quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Freud, Além da Alma


O filme Freud, além da alma, dirigido por John Huston e escrito por Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt, foi produzido no auge da difusão da psicanálise e da glória de Freud, substancialmente ampliada nos anos 1950 e 1960 pela biografia oficial assinada por seu dileto discípulo Ernest Jones. À biografia, bem condensada numa edição em língua inglesa por Lionel Trilling e Steven Marcus, acrescenta-se parte da correspondência até então inédita fundamental para um conhecimento mais acurado do desenvolvimento das ideias do criador da psicanálise.

A ideia inicial de Huston era realizar o filme baseado num roteiro escrito por Sartre, então provavelmente o intelectual de maior prestígio no mundo. Sartre aceitou a proposta de Huston e viajou para a casa deste, na Irlanda, onde se instalou para trabalhar. Sucede que bebeu mais do que trabalhou. Isso explica o consumo total do estoque de uísque de Huston que, bem sabemos, não era de beber pouco. Desse conluio entre a pena torrencial de Sartre e sua sede insaciável resultou um roteiro infilmável, segundo o próprio diretor. Sartre trabalhou na composição de uma versão mais enxuta. Ainda assim, não satisfez Huston, que passou o trabalho para Kaufman e Reinhardt. O filme que conhecemos é, portanto, uma adaptação das versões antes escritas por Sartre, que de resto não permitiu que seu nome constasse dos créditos do filme. Melhor assim esquecer o uísque bebido ou ver o Freud de Huston e seus roteiristas bebendo no divã.

O filme começa com uma voz, supostamente do próprio John Huston, anunciando as três grandes crenças tradicionais que profundamente marcaram a compreensão da nossa humanidade e seu lugar privilegiado no universo. De acordo com a primeira, anterior a Copérnico, a Terra era o centro do universo. Antes de Darwin e de sua explosiva A Origem das Espécies, a espécie humana reinava soberana no mundo. Por fim, rematando o introito com a terceira crença, até Freud éramos senhores da nossa consciência. Ao publicar A Interpretação dos Sonhos, Freud desloca a consciência do centro da nossa subjetividade ao demonstrar com sua teoria do inconsciente o quanto é ilusória a crença de que somos senhores dentro da nossa própria casa.

O introito que acabo de expor sugere a grandeza do feito alcançado por Freud, interpretado por Montgomery Clift. O propósito do filme é dramatizar o longo, tortuoso e atormentado processo que se estende do início da carreira médica de Freud, como aluno do Prof. Meynert, neuropsiquiatra da Universidade de Viena, até o momento em que formula suas teorias fundamentais: a do inconsciente, a da neurose, da sedução, da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Antes disso, passa por estudos em Paris, sob a orientação de Charcot, pioneiro na terapia dos histéricos baseado nas técnicas da hipnose; por sua frutífera amizade com Josef Breuer (Larry Parks) e pela relação terapêutica ainda mais frutífera com Anna O. (em parte condensada na personagem Cecily, interpretada por Susannah York).

O DVD vem acrescido de um ótimo e esclarecedor comentário de Renato Mezan, um dos mais notáveis estudiosos brasileiros da obra de Freud, além de psicanalista. Dentre os muitos livros que já escreveu sobre o assunto, merece destaque Freud, Pensador da Cultura, investida única no contexto psicanalítico brasileiro. Mezan acertadamente observa a omissão de Wilhelm Fliess na trama do filme. Fliess foi a presença mais importante na vida de Freud durante os anos compreendidos pela trama do filme. Embora vivessem em cidades diferentes, Viena e Berlim, trocaram correspondência intensa expondo e discutindo ideias, notadamente a evolução do trabalho e das pesquisas empreendidas por Freud. A omissão decerto decorre de motivações dramáticas. Ao omiti-lo, John Huston e seus roteiristas concentraram em Breuer a matéria referente às projeções da figura paterna na psicologia de Freud. Também a personagem Cecily condensa não apenas conteúdos extraídos da experiência analítica de Anna O., mas também de outras pacientes analisadas por Freud ao longo do período abrangido pelo filme. Também a síntese expositiva das principais teorias de Freud, nas cenas finais, constitui uma condensação anacrônica imposta pela organização dramática do filme.

Filmes, assim como toda obra de recriação ficcional de personagens históricos, com frequência suscitam críticas baseadas num cotejo entre os fatos e personagens reais e a forma como são arbitrariamente manipulados nas obras de invenção livre. A discussão é complexa e de resto pouco pertinente no contexto em que escrevo. Chamo a atenção do leitor para essa controvérsia recorrente apenas com o propósito de explicitar um argumento banal: a obra de ficção não é nem pretende ser um equivalente da realidade, ou um substituto da realidade que se propõe recriar. É certo que este fato banal não autoriza qualquer recriação, mas o autor não pode responder pela recepção ingênua do espectador ou leitor que vê ou lê um filme ou um romance sobre Freud supondo estar vendo ou lendo sobre Freud enquanto indivíduo real. Isso é coisa de receptor de telenovela e folhetim. À parte o tom de desapreço com que despacho o assunto, reconheço ser um prato cheio para especulações estéticas e psicológicas.

É fato que Freud sofreu tenaz e áspera resistência do meio quando ousou expor suas teorias. Ele próprio emprega uma expressão, “splendid isolation”, para sugerir as pressões sociais e morais que sofreu como consequência da coragem com que investiu contra os preconceitos e ideias feitas do seu tempo. Esse é um outro fato corriqueiro na história das ideias, assim como de todo movimento de ruptura social. Os pioneiros, ou conquistadores, como se orgulhava de assim falar de si próprio, pagam às convenções sociais um preço extorsivo por se atreverem a afirmar de viva voz que o rei está nu, fiquemos no lugar comum que tudo exprime em poucas palavras. O risco a que se expõem certas obras, o filme de Huston não constitui exceção à norma, reside na romantização do herói transgressor. A cultura de massa, antes de tudo, não esqueçamos de que cinema é antes de tudo cultura de massa, investe nesse mito assim como os acumuladores de fortuna fácil investem na bolsa de valores. Portanto, convém apreciar com certa reserva a forma como a “splendid isolation” de Freud é caracterizada na tela.

O filme concentra na personagem intolerante e detestável de Meynert a resistência oposta às ideias de Freud, em particular nos círculos médicos. O próprio Breuer, médico de grande prestígio que nesse momento foi íntimo de Freud, além de com ele dividir a autoria do livro Estudos sobre a Histeria, acaba distanciando-se dele por divergir do papel que confere à sexualidade na etiologia das doenças psíquicas. Para além da colaboração mútua e fiel, Breuer é caracterizado no filme mais do que como um amigo mais velho e experiente. Ele simboliza, na verdade, uma projeção da figura paterna de Freud. Há de resto uma cena bem explícita dessa paternidade simbólica. Quando o pai real de Freud está moribundo no leito, assistido por Freud e Breuer, transfere verbalmente a este o papel de pai simbólico do filho. Mas sobrevém afinal o momento em que Freud precisa escolher entre o amigo paternal e a fidelidade às suas ideias. Ao optar por estas, ele rompe conscientemente o elo de dependência filial que o prendia a Breuer.

O melhor da tensão dramática do filme concentra-se na relação entre Freud e sua paciente Cecily. Como antes observei, sua composição condensa muito do que Freud amadureceu a partir do trabalho analítico com suas pacientes histéricas, já que Cecily não existiu enquanto tal, isto é, não passa de uma personagem ficcional. Assim como o último encontro pessoal de Freud com Breuer acentua o caráter de autonomia que ele conquista diante do amigo que simbolizara a figura ideal da paternidade, o encontro final de Freud com Cecily representa o desfecho ideal do processo de contratransferência dentro da relação analítica.

No seu conjunto, o filme destaca o que seria o estatuto científico da psicanálise traduzível, entre outras coisas, na função terapêutica da análise. Hoje, como sabemos, a psicanálise, seja enquanto suposta ciência, seja enquanto sistema de interpretação da realidade psíquica, sofre ataques e contestações de variada procedência. Sua própria função terapêutica deslocou-se do centro da atividade de muitos analistas que conheço. Adiantaria que já ouvi de alguns praticantes da psicanálise a observação segundo a qual a função dela não é curar ninguém. Não discutirei isso. Além de me faltar competência para tanto, um exame consistente da questão extrapola os limites de uma crítica inspirada antes de tudo no filme. Lembro apenas que o filme enfatiza essa função terapêutica da psicanálise, de resto aferível na própria obra do seu criador. O fato é que a evidência disponível hoje demonstra que as ideias dos dois pensadores mais influentes do século 20, ambos provenientes da atmosfera espiritual do século 19, entraram em franco recesso. Refiro-me, claro, a Karl Marx e Sigmund Freud. É muito improvável que a hegemonia de ambos seja um dia restaurada.

