma criada por Cervantes, já que os demais se integram às vertentes realista e naturalista. Como bem assinala John Gledson no título original de um dos seus primeiros livros dedicados à obra de Machado, The Deceptive Realism of Machado de Assis, a forma de romance realista que este pratica é bem distinta do modelo canônico estabelecido por Stendhal e Flaubert. Daí o qualificativo “deceptive” inscrito no título do livro assinado pelo crítico inglês.

Segundo Carlos Fuentes, o espírito de reação ao colonizador espanhol, sob os influxos dos movimentos de independência, induziu os ficcionistas hispano-americanos ao erro de romper com a tradição pretendendo adotar um modelo de modernidade diretamente haurido nas fontes anglo-saxônicas e francesas. Por razões distintas, a própria narrativa européia abafa a tradição cervantina para seguir o veio hegemônico que se instaura com o romance de Balzac e dos realistas acima mencionados, também por Tolstói e Émile Zola. Quem traça um excelente painel crítico-histórico dessas duas vertentes, a cervantina e a realista-naturalista triunfante na Europa e em todas as literaturas dela dependentes, é Milan Kundera em The Art of the Novel, obra apropriadamente citada por Carlos Fuentes no seu ensaio. É compreensível que Kundera se debruce sobre essa questão estética concernente à tradição narrativa procedente de Cervantes. Afinal, seu objetivo é retomar a tradição cervantina no cenário da ficção européia do século 20, assim como Machado procedeu no Brasil do tempo de José de Alencar e Aluísio de Azevedo.

22 a 25 de novembro 2008

domingo, 5 de setembro de 2010

Machado, Mário, Nacionalismo Cultural





Machado de Assis é provavelmente o autor que mais reli nos últimos anos. Uma das provas de força e permanência de sua obra consiste no fato de que não é apropriada para leitores juvenis, não importando muito, no caso, a excepcionalidade do jovem que o leia. É certo que na juventude podemos aproveitar muito de sua leitura, mas me parece evidente que somente o leitor maduro, calibrado pelo metro da cultura intelectual e da experiência, pode usufruir plenamente a grandeza de sua obra, captar nos entretons e alusões sutis a visão complexa que nos propõe para a compreensão das relações humanas.

Considero, por exemplo, o ceticismo com que foi capaz de abalar alguns dos mitos mais poderosos do seu tempo. Em “A Cartomante”, Machado submete ao crivo do seu ceticismo vários temas bem transparentes na urdidura do conto: a crendice ingênua de Rita, vítima corrente da charlatanice que sempre imperou no mundo, não importando todo o arsenal ideológico mobilizado pelas elites para celebrar a ciência, a tecnologia, o saber secular cioso de superar as representações mentais baseadas na superstição e na tradição religiosa; a indeterminação dos sentidos que regem e ao mesmo tempo confundem as ações humanas; por fim, o próprio ceticismo epidérmico de Camilo, que tem muito do homem moderno sempre exposto a regressões primitivas. Para além de sua aparência cética, ostensivamente avessa à crendice da amante, pulsa o desejo primitivo acossado pelos sinais ameaçadores irradiados pela realidade. Oprimido pelo medo de ser desmascarado pelo amigo a quem trai, não resiste à tentação de consultar a cartomante no momento em que o acaso o coloca diante da porta em que esta pratica sua pseudociência. Machado sabe ardilosamente enlaçar todos esses fios da trama que se move em direção a um desenlace no qual se conjugam os caprichos do acaso, o ceticismo um tanto zombeteiro em face de nossas ambivalências desastrosas e o imprevisto.

Machado exercita seu ceticismo desmistificador e desmitificador no auge do cientificismo do século 19. Era sólida a crença na ciência e no progresso durante o período em que escreveu sua obra fundamental. Mesmo ideologias investidas da determinação de destruir mitos, como é o caso emblemático do marxismo, recaíam na sedução utópica baseada no progresso da ciência posta a serviço da humanidade; na sedução da perfectibilidade humana, numa soteriologia orientada para a reconciliação do gênero humano. Essa utopia reconciliadora se expressa na crença em um futuro forjado pela revolução proletária, quando então viveríamos num paraíso liberto das opressões impostas pela sociedade dividida em classes.

