quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Chico Buarque do Brasil


Chico Buarque do Brasil, volume publicado em 2004 e organizado por Rinaldo de Fernandes, é um dentre muitos títulos que celebram em tom consensual a trajetória artística e biográfica de Chico Buarque. Se ligeiramente consideramos a importância extraordinária de Chico Buarque na cultura brasileira desde meados dos anos 1960, torna-se dispensável reconhecer o significado de obras dessa natureza. Começo no entanto por ressaltar esse aspecto dominante da obra precisamente por acreditar que a atividade crítica deve ser sempre crítica, mesmo quando sua função é apreciar artistas em torno dos quais se articula a rede consensual apreensível na fortuna crítica de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso e outras raras e definitivas expressões da música e da cultura brasileira.

Embora contenha pouca documentação original, o volume tem o mérito de reunir dados biográficos e críticos relevantes e talvez ainda desconhecidos dos que pouco leem sobre música brasileira. É muito interessante, por exemplo, a documentação reunida na Cronologia. Penso em particular na matéria de uma entrevista que Chico concedeu a Augusto Massi. Nela ele revela fontes preciosas para que melhor se aprecie sua iniciação literária. De início, lê exclusivamente autores franceses sob sugestão do próprio pai, Sérgio Buarque. Pelo que se sabe, a partir de declarações do próprio Chico, Sérgio era um estudioso incansável e metódico. Certamente a mais forte evidência disso está contida na obra de historiografia que produziu, talvez a melhor que temos, também na sua fina erudição crítica espelhada na produção jornalística reunida em livro por Antonio Arnoni Prado. Embora tivesse família numerosa, sua biblioteca era pouco acessível à intrusão dos filhos, provavelmente controlados pela sombra eficazmente protetora de Maria Amélia, sua mulher.

O próprio Chico confessa que sua iniciação literária foi uma tentativa de encontrar uma via de aproximação com o pai demasiado imerso no seu mundo de livros e símbolos. É de certo modo curioso, ou mesmo incompreensível, o fato de Chico aportar afinal na literatura brasileira não através do pai, fonte capital de conhecimento histórico e cultural sobre o Brasil, mas através de um amigo que o reprovou por viver discutindo literatura... em francês. Diante do que sei de Sérgio Buarque através de sua própria obra, causa-me estranheza saber que ele afastou o filho da literatura brasileira, quando o mais razoável seria aproximá-lo. Afinal, ele foi um dos grandes participantes do mais importante movimento literário que já tivemos na história da nossa literatura. O modernismo, dando nome ao boi, teve abrangência infinitamente maior que a literária, ainda que compreendida aqui em sentido elástico. Sérgio confirma de resto, quando consideramos sua trajetória intelectual, este fato que vai aqui brevemente mencionado e melhor expus num artigo já postado no meu blog: Modernismo e Ciências Sociais.

A opção de artistas literariamente privilegiados como Chico Buarque e Caetano Veloso pela música constitui evidência do status intelectual que nossa música popular conquista a partir da bossa nova e sobretudo da contribuição estética e intelectual fundamentais que Vinícius de Moraes e Tom Jobim transportaram para o seu curso tão admiravelmente renovado e elevado a partir de meados dos anos 1950. O primeiro, como se sabe, procedia da tradição poética canônica, portanto restrita a um público altamente letrado, enquanto o segundo era portador de uma sofisticada formação musical erudita, embora vivesse catando moeda como pianista nos inferninhos da noite carioca para sobreviver. Além disso, o pai de Tom, assim como o de Vinícius, era poeta, ainda que retardatariamente parnasiano. Este fato sugere o quanto é lenta a difusão dos grandes movimentos de renovação literária, mesmo no círculo das camadas letradas do qual ambos faziam parte.

Não fosse a mutação profunda sofrida pela música popular a partir desse período, jovens de formação privilegiada como Chico e Caetano teriam provavelmente derivado para outros campos de expressão cultural. O próprio Caetano sublinha bem essa circunstância. Como Chico, embora de extrato social inferior e preso na adolescência ao ambiente provinciano de Santo Amaro da Purificação, ele já lia autores literários de importância, já manifestava interesse pela filosofia e também já esboçara alguns passos de iniciação na crítica de cinema. Como ele próprio reconhece, foi a descoberta da bossa nova, antes de tudo da revolução estética introduzida por João Gilberto no cenário musical brasileiro, o que o atraiu para a música. A tudo isso se soma um fator de ordem sociológica importante, a expansão dos meios de comunicação de massa no momento em que a geração de Chico e Caetano ingressa no território musical.

Chico e Caetano tornaram-se amigos no início de suas carreiras. Mas logo a amizade foi estremecida pela própria turbulência estética e política que tão profundamente caracterizou a década de 1960, talvez a mais rica do século 20 brasileiro. É provável que somente a de 1920, desdobrada na década seguinte, lhe possa fazer páreo. A amizade foi abalada quando o tropicalismo irrompeu na cena musical em meio a uma extraordinária atmosfera de turbulência e radicalismo ideológico. A corrente dominante nos movimentos de esquerda era o nacionalismo cultural. Sua radicalização foi tão notável que mesmo representantes da bossa nova como Vinícius de Moraes e Carlos Lyra acabaram atraídos pela música engajada, pela regressão a temas que punham a música e a arte em geral na linha de frente do combate político à realidade social sustentada pelo regime militar. À parte Tom Jobim e João Gilberto, praticamente todos aderem a um movimento de regressão às fontes tradicionais da música e da cultura brasileira afastando-se assim da sofisticação camerística e liricamente apolítica da bossa nova. A pesquisa das fontes folclóricas e nordestinas, de braço dado com o sentido de engajamento político, prevalece na atmosfera agitada dos festivais de música que irrompem somando a celebração coletiva ao embate ideológico nas salas de espetáculo.

O tropicalismo provocou um autêntico curto circuito nas esquerdas, notadamente, por razões óbvias, na esfera musical. Como movimento que alimentou ambições muito amplas, é difícil traçar num artigo ligeiro suas linhas fundamentais. Ressalto aqui, tendo em vista minhas intenções específicas, sua associação com a vanguarda erudita identificável no movimento da arte concreta, liderado pelos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e por Décio Pignatari. Augusto, o mais afinado com a música, tanto a de vanguarda erudita quanto a popular, escreveu naquele momento uma série de artigos polêmicos, de alta tensão crítica, em defesa do tropicalismo. Esses artigos, acrescidos de outros assinados por Júlio Medaglia e Gilberto Mendes, seus companheiros de armas dentro da vanguarda erudita, visavam a defesa radical das mudanças introduzidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Os artigos, que compreendem ainda uma ótima apreciação geral da bossa nova escrita por Brasil Rocha Brito e entrevistas com Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram mais tarde reunidos no volume Balanço da Bossa. Este volume foi mais tarde ampliado e reeditado com o acréscimo de um subtítulo “e outras bossas”. Mesmo o leitor que dele em muitos pontos discorda, é o meu caso, curva-se à força dos fatos para reconhecer que é a melhor avaliação crítica da música à época produzida. Falando da minha experiência de leitor e amante da música brasileira, friso que muito aprendi com esse livro, decisivo para modificar e aprimorar um pouco minha percepção da música popular e das íntimas conexões que a atavam à realidade política e social daquele momento extraordinariamente turbulento e criativo.

Como é típico das vanguardas, o elogio da ruptura estética era indissociável do ataque às correntes opostas. Foi nesse contexto que Augusto de Campos identificou na música de Chico Buarque uma expressão conservadora que precisaria ser criticada sem complacência. Sendo assim, propõe uma relação de antagonismo personalizada em Caetano e Chico. Ampliando o elo das relações antagônicas para melhor definir as linhas de força da cultura brasileira a partir do modernismo, opõe Oswald de Andrade a Mário de Andrade. Estes constituíram as matrizes de um embate renovado na década de 1960 no tropicalismo liderado por Caetano em oposição ao nacionalismo conservador apreensível na música de Chico povoada por bandas, Carolinas e ecos nostálgicos do passado brasileiro.

Oswald de Andrade, que ficara confinado ao quase esquecimento durante duas décadas, é reposto na linha de frente dos movimentos artísticos que agitam a cena cultural nos anos 1960. Além do papel decisivo desempenhado pelos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, outros focos de radicalização estética desencavam sua obra para acirrar o clima de irreverência, rebeldia e ruptura anárquica dos códigos dominantes. É o caso do Teatro Oficina, liderado por José Celso Correa, de Glauber Rocha na esfera do cinema novo, sobretudo do tropicalismo capitaneado por Caetano Veloso, que num certo sentido articula todas essas correntes contestadoras não apenas da cultura oficial guarnecida pela ditadura militar, mas também do nacionalismo de esquerda.

Os representantes da arte concreta, adestrados na polêmica e no combate agressivo a tudo que lhes parecesse conservador, reiteravam assim o sentido mais definidor da vanguarda. Na sua obsessão pelo novo sempre contraposto ao velho, da ruptura no avesso da rotina ou da repetição, viam novidade até onde ela não existia. Apostando no caráter potencialmente renovador dos meios de massa, que poderiam ser agenciados em defesa da ruptura estética e política, associaram-se não apenas ao tropicalismo, mas também à jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos, também de Vanderléa. Eles, os concretistas, que tanto combateram em prol da radicalidade da arte contemporânea, acabaram fabricando aliados inexistentes quando festivamente se integraram à corrente da arte de consumo promovida pelos novos meios de massa. E o fizeram batendo de frente contra o nacionalismo cultural de esquerda e de direita, aí incluída a figura consensual de Chico Buarque e sua música que, sem dúvida, soava conservadora se apreciada pelo metro formal e temático da tropicália.