Créditos:
Título: Freud, Além da Alma (título original: Freud, 1962, EUA)
Direção: John Huston Roteiro: Charles Kaufman e Wolfgang Reinhardt
Elenco: Freud: Montgomery Clift
Cecily Koertner: Susannah York
Josef Breuer: Larry Parks
Martha Freud: Susan Kohner
Frau Ida Koertner: Eileen Herlie
Theodor Meynert: Eric Portman
Carl von Schlossen: David McCallum
Recife, 5 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Literatura e Inconformismo


A sociedade encara a literatura regida por um princípio de ambiguidade inconsciente que me parece digno de algumas reflexões. Num mundo regulado pelo princípio da utilidade, é compreensível, senão lógico, que seja encarada com suspeita, ou pura e simples rejeição. Afinal, salvo exceções facilmente assinaláveis, bem poucos vivem profissionalmente da literatura. Pensando melhor, essa não me parece uma razão suficiente para a suspeita ou rejeição que acabo de registrar. Bem antes da montagem de uma sociedade regida pelo capitalismo mais estreitamente utilitário, a literatura era já castigada pela rejeição social. Portanto, as razões não seriam apenas de fundo prioritariamente econômico. Além destas, recai sobre a literatura a rejeição movida pelo espírito pragmático compreendido numa dimensão mais ampla. Quero dizer, não é apenas o pragmatismo econômico que a ela se opõe, mas também o pragmatismo mais geral que se arrepia em face da mentira, que reivindica diante da realidade uma atitude... realista.

Outra razão adicional, igualmente fundamental, reside no inconformismo gerado pela literatura. Imaginar uma outra vida, figurar através da literatura a experiência do outro, também a de ser o outro, isso constitui uma poderosa força de inconformismo. Buscamos viver na literatura outro modo imaginário de vida, identificamo-nos com o outro nessa experiência porque a vida que vivemos não nos contenta. Viver dentro do horizonte apertado da vida real, da vida empiricamente apreensível, é algo que nos oprime. Queremos ser outro porque somos inconformados com a vida tal como é.

É precisamente aqui que se insinua a ambiguidade assinalada na abertura deste artigo. A mesma sociedade que rejeita a literatura por ser o avesso da realidade, por ser produto da imaginação ficcional, é a mesma que não suporta viver amordaçada pelo princípio exclusivo da realidade. A evidência apreensível nos estudos de sociologia e antropologia da arte demonstra como toda sociedade necessita do seu quinhão, ponhamos quinhão nesse saco, de fantasia, de reinvenção imaginária da realidade. A explicação para esse fato me parece residir na necessidade que temos de viver imaginariamente uma outra vida, na necessidade irreprimível de ser outro.
É nesse sentido que ouso afirmar a verdade seguinte: a necessidade de literatura, aqui compreendida no sentido genérico de expressão imaginária da vida, traduz o inconformismo entranhado na condição humana, o inconformismo que nos impele a viver imaginariamente uma outra vida. É isso o que move todo ser humano à busca do seu quinhão de fantasia manifesto numa infinidade de ações e formas de recepção humana. Bastaria pensarmos no consumo massivo de telenovelas, de enredos imaginários de todo tipo. A fantasia intervém de forma tão onipresente na nossa existência que somente um positivista caturra, um insuportável coletor de fatos ou mensurador de evidências palpáveis, ousaria afirmar categoricamente a distinção entre fato e ficção, entre vida factualmente vivida e vida imaginária.

É por atuar como um poderoso estímulo à imaginação transformadora da realidade que a literatura tem sido sempre perseguida, controlada, em último caso proibida. Nas sociedades reguladas por padrões repressivos da imaginação e da prática erótica, por exemplo, o Estado, a religião, a educação e todo o sistema de controle do imaginário impunham antes de tudo à mulher, pensemos nas sociedades patriarcais como as que se formaram no conjunto da América Latina, a proibição dos livros de ficção. Até às vésperas da revolução dos costumes que abalou as sociedades ocidentais na segunda metade do século passado, muitas obras perigosas, devido a seu alto teor erótico, eram vedadas aos olhos da mulher, quando não vetadas no mercado editorial. Pensemos, por exemplo, no Ulisses, de James Joyce, e n´O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence. Eu próprio, na minha juventude, assisti ao controle moral imposto às mulheres de minha geração diante das obras de Henry Miller, Anais Nin e do pernambucano Hermilo Borba Filho, seguidor confesso do veio literário aberto ou renovado por Henry Miller.

Drummond observou certa vez que, contraposta à realidade, a literatura pode ser metaforicamente compreendida como se tivesse duas portas: uma que fosse via de fuga da realidade, outra uma via de penetração mais profunda na própria realidade. Somente as pessoas bem pouco letradas figuram a literatura como sendo, em bloco, o avesso indesejável da realidade, um mal que deveria ser sempre evitado. Noutras palavras, reiterando a distinção proposta por Drummond, uma simples via de fuga ou alienação da realidade.

Drummond, aliás, ilustra de forma admirável essa representação metafórica da literatura como um percurso existencial de mão dupla. Foi provavelmente ela, a literatura, quem o salvou da acomodação alienante dentro da máquina burocrática que lhe assegurava sustento material provavelmente ao preço de muito conflito moral e ideológico. Bem o podemos imaginar como um ser duplo, como Machado de Assis e tantos outros burocratas brasileiros que fizeram da literatura sua expressão de inconformismo e fuga da vida besta, um intelectual cindido entre a repartição pública e a reinvenção imaginária do real. O homem que durante o dia despachava como chefe de gabinete do Ministro de Estado Capanema era o mesmo que à noite, ou nas folgas da rotina burocrática, escrevia as obras-primas de A Rosa do Povo e outras obras definitivas da poesia brasileira.

O exemplo famoso de Freud e da psicanálise valem como refutação veemente dessa tolice. Como sabemos, Freud estava confessadamente longe de ser um pensador modesto ou pouco ambicioso. Orgulhoso de se definir como um “conquistador”, um intelectual decidido a abrir novas sendas na história do pensamento humano, não poupou energia nem gênio criador para inscrever seu nome no Olimpo da cultura moderna. No entanto, teve a humildade de reconhecer a precedência da grande tradição literária na revelação do inconsciente humano, das nossas pulsões secretas, quando, ao lhe outorgarem o prêmio Goethe de Literatura, foi saudado como o descobridor do inconsciente. Ele bem sabia, como o sabe todo leitor crítico, que a grande tradição literária ilumina e revela as camadas mais profundas da realidade, ao invés de ocultá-las, revesti-las de consoladoras ilusões ou simplesmente evadir-se das suas verdades mais indesejáveis e dolorosas.

Também Freud incorreu em muita ambiguidade ao ler psicanaliticamente a literatura. Se de um lado reconheceu-a como fonte inspiradora de alguns dos conceitos e argumentos fundamentais que forjou para dar corpo teórico à sua criação, de outro tendeu por vezes a figurá-la como expressão pura e simples do princípio do prazer. Essa apreciação tão limitada da literatura decorria em larga medida, acredito, de sua filiação ao cientificismo que tão fortemente marcou a atmosfera intelectual dentro da qual se formou. Outro fato sintomático de sua aproximação bem parcial da literatura é a apreensão restritamente psicológica de suas análises de textos literários. A Gradiva, de Jensen, ilustra isso muito bem, assim como sua análise, em muito pontos admirável, da literatura como expressão do devaneio. Quando analisa uma obra de grande poder literário, como é o caso de Os Irmãos Karamazov, evita explicitamente abordá-la em termos estéticos ou formais. Prendendo-se à leitura de fundo analítico, ou psicológico, ressalta na obra, assim como na biografia de Dostoiévski, exclusivamente a questão do parricídio.