O marxismo, esse fascinante credo secular, tornou-se ainda mais influente no século 20. Eu e todos os jovens dos anos 1960 e 1970 que o digam. A própria disseminação do marxismo, credo corrente nos círculos da juventude e na cultura de esquerda, então hegemônica, constituiu um obstáculo decisivo para nossa assimilação da obra de Machado. Além disso, a aliança entre marxismo e nacionalismo em países do tipo do Brasil conferia espessura praticamente impenetrável ao reconhecimento de uma obra cujo ceticismo mina e dissolve todas essas crenças generosas mas infelizmente insustentáveis. Não é casual a resistência ou ambigüidade de leitores como Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, para ficar nos três nacionalistas culturais que de imediato me vêm à memória, diante da obra de Machado. Nesse sentido, “Machado de Assis”, ensaio publicado por Mário de Andrade no ano do centenário de nascimento do Bruxo pai de Brás Cubas, revela muito do que há de indigesto no ceticismo machadiano para o espírito otimista e progressista dos ideólogos do nacionalismo, sejam eles ufanistas ou críticos, simplórios ou dialéticos.

O ensaio de Mário é um primor de ambigüidade, de estimativa dividida diante de um escritor cuja grandeza se impõe ao leitor agudo que é Mário ao mesmo tempo em que segrega qualidades incompatíveis com esse militante da modernidade progressista. Reações similares, embora menos explícitas, procedem ou coerentemente procederiam de escritores como Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Lembro-me, a esse propósito, de que há muito li o discurso escrito por Jorge Amado quando de sua recepção como membro da Academia Brasileira de Letras, ato de rendição ao conformismo institucional ao qual se curvam tantos revolucionários letrados. Amado distingue na sua elocução duas correntes centrais na história da narrativa ficcional brasileira. Enquanto José de Alencar constitui a matriz da primeira, nacionalista e portanto colorida pela paisagem e por largos traços descritivos, Machado é a matriz insuperável da segunda. Não tenho memória do termo com o qual a identifica, mas o bom entendedor pode seguramente deduzir que se pauta pelo metro da introspecção analítica. O bom entendedor pode igualmente prescindir de grande imaginação crítica para concluir que Amado se filia à matriz alencariana, assim como Mário de Andrade antes celebrou Alencar como ilustre predecessor do seu Macunaíma e Gilberto Freyre dedicou páginas entusiastas à literatura do grande representante do romantismo brasileiro.

Fui durante muitos anos um leitor apaixonado da obra de Mário de Andrade. Por isso assimilei em graus até inconscientes seu nacionalismo amorosamente debruçado sobre toda a rica variedade de nossas expressões culturais. Mário influenciou-me tão profundamente que ainda hoje surpreendo em mim sentimentos de culpa decorrentes de minha omissão enquanto intelectual diante da esfera pública. As angústias e irresoluções ideológicas e morais que o atormentaram durante seus últimos anos de vida não tiveram o poder de desencorajar seu espírito participativo, sua crença nas ações pragmáticas que se impunha enquanto ser moral. Talvez o que mais me dividisse enquanto leitor de sua obra fosse precisamente o conflito que vivia entre esse apelo à ação pragmática e meu ceticismo que presumo derivar antes das condições formadoras de minha experiência do que da mera leitura dissociada das fontes determinantes de minha vida.

Descobri mais tarde, com o concurso imprescindível da experiência e do amadurecimento intelectual, que meu escritor brasileiro de eleição era Machado, não Mário. Ao me propor essa escolha, não considerei simplesmente os fatores de ordem ideológica acima descritos, mas sobretudo o poder da força imaginativa com que Machado foi capaz de traduzir esteticamente as questões acima. Encurtando a história, a experiência e a idade transportaram-me a esse ponto em que nitidamente escolho Machado contra Mário, Machado contra toda a nossa tradição do nacionalismo cultural. Longe de mim renegar esta tradição que sem dúvida fecundou algumas de nossas mais altas vocações intelectuais e literárias; direi mais, direi artísticas e culturais no sentido mais amplo destes termos.

Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro foram não apenas fautores, mas também inspiradores admiráveis do que de melhor se realizou neste país dentro do espírito dos movimentos regidos pelo propósito de afirmar valores diferenciadamente nacionais opostos à dominação estrangeira. Acho pessoalmente o nacionalismo uma ideologia indesejável e a ela me oponho com convicção cada vez mais inabalável, mas não posso fechar meus olhos aos resultados inegavelmente fecundos que produziu. Preciso ainda considerar que num país com as características do Brasil é bem mais problemática a opção intelectual pelo refúgio da inteligência para dentro de uma obra socialmente desinteressada. Os intelectuais acima tinham perfeita consciência desse dado quando optaram pela ação ideologicamente pragmática, pela obra conscientemente empenhada nos valores transitórios da prática artística e humana.

Foi novamente Mário quem melhor expressou tanto o problema quando o dilema aqui enunciados. Assim compreendido, seria de todo injusto associá-lo a uma concepção de nacionalismo antagônica a valores de universalidade humanista. Em mais de uma circunstância manifestou-se contra qualquer tipo de orientação nacionalista dissociada da corrente universal da cultura. Basta que se pense nas vezes em que se opôs a uma leitura estreitamente nacionalista de Macunaíma. Como intelectual de formação antes de tudo européia, inspirado pelo ideal universalista do homem renascentista, Mário tinha consciência dos riscos da intolerância provinciana, do empobrecimento da visão de mundo restrita a uma perspectiva nacionalista estreita. Uma evidência dessa postura mental está bem manifesta na consciência que tinha de trair a si próprio enquanto indivíduo criador esteticamente desinteressado, imantado no ato de criação artística a valores prioritariamente estéticos, quando propunha e realizava uma arte dirigida por interesses pragmáticos, ou ainda por uma noção interessada de nacionalismo cultural.

Machado teve a sabedoria de passar ao largo de todas essas ambivalências e angústias que atormentaram Mário enquanto artista e, mais amplamente, enquanto intelectual empenhado num ambicioso projeto de renovação cultural inspirado no nacionalismo. Ao renovar a linguagem artística subordinando-a a princípios dessa natureza, Mário acabou produzindo uma obra demasiado comprometida com o espírito do tempo, com questões momentâneas que passam, assim como passa a obra que renuncie aos valores desinteressados da obra de arte. É essa uma das razões decisivas para que se compreenda a intocável atualidade da obra de Machado contraposta à de muitos outros, contemporâneos ou pósteros, demasiado aderentes às condições transitórias que toda grande obra tem que por definição transcender. Confrontado com Machado dentro desses termos, Mário se encolhe e com ele boa parte de sua obra.

Recife, 20 de novembro de 2008.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Machado e alguns críticos




Leio no avião, voando de Recife a Salvador, o livrinho sobre Machado de Assis que Alfredo Bosi escreveu para a coleção Folha Explica. Com elegância e estilo, traços que distinguem os grandes intelectuais uspianos, ele introduz duas fortes objeções: uma contra o método crítico de Antonio Candido sintetizado na sabida fórmula: conversão do fator externo (ou sociológico) em interno (ou estético); a outra, contra o famoso esquema do descompasso entre base escravista e ideologia liberal proposto por Roberto Schwarz para analisar o conjunto dos romances de Machado.

Retomo a anotação precedente iniciada em pleno voo. Bosi estica a primeira objeção ao extremo de caracterizar o método crítico de Antonio Candido como determinista. Não bastasse tanto, associa os fundamentos do sociologismo crítico deste a Louis de Bonald, o notório pensador reacionário francês. Bosi não se detém uma linha sequer na demonstração do vínculo ideológico entre os dois autores, deixando assim no ar a suspeita de um tom de maledicência crítica. Diz isso e vai adiante como que insinuando que o estilo e a elegância uspiana consistem na leviandade da crítica que morde soprando, ou atinge o alvo evitando nomeá-lo.

É curioso observar como os parâmetros da crítica literária de fundamentação sociológica propostos por Antonio Candido tem suscitado mal-entendidos. Enquanto uns erradamente, no meu entender, confundem sua concepção da crítica ao identificarem-na com uma forma espúria de formalismo sociológico, outros, é o caso de Bosi, criticam-no por subordinar os valores estéticos da obra aos sociológicos. Que me lembre, todavia, nenhum dos que se colocam na última categoria chega ao extremo de qualificar a obra crítica de Candido como determinista.