Outro artifício de que Augusto de Campos se valeu foi o de adotar a tipologia procedente de Ezra Pound, que opõe os inventores, ou a radicalidade vanguardista, aos mestres e por fim aos diluidores. É fácil concluir que identifica Caetano e Gilberto Gil com a invenção, deprecia Chico como um mestre e silencia sobre os diluidores, salvo se os identifica com o grupo impreciso que repisa e dilui os clichês do nacionalismo cultural. Augusto de Campos tem certa margem de razão, mas muito do que combate, assim como muito do que prega, transborda da sua receita polarizadora e intransigente. Em suma, o senso de mediação crítica sai bastante chamuscado pelo ardor vanguardista que singulariza sua ação no âmbito da crítica da música popular.

Dando provas de grande vitalidade criativa, Chico se renovou de forma extraordinária sem abrir mão de sua coerência e fidelidade substancial à melhor e mais viva tradição cultural do Brasil. Quando isso se tornou evidente, o próprio Augusto de Campos voltou à cena do crime em tom mais contemporizador observando que Chico “é ainda um mestre mas se contaminou de invenção” Como seria previsível, atribui o ingrediente de invenção à influência saudavelmente contaminadora de Caetano Veloso. O artifício crítico constitui apenas uma variação da leitura que ele e seu irmão Haroldo fazem de Macunaíma quando subordinam a obra inventiva de Mário de Andrade ao espírito da antropofagia ideado por Oswald de Andrade.

Assentada a poeira da polêmica, logo ficou claro que a aposta dos vanguardistas no caráter de radicalidade da música integrada ao circuito do consumo de massa não passava de canoa furada. É certo que a jovem guarda continha elementos de inegável renovação cultural, à revelia da consciência ingênua dos seus líderes. O exemplo dos Beatles, repetidas vezes invocado por Augusto de Campos, é ainda mais forte. Eles sem dúvida renovaram a música de massa, o pop internacional de modo extraordinário. Mas tudo não passou de um episódio isolado no cerne de um sistema de produção e consumo de massa cuja dominante é a repetição, a diluição que tanta hostilidade inspira àqueles identificados com a vanguarda.

Quanto a Chico e Caetano, felizmente se reencontraram em termos pessoais acima dessas polarizações artificiais propostas por Augusto de Campos. A evidência maior da inconsistência desses antagonismos infundados, tão frequentemente promovidos pelos que personificam a rebeldia estética e a radicalidade das vanguardas, está inscrita antes de tudo na própria qualidade da obra musical que produziram dos anos 1960 ao presente. Um dos grandes méritos do tropicalismo consistiu precisamente no combate que moveu contra a intolerância estética e política traduzida em preconceitos contra a jovem guarda, o baião simbolizado em Luiz Gonzaga e até a nossa tradição brega, o mau gosto em geral, para usar aqui uma expressão bem vaga. Como todavia não vivemos isentos de preconceitos e apreciações duvidosas, o próprio tropicalismo entronizou na cena cultural um outro modo de preconceito, o que visa o nacionalismo cultural sem as discriminações devidas, o que opõe arbitrariamente a tradição à ruptura. Felizmente há muito foi superada a necessidade de os grupos de criação e recepção musical oporem esquematicamente Chico Buarque a Caetano Veloso.

domingo, 24 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes II




O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.

Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música.Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.

Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.

Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.

O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.

Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.

Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.

Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.

Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.

Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?

Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.

Recife, 16 de outubro de 2010.

Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.

Vinícius

Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.

Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.

Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes




Vinícius é um documentário que encanta, diverte e sobretudo comove o espectador. Esses efeitos decorrem antes de tudo do personagem que se move no centro da trama. Se a tradição romântica, datemo-la a partir de Rousseau e Herder, elevou o artista à condição de polo da realização estética, tão ou até mais importante do que a própria obra de arte, Vinícius cedo se destacou como um poeta cuja força narcisista converteu a obra que produziu numa derivação ou projeção da sua personalidade. Mário de Andrade, valendo-se de outras palavras, acentua esta verdade ao criticar em 1939 a poesia de Vinícius num artigo mais tarde enfeixado no volume O Empalhador de Passarinho. E logo comprova seu argumento citando estes versos exemplares:
“Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas”.

Os versos acima são extraídos do “Poema para todas as mulheres”. Não bastasse o tom afoito, ou até arrogante, ele demonstra, como romântico impenitente que sempre foi, o quanto a obra é antes de tudo uma expressão da sua individualidade soberana. E o fato é que isso é ainda bem pouco, se consideramos, no desdobramento da sua vida e obra, o quanto espraiou esse tom afoito em tudo que viveu e poeticamente realizou, uma coisa sendo na verdade indissociável da outra. O documentário que doravante acompanho constitui prova cabal do que acabo de afirmar.

O documentário começa nos bastidores do teatro que serve de palco para a encenação da vida e da obra de Vinícius. Os atores que o interpretam, Camila Morgado e Ricardo Blat, mesclam ao longo da obra a leitura de fragmentos de poemas de Vinícius, infelizmente vários carecem de identificação, e matéria de cunho biográfico e histórico alternada com a interpretação de canções compostas pelo próprio Vinícius e seus parceiros mais frequentes: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho.

Não bastasse a excelência dessa amostra da história recente da música brasileira, comparecem ainda, como depoentes e comentadores, nomes definitivos da nossa cultura como Antonio Candido, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Maria Bethânia e vários outros. Dentre os poemas cujos fragmentos são declamados sem a devida identificação, menciono três que de resto figuram entre os melhores que escreveu: “Poema de Natal”, “O haver” e o também longo e comovente “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”. Aproveito a deixa para aqui enfiar uma nota de espanto e protesto diante do fato de que o segundo poema citado, “O haver”, não consta da minha edição da Poesia Completa & Prosa de Vinícius de Moraes, editora Aguilar. Friso que minha edição é de 1986, lançada portanto 6 anos depois da morte do poeta.

Da infância à idade tardia, apesar das muitas ausências impostas pela vida de diplomata e outras circunstâncias, Vinícius acompanhou as transformações do século que profundamente alteraram a paisagem urbana do Rio de Janeiro, além de ser personagem de muitas delas. Nascido ainda quando as luzes da belle époque já se apagavam no horizonte de modo catastrófico, cedo impregnou-se da cultura francesa que tão nitidamente desenhou o perfil de várias gerações da elite carioca. Mas esse processo de impregnação foi sempre impuro, notadamente no seu caso. Quero noutros termos ressaltar o caráter da mestiçagem que no conjunto da nossa história cultural sempre entreteceu a tradição cultural de corte europeu, antes de tudo francês, com os ingredientes africanos e indígenas que tão singularmente nos diferenciam da Europa e do conjunto da tradição ocidental.

O pai de Vinícius, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, a quem dedicou o poema acima mencionado, foi poeta anônimo de extração erudita, enquanto a família da mãe era muito achegada à boêmia e à música popular de tão viva presença no universo social do Rio de Janeiro. Já aí se nota como o ambiente que enquadrou a sua infância livremente conciliou na origem dos seus próprios ancestrais traços culturais divergentes. A isso importaria acrescentar seus estudos, desde pequeno, no Santo Inácio, colégio jesuíta intimamente associado à formação da elite carioca.

Sua poesia da primeira fase, de nítido viés metafísico, transpira a atmosfera mística assimilada no contexto católico que vincou a maior parte da sua juventude. A isso se soma a poderosa influência que sofreu de Octávio de Faria, notável romancista católico politicamente reacionário, o que quase soava como truísmo no clima ideológico e cultural do Brasil da década de 1930. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, aproximou-se do integralismo, a ideologia de corte direitista hegemônica à época. Evidentemente sua íntima ligação com Octávio de Faria tinha muito a ver com esses traços ideológicos dos quais mais tarde se dissociará.

Ferreira Gullar observa com irreprimível humor que Vinícius traçou na vida uma trajetória singular. Poeta de marcada aprendizagem erudita e francesa na juventude - mais tarde acrescida da literatura inglesa, antes de tudo romântica, assimilada durante seus estudos em Oxford - à medida que amadurece vai progressivamente se despojando de toda essa herança pesada e asfixiante. O peso maior, em termos de tradição opressiva e conservadorismo político, procede de sua já referida formação católica. Entretanto, mesmo quando católico confesso e praticante já vivia uma vida dupla, aliás comum à religiosidade tingida de tradição patriarcal, que tendia a isolar e comprimir a mulher no recesso da casa enquanto tecia com rédea frouxa, para não dizer desatada, uma ética masculina no geral pontuada pelo desmando e a duplicidade hipócrita. Como era de conveniência corrente para os homens, Vinícius pagou farto tributo a essa divisão injusta atribuível aos gêneros bem característica das culturas de raiz patriarcal.

Depois dos livros ancorados na metafísica de intensa impregnação católica, reponta na poesia de Vinícius a influência de Manuel Bandeira. Também da sua primeira mulher, Tati, de ideias políticas e estéticas avançadas. Ele próprio reconhecia o quanto foi transformado pela intimidade amorosa com Tati. Sua amizade com o socialista americano Waldo Frank, lavada na água suja da miséria nordestina que vieram conhecer de perto, também decisivamente concorreu para mudar sua visão da realidade. Isso se traduzirá na sua poesia que, sobretudo a partir de A Saudade do Cotidiano e O Encontro do Cotidiano, ata as matrizes eruditas à matéria impura e até sórdida da vida tal como já expressa nos títulos que acabo de indicar. É a partir daí que dominam na sua poesia a matéria carnal do cotidiano, os bordéis sórdidos da Lapa, a paixão erótica elevada a expressões de lirismo saturadas pela realidade sem máscaras e isentas de transfigurações religiosamente idealizadas. Assim grosseiramente descrevo o processo através do qual Vinícius se desprende das amarras conservadoras do catolicismo e dos vínculos tradicionais que lhe abafaram a infância e a juventude.