Retomando mais diretamente a relação entre literatura e inconformismo, parece-me que já deixei acima evidente a extensão do conceito de inconformismo aqui adotado. Quero dizer que ele vai bem além dos seus limites políticos, tão enfaticamente evidenciados na crítica e na teoria politicamente engajada. Essa perspectiva redutora encontra-se na raiz da apreciação estreita, por vezes intolerante e vesga, da obra de Machado de Assis. Ela explicaria ainda, a preferência por escritores incomparavelmente menores que Machado quando com este cotejados, ou a este deliberadamente contrapostos. Foi o caso da preferência de alguns críticos de esquerda pela obra de Lima Barreto. Aliás, o próprio Lima Barreto, indo diretamente a uma das fontes da apreciação deformadora da grande obra de Machado de Assis, valeu-se de argumentos e preconceitos semelhantes para negar a excelência única da obra do Bruxo do Cosme Velho.

Embora longe de qualquer radicalismo ou intolerância política, Mário de Andrade traduz na sua apreciação de Machado sua aproximação cindida entre a exigência de cunho participante, expressão de seu nacionalismo ideologicamente utilitário e engajado, e o reconhecimento de sua mestria estética. Sendo um grande artista, armado de fina sensibilidade estética, Mário não poderia deixar de reconhecer a grandeza da obra de Machado, ainda quando o criticasse, como de fato procede no seu ensaio famoso, por sua omissão diante do que entendia seres os deveres éticos do artista. É por isso que ressalta o Machado socialmente conformista, o Machado funcionalmente comandado pela mirada pragmática do mulato que joga o jogo certo e sem riscos para sua reputação e acolhimento privilegiado numa sociedade regida por valores escravocratas.

Ora, considerado de uma perspectiva mais complexa - ou mais dialética, diria talvez um crítico que fosse ou se desejasse dialético na apreciação dos fatores complexos que articulam o campo onde se movem e interagem formas, temas, injunções do meio e da época, aí também compreendida a biografia do autor - Machado nos desconcerta e confunde precisamente por produzir uma obra tão devastadora e corrosiva sob as vestes enganadoras da aderência às formas sociais e ideológicas consagradas no seu tempo. É de fato espantoso que um homem na aparência tão afinado com os valores dominantes no seu tempo tenha sido capaz de escrever uma obra tão impiedosamente crítica. É por isso que Machado de Assis ilustra talvez mais do que qualquer outro escritor que me ocorra lembrar, ao me propor a relação entre literatura e inconformismo, o argumento que intentei desenhar nas linhas deste artigo.
Recife, 20 de janeiro de 2011.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Intelectual Brasileiro e Fracasso


Um dia, lendo a última entrevista que Antonio Callado concedeu antes de morrer, impressionou-me o tom depressivo com que se referia ao Brasil. Salvo traição de memória, foi nessa entrevista que declarou ser o Brasil um país incapaz de grandeza que não fosse geográfica. Considerei então o fato de que lia um escritor esclarecido e combativo. Não lia eu, noutras palavras, uma entrevista concedida por um velho insciente que houvesse vivido uma vida de acomodação e transigência com as coisas pequenas da vida.

Como outros intelectuais brasileiros socialmente empenhados e generosos, Callado pagou bastante por sua combatividade. De formação européia, particularmente inglesa, retornou ao Brasil com sede de conhecê-lo, inspirado pela determinação de participar das lutas sociais que, assim tantos acreditaram, elevariam este país a um patamar de civilização passível de corrigir nossas iníquas heranças históricas. E eis que depois de anos de luta esse homem chega às bordas da morte declarando sinceramente sua completa descrença no Brasil.

A entrevista simbolizava, em suma, o testemunho de um fracasso antes coletivo do que individual, pois a trajetória biográfica de Callado, pelo menos dos anos cinqüenta à sua morte, foi a de muitos outros brasileiros tocados pela convicção e a coragem de transformar este país numa autêntica democracia moderna. Muitos, descrentes do ideário liberal, não importando de que procedência, acreditavam que a única via possível seria a revolucionária. Mais exatamente, uma revolução inspirada pelo marxismo. Contudo, não discutirei isso. Importa-me aqui considerar apenas a experiência do fracasso. Como frisei, não apenas o fracasso pessoal de Callado, mas o de muitos outros que objetivamente traçaram percurso ideológico e político semelhante.

Anos mais tarde, a meio de uma aula para meus inconscientes alunos de pedagogia, ocorreu-me observar que todos os intelectuais que selecionara para o programa da minha disciplina tinham em graus variáveis acabado mais ou menos como Callado. Não bem no sentido de externar uma visão final do país igualmente sombria e descrente, mas igualmente fracassados. Melhor dizendo: vencidos. Alguns poderiam não admitir seu fracasso individual ou geracional, mas todos foram de alguma maneira punidos por lutarem para reformar positivamente este país, todos foram vencidos pelo poder dos dominantes tradicionais.

Minha idéia, dentro da disciplina que então ministrava para uma turma do curso de pedagogia, era apresentar um pouco da história da educação brasileira a partir de realizações e experimentos liderados por alguns intelectuais inconformados com o nosso atraso, esperançosos de contribuir para a resolução de entraves crônicos da nossa ordem institucional. Assim pensando, incluí no meu programa de curso gente como Anísio Teixeira, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Josué de Castro, Paulo Freire. Como acima observei, foi assim de repente, a meio de uma aula, que me apercebi desse fato significativo: todos esses intelectuais foram em graus variáveis punidos pelo crime de se empenharem numa luta coletiva para transformar o Brasil, todos acabaram vencidos. Antonio Candido seria a provável exceção, já que foi poupado até pelo AI-5. No plano da disposição psicológica ou subjetiva, a exceção mais provável seria Darcy Ribeiro. Otimista incorrigível, como ele próprio reconhecia, penso que morreu ainda possuído pela esperança insensata – e infundada, quem sabe acrescentaria Antonio Callado – de ver o Brasil convertido a seus ideais utópicos.

Talvez o caso melhor documentado dessa ordem de fracasso, na qual se mesclam e por vezes confundem-se o plano individual e o coletivo, seja o de Mário de Andrade. Uma larga fração da evidência disponível em defesa do meu argumento está contida na sua correspondência, notadamente a que endereçou a Paulo Duarte e Oneyda Alvarenga. Mas o documento supremo é sem dúvida Mário de Andrade por Ele Mesmo. Neste livro organizado e em parte escrito por Paulo Duarte, encontra-se a expressão talvez mais aguda, detalhada e dolorosa de um fracasso: o de Mário de Andrade. Mas é também, como nos casos precedentes acima meramente sugeridos, um fracasso coletivo. É também, claro, o fracasso de Paulo Duarte, que além disso, mais radical e comprometido do que Mário, amargou um exílio político.

Restrito ao comentário psicológico, atinente ao estado de espírito observável no intelectual brasileiro militante, quero traçar um ligeiro paralelo entre o Mário dos anos 20, tocado pelo ardor da revolução estética, e o Mário declinante, o que morre prematuramente crivado por angústias e irresoluções penosas. Este último é o Mário que em meados dos anos trinta renuncia à elaboração de uma obra de criação artística, ou esteticamente autônoma perante as causas e lutas sociais do tempo, para mergulhar de cabeça num ambicioso projeto de reforma das instituições culturais enraizado no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. Esse projeto de algum modo traduz o deslocamento da ação militante de Mário do âmbito estético – o modernismo de vanguarda do início dos anos vinte, acrescido do nacionalismo cultural – para o ideológico no sentido em que João Luiz Lafetá certeiramente caracterizou ambos no seu livro 1930: A Crítica e o Modernismo.

Mário tinha o perfil do apóstolo da cultura. Como o engajamento intelectual é algo hoje bem fora de moda, não faltaria quem dissesse que foi apenas vítima de sua culpa cristã. Outros diriam ainda que era vítima de sintoma deslocado. Quero dizer: incapaz de solucionar problemas de raiz nitidamente pessoal – como sua homossexualidade represada, por exemplo, tema ainda curiosamente tão nebuloso num país que se orgulha de sua sensualidade infrene – teria ele deslocado suas angústias e impasses para o plano das lutas culturais e ideológicas. Há aí, claro, muito de barata redução psicanalítica. Mas o fato é que já ouvi explicações desse tipo emitidas por gente inteligente. Houve até um amigo homossexualmente reprimido que certo dia me perguntou, quando num círculo de amigos inscientes pregaram-me a má fama de saber tudo sobre Mário, se ele era homossexual. O pouco que conheço sobre Mário refere-se ao que viveu fora da porta do quarto, foi minha resposta.