Pessoalmente sustento minha convicção de que Antonio Candido é a mais alta realização da crítica literária e cultural formada nos quadros da nossa ainda rala tradição acadêmica. Além dos seus dotes extraordinários de crítico, já evidentes no perfil precocemente sólido espelhado na crítica de rodapé que escreveu ainda quando estudante, seus ensaios de fundamentação metodológica, reunidos no volume Literatura e Sociedade, encerram a mais lúcida, penetrante e flexível reflexão teórica de que dispomos sobre o assunto. Nos ensaios aos quais aludo, notadamente os dois primeiros – Crítica e sociologia e A literatura na vida social – não encontro formulações que justifiquem as duas deduções acima assinaladas, isto é, o formalismo sociológico e, menos ainda, a crítica de base sociológica de cunho determinista.

Passando a Roberto Schwarz, o mais distinto discípulo de Antonio Candido, aqui Alfredo Bosi tem o zelo de proceder de modo mais criterioso. Depois de ressaltar o argumento do descompasso entre base econômica escravista e adoção do ideário liberal europeu no Brasil imperial, suporte teórico da obra de Schwarz sobre Machado de Assis, observa a ausência de tratamento dialético da antítese proposta. No entender de Bosi, Schwarz é incapaz de captar as expressões diferenciadas do liberalismo brasileiro, o que põe em xeque o argumento da desfaçatez e volubilidade das elites, dado estrutural da análise desenvolvida por Schwarz. Ademais, refutando o esquema deste, baseado no pressuposto da homologia entre forma estética e estrutura social como uma peculiaridade da formação sócio-econômica brasileira, ressalta que a conjunção liberal-escravista é identificável em “todas as formações da monocultura exportadora pós-coloniais, como o Brasil do açúcar e do café, as Antilhas do açúcar, particularmente Cuba e Jamaica, e todo o Velho Sul algodoeiro dos Estados Unidos” (p. 21). Acrescenta que em todos os casos mencionados a economia e a ideologia de base liberal conciliaram-se com o tráfico e o trabalho escravista. Restaria então indagar sobre a pertinência e eficácia teórica do esquema formulado por Roberto Schwarz, por muitos distinguido como a melhor contribuição ao estudo da obra de Machado de Assis.
O assunto me lembra, a propósito, um ensaio de Sérgio Paulo Rouanet incorporado ao volume O Mal-estar na Modernidade. Trata-se de “Contribuição, salvo engano, para uma dialética da volubilidade”, apreciação geral de Um Mestre na Periferia do Capitalismo, segundo livro de Schwarz dedicado ao romance de Machado. Que eu saiba, o extraordinário ensaio de Rouanet não teve maior repercussão entre os especialistas, incluído o próprio Schwarz. Aparentemente, sobretudo nas páginas de abertura e fecho, é uma peça de alto louvor crítico ao livro do grande machadiano da USP. Todavia, à medida que avança na leitura, o leitor perspicaz se vai dando conta de que o desdobramento da argumentação obedece a um princípio irônico similar a tantas das armadilhas irônicas que o sutil Machado interpõe na linha entre a aparência e o fundo, entre o ato e a intenção, ou ainda entre o fato apreendido em sua mera exterioridade e sua significação profunda. Pois o fato é que Rouanet – na abertura e na conclusão, como já frisei – não poupa elogios à obra e a à fina inteligência crítica de Schwarz. Contudo, à proporção que subordina o método elogiado ao crivo da recepção crítica, vai o leitor gradualmente se apercebendo de que, no conjunto, o ensaio é uma admirável operação de desmonte de toda a obra a princípio louvada. Em suma, Rouanet aprofunda com argumentação mais sólida e ampla as objeções condensadas no livrinho de Bosi que é objeto destas anotações. Sublinho, porém, uma diferença crucial: o ensaio dele é em tudo superior ao de Bosi, diria que superior a toda a crítica que conheço contra ou a favor da obra de Roberto Schwarz relativa a Machado de Assis.

Salvador, 13 de agosto de 2004.