Antonio Candido, sempre agudo e preciso, projeta mais alguma luz sobre as linhas incertas desse quadro quando ressalta que Vinícius soube, mais que qualquer outro poeta modernista, harmonizar sua fidelidade às formas poéticas da tradição com o mergulho no cotidiano, a imersão na corrente da vida isenta dos artificialismos que tanto recobrem a tradição erudita. Vinícius consolidou, em suma, a ponte entre a tradição erudita e a matéria do cotidiano postulada e também largamente praticada desde os primeiros ecos do modernismo por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e nossos poetas mais sólidos e renovadores. Mas ninguém avançou tanto nessa linha quanto Vinícius, notadamente a partir do momento em que definitivamente se desgarra da poesia canônica e impressa e todo se entrega à poesia posta a serviço da música popular num momento de extraordinária inflexão qualitativa no veio fecundo e democratizante da cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960.
Drummond confessou com tocante franqueza e generosidade a inveja que a vida de Vinícius lhe inspirava. Segundo ele, Vinícius foi o único poeta que viveu integralmente como poeta, aquele que teve a coragem de converter a paixão antes em matéria de vida do que de poesia. Sem dúvida, um personagem desse porte constitui um prato cheio, ou já feito, para um bom documentário ou uma boa biografia, como é a que José Castello escreveu.

A vida passionalmente vivida se traduz antes de tudo na sua fome infrene de amor, na sua determinação de viver desgovernado pelo princípio da paixão. Daí resultaram nove casamentos, reviravoltas mirabolantes e loucuras que raros ousariam cometer em nome da paixão carnal e do amor incendiado por uma intensidade romântica que requeima de inveja os românticos frustrados e inspira estranheza ou reserva ao racionalista regulado por seu senso de conveniência e medida. Vinícius casou tanto quanto Oswald de Andrade, outra figura lendária que, como tal, também sobrepôs a vida vivida à obra realizada, que, também como é de praxe, resultou muito imperfeita.

No que se refere a esse ponto, há quem tenda a depreciar essa verdade na obra de Vinícius. É um fato marcante no documentário. Todos que se pronunciam sobre a obra, antes de tudo sobre o autor, silenciam ou são incapazes de reconhecer o quanto há de imperfeição e fragilidade no romantismo exaltado que sustenta e move a poesia de Vinícius. O erro de apreciação é parcialmente compreensível, se se considera que o documentário objetiva antes de tudo realçar em tom de encantamento e paixão a grandeza singularmente humana do personagem. Mas cabe ao crítico consistente e isento também assinalar o quanto a obra de Vinícius está complacentemente saturada de lugares comuns típicos do romantismo desregrado, que privilegia antes a expressão da subjetividade criadora do que a realização formal da ideia ou daquilo que Mário de Andrade, também contaminado pelo fascínio das forças líricas inconscientes, louvava enquanto impulso desgovernado da criação poética.

Vinícius era passional demais para se contentar em reter a vida ardentemente consumida nos limites convencionais do amor conjugal e da família. Viveu sempre possuído por uma sede de presença, de vida passionalmente movente que o impelia a abrir literalmente as portas de sua casa para a festa e a música e a farra sem hora ou medida. Daí o cortejo de amigos que foi arrebanhando ao longo da vida. Daí a paixão pelo cinema e pelo jazz, em especial durante os anos em que viveu em Los Angeles como diplomata. Daí as viagens que se repetiam e renovavam devido à profissão de diplomata, mas também à margem dela. A vida em trânsito contínuo levou-o do Rio a Oxford, de Paris a Los Angeles, de algum lugar a Montevidéu, daí aos candomblés da Bahia, da Itália à Argentina, de São Paulo ao deus dará... Toda essa viagem trepidante dentro da vida era acelerada pelo álcool, do qual se tornou dependente e ao qual foi fiel até a morte. Se foi fiel a alguma coisa, digamos que o foi ao uísque. Como disse numa de suas definições definitivas, o uísque é o cachorro engarrafado, isto é, o verdadeiro amigo do homem. Sem deixar de acrescentar que nunca viu amizade nenhuma germinar em leiteria.

Tudo isso visto e sorvido num documentário é belo, sedutor e estonteante. Os amigos celebram Vinícius, sua vida de desgoverno e paixão, e se rendem deliciados a seu narcisismo generoso e absorvente. As mulheres imagino, e o invejo, o quanto não se entregaram enlouquecidas à sua fome de carne e amor, carícias, gozo e outros inefáveis da intimidade amorosa. E o que dizer das incontáveis que antes e ainda no presente e por tempos improváveis se abandonaram, ouvindo seus poemas musicados, às fantasias mais indizíveis e extremas? Evocando os versos modelares de Chico Buarque: “O que não tem governo / nem nunca terá / o que não tem vergonha / nem nunca terá / o que não tem juízo”.

Mas o documentário abafa os danos decorrentes da paixão infrene, silencia ainda sobre o que meu amigo Luciano Oliveira chama de os anexos do amor ou ainda as agruras do amor casado e atado a filhos que, como escreveu o próprio Vinícius, é bem melhor não tê-los. E complementa: sem tê-los, como sabê-los? Ora, não é preciso ir a tanto para avaliar o quanto nos custam e o quanto lhes custamos. O que intento melhor salientar é que o filme compõe um retrato puramente sedutor e deslumbrante de Vinícius, um retrato que nos faz espontaneamente cair de riso enlevados diante da própria loucura inconsequente, diante da porra louquice que com certeza muito vincou a vida aventurosa e passional de Vinícius. Noutras palavras, ao silenciar sobre os danos e anexos da vida passionalmente desgovernada, o documentário suprime a dimensão ética da nossa experiência amorosa. Essa dimensão poderia ser menos vagamente sugerida se formulasse a seguinte questão: até onde posso ir na minha fome de amor e sexo, de desejo e realização do desejo?

Todos sabemos, salvo os ingênuos e omissos diante da vida, que é impossível amar sem causar algum dano ao outro. Mas isso não nos isenta desta interrogação angustiante: até onde posso em nome do meu desejo e do meu amor causar dano ao outro que me ama e sobretudo amo? Ninguém pode em sã consciência legislar sobre isso, determinar a priori o limite arbitrário entre a busca do amor e as consequências dessa busca. Mas a questão de fundo ético é real, ainda quando, por pura cegueira egoísta ou compreensível prevalência do princípio do prazer, convenha empurrá-la para debaixo do tapete e entregar-se ao impulso do gozo imediato da vida. Como afirmei, esse problema ético é central na vida aventurosa de um homem como Vinícius e não penso que propô-lo consista em incorrer em simples interpelação moralista.

Como todo grande sedutor, como todo romântico que escolheu viver a vida para além das convenções que nem sempre podem ser descartadas como artificialismos atravancadores da liberdade humana, do empenho em realizar uma vida autêntica, como tanto prezavam sustentar os existencialistas sartreanos, Vinícius aparentemente nunca perdeu o sono atormentado por esses obstáculos éticos inscritos na esfera da intimidade amorosa. Que me lembre, nenhum grande sedutor relutou entre a mulher desejada, não importa a que preço, e os limites éticos da realização do desejo. Tônia Carrero, que foi grande amiga de Vinícius desde o primeiro casamento deste, afirma sem nenhuma reprovação moral aparente que ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher.

De Casanova a Vinícius, traçando um limite temporal arbitrário, não sei de nenhum grande sedutor que tenha refreado sua sede de conquista cerceado pela questão ética que aqui proponho. Portanto, fechando ou abrindo as pernas, a alternativa fica a critério ético de quem me leia, é fato que a sedução colide com a ética, quando não simplesmente a ignora. Esticando ainda mais a corda, para que essa digressão não se exceda em ponderações morais que de ordinário descambam para o leito apertado do moralismo, convenhamos que o desapreço pelo limite ético convém tanto ao sedutor quanto ao seduzido, tanto a quem vive e realiza a vida na linha do excesso descrito pela biografia de Vinícius quanto ao sedutor comprimido malgré-lui que foi, por exemplo, Drummond. O fato é que a ética, em assuntos dessa natureza, constitui sempre um constrangimento ou impedimento que agride nossa natureza indomavelmente egoísta. É por isso que tantas vezes adoecemos quando renunciamos a desejos e tentações demasiado desejáveis. Ninguém precisaria ler Freud ou deitar num divã para ter consciência dessa banalidade recorrente na nossa economia erótica e moral.

O fato é que, reitero e amplio, caímos no laço da sedução que pontua a trajetória biográfica de Vinícius. É isso o que pulsa no cerne da recepção encantatória e deleitosa com que viajamos deslumbrados no bojo dessa cadeia de imagens e sons, de fantasias e pulsões que compõem a tessitura do documentário. O receptor generoso, na linha de Drummond, admira ou inveja Vinícius no melhor sentido da inveja ao reconhecer que ele foi o único poeta investido do desejo e da coragem de fazer de sua vida um largo e absorvente poema passional. O invejoso, pelo contrário, vê o filme roendo a corda de suas frustrações e na inveja ressentida com que abarca a vida e a obra do poeta projeta no que ele viveu tudo o que gostaria de ter vivido. É uma prova variável, convenhamos, do desejo de ser Vinícius.

Saindo um pouco das ponderações éticas insolúveis que acima esbocei, salvo em alguma medida a ética e Vinícius ao introduzir neste ponto um outro comentário de Ferreira Gullar. Rememorando Vinícius, afirma não conseguir lembrá-lo senão rindo, senão entregue ao prazer do riso, da atitude afirmativa e gozosa diante da vida. O próprio Gullar se ilumina na moldura de um riso espontâneo ao exprimir o sentimento com que evoca o amigo morto. Vislumbra-o sempre no avesso do desespero, sempre na faixa iluminada da vida. Indo adiante, afirma que esta é uma invenção, isto é, depende da atitude positiva ou negativa com que a encaramos e vivemos. Por conseguinte, é inútil e mesmo indesejável procurar no fundo da nossa experiência o sentido de uma verdade objetiva e universal relativa à vida. Isso é coisa de chatos como Beckett, citado literalmente por Gullar, ou intelectuais sombrios que se enredam e se atormentam – pior ainda, nos atormentam – buscando ou mesmo traçando na obra que criam um hipotético e de resto improvável sentido para a vida. Somos nós que a cavaleiro de nossa subjetividade arbitrária propomos um sentido para a vida e vivemos movidos pela determinação de realizá-lo. Vinícius teria feito isso ao decidir-se pela vida que viveu comunicando aos amigos e a todos tocados por sua vida um sentido de vida alegre e prazerosa.