Argumentos genéticos à parte, é inegável que Mário foi um homem atormentado nos últimos anos de sua vida. Paulo Duarte argumenta que foi assassinado (confesso não me lembrar do termo exato que emprega e estou com preguiça de remover seu livro da prateleira para eventualmente me corrigir) pelo Estado Novo. Afastado da direção do Departamento de Cultura, portanto impedido de prolongar um projeto de política cultural que já rendera frutos admiráveis, Mário mergulhou num misto de depressão e revolta. A isso acrescentaram-se sintomas freqüentes de saúde debilitada, além de extremos de hipocondria e angústia existencial bastante documentados nas cartas escritas durante a etapa final de sua vida – notadamente, já antes acentuei, as que endereçou a Paulo Duarte e Oneyda Alvarenga.

Mas noto agora, já saltando de parágrafo, o quanto me contradigo. Alego deixar os argumentos genéticos à parte e logo enfio um outro, este de natureza política. A acusação feita por Paulo Duarte ao Estado Novo tem muito de discutível. Antes de tudo, é proposta por um inimigo passional de Getúlio Vargas e da ditadura que este instituiu em 1937. Em segundo lugar, toca diretamente os interesses e convicções do próprio Paulo Duarte, embora ele se refira tão-só a Mário de Andrade, seu parceiro de lutas e realizações culturais na política paulista da época. Importa assim ler com cautela sua acusação. Importa antes de tudo ler a mim próprio com cautela, pois comento um livro de leitura remota e não me tenta agora, já o disse, retomá-lo para melhor fundamentar estas notas livremente improvisadas.

Encerro estas anotações reiterando este fato que me parece significativo: que me lembre, todo intelectual que neste país em algum momento se opôs ao poder foi de algum modo punido. Friso aludir à oposição compreendida em sentido genérico. O próprio Mário está longe do revolucionário, do militante que quer mudar o mundo pondo a ordem institucional pelo avesso. Sua ação cultural e política, como a de tantos em diferentes momentos de nossa história acusados de subversão revolucionária, seria encarada, num país de instituições efetivamente democráticas, no máximo como expressão de liberalismo radical. Logo, a punição de que foi vítima traduz, antes de tudo, nossa incapacidade, ainda atual, de consolidarmos uma autêntica democracia moderna nestes trópicos insolúveis, não obstante a boa vontade de tantos que sinceramente os exaltam.

12 de novembro de 2008

domingo, 16 de janeiro de 2011

Onegin


Paixão Proibida (Onegin)

Segundo o consenso crítico, Onegin, de Alexander Pushkin, é a obra fundadora da modernidade literária na Rússia. Romance composto em versos, consumiu anos de trabalho dentro da evolução criativa de Pushkin e por fim converteu Onegin e Tatiana, protagonistas da obra, em símbolos literários de uma cultura, então periférica no contexto europeu, que ao longo do século realizou a façanha de inscrever definitivamente a literatura russa no cerne da cultura universal. O fato é um problema fascinante e aparentemente insolúvel para os estudiosos, digamos os sociólogos da arte e da cultura, que precisam explicar como um país regido por uma autocracia impiedosa, povoado por uma massa de camponeses castigados pela servidão e uma elite alienada da cultura do seu povo foi capaz de produzir gênios de força criativa impressionante como Pushkin, Gogol, Turgueniev, Dostoiévski, Tolstói e Tchecov. É claro que poderia acrescentar a estes, sem dúvida maiores, alguns outros também incorporados à mais alta tradição literária do Ocidente. A obra de Joseph Frank Dostoevsky – A Writer in his Time, e também Natasha´s Dance, do historiador da cultura Orlando Figes, fornecem o mais denso e impressionante painel histórico para que melhor apreciemos essa experiência artística singular. A elas acrescentaria uma obra de Isaiah Berlin já traduzida no Brasil: Os Pensadores Russos (Russian Thinkers).

A adaptação cinematográfica de Onegin é em larga medida um empreendimento da família Fiennes cujo nome mais célebre é Ralph Fiennes, que interpreta Onegin com talento excepcional, como de hábito. Ralph foi também o produtor executivo do filme. A diretora é Martha Fiennes, irmã de Ralph, e a música é de autoria de Magnus Fiennes. Aliás, importa registrar a beleza da trilha sonora, notadamente a valsa que constitui o núcleo temático da trilha. Ressaltaria por fim o roteiro, coassinado por Michael Ignatieff, biógrafo de Isaiah Berlin. Ambos, Ignatieff e Berlin, são intelectuais de ascendência russa. Embora canadense, Ignatieff é filho de um diplomata russo e viveu muitos anos na Inglaterra onde se distinguiu como apresentador de um programa de televisão da BBC simplesmente inconcebível na mídia brasileira dada a excelência do seu nível intelectual. Refiro-me ao programa The Late Show que me conferiu a oportunidade de ver e ouvir pouco antes das frias e solitárias meias-noites inglesas intelectuais do porte de Isaiah Berlin, Christopher Lasch, Harold Pinter, Simon Schama, Martin Amis, Salman Rushdie, Ewan McEwan... Ressaltaria, por fim, o romancista e poeta D. M. Thomas, responsável pela tradução e adaptação das cartas de Onegin e Tatiana incorporadas ao roteiro do filme. Seu romance de maior repercussão é O Hotel Branco (The White Hotel), já traduzido no Brasil.

Onegin e Tatiana (Liv Tyler) são filhos russos de Rousseau. Quero dizer, expressam nos seus modos de sensibilidade a sensibilidade romântica cuja paternidade pode ser atribuída à obra de Rousseau. É certo que antes e sobretudo depois dele houve quem expressasse, na vida quanto na obra, esse modo de sensibilidade que vincou de forma profunda a ascensão da burguesia no século 19. Mas ninguém superou Rousseau na radicalidade filosófica e estética com que reivindicou a soberania da sensibilidade individual contraposta à tradição dos costumes da nobreza, ao racionalismo e ao materialismo e utilitarismo burgueses. Portanto, não é à toa que Onegin e Tatiana, já na primeira conversa que travam, sintomaticamente na livraria do primeiro, aludem explicitamente a Rousseau. Onegin recomenda a Tatiana a leitura de A Nova Heloísa (La Nouvelle Héloïse), romance em forma epistolar que causou efeitos devastadores à época em que vivem os protagonistas de Paixão Proibida (Onegin).

Tatiana é uma jovem bela, reclusa na solidão impregnada pela ficção romântica que mudou radicalmente os modos de sensibilidade dominantes estendendo seus efeitos à própria atmosfera da cultura contemporânea, quando agora mergulha numa crise dilacerante que evidentemente não teria como considerar nos limites desta crítica baseada no filme. Sua concepção do amor, fundada na idealização do objeto amoroso e na autenticidade radical da sensibilidade de quem ama, atesta o quanto simboliza a sensibilidade romântica consagrada na obra de Rousseau. Sugerindo um paralelo com outra personagem fundamental da tradição literária, Madame Bovary, seria possível afirmar que ela está para a estética romântica assim como Madame Bovary está para a realista.

Onegin vive em São Petersburgo uma vida reduzida ao tédio (o ennui romântico tão característico de Byron e Musset) e à dissipação nos círculos aristocráticos. As cenas iniciais recortam de forma nítida esses traços românticos do protagonista. O tédio se expressa antes de tudo na sedução mórbida da morte. Mas ele é bruscamente deslocado desse ambiente aristocrático e dissoluto para o mundo rural russo. A morte do tio transforma-o em herdeiro de uma invejável riqueza traduzida em terras e muitas almas (a população de camponeses servis da Rússia).

Instalado solitariamente na propriedade herdada, Onegin se rende à vida indolente, ao modo de vida típico do “homem supérfluo”, personagem célebre na tradição literária da Rússia. Logo um encontro acidental com Vladimir Lensky (Toby Stephens) introduz na trama uma amizade tensa e crivada de antagonismos que espelha nos valores e atitudes dos dois personagens tensões e impasses da própria realidade cultural do país. A mais nítida é observável na tensão entre a cultura citadina de Petersburgo, símbolo da cultura europeia servilmente assimilada pela aristocracia, e a cultura rural aderente a valores eslavos. Lensky, na verdade, não traduz fielmente essa oposição aqui sugerida, pois nele notamos o timbre da cultura alemã, já evidente no lied de Schubert que horrivelmente canta na cena em que conhece Onegin. Além disso, é um poeta provinciano deslumbrado pela cultura de Petersburgo. É este de resto o ponto de imediata ambivalência na sua relação com Onegin, já que a seus olhos este representa valores que inveja, mas lhe são vedados, daí suas reações de hostilidade e ressentimento diante do amigo.

Retomando a tensão acima aludida entre a cultura europeia e a tradição eslava correntemente invocada pelos nacionalistas russos como símbolo de uma identidade oposta à cultura ocidental assimilada pela aristocracia, nenhum dos personagens encarna valores que seriam tipicamente russos. A própria Tatiana, embora celebrada por Dostoiévski como o tipo ideal russo, está impregnada do ocidentalismo que este tanto odiava. Já acima notei como ela foi profundamente influenciada pela sensibilidade romântica assimilada na obra de Rousseau e certamente outros heróis românticos da época. Dostoiévski, de resto, ilustra essa mesma contradição entranhada na ideologia do nacionalismo cultural onde quer que se manifeste. Não é portanto sem razão que Nabokov observa provocativamente ser Dostoiévski o mais europeu dos escritores russos.

Outro personagem que bem evidencia a subserviência das camadas letradas russas à cultura europeia, antes de tudo francesa, é Monsieur Triquet (Simon Mcburney) tutor da família Larin (Tatiana, Marsha, sua mãe, e Olga, sua irmã noiva de Lensky). Essa subserviência é tão patente que Triquet se sente à vontade para de forma arrogante opor o refinamento e a delicadeza francesas, índices de alta civilização, à incivilidade russa. Embora não passe de um sedutor arrogante e afetado, Triquet enfrenta resistência apenas de Onegin.

A questão da servidão é também introduzida no filme. Onegin declara-se contrário à sua permanência, ponto de vista incomum à época e portanto ousado. Vai além da oposição retórica e adianta estar determinado a arrendar suas terras a seus próprios servos. Se Tatiana desde o início já se sentia atraída por Onegin, este fato desperta de forma decisiva sua sensibilidade romântica. Reforça o ponto de vista de Onegin ao acentuar a injustiça de um sistema que condena milhões de pessoas à opressão em decorrência de um acidente de origem social. Quando mais tarde Tatiana pergunta a Onegin se ele irá de fato arrendar suas terras a seus servos, ele responde afirmativamente, mas acrescenta fazê-lo por força apenas de sua ociosidade.
Perdidamente apaixonada, Tatiana cede ao impulso romântico e à autenticidade da sensibilidade romântica ao escrever uma carta a Onegin na qual candidamente expressa seu amor. Este a recusa, mas procede com cavalheirismo louvável e até surpreendente num herói de hábitos dissolutos e ociosos, ao argumentar de forma honesta contra a possibilidade do amor que Tatiana lhe oferta e ardentemente deseja. O diálogo que travam espelha nitidamente o conflito entre a jovem de coração romântico e o homem cético ou entediado diante do que lhe parece a realidade do amor. Esta cena ocorre a meio da festa de aniversário de Tatiana.

De volta à festa, onde os convidados animadamente dançam, Onegin flerta com Olga (Lena Headey). De caráter bem distinto da irmã, Olga é volúvel e facilmente se deixa atrair por Onegin ante os olhos ciumentos e exaltados do noivo, Lensky. Este episódio se agrava precipitando o desafio que Lensky lança contra Onegin para que decidam a disputa num duelo. Daí o filme marcha para a situação de desenlace que transforma radicalmente o andamento da trama: Onegin mata Lensky, Olga logo lava o luto da alma ao casar com um militar, Onegin parte para o estrangeiro e Tatiana é negociada pela tia astuta, segundo as normas culturais da época, nos salões aristocráticos de São Petersburgo. Encurtando a história, casa com o príncipe Nikitin (Martin Donovan).

Os anos transcorrem e eis que enfim Onegin reaparece durante um baile oferecido por Nikitin e Tatiana. A ironia cruel da vida, ou da trama romântica, reverte agora os papéis. Onegin apaixona-se obsessivamente por Tatiana, que ainda o ama, mas ama acima de tudo seus deveres de fidelidade a um homem que reconhece não amar, mas é afinal seu marido. Rejeitado por Tatiana e sua inflexível e atormentada fidelidade, Onegin sofre sem pausa a dor do amor, o mesmo amor romântico que antes rejeitou na mulher que ainda o ama, mas o amor já não é mais possível. Agora é ele quem lhe escreve cartas de amor saturadas de dor e desespero, cartas que ela rasga e depois queima.

A cena do encontro final entre os amantes impossíveis é uma das cenas românticas mais dolorosas e patéticas do cinema. Parecem-me sugestivamente simbólicas as cores antagônicas que vestem: ela inteiramente de branco, ele de preto. O branco simboliza a pureza atormentada de Tatiana, sua fidelidade ao dever posta acima do amor desejado e insofreável, mas adúltero; o preto é o símbolo do sombrio e desesperado amor de Onegin, condenado a conduzir sua vida esvaziada de sentido pelas ruas desertas e geladas de São Petersburgo.

Créditos:
Título: Paixão Proibida (Onegin)
Baseado na obra de Alexander Pushkin.
Roteiro: Michael Ignatieff e Peter Ettedgui
Direção: Martha Fiennes.
Música: Magnus Fiennes
Elenco: Onegin (Ralph Fiennes)
Tatiana (Liv Tyler)
Lensky (Toby Stephens)
Olga (Lena Headey)
Nikitin (Martin Donovan)
Marsha (Harriet Walter)
Triquet (Simon McBurney).
Recife, 11 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O Leitor


Alan Bullock, um dos mais renomados historiadores do nazismo e de Hitler, declarou que quanto mais aprendia sobre este, mais dificuldade tinha em explicá-lo. O Leitor, baseado no romance homônimo de Bernhard Schlink, está longe de projetar alguma luz sobre esse terrível capítulo da história humana, mas sem dúvida nos ajuda a melhor compreender outro fenômeno desconcertante: o que levou tantos milhões de alemães a seguirem as determinações de Hitler e sua gang como instrumentos dóceis e inconscientes dos horrores praticados durante aqueles anos de horripilante barbárie.

A ação do filme concentra-se na Alemanha entre os anos 1958 e 1995. Michael Berg (interpretado por David Kross e Ralph Fiennes) apaixona-se na adolescência por Hanna Schmitz (Kate Winslet), mulher bem mais velha de caráter áspero, estranho e enevoado de mistério. Michael apaixona-se perdidamente, como todo adolescente exaltado pela imaginação erótica. Não bastasse tanto, entrega-se dócil e prazerosamente à corrente tumultuosa do amor tecido de passionalidade sexual e intensidade explícita em muitas cenas de sexo e nudez. A esse ardor erótico a trama acrescenta um traço de singularidade que é determinante para o desdobramento dos destinos que se cruzam nesse drama perturbador que bem expõe o quanto a memória do nazismo ronda ainda a consciência social alemã.

O detalhe determinante é este: Hanna é iletrada. Só que ninguém o percebe: nem Michael, nem ninguém que com ela convive. O fato é também ignorado durante todos os anos que precedem o encontro entre eles. Melhor dizendo, e isso fica evidente durante as cenas no tribunal que a julga por crimes de guerra a meio do filme, ninguém entre as forças que com ela serviam ao nazismo tinha conhecimento da sua condição de mulher iletrada. Do mesmo modo que ela então recrutava no campo de concentração jovens que lhe serviam como leitores, também Michael será seu leitor, seu mais fiel e dedicado leitor. Confesso que esse detalhe do filme me parece bastante implausível. Por isso espanta-me o fato de que ninguém que o tenha comentado assinalou espanto semelhante. Hanna atravessa toda a sua vida dissimulando seu analfabetismo, mas ao cabo, condenada à prisão perpétua, finda por autoalfabetizar-se.