Não que tenha sido feliz, como Chico Buarque certeiramente observa. Afinal, reiterando o óbvio, Vinícius foi romântico por temperamento, convicção e diria até determinação. Ora, um dos traços definitivos do romântico radica precisamente na busca intransigente do ideal: a mulher ideal, o amor ideal e outros ideais que são por definição inalcançáveis na vida. É isso, em suma, o que me assegura na convicção de que Vinícius não foi nunca feliz. De resto, felicidade é sempre um estado provisório, nunca uma fortuna confundível com a duração que seria permanência. A propósito, ele inventa a quadratura do círculo ao conciliar a duração provisória e o infinito nos dois versos que são talvez os melhores que escreveu e fecham seu mais belo e mais citado soneto: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.
Ficha técnica:
Direção: Miguel Faria Jr.
Elenco: Camila Morgado e Ricardo Blat.
Roteiro: Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcelos
Colaboração de Eucanaã Ferraz.
Texto final: Eric Nepomuceno.
Fotografia: Lauro Escorel.
Direção musical: Luiz Cláudio Ramos
Direção de arte: Marcos Flaksman
Montagem: Diana Vasconcelos.
Recife, 14 de outubro de 2010.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Meu Tempo é Hoje




Meu Tempo é Hoje é um filme justamente dedicado à música de Paulinho da Viola, um dos mais notáveis compositores e intérpretes populares da música brasileira. Em apenas alguns minutos a câmera transita das ruas populares do Rio de Janeiro para uma livraria, a Elizart; daí para o samba “Meu mundo é hoje”, de Wilson Batista, que com uma variante ou paráfrase confere título ao filme. Embora o samba seja de um outro compositor, Paulinho da Viola sempre gravou e renovou como intérprete muitos outros compositores, ele anuncia o núcleo significativo do filme. Daí se desloca para a oficina de um relojoeiro; daí para a própria oficina de Paulinho, artesão por vocação. As imagens e alusões ao relógio, medida e metáfora do tempo, repõem o tema do tempo e da memória, agora diretamente associados à música de Paulinho da Viola. Mas o filme pouco se detém neste tema, o tempo e suas variantes, que será outras vezes retomado ao longo da narrativa.

A câmera se move para o ambiente onde Paulinho se reúne com a Velha Guarda da Portela, sua escola de samba de formação e devoção. Este é um outro ponto forte do filme, pois traduz algo da riqueza do samba popular carioca, em particular algo dos vínculos profundos de amizade, expressão artística e integração cultural do compositor a seu mundo de origem, ao qual se manteve fiel ao longo da vida. Aí, à volta de uma grande mesa onde a música ata com poderoso nó comunitário os integrantes de uma cultura tecida pela mescla de raças e etnias, de elementos provenientes da tradição e do presente, de ecos arcaicos e rurais recompostos num espaço urbano cuja imprecisão borra fronteiras convencionalmente reconhecíveis em países onde os processos de desenvolvimento da modernidade fixaram linhas de distinção bem nítidas, aí a música celebra a vida com sua força única de socialização.

É nesse contexto que Paulinho é acolhido e celebrado como padrinho e grande difusor da música dos portelenses, assim como humildemente se reconhece discípulo daquele grupo de músicos, vários simplesmente anônimos para o grande público, em cujo círculo cresceu absorvendo a matéria e a técnica e os meios expressivos que embasam sua música. Quem também discretamente comparece a estas cenas é Cristina Buarque, irmã de Chico. Tão discretamente, assinale-se, que não é sequer identificada. Ela canta, come e bebe em meio ao grupo, dissolvida no anonimato onde logo sobressaem os músicos e compositores mais brilhantes: César Faria, pai de Paulinho e violonista do Época de Ouro, entre outros grupos notáveis; Monarco, compositor e líder da Portela; Élton Medeiros, parceiro de longa data de Paulinho.

Mais adiante a cena desloca-se para uma outra reunião musical, esta dentro de uma casa, e aí podemos identificar Cristovão Bastos (o grande pianista parceiro de Chico Buarque e Aldir Blanc), Luciana Rabello e talentos anônimos da música carioca. Essas cenas de celebração grupal, de festa agregadora de tipos culturais e artísticos bem diferenciados, se refaz na casa de Zeca Pagodinho, onde uma grande festa do samba reúne Paulinho, Hermínio Bello de Carvalho, Zuenir Ventura, autor do argumento e coautor do roteiro do filme, o crítico de música Sérgio Cabral e muitos outros.

Paulinho é um artesão que desde muito se adestrou no uso das ferramentas. Esse seu gosto pelo trabalho manual se estende ao conserto de relógios e à reconstrução de automóveis raros. Além de dignificador do trabalho humano, sobretudo numa cultura cuja longa e cruel experiência escravista reduziu-o à atividade socialmente aviltante, o artesanato importa na sua vida como fator de disciplina e terapia, inclusive para aliviar as tensões decorrentes da própria atividade de criação musical. A música, assim como a arte em geral, é indissociável do trabalho que necessariamente supõe disciplina e aplicação continuada. Somente no reino mistificador do hedonismo festeiro e consumista se impõe uma concepção deformadora da arte e da música como puras expressões de aprendizagem mágica, de talento, espontaneidade e prazer. Como todo artista verdadeiro, Paulinho sabe que a música é fruto do trabalho, da disciplina, da tensão criadora que muitas vezes carece de buscar alívio no artesanato e noutras formas de ocupação terapêutica.

Ocupo-me agora do núcleo central do filme comprimido no título e na letra do samba de Wilson Batista. Lembro antes disso que Wilson é confessadamente um dos compositores prediletos de Paulinho. Lembro-me ainda, introduzindo aqui uma nota de memória pessoal, de quando o conheci em Recife em meados dos anos 1970, no auge, portanto, do seu sucesso como autor e intérprete de música popular. Jovem tímido e ainda bem inseguro, fui levado por Jomard Muniz de Britto para jantar com Paulinho e D. Hélder Câmara num apartamento da Av. Conde da Boa Vista onde amigos hospedavam o cantor que horas mais tarde fez um belo e concorrido show no Teatro do Parque.

Lembro-me de que falamos de Mário de Andrade, creio que por sugestão de Jomard, que com seus arroubos oswaldianos e glauberianos me apresentou como um grande conhecedor do assunto. Fiquei muito encabulado, até porque as palavras de Jomard não passavam de excesso típico do seu modo de ser e deformar surrealmente a realidade, e prontamente desativei qualquer expectativa dos presentes. Para minha surpresa, Paulinho falou um pouco de Mário, dando provas de ser um leitor perceptivo, logo se desmanchando em desculpas injustificadas, que antes traduziam sua humildade e timidez. Foi mais um motivo para que desde então o admirasse por suas raras qualidades pessoais.

A caminho do teatro, pouco antes do show, fui conversando já bem animadamente com ele. A meio disso me declarou sua profunda admiração por Wilson Batista. Lembro-me bem de que me disse que o considerava o maior sambista brasileiro. Fiquei de cara no chão, pois então nada sabia de Wilson Batista. Quero dizer, conhecia dois sambas dele, mas não associava os sambas ao autor. Foi em parte devido a esse breve encontro que pouco mais tarde me interessei em conhecer a música de Wilson Batista. Seu samba, que dá título ao filme, condensa e anuncia, já antes assinalei, o núcleo central da obra que comento.

Wilson Batista traduz na linha do realismo cru uma noção do tempo muito similar à dos filósofos estoicos. Evidentemente, é também a que Paulinho da Viola abraça, tanto que parafraseia o título do samba para identificar o documentário e alertar o espectador atento para o sentido profundo da obra. Se a ideia não foi dele próprio, será talvez mais apropriadamente atribuível a Zuenir Ventura, autor do argumento e coautor do roteiro. Penso que o realismo contido nos versos do samba de Wilson Batista expressa muito da crua realidade vivida por pessoas de sua condição social. Elas têm consciência da vida precária que vivem, sempre exposta à incerteza e ao acaso que tão frequentemente irrompe no cerne de percursos traçados à deriva das circunstâncias.

Se o espectador tem acaso o privilégio de ignorar essas opressões miúdas e cotidianas que assolam a vida do nosso povo pobre, se nunca sequer observou à distância a realidade crua em que se move, basta que atente para algumas cenas do filme que bem espelham a precariedade dessas vidas cujo cotidiano se desdobra rente à linha da carência e da desordem. O que é espantoso no universo social do qual brotou a música de Wilson Batista, também comum a muitos dos personagens e figurantes do documentário, é essa paixão espontânea pela vida, essa alegria e prazer com que a celebram através da música, antes de tudo.

Tentando esclarecer para Zuenir Ventura sua concepção do tempo, Paulinho pontua sua relação profunda com a música de Pixinguinha, sabidamente bem anterior à sua geração. O que visa ressaltar ao recuar ao tempo de Pixinguinha é o sentido profundo da tradição musical na qual se inserem sua música e sua memória do tempo individual e coletivo. Seu vínculo com a tradição não é confundível com saudade ou nostalgia porque, para ele, a obra que fica, a que sobrevive ao tempo torna-se por definição intemporal. Logo, amar a música de Pixinguinha não é querer retornar ao passado, ou reverter o presente a um tempo ideal.