Michael é um filho da Alemanha do pós-guerra através de quem notamos o quanto a terrível memória do nazismo continua assombrando a consciência alemã. Acompanha o processo de julgamento de Hanna e outras acusadas de crime de guerra como guardas nos campos de concentração quando estuda direito em Heidelberg sob as ordens do prof. Rohl (Bruno Ganz). Às revelações perturbadoras vindas à tona durante o processo soma-se o drama íntimo de Michael que identifica nos horrores dos campos de concentração muito do que viveu na sua intimidade amorosa com Hanna. A função do prof. Rohl, sobrevivente do holocausto, é provocar na sala de aula a consciência dos seus alunos, induzi-los a tudo interrogar para assim melhor compreender o que em última instância escapa à nossa compreensão. Como ele bem observa, a sociedade funciona regida pela ilusão de que se pauta por conceitos morais. Isso não é verdade, acentua. Ela de fato opera baseada na lei, que é falível como toda criação humana. Portanto, horrores como os produzidos pelo nazismo não podem ser julgados com base na distinção entre o bem e mal, entre o certo e o errado, embora os próprios agentes do mal dele tenham consciência. A sociedade opera baseada numa outra ordem de distinção, a observável entre o que é legal e o que é ilegal.

O momento talvez mais perturbador do filme ocorre quando Hanna, interrogada pelo juiz que conduz o processo, afirma com cândida inconsciência a docilidade com que se submetia às ordens que recebia como guarda no campo de concentração. Enquanto 300 prisioneiras judias queimavam trancadas numa igreja que ardia sob bombardeios, ela simplesmente se recusou a abrir a porta que salvaria aquelas vítimas desesperadas. Instada pelo juiz a dar uma explicação convincente ou aceitável, comportou-se como alguém que simplesmente obedece a ordens de acordo com as quais a sociedade funciona, não importando as circunstâncias. Trocando em miúdos: o papel da polícia é cumprir as ordens necessárias ao funcionamento da sociedade, à ordem que precisa funcionar enquanto tal. Essa verdade banal parece-me explicar bem mais do que pensamos acerca do fato de tantos docilmente submeterem-se à injustiça, à força e à opressão, seja por conivência ou ação efetiva. Em suma, a banalidade do mal, evocando a frase célebre de Hannah Arendt, decorre da docilidade com que burocraticamente nos curvamos à lei e à ordem que garantem o funcionamento rotineiro da sociedade. Suponho que esse fato diz algo da docilidade com que milhões aderiram ao nazismo. O que é verdadeiramente espantoso, tendo cada vez mais a acreditar, não é o fato de tantos dizerem sim, mas o fato de alguns dizerem não rebelando-se contra o espírito da horda e da ordem.

Michael e Hanna são oprimidos por um segredo que os torna solitários, arredios, seres turvados por abismos inconfessáveis. Hanna se reabilita, ou pelo menos torna-se mais livre no dia em que ousa ir à biblioteca da prisão, onde foi condenada à prisão perpétua. Toma de empréstimo um exemplar de “A dama do cachorrinho”, conto de Tchecov que Michael leu para ela quando eram amantes e mais tarde lhe enviou gravado em tape. Mergulha em seguida na solitária recriação de si própria ao se alfabetizar guiada pela voz de Michael e um sistema de aprendizagem que intuitivamente elabora e aplica. Michael recria o tormentoso elo amoroso que os liga quando decide gravar alguns enredos definitivos da literatura universal que passam a povoar a solidão de Hanna na prisão. É assim que de algum modo se reconciliam com o amor que lhes ensombreceu a vida inteira.

Depois de muitos anos na prisão, Hanna é beneficiada pela lei que lhe encurta a pena. Michael é inteirado do fato através de Louisa Brenner (Linda Basset), funcionária da penitenciária. Esta encaminha uma carta endereçada a Michael por ser ele o único elo de Hanna com o mundo exterior, do qual ficou inteiramente isolada durante cerca de 20 anos. Depois de muito relutar, ele a visita. Encontram-se no restaurante ao final do almoço, portanto quase vazio. A conversa é tensa e embaraçosa, ao mesmo tempo carregada de mútua emoção reprimida. Quando Michael pergunta se ela refletiu sobre o passado, ela entende, dentro dos típicos limites do egoísmo humano, que a pergunta se refere a ambos, ao passado de ambos. Quando ele a corrige, ela afinal responde que aprendeu a ler.

Hanna suicida-se pouco antes de ser libertada. Deixa aos cuidados de Michael o dinheiro que acumulou para ser entregue a Ilana Mather (sobrevivente do campo de concentração interpretada por Alexandra Maria Lara, durante o julgamento de Hanna, e por fim por Lena Olin, que nas cenas do julgamento interpreta a mãe de Ilana).
Michael visita Ilana em Nova York, onde ela reside, e leva o dinheiro deixado por Hanna numa velha lata de chá. É um dos momentos altos do filme. Tenso e evasivo, ainda incapaz de falar do real envolvimento que tem com Hanna, Michael depara uma mulher intransigente na dor da memória do que sofreu sob o nazismo. Propõe assim, diante do tom evasivo de Michael, que ele comece a ser honesto. Recusa-se ainda a oferecer-lhe qualquer consolação catártica quando assevera que os campos de concentração nada ensinam, não são fonte de catarse. Se é isso que ele busca, melhor ir ao teatro ou à literatura. Depois de admitir que manteve uma relação amorosa com Hanna quando tinha 15 anos de idade, ele lhe fala do dinheiro deixado por Hanna. Ilana o recusa, pois aceitá-lo seria um ato de absolvição que recusa a seus carrascos. Mas aceita reter como lembrança a velha lata de chá da qual remove o dinheiro devolvendo-o a Michael. A velha lata de chá é como um vestígio de regeneração e beleza embrulhado nos horrores da sua memória de criança internada nos campos de concentração.

Na cena final Michael leva sua filha para uma velha igreja isolada dentro da paisagem rural. No campanário repousa o túmulo de Hanna. As últimas imagens se dissolvem na tela quando ele afinal se sente livre para contar a sua filha, pela primeira vez na vida, sua história com Hanna. Nada traduz mais plenamente o sentido dessa libertação final do que as palavras de Isak Dinesen citadas no ensaio que Hannah Arendt lhe consagra no livro Homens em Tempos Sombrios: “Todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas”.
Créditos:
O Leitor (The Reader, EUA, 2008).
Baseado no romance homônimo de Bernhard Schlink
Roteiro: David Hare
Direção: Stephen Daldry.
Elenco:
Michael Berg – David Kross e Ralph Fiennes
Hanna Schmitz – Kate Winslet
Prof. Rohl – Bruno Ganz
Ilana Mather – Alexandra Maria Lara e Lena Olin
Rose Mather – Lena Olin
Louisa Brenner – Linda Basset
Recife, 3 de janeiro de 2011.

sábado, 8 de janeiro de 2011

England, my England


Cheguei pela primeira vez à Inglaterra no dia em que completei 40 anos. Como escreve Drummond num dos seus melhores poemas, “Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado”. Uma cadeira de rodas aguardava-me quando desembarquei no Aeroporto de Heathrow. Foi assim que se deu minha iniciação na democracia que sempre sonhei, aquela onde a cidadania é já uma prática tão corrente que somente causa espanto a quem proceda de um país como o Brasil. Refazendo-me de uma cirurgia no menisco interno, caminhava ainda com certa dificuldade. Daí a cadeira de rodas e o funcionário que me conduziu através do aeroporto com solicitude e paciência exemplares. Eu, afeito às práticas sociais brasileiras, eu é que me senti constrangido por ocupá-lo durante tanto tempo enquanto passava pelo ritual da alfândega, trocava moeda no câmbio etc. Por fim tomamos um táxi, eu e minha amiga Conceição Lafayette, e seguimos para a Universidade de Essex.

A universidade, uma das que surgiram na Inglaterra na segunda metade do século 20, situa-se entre Colchester e Wivenhoe Park. Para quem vinha de uma universidade brasileira, recaio nas comparações inevitáveis, aquela era uma paisagem de sonho. O verde estendia-se sobre os campos, já recobertos pelas folhas caídas das árvores, sinal do outono que se avizinhava. Para além dos prédios, dois lagos e algumas veredas cortando a mata rala. Os lagos inspiraram, aliás, um quadro de Constable, talvez o maior pintor paisagista inglês.

Foi dentro dessa paisagem tão bela e fria que me instalei na Eddington Tower com certa inveja de Conceição, que teve o privilégio de ser encaminhada para a Bertrand Russell Tower. Como era então apaixonado pela obra de Russell, hoje a releio com mais reserva e distância crítica, tocou-me um pouco a frustração de não ser hóspede da residência de quinze andares adornada pelo seu nome. Não bastasse tanto, não tinha a mais vaga ideia de quem fora Eddington. Somente mais tarde é que descobri que foi um grande astrofísico inglês. Como sou iletrado em matéria de física, astrofísica e saberes afins, imaginei que Eddington fora o inventor do futebol ou o primeiro gramático da língua inglesa. Adotei essa fantasia e a ela me mantive fiel mesmo depois de saber quem de fato fora.

Mal assentei os pés na Eddington Tower, apaixonei-me tolamente por Petra. Era uma holandesa loura e linda como uma boneca, o corpo belo distribuído em linhas que me entonteciam nas noites de solidão curtida no quarto minúsculo que era meu pouso e refúgio. Digo refúgio porque logo fui atormentado por uma experiência de cunho regressivo que me fez evocar uma observação muito aguda ouvida anos antes de Gérard Licari: “Fernando, aprender uma língua é uma experiência regressiva, uma regressão à infância”. De fato, ao me defrontar com o mundo inglês, naturalmente regido pela língua inglesa, contraí-me embaraçado, minha severa consciência crítica turvando-me a fala e o entendimento em situações de convívio continuadamente embaraçosas. Como então conversar com Petra, como me valer de minha fluência verbal, de minhas táticas líricas e sedutoras para conquistá-la? Afundei num poço fundo e sombrio, isto é, tranquei-me no meu quarto refugiando-me assim do convívio com os quinze jovens (oito mulheres e sete homens) que comigo compartilhavam o segundo andar da Eddington Tower.

Logo descobri na biblioteca de Colchester, explorando a seção de áudio e imagem, os talking books que muito concorreram para apurar meus ouvidos. Como minha preocupação era assimilar vorazmente o inglês que não aprendi no Brasil, pouco importava a qualidade dos livros que ouvia lendo-os ao mesmo tempo. Importava era a torrente das palavras, a forma como os sons se combinavam, além naturalmente da camada semântica do discurso. Lia e ouvia esses livros obsessivamente trancado no meu quarto, evadindo-me do convívio com as pessoas. Habituei-me assim a atravessar madrugadas de solidão e frio, ocasionalmente fazendo uma pausa, quando já exausto de estudar, para contemplar a fria e deserta paisagem do campus. E assim vivi num mundo à parte durante muitos meses, penando para atravessar a floresta de sons e sentidos condensados em romances de Raymond Chandler, Graham Greene, Anita Brookner, Penelope Lively, P. D. James, Ruth Rendell, Patricia Highsmith, Ford Madox Ford, Joseph Conrad, Thomas Hardy, Ed McBain e poetas como Eliot, Auden, Stephen Spender, Wallace Stevens, Yeats, Philip Larkin...

Por mais que o refúgio da solidão me enchesse a vida e me desbastasse a selva linguística através da qual errava e avançava, por vezes assaltava-me o desamparo do mergulho num mundo estranho e remoto. Salvavam-me desse aperto o convívio com Conceição, a baiana Lígia Bellini, de quem me tornei grande amigo e confidente, o paulista Renato e o grupo de mulheres associado a Conceição. Algumas eram de língua espanhola, vizinhança que já me deixava mais à vontade. Outra amizade decisiva nesse momento difícil foi a que vivi com Nice, nossa amiga de São Paulo que era um modelo de desprendimento e afeto, sempre a postos na amizade desinteressada com que animava gente de todos os tipos e procedências. A ela devo, entre outras coisas, o empréstimo oportuno de um violão espanhol que mais tarde comprei e ainda hoje é parte de minha vida mais lírica e íntima.

Passado esse estágio mais difícil, o do acesso a um mundo novo através da linguagem, que de resto é nossa única via de acesso a ele ou a qualquer outro mundo, senti-me mais livre e confiante para conhecer gente, associar-me a estranhos, explorar possibilidades de vida tão rica e diferenciada. Estudando numa universidade inglesa, tinha à mão uma infinita variedade de expressões humanas, de modos de cultura e experiência simplesmente incogitáveis num país das dimensões do Brasil, tão pouco permeável ao contato efetivo e vivo com outras expressões de cultura. Ali naquele minúsculo espaço do mundo que era o campus podia numa noite ou simplesmente na rotina da universidade conhecer gente de todas as partes do mundo, cada uma portando valores de cultura ainda então por mim ignorados, ou então abstratamente colhidos nas páginas de livros ou imagens de filmes ou outros meios de expressão estética.

É outra coisa, bem outra, saber das pessoas conhecendo-as na sua materialidade física, na expressão viva da voz e dos gestos, na conversa convertida em via de acesso a mundos culturais impensáveis dentro das fronteiras em que até então vivera. Meus anos na Universidade de Essex franquearam-me a oportunidade única de conviver, em alguns casos intimamente, com gente de todas as procedências. Começando pelo andar da Eddington Tower, onde vivi meus seis primeiros meses de Inglaterra, convivi com gente da Escócia, China, Holanda, Uruguai, Grécia, França, Barbados, Irlanda e até Inglaterra. Ampliando meu raio de convívio, fiz amizade com John Magee, que muito me ensinou sobre a Irlanda. Também, já bem mais tarde, o indiano Aditya, professor do Depto. de Economia que se tornou um dos meus melhores amigos. Machado de Assis, que ele lera graças a uma sugestão de leitura de Salman Rushdie, foi nosso elo de ligação inicial. Através de Nice, que já estudava em Essex há vários anos, cheguei a gente de muitas nacionalidades. No ambiente do meu departamento, Sociologia da Literatura, também conheci muita gente interessante, apesar de minha timidez que somente o tempo, o convívio amável com as pessoas e antes de tudo a autoconfiança conquistada através do estudo e do domínio da língua fizeram mais tolerável e discreta.

Um dia Kate Rhodes entrou na minha vida através da porta da sala que durante anos compartilhamos no Depto. de Sociologia da Literatura. Era uma inglesa linda e morena, apaixonada por teatro e dedicada a um trabalho de tese sobre o teatro de Tennessee Williams. Sua doçura, civilidade e inteligência logo me cativaram e logo daí passei ao culto de um amor travado, um amor em mim retido que somente ousei lhe confessar mais de dois anos depois. Minha timidez no mundo inglês chegou a esses excessos espantosos. Embora tivesse namorado, bem pouco interessado em teatro e literatura, aparentemente também bem pouco interessado nela, era comigo que compartilhava a paixão pelas peças que vimos em Colchester, na própria universidade e também em Londres. Quando viajou para os Estados Unidos, para cumprir parte dos seus estudos de doutorado, trocamos cartas muito afetuosas e íntimas. Quando todavia retornou, traiu minhas expectativas mais amorosas e latinas ao evitar cautelosamente qualquer momento de solidão a dois, qualquer margem de contato íntimo.

Um dia, em pleno verão, fomos juntos a uma festa na Roman Road, endereço de uma bela casa utilizada como residência externa da universidade. Nela moraram Renato, meu amigo paulista, e mais tarde Paulo Branco, meu amigo de Brasília. Também a anglo-indiana Bani Makkar, outra paixão que tive na Inglaterra. Bebendo vinho no pátio da casa, descortinava uma linda noite ainda recoberta pela luz do dia, embora o relógio viajasse além das 21h. Quando a acompanhei de volta para casa, pois morávamos ambos no Dutch Quarter, área central de Colchester, não mais resisti à tentação de afinal lhe declarar meu amor, aquele amor lírico e dissimulado que em mim retive durante cerca de dois anos. Quando enfim verti meu amor nos seus ouvidos, virou-se para mim e calmamente afirmou: “Fernando, love is a very serious matter”. E assim ficamos conversados e assim nunca mais me atrevi a lhe falar do meu amor. E assim continuamos os mesmos amigos de antes. Vá um brasileiro romântico e sexualmente impulsivo entender essas peculiaridades inglesas.