A tradição viva, assim como a memória do que de mais precioso vivemos, abole as distinções convencionais entre passado e presente, assim como converte o futuro, o ainda vazio de ser, em um modo de atualização do tempo que se concentra em uma forma singular do presente. Quem assim se põe em face do tempo não tem a presunção, de resto descabida, de regredir no tempo ou idealizar o passado com o verniz ilusório da nostalgia. Como Paulinho sabiamente observa, a saudade suprime a história e a vida, ela nos transpõe para um tempo ilusório, já que existe fora do tempo, ou como tempo ideal descolado do tempo efetivamente vivido. A saudade, ou ainda a nostalgia, seria nesse sentido antes de tudo um sintoma de infelicidade no presente. Por fim, Paulinho da Viola sintetiza sua concepção dos tempos convergentes, abolindo assim as noções espúrias de saudade e nostalgia, citando dois versos de “Dança da Solidão: “Quando penso no futuro /não esqueço o meu passado”.

Essas ponderações ligeiras, que entretanto tanto ressoam na minha concepção pessoal do tempo, daí o acento que a ele imprimo nesse comentário do filme, de algum modo conduzem à concepção do tempo característica dos filósofos estoicos. Para eles o presente é o único tempo real. Portanto, só o presente importa, pois o passado é irreversível, enquanto o futuro é por definição o que ainda não é e de resto não sabemos o que será. Podemos evidentemente antecipar algumas coisas, antever o futuro próximo que por vezes se anuncia confusamente na linha do presente, mas o fato é que o futuro, compreendido enquanto categoria do tempo vazio de ser, o futuro assim compreendido, e é esta sua natureza distintiva e singular, o futuro é imprevisível. Dizendo-o de modo mais simples, o futuro não é, ou não é ainda. Portanto, se existe sabedoria na nossa relação com o tempo, ela consiste no reconhecimento e acomodação do nosso ser dentro da realidade presente.

É difícil, e portanto sempre arbitrário, escolher num conjunto de obras musicais tão belas, refiro-me evidentemente à música composta por Paulinho da Viola, as três que prefiro. Feita esta observação necessária, diria que as minhas são “Sinal fechado”, “Coisas do mundo, minha nega”, “Para um amor no Recife”, e “Choro Negro”. Como leem, não são três, mas sim quatro.

Paulinho da Viola condensa na sua música e na sua personalidade algumas das características da cultura popular brasileira que mais amo e admiro: o refinamento harmônico e melódico, a elegância, a delicadeza, a generosidade integrada a um senso de socialização que desgraçadamente tende a desaparecer do áspero horizonte do presente, refugiando-se em nichos quase imperceptíveis. O mais grave é constatar quão pouca é nossa consciência dessa perda, a perda de um sentido de expressão humana que constituía o melhor da nossa enraizada cordialidade cultural. Se bem avalio, o que no presente nos sobra e se acentua é a dobra negativa da cordialidade, a que suprime dos vínculos pessoais e afetivos as qualidades tão admiravelmente expressas nesse filme consagrado à música de Paulinho da Viola.

título original: Paulinho da Viola - Meu Tempo é Hoje
gênero: Documentário
duração: 01 hs 23 min
ano de lançamento: 2003
estúdio:Videofilme
distribuidora:Videofilme
direção: Izabel Jaguaribe
roteiro:Zuenir Ventura, Joana Ventura e Izabel Jaguaribe
produção:Maurício Andrade Ramos
fotografia:Flávio Zangrandi
Recife, 11 de outubro de 2010.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vargas Llosa e o Nobel




Vargas Llosa foi enfim agraciado com o Nobel de Literatura, o que é de justiça, ainda que tardia. Sabemos que o Nobel com frequência sobrepõe critérios políticos aos estéticos, que no meu entender deveriam ser prevalecentes. Isso fica evidente quando acaso corremos os olhos pela lista dos premiados, não poucos desconhecidos por grande parte do público universal da literatura. Além de conhecidos e apreciados numa esfera restrita, logo mergulham no esquecimento mal a repercussão momentânea decorrente do prêmio se dissolve na mídia e no mercado editorial. Bastaria a propósito observar os nomes destes premiados a partir de 2000: Gao Xingjian, Imre Kertész, Elfriede Jelinek, Orhan Pamuk, Herta Müller. Quem de fato os conhece no Brasil e em grande parte do mundo ocidental, incluídas suas extensões periféricas?

O leitor pode discutir os méritos estéticos da obra de Vargas Llosa, assim como os discutem alguns críticos que lhe depreciam a obra no que encerra de filiação ao realismo típico do romance novecentista. Ressaltando o quanto os condicionantes políticos e ideológicos perturbam apreciações dessa natureza, acrescentaria que Vargas Llosa é combatido antes de tudo devido à natureza ideológica do discurso com que desde a juventude intervém no debate público.

Até recentemente o intelectual procedente da América Latina se distinguia como intelectual público. Até mesmo Borges, o mais atípico e livresco rebento dessa tradição, teve sua obra e biografia momentaneamente subordinadas à força imperativa dessa circunstância político-cultural. Já que seu nome veio à baila, importa lembrar que morreu sem ganhar o Nobel, erro que o atual presidente da Academia Sueca é o primeiro a reconhecer. Vargas Llosa constitui um dos exemplos mais vivos e constantes do intelectual militante, tão constante, aliás, que teimosamente se destaca como um dos últimos sobreviventes dessa espécie em vias de extinção. Autor de obra e notoriedade precoces, literatura e apaixonada participação política se entrelaçam no desdobramento de sua biografia.

Por que Vargas Llosa é tão combatido no Brasil e sobretudo no Peru, seu país de origem? Antes de tudo, por se opor ao comunismo e a ditaduras de direita e esquerda tão comuns na história da América Latina. Na juventude aderiu ao marxismo e apoiou entusiasticamente a Revolução Cubana. Não obstante, ousou discordar desta quando os fatos passaram a comprovar o desvio ditatorial contraditório dos ideais libertários que antes justificavam sua adesão.

Como é também típico da história intelectual latino-americana, Vargas Llosa formou-se tendo como modelo a cultura parisiense. Espelhou-se antes de tudo em Sartre, o grande mandarim da inteligência de esquerda entre as décadas de 1950 e 1970. Quando eclodiu a histórica polêmica entre Sartre e Camus (documentada num livro de Vargas Llosa: Contra Vento e Maré), Vargas Llosa tomou o partido do primeiro. Anos mais tarde, depois de um percurso acidentado, que passa da adesão ao comunismo e à Revolução Cubana à crítica das utopias de esquerda e conversão combativa ao liberalismo, Vargas Llosa dá enfim razão a Camus.

É curioso o fato de que, escrevendo sobre Sartre no remoto ano de 1964, quando este provocou momentosa polêmica ao recusar o prêmio Nobel de Literatura, Vargas Llosa o aprecie em termos que anos mais tarde, também hoje, se encaixam perfeitamente na imagem controvertida que seus críticos traçam dele próprio. Vale a pena conferir: “Sartre não facilita a tarefa dos críticos, obriga-os a correr, a ir e vir, a experimentar cada vez novas algemas para prendê-lo. O que não perdoam nele é a sua condição de franco-atirador, sua independência de julgamento, sua atitude alerta, sua imprevisibilidade, seu inconformismo. Nem a direita nem a esquerda conseguiram ´oficializá-lo`: por isto o atacam com tanta virulência”. (Mário Vargas Llosa, Contra Vento e Maré, p. 55).

Salvo o fato de que a virulência cedeu no tom e no ímpeto, sintoma do abrandamento dos antagonismos ideológicos na cena intelectual do presente, a citação acima aplica-se perfeitamente ao percurso ideológico de Vargas Llosa. Ele e Octavio Paz foram dos primeiros, vale a pena lembrar aqui o exemplo de José Guilherme Merquior no contexto brasileiro, que se reconciliaram com a melhor tradição liberal para combater Cuba e os movimentos de esquerda e direita na América Latina. Assim procedendo, como seria previsível, pois a história ideológica está saturada de exemplos semelhantes, foram atacados por ambos os lados. Mas é sempre difícil, salvo para os intolerantes e dogmáticos indiferentes aos fatos impositivos da realidade, acomodá-los num extremo ou noutro. Afinal, ambos aderiram ao liberalismo não para justificar regimes opressivos de direita, não para se acomodarem às iniquidades da nossa história social e política, mas para denunciarem a desigualdade e a injustiça produzidas tanto à esquerda quanto à direita.

Vargas Llosa esteve muitas vezes no Brasil e muito conhece da nossa tradição social e literária. Quando escreveu A Guerra do Fim do Mundo, ampla narrativa inspirada no grande clássico de Euclides da Cunha, fez demorada viagem de pesquisa através do sertão da Bahia. Antes disso leu muito sobre o Brasil, em particular sobre essa guerra que vincou de modo traumático o início da nossa história republicana e sobrevive na nossa memória social como uma das evidências mais brutais de extermínio de uma sofrida fração do nosso povo incendiado por um ideal utópico inspirador de resistência inédita na história dos nossos conflitos sociais. Seu romance é antes de tudo uma recriação ficcional do messianismo primitivo do sertanejo brasileiro e da intolerância ideológica que resulta em cegueira mútua: cegueira dos seguidores de Antônio Conselheiro, transfigurados pelo delírio utópico do beato; cegueira dos adeptos intolerantes da República, que erradamente figuraram a resistência de rebeldes miseráveis como se fosse um movimento de restauração da monarquia associado até ao capitalismo inglês.

Durante muito tempo Vargas Llosa afirmou que A Guerra do Fim do Mundo era o melhor romance que tinha escrito. Outros no entanto preferem Conversa na Catedral. Ele próprio, crítico literário refinado e grande manipulador das técnicas narrativas, reconhece o quanto escolhas dessa natureza são discutíveis. Uma coisa, porém, continuou sustentando: A Guerra do Fim do Mundo foi o romance que mais lhe deu trabalho e portanto lhe consumiu energia e imaginação recriadora dos eventos e documentos pesquisados.

O Paraíso na outra Esquina, belo título de romance, foi um projeto que Vargas Llosa nutriu durante muito tempo. Embora somente publicado em 2003, já por volta de 1985 a figura extraordinária de Flora Tristán, protagonista feminina da obra, já o fascinava. Avó do grande pintor Paul Gauguin, ambos dividem o conjunto dessa extensa narrativa que desdobra em linhas paralelas suas vidas desenhadas em capítulos justapostos. Parece-me pertinente afirmar que esse romance constitui outra variação ficcional das frustrações e desastres germinados pela imaginação e ideais utópicos dos personagens. Flora foi sem dúvida uma mulher extraordinária, admirável precursora dos movimentos feministas numa época cuja intolerância com relação a tais ideias o leitor pode facilmente desenhar. Quanto a seu neto, Gauguin, renunciou às vantagens e conveniências da vida burguesa em Paris ao migrar para o Taiti em busca de um sentido de vida liberto das convenções civilizadas em meio a povos e culturas remotas e aderentes ao mundo da natureza.

Outro dos romaces recentes de Vargas Llosa que merece registro num breve artigo de circunstância é Travessuras da Menina Má. Este é um romance de rica e envolvente ação. Narrando os encontros e desencontros amorosos de Ricardo e Lily, que se conhecem ainda adolescentes no Peru, o livro se estende através de décadas movimentadas e turbulentas num percurso que compreende a Paris revolucionária dos anos 1960 e a swinging Londres do mesmo período (não seria arbitrário concluir que uma substancial fração dessa parte da narrativa é projeção da própria biografia do autor); a cultura hippie associada à liberação do sexo e da droga; a Tóquio dos mafiosos e por fim a conturbada atmosfera de Madri durante a transição política dos anos 1980. A meio disso, as contínuas e desconcertantes mutações de Lily, a menina má, podem ser lidas como expressão literária de um mundo cultural regido pela mudança acelerada e atordoante. Daí se desprendem nossas incertezas tão dolorosas, as identidades confusas que vestimos e logo trocamos e logo perdemos ou simplesmente rejeitamos, pois Lily não tem sequer identidade nominal estável.

Por fim, acrescentaria meu apreço pelo crítico literário e pelo infatigável artesão das formas narrativas que Vargas Llosa tem espelhado em obras como A Orgia Perpétua (1979), La Verdad de las Mentiras (2002) e Letters to a Young Novelist (2002). Peço desculpas ao leitor por citar edições em línguas e datas divergentes das edições brasileiras correntes. É que recorri exclusivamente aos livros que tenho à mão. Repetindo o que já escrevi na primeira linha deste artigo, o Nobel faz enfim justiça, ainda que tardia, ao grande romancista, intelectual público e homem de pensamento e ação Mário Vargas Llosa.
Recife, 9 de outubro de 2010.

sábado, 9 de outubro de 2010

Cinema e Autoria




Além de romancista de grande renome, Gore Vidal é um notável e provocativo ensaísta. Seu gosto pelo ensaio polêmico ou pelo jornalismo de opinião concentrou-se notadamente na crítica ao sistema político e econômico americano, que a depender dos seus prognósticos de Cassandra já teria desmoronado ou mergulhado em crise muito mais profunda. Na cena cultural, que mais me interessa, ele já cruzou armas com Norman Mailer e movimentos ideológicos poderosos, como é o caso do feminismo. Aliás, sua independência crítica de corte polêmico se afirma até diante do movimento gay, embora há muito, bem antes da moda, ele já houvesse corajosamente assumido sua condição de homossexual.

Seu ensaio polêmico relativo ao diretor de cinema compreendido enquanto autor é provavelmente o mais conhecido e discutido. Foi publicado em 1976 no The New York Review of Books. O argumento central do ensaio visa elevar o roteirista à condição de real autor do filme, não o diretor. Mas o argumento não incorre nas simplificações grosseiras comuns nos ensaios ou artigos de viés polêmico. Recuando no tempo, até a era do cinema mudo, ressalta ele que então a supremacia do processo de criação fílmica cabia ao diretor. Mas eis que o cinema começa a falar e, como se sabe, ninguém fala sem um texto. É a partir daí que sobrevém a supremacia do roteirista. Embora reconheça o timbre autoral de um diretor como Ingmar Bergman, que é de resto um escritor, Vidal reduz a figura do diretor, notadamente no decurso das décadas de 1930 e 1940, ao papel de um técnico competente como tantos outros diretamente envolvidos no processo de realização de filmes nos grandes estúdios americanos.

Para Vidal, o diretor enquanto autor é uma invenção dos críticos franceses, de intelectuais ligados ao grande crítico André Bazin e à revista Cahiers du Cinéma. Criada em 1951, esta célebre publicação está ainda viva. Nela se iniciaram grandes nomes do cinema francês do século 20, como François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer e Jean-Luc Godard. Este grupo, Truffaut em particular, muito fez pelo reconhecimento estético e intelectual de diretores como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks. Embora ressalve a importância indiscutível do primeiro – que eu ousaria qualificar como um diretor-autor, embora não assinasse o roteiro dos filmes que dirigiu – Gore Vidal considera John Ford apenas um técnico competente. Vai adiante ao afirmar que o diretor típico da época de Ford via a si próprio desse modo e assim era tratado pelos grandes estúdios de produção e pela opinião crítica corrente à época. É fato que também ressalva a qualidade distintiva de Hawks, que trabalhou em parceria com grandes escritores empregados na indústria do cinema, como é o caso de William Faulkner. Em parceria com Hawks, Faulkner criou dois filmes importantes na história do cinema americano: To have and have not (Ter e não ter) e The big sleep (O sono eterno).

Ao salientar a distinção autoral do roteirista, Gore Vidal concede atenção a alguns escritores que escreveram roteiros para grandes estúdios americanos. Além de Faulkner, acima mencionado, argumenta em defesa de F. Scott Fitzgerald, Aldous Huxley, Nathaniel West e James Agee. Vidal não atribui muita importância literária a este último, para dizer o mínimo, mas ressalta a extraordinária precisão e qualidade visual ou cinematográfica da sua escrita como roteirista. Segundo Vidal, os roteiros escritos por Agee, cuja melhor crítica cinematográfica está reunida no volume Agee on Film, eram dotados de extraordinária exatidão visual. Como foi um cinéfilo e apaixonado crítico de cinema, além de portador de imaginação literária antes de tudo visual, Agee escreveu roteiros suficientes para assegurar-lhe a autoria da obra, que assim poderia em princípio ser dirigida por qualquer técnico.

A obra que acabo de mencionar, Agee on Film, foi publicada numa coleção cujo editor é Martin Scorsese. Ela reúne a crítica produzida por Agee entre 1941 e 1948 para dois periódicos americanos: The Nation e Time Magazine. Além de uma introdução assinada por David Denby, o volume é enriquecido por uma carta que Auden endereçou ao The Nation. Embora pouco apreciasse cinema, Auden fez questão de escrever a carta para expressar seu louvor à crítica de cinema de Agee, crítica que Auden distingue como o mais notável acontecimento do jornalismo americano da época. Mas não deixa de arrematar em tom mordente: “Pode-se prever o triste dia em que Agee on Films será objeto de uma tese de Ph.D.”.

Baseado em fatos extraídos da obra Some time in the Sun, de Tom Dardis, Gore Vidal realça a relação de escritores de renome com Hollywood, os que citei dois parágrafos acima, para reforçar seu argumento central em defesa do roteirista como autor. Cuida entretanto de corrigir Dardis ao afirmar que as características de exatidão visual verificáveis nos roteiros de James Agee não eram exclusivas dele, mas sim a regra observável nos roteiristas da época. Vale a pena, neste passo, citar uma observação de Kurosawa que Vidal com prazer transcreve no seu ensaio, já que leva água para o seu moinho: “Com um roteiro muito bom, até mesmo um diretor de segunda classe é capaz de fazer um filme de primeira classe. Mas com um roteiro ruim, até mesmo um diretor de primeira classe é incapaz de fazer um filme que seja realmente de primeira classe”. (Gore Vidal, De Fato e de Ficção, p. 76).

Vidal retraça a linha crítica de procedência francesa que resultou na entronização do diretor como autor. Para isso, ressalta em particular um artigo de 1948 assinado por Alexandre Astruc, discípulo de André Bazin. Nesse artigo ousadamente polêmico, cujo título é “La Caméra-Stylo”, Vidal identifica mais que um artigo polêmico, identifica um manifesto em defesa da autoria absoluta e solitária do diretor. Embora a tradutora brasileira, Heloísa Jahn, traduza stylo meramente como caneta, suponho que Astruc confere ao termo, além deste sentido, o de estilo, que confere singularidade autoral a uma obra.

Entre outras teses ousadas, Astruc sustenta que Descartes, fosse ele acaso nosso contemporâneo, faria um filme para expressar apropriadamente suas ideias contidas no Discurso do Método. Vidal retruca com razão que o cinema é incapaz de expressar ideias complexas. Acrescenta ainda que o Descartes contemporâneo, Sartre, expressou sua filosofia num romance, A Náusea, não num filme. Aliás, conviria acrescentar o fiasco cinematográfico que resultou da experiência de Sartre quando este se associou a John Huston para escrever o roteiro – infilmável, segundo Huston – do filme Freud.
No meu entender, o cinema sempre precisará da palavra, isto é, da literatura para expressar dimensões da realidade cujo sentido último é abstrato e portanto inacessível à pura exposição apreensível pelos sentidos. Uma das grandes forças expressivas do cinema reside, por exemplo, no seu poder de descrição. Isso explicaria em parte o fato de hoje um leitor, mesmo dotado de cultivada formação literária, ter bem pouca paciência para atravessar páginas e páginas de descrição de paisagens, cidades, lugares, tipos humanos etc. Bastaria pensar nos grandes romances do século 19, uma época ainda privada da cultura audiovisual disseminada no mundo contemporâneo.

Eu mesmo confesso já não ter tempo e pachorra para fixar na memória, depois de páginas e páginas de descrição cerrada, uma cena de batalha ou um baile da alta sociedade ou ainda a simultaneidade febril de uma metrópole. Estas cenas são muito comuns na grande literatura do século 19 e sobretudo na do século 20. Se vemos um filme, bastam alguns planos gerais alternados com alguns planos médios e outro tanto de close-up. Isso importa mais e tem muito mais eficácia e economia expressiva do que dezenas de páginas de um romancista genial como Dostoiévski, por exemplo.

Um telefilme ou minissérie baseado em Crime e Castigo ilustra muito bem meu argumento. Produzido pela BBC e dirigido por Julian Jarrold, é uma obra que nada tem de especial e de resto não tem como traduzir em linguagem cinematográfica as abstrações psicológicas e metafísicas supremamente realizadas em termos literários por Dostoiévski. No entanto, do ponto de vista descritivo, o filme facilmente traduz em alguns enquadramentos e takes o que, na obra de Dostoiévski, demanda páginas e páginas de descrição minuciosa e alentada. Todo o ruído e a sujeira e a miséria humana das ruas e cortiços de Petersburgo podem ser sinteticamente expostos em alguns enquadramentos variáveis de câmera.

Nenhum diretor assistido por seu cinegrafista precisa de gênio descritivo para imprimir realidade e sentido a cenas ficcionais desse tipo que se tornaram banalidade no universo cultural contemporâneo saturado de tecnologia e imagens. Qualquer diretor de telenovela da Globo, qualquer cinegrafista pode hoje sem embaraço transpor imagens desse tipo para a tela e daí para os nossos sentidos que há algumas gerações atrás precisavam valer-se do talento descritivo dos escritores. Essa é uma das razões de obras de grande fôlego analítico e densa complexidade teórica resultarem infilmáveis ou então findarem amputadas de seu sentido mais definidor em adaptações cinematográficas. Que diretor, não importando seu talento, pode transpor Em Busca do Tempo Perdido para a tela e ainda, para considerarmos um pouco a nossa literatura, Memórias Póstumas de Brás Cubas? Conheço as tentativas feitas em ambos os casos, mas lamento dizer que os resultados são bem pobres.

Como sabemos, Gore Vidal tem razões pessoais de sobra para argumentar em defesa da função autoral do roteirista. Além de romancista e crítico de literatura, trabalhou também como roteirista nos anos 1950, entre o esplendor e a decadência dos grandes estúdios afinal arruinados pelo advento da televisão como veículo hegemônico da cultura de massa na cena americana. Convém todavia destacar que essas razões pessoais entram no seu argumento apenas por via indireta e de resto em nada comprometem a força objetiva do que postula no seu ensaio. Como já deixei evidente, o alvo que mira negativamente é o diretor, que no seu entender, salvo as exceções antes referidas, se apropria injustamente dos créditos autorais do roteirista. Avançando no argumento, ele também concede qualidades autorais ao fotógrafo – ou cameraman, como vem escrito no ensaio. Aqui ele acentua o papel fundamental desempenhado por Gregg Tolland em Cidadão Kane, o grande ícone da história do cinema cuja autoria, à exceção da crítica devastadora procedente de Pauline Kael, é sempre conferida a Orson Welles às expensas de Tolland e do roteirista Herman Mankiewicz.

Indo além do próprio argumento de Gore Vidal, que de passagem atribui funções autorais ao fotógrafo e ao cinegrafista (por vezes os termos se confundem, como na obra Trajetória Crítica, de Jean-Claude Bernardet) e também ao montador, atualmente também confundido com o editor de imagens, acrescentaria que a direção de arte também exerce papel fundamental no processo de factura da obra. Lembro-me, a propósito, de que Hector Babenco honestamente declara no making of de Carandiru que seus filmes seriam irrealizáveis sem a contribuição decisiva de Clóvis Bueno, seu diretor de arte. Faço esse registro ligeiro para concluir que, no meu entender, o filme é uma obra de criação coletiva. Esqueceu-me também ressaltar o papel dos atores, que para o grande público são os únicos que de fato importam.

No frigir dos ovos, considero que o argumento de Gore Vidal em defesa da autoria do filme atribuível ao roteirista encerra peso ponderável. Os filmes que distinguiram a carreira de Joseph Losey no cinema inglês, conferindo-lhe uma discutível aura autoral, seriam inconcebíveis sem os roteiros assinados por Harold Pinter. Vidal sublinha este fato, que integralmente endosso. No presente, ficando ainda restrito ao cinema inglês, distingo dois entre vários outros roteiristas ingleses que ficam injustamente à sombra dos diretores para os quais escrevem roteiros extraordinários. Refiro-me a Christopher Hampton, que além de escritor é também diretor ocasional, e David Hare, nome importante da dramaturgia inglesa. Hampton tem entre outros créditos – ou teria, pois o crédito autoral conferido ao roteirista é sempre secundário em relação ao diretor – o excelente roteiro que escreveu para Atonement (Desejo e Reparação). Quanto a David Hare, ressaltaria o roteiro que escreveu para The Hours (As Horas).

Gore Vidal é injusto ou desatento ao passar ao largo de diretores como Charlie Chaplin, Hitchcock, cujo peso autoral menciona muito sumariamente, Fellini, sobre quem simplesmente silencia, e François Truffaut, a quem de resto recusa mérito autoral. Outros críticos do seu ensaio poderiam ainda, baseados em argumentos objetivamente sustentáveis ou inclinações subjetivas, acrescentar nomes fundamentais da história do cinema. Penso aqui, ao correr da memória, em Billy Wilder, Visconti, Pasolini, Glauber Rocha, Buñuel, Godard, Fassbinder, David Lean, Kubrick... Não entro nos meandros e no varejo da questão. O que acentuo, agora em defesa de Gore Vidal, é a importância decisiva do roteirista, quase sempre subestimada em benefício do diretor.

O fato é que a crítica francesa, no ponto de partida, entronizou o diretor como essa figura mítica a quem passamos a atribuir a função autoral da obra cinematográfica. É um excesso injustificável. Nisso concordo integralmente com o ensaio de Gore Vidal, que todavia incorre num outro extremo também insustentável na ordem objetiva da controvérsia ao reivindicar a autoria da obra para o roteirista. O que penso, e assim concluo, é que o filme é uma obra de autoria coletiva. Os pesos e papéis são variáveis, mas o resultado final é fruto de uma atividade colaborativa e grupal muito complexa. Por isso é injusto conferir o mérito da autoria a qualquer agente individualmente considerado, seja o diretor, o roteirista, o cinegrafista ou ainda, pensando nas projeções míticas do grande público, o intérprete.
Recife, 3 de outubro de 2010.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Universalismo versus Relativismo




O affair Sakineh repõe mais uma vez no cerne dos contatos entre culturas a controversa questão universalismo versus relativismo. Antes de entrar na questão especificamente referente a Sakineh, ressalto um fato óbvio: o desapreço ou a pura e simples rejeição no presente de qualquer teoria de fundamentação universalista. Sérgio Paulo Rouanet é um dos poucos herdeiros da tradição racionalista que têm corajosamente argumentado e polemizado em defesa da razão e do universalismo. Basta que se pense nestes dois livros em muitos sentidos admiráveis: As Razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade.

Seria difícil fornecer razões suficientes para a rejeição do universal no clima intelectual e ideológico hoje corrente. Uma delas parece-me evidentemente consistir no fracasso colossal de ideais utópicos inspirados na tradição do pensamento de esquerda. Embora o marxismo, por exemplo, tendesse a adotar feições nitidamente nacionalistas na periferia do capitalismo onde mais fortemente se difundiu, seu alvo último era universalista: a luta de classes sobreposta às contradições típicas do nacionalismo versus imperialismo, a comunidade utópica universal sobreposta ao enxame de particularismos que domina a cena pós-moderna.

Outra razão decorreria de uma contradição gerada pelo acelerado processo de globalização econômica e cultural. Invadidos pela maré montante da globalização, que tende a dissolver as tradicionais fronteiras que antes demarcavam as diferentes nacionalidades, assistimos a uma acentuação contraditória da defesa de valores e símbolos nacionais. Digo-a contraditória porque ela anda ombro a ombro com a absorção de símbolos que a negam. No mundo da comunicação virtual, vinculando todos os extremos imagináveis, persistem ideologias e movimentos espontâneos que espelham de modo atordoante o convívio íntimo, não raro inconsciente, do global com o local, do estranho ou longínquo com o familiar e o próximo.

O affaiar Sakineh ilustra exemplarmente a atmosfera cultural acima grosseiramente esboçada. De repente a cultura ocidental, confusamente movida por valores hedonistas e permissivos, é assaltada por valores típicos de uma ética comunitária que impiedosamente anulam qualquer veleidade de autonomia da mulher no plano da ética religiosa e sexual. Que atitude adotar diante do problema ou mesmo aporia (direi entre parênteses beco sem saída, para ser mais claro) que se abre diante da nossa perplexidade?

Para o relativista cultural, se ele quer ser coerente, parece-me que a atitude é simples. Ele simplesmente cruza os braços, pois adota uma teoria baseada no reconhecimento da singularidade irredutível de cada cultura. Noutras palavras, se cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra, tudo que nos resta é coerentemente respeitar os valores próprios a cada cultura. Mais claramente: não há tradução ética no Ocidente, central e periférico, para o que está ocorrendo no Irã com Sakineh.

Meu argumento se desdobra precisamente na linha avessa ao relativismo. Ele se fundamenta no reconhecimento necessário de valores éticos universais. É o único meio passível de autorizar algum tipo de argumentação crítica contra o que, da minha perspectiva, constitui a expressão de uma ética pré-moderna e comunitária que precisamos lutar para que seja superada. É por acreditar no sentido de um valor moderno de procedência ocidental, com perdão do truísmo, que me oponho à punição imposta a Sakineh.

Sei que já disse o suficiente para que relativistas, pós-colonianistas e outras tribos do particularismo irredutível caiam sobre mim. Podem de pronto acusar-me de aderir, sob a pele de uma justiça imbricada no universal, à ideologia da superioridade ocidental, à justificação do imperialismo que sempre se valeu de ideais universalistas para espoliar uma infinidade de culturas periféricas às quais impôs seu poder inclemente. A história é farta de exemplos que o presente pode ampliar ao gosto do leitor ávido por reivindicar a autonomia e singularidade de cada cultura. Trocando em miúdos, esta me parece a conclusão lógica dos relativistas, ninguém tem o direito de meter o bedelho na cultura iraniana. Ela é regida por valores próprios, que decorrem de uma história e de uma formação cultural intraduzível nos termos dos valores individualistas do ocidente cujas consequências estão aí à vista de quem as queira ver: o consumismo infrene, o narcisismo que reduz o outro a puro reflexo do que espelha, o hedonismo dissolvente da unidade e dignidade éticas que antes imprimiam solidez e harmonia à família e às relações humanas fundadas na tradição e na organicidade de uma ética comunitária.

O enredo acima, oposto à babel da cultura ocidental, é sem dúvida tentador. Por isso é compreensível que tantos, inteiramente perdidos no cerne de uma cultura que parece mover-se desprovida de norte e referenciais confiáveis convertam-se a seitas irracionalistas e malandras ideadas por charlatães que vendem qualquer coisa aos mendigos da luz consoladora da religião, aos órfãos da utopia e da esperança capazes assim de renunciar à última moeda da sobrevivência material para cair nas garras de vendilhões e mistificadores da alma e da salvação que querem apenas salvar sua rapinagem num mundo em que o fetiche da mercadoria tornou-se transparência deslavada e cínica. E todavia nem um cego carente de luz mistificadora, nenhum espoliado por falsos profetas ousa remover a névoa do engodo suspensa à luz do dia das farsas que pululam nas emissoras de rádio, na TV e outdoors da cidade, na fachada das igrejas que não passam de mercadinhos da fé.

Sei que meu argumento em defesa do universalismo me expõe a críticas procedentes de todas as correntes teóricas imagináveis. Sei ainda que o próprio conceito de universalismo é vulnerável ou impreciso. Ele é produto da Europa hegemônica, com extensões norte-americanas, que portanto sempre conciliou ideais universalistas com colonialismo e imperialismo. Não sou ingênuo ou tendencioso ao ponto de ignorar esses fatos. Ainda assim, não importando o quanto limitado seja o alcance concreto dos ideais universalistas, não reluto em aderir a eles. Digamos, para simplificar esse ponto, que sejam antes um mito do que um fato, uma realidade efetiva. Pois afirmo que, mito por mito, prefiro antes o dos ideais universais do que qualquer mito particularista, como o do nacionalismo ou qualquer expressão do relativismo cultural.

O mito do universalismo, no meu entender, produz efeitos de realidade muito mais positivos. É claro que nunca alcançamos nem nunca alcançaremos a plena realização dos direitos humanos, a plena realização da dignidade humana universal. Mas a luta por esses ideais tende a produzir efeitos de realidade muito mais positivos. Quem hoje no Ocidente e suas extensões periféricas ousa defender publicamente o racismo, a inferioridade da mulher, a dominação de uma nação por outra, a supressão das liberdades civis, a unificação da religião com o Estado e semelhantes formas de opressão decorrentes de ideologias particularistas? Se nenhum grupo politicamente hegemônico ousa adotar essas ideologias perniciosas, deduzo que esse avanço civilizacional é fruto das lutas e conquistas decorrentes do mito universalista.

Mito por mito, antes um orientado para o bem do que para o mal, antes um mais amplo que restrito. A propósito, gosto sempre de lembrar uma anedota relatada por Ray Monk na sua extraordinária biografia de Wittgenstein. Certo dia um discípulo deste procurou-o ansioso por saber o que deveria fazer para melhorar o mundo. Resposta de Wittgenstein: Procure melhorar a si próprio, pois isso é tudo o que você pode fazer para melhorar o mundo. Transpondo esse sábio conselho da esfera individual para a social, do relativo para o universal, diria eu parafraseando o filósofo: procure cultivar e lutar por mitos culturais que concorram para melhorar a sociedade na qual vivemos. Diria mais: para melhorar o mundo universalmente compreendido em que vivemos. Assim você fará algo no sentido de melhorar o mundo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Bergman - Depois do Ensaio


Há pessoas sem poço, pessoas que vivem como se a vida fosse uma superfície lisa e plana ou um espelho sem profundidade. Melhor dizendo, vivem como se fossem ocas por dentro ou fechassem todas as passagens que acaso dariam acesso a seus abismos. Essas pessoas desprezam os filmes de Bergman assim como desprezam a literatura de Clarice Lispector ou os abismos metafísicos subjacentes à obra de um Strindberg ou um Lúcio Cardoso.

Depois do Ensaio é um filme que mataria de tédio esse tipo de gente. Pois, além de escavar os poços obscuros dos três personagens que se confrontam – Henrik (Erland Josephson), Anna (Lena Olin) e Rakel (Ingrid Thulin) – concentra toda a ação nos limites de um palco vazio. Aliás, conviria frisar que a ação do filme, ou da peça filmada, não deve ser confundida com o que o público correntemente entende por filme de ação. Há um abismo intransponível entre Bergman, qualquer dos seus filmes, à exceção provável seria Fanny e Alexander, e esse tipo de público, que constitui a maioria esmagadora.

Depois do Ensaio foi filmado logo depois que Bergman realizou seu filme mais popular e mais acessível ao grande público, o já mencionado Fanny e Alexander. Vale ressaltar que os traços dominantes da sua filmografia também permeiam este filme: a herança puritana e a culpa, o amor e seus emaranhados conflitos, o desejo e a morte, as obsessões metafísicas... Enfim, os poços obscuros da nossa condição tão falível, os abismos nos quais nos perdemos e salvamos também desenham muitas das linhas narrativas de Fanny e Alexander. O que diferencia este filme é a forma narrativa, a forma usada por Bergman para recriar na tela a sua infância, a família realçada pelo fascínio e o choque identificáveis em toda narrativa de família.

Cada história de família é singular. No entanto, há muito de comum a todas elas, contrariamente à frase famosa escrita por Tolstoi como parágrafo de abertura de Anna Karenina. Traduzindo livremente: As famílias felizes são todas parecidas; as infelizes são singulares no seu modo de infelicidade. É sem dúvida uma abertura de forte apelo literário, mas pouco condizente com a realidade aferível das histórias de famílias, sejam elas felizes ou infelizes.

A ação de Depois do Ensaio, compreendida no sentido estético e amplo do termo, circunscreve-se ao espaço literal de um palco onde contracenam os personagens acima referidos: Henrik, Anna e Rakel. As unidades de ação, espaço e tempo são portanto precisas. O filme começa quando Henrik, solitário e cansado, está sozinho no palco depois de ensaiar O Sonho, de August Strindberg, o grande dramaturgo sueco tantas vezes levado ao palco por Bergman. Henrik confessa ter por hábito ficar sozinho e descansar no palco depois de ensaiar. Precisa disso como condição psíquica inerente à sua atividade criadora. Mas eis que Anna perturba sua solidão a pretexto de procurar um bracelete perdido ou esquecido durante o ensaio. A partir desse ponto os dois personagens são tensionados à volta de situações humanas correntes na obra de Bergman: o vínculo erótico entranhado na arte dramática, o poder mesclado de aversão e desejo que a figura paterna e o diretor, variante da primeira, exercem sobre a mulher jovem e bela, os sentimentos de amor e ódio entre mãe e filha.

Anna é uma jovem e bela atriz. Ela integra o elenco da peça de Strindberg dirigida por Henrik. É em torno da peça que ensaiam, O Sonho, que se tece o diálogo relativo à arte dramática, o mundo que Bergman verdadeiramente habitou, o único que tinha real sentido para ele. Rakel, mãe de Anna, foi também atriz e também representou sob a direção de Henrik. Morreu de alcoolismo. Ela é introduzida na narrativa através da memória dele e assim assistimos a uma regressão da ação no tempo. Enquanto Rakel, bêbada e carente de amor, contracena com Henrik, Anna, ainda menina, assiste silenciosa ao desdobramento da trama sentada no sofá.

Como acima já sugeri, Depois do Ensaio diz muito sobre a arte dramática, notadamente sobre a complexa relação que envolve o diretor e suas atrizes. Representar, imprimir sentido dramático à vida, recriando-a para além do fluxo errático compreendido no seu movimento rotineiro e inconsciente, é exercer controle racional sobre as paixões. Esse é um dos pontos fortes da tensão que confronta Henrik e Rakel. Para ele, o diretor precisa exercer o controle racional da experiência estética. É por isso que detesta as forças “espontâneas, imprudentes e imprecisas”, como afirma num momento de exasperada discussão com Rakel. Esta simboliza a força irracional e confusa que precisa ser plasmada esteticamente para que da desordem e do caos brote a arte lastreada nos seus elementos de ordem e organização significativa. O que deve prevalecer na atividade que se desdobra no palco, como enfaticamente ressalta Henrik, são a disciplina, a clareza, a luz e o silêncio. Para Rakel, no entanto, tudo isso é inconsistente e improvável. Contrariamente à teoria da pureza, da estética de fundo racional exposta com intensidade e exaspero por Henrik, ela acredita que o teatro é tumulto e energia emocional.

A história do teatro, assim como a da arte em geral, produziu inúmeras estéticas. Procedendo a uma redução grosseira, penso que todas poderiam ser alinhadas em dois grupos fundamentais: o das estéticas racionais e o da irracionais. Talvez surpreenda a muitos apreciadores do cinema de Bergman o fato de incluí-lo no primeiro grupo, o das estéticas racionais, quando consideram o confuso tumulto das paixões que atormentam o universo de suas personagens, sobretudo as mulheres. Depois do Ensaio constitui um dos melhores pontos de referência, no conjunto da filmografia de Bergman, para que melhor se compreenda essa questão exposta a tanta controvérsia.
Recife, 28 de setembro de 2010.