O verão de 1990 foi meu grande verão inglês. Já desenvolto, na língua assim como no convívio, cantava música brasileira acompanhado por meu canhestro violão. Ninguém aparentemente notava o quanto tocava mal. Se acaso notava, era generoso e educado o suficiente para nunca observar sem meias medidas: como ele toca mal. Como felizmente não canto mal, compensava uma falta com um ganho consciente. Assim, muitas vezes acolhi amigos na minha casa onde entretínhamos conversa animada, vinho tinto e cerveja e música.

No verão de 1990 abri ainda mais as minhas portas e por ela passaram muitas pessoas, sobretudo Carmen, a espanhola de Segovia que unanimemente elegemos como a musa daquele verão. Como legítima beleza latina, Carmen adorava saber-se eleita nossa musa. Uma corte de homens formou-se à sua volta: o chileno Claudio Andia, o inglês Christopher, o irlandês John Magee, seu mais lírico e devotado adorador, Barah, do Afeganistão, Mazen, do Líbano, o paulista Walter e naturalmente eu. Não é preciso muito exercício de imaginação para adivinhar a quem escolheu. Escolheu Walter, o cafajeste do grupo, o que a queria somente por desejo momentâneo e puro desfrute. Levou-a para a cama e logo a abandonou, além de sair vaidosamente espalhando sua façanha, feito típico de machinho latino. Carmen sofreu no silêncio de suas sete chaves e depois foi morar... adivinhem? com o mais tedioso e desinteressante do grupo: o inglês Christopher. Não bastasse tanto, marcava encontro comigo no bar da universidade. Depois de algumas cervejas deixava-se seduzir e estimulava meus jogos de sedução sem no entanto ceder. Por fim Christopher chegava e ela me deixava sozinho na mesa depois de um beijo e uma carícia no meu cabelo. Entendam os caprichos da imaginação erótica feminina.

Um dia, já depois de muita bebedeira, reuni-me no pátio da universidade com aquele grupo de amigos formado no verão de 1990. Pediram-me que eu cantasse uma música bem brasileira, cheia de alegria etc. A primeira que me veio à cabeça foi a marchinha carnavalesca Mamãe eu quero mamar. Foi amor à primeira vista ou ao primeiro ouvido. Adoraram-na e insistiram para que eu a ensinasse a eles. À noite tivemos uma festa numa das residências da universidade. A meio da farra, brindaram-me com uma surpresa que muito me comoveu. Pediram silêncio e então anunciaram que cantariam em minha homenagem a marchinha brasileira que lhes ensinara poucas horas antes. Foi algo indescritível ouvir Mamãe eu quero mamar cantada por vozes com sotaque inglês, chileno, libanês, irlandês, mexicano...

É difícil fazer com que um brasileiro dos trópicos, atado a vínculos de família, clima e cultura desregrada e festeira, compreenda o sentido da solidão que fatalmente vivemos na Inglaterra. Além do clima, de severidade depressiva para os amantes do sol e dos espaços abertos ruidosamente convividos, pesa a cultura da reclusão, a cultura do convívio indoors, tão regulamentada e ciosa de privacidade que ninguém ousa visitar ninguém sem aviso prévio ou compromisso agendado. Em suma, provei dessa forma de solidão numa extensão e profundidade impensáveis no Brasil. Como todavia a ela muito cedo me afeiçoei, posso dizer que em muitos sentidos me fez bem. Graças a ela pude melhor concentrar-me no estudo, na descoberta de fontes de cultura que prescindem de convívio. Como acredito que ninguém se conhece sem que se submeta a uma intensa experiência de autoexame, penso ainda que nada disso se faz à margem da solidão vivida como objeto de escolha, como ação de recuo voluntário das formas correntes de convívio, do gregarismo inconciliável com a noção da autonomia que caracteriza a individualidade moderna.

Por outro lado, não acho desejável um padrão de cultura cujas normas impõem às pessoas formas de reclusão e frieza tendentes à indiferença. O inglês típico que conheci é admiravelmente civilizado, pautado por uma noção de respeito e tolerância social inconcebíveis no Brasil. Mas não se vive nada disso sem o custo de uma distância social que no limite isola as pessoas erguendo entre elas barreiras que me parecem penosas do ponto de vista do funcionamento saudável do nosso ser psíquico. Era triste, por exemplo, ver o povo inglês nos parques em pleno verão. Cada um, salvo pequenos grupos discretos, move-se no espaço público como uma ilha. Também me parecia por vezes melancólico observar em pleno verão, quando a noite descia às 22h, ruas limpas mas vazias de humanidade, de contato humano tingido pelas cores da alegria e do prazer de viver. Nesse sentido, acho que nossa cultura é de uma vitalidade invejável.

Ponderando assim pela rama algumas das diferenças culturais mais nítidas entre o Brasil e a Inglaterra, muitas vezes, sobretudo depois que retornei à minha terra, dei-me conta de haver me tornado um indivíduo cindido entre dois extremos que, como todo extremo, me parecem indesejáveis. Na medida em que possa individualmente escolher, nem me apetece o extremo brasileiro, que no limite chega à anomia, tamanho é o desregramento que pontua nosso cotidiano cultural, nem o inglês, cujo rigor normativo tende a isolar as pessoas nas suas casas ou na reclusão pública da individualidade privada. Ambos segregam aspectos positivos, tanto nossa sociabilidade desregulada quanto a civilidade fria do inglês, mas os reversos de ambos são também muito onerosos. O problema insolúvel que ainda sofro e certamente continuarei sofrendo pode ser resumido na seguinte pergunta: quanto de repressão no reino da civilização? Ou quanto de abuso no reino da anomia? Se pudesse realizar o país ideal, combinaria o melhor desses extremos observáveis nesses dois modos de cultura tão divergentes.

A Inglaterra me desprovincianizou. Embora há muito avesso a qualquer forma de bairrismo, regionalismo e por fim nacionalismo, todos em graus variáveis males típicos de uma apreensão provinciana da realidade, era ainda prisioneiro de uma experiência provinciana. É certo que lera muito da melhor literatura de corte universalista, assim como sempre procurara abrir meu espírito e minha imaginação para muito além das apertadas fronteiras que confinavam meus 40 anos. Ainda assim, faltava-me talvez o mais importante: faltava-me o contato vivo com uma rica e longeva tradição cultural, ademais diferenciada pelo franco acolhimento de gente de todas as nacionalidades e procedências dentro do seu território.

Como venho de observar, acredito que a Inglaterra me desprovincianizou. Este é um dos bens mais altos que lhe devo e de resto justifica minha anglofilia. Outro foi sua extraordinária civilidade que me facultou ser lá o que nunca consegui ser aqui: um cidadão consciente de que direitos e deveres são o direito e o avesso da cidadania efetiva. Foi lá, naquela ilha tão bela e fria e civilizada que melhor aprendi a compreender o ideal dos dois filósofos que estão entre os que mais profundamente admiro: Sócrates e Montaigne. Procuro humilde e sempre limitadamente realizar-me enquanto indivíduo dentro do princípio que intentaram realizar nas suas vidas exemplares: o princípio da cidadania universal. Sei que isso é antes um ideal ou um mito, mas um mito ao qual vale a pena dedicar o melhor de nossas vidas.

Corrigindo-me a tempo, a Inglaterra não me desprovincianizou. Afinal, a Inglaterra está cheia de ingleses provincianos desatentos ou indiferentes à extraordinária riqueza e diversidade cultural do mundo. Provincianos ou de outro modo etnocêntricos, eis o que de resto somos de forma espontânea e inconsciente, pois a consciência do outro é uma conquista, não um dado. O que ela me forneceu foram condições efetivas de ampliação da minha percepção do outro. Isso é algo que lá encontrei num grau aqui impensável. Mas somos nós que nos desprovincianizamos. Tentarei melhor traduzir essa experiência num artigo que será um desdobramento desta crônica de memórias.
Recife, 26 de dezembro de 2010.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Liberal Vargas Llosa


Sabres e Utopias, a mais recente coletânea de artigos e ensaios de Mario Vargas Llosa publicada no Brasil, reúne em mais de 400 páginas substanciosa e variada amostragem da sua obra de intelectual público empenhado em questões políticas e culturais. O critério de seleção adotado pelo prefaciador do volume, Carlos Granés, privilegia a política e o combate ideológico em detrimento da literatura. Esta é inserida na coletânea já no capítulo final intitulado: “Os Benefícios do Irreal: Arte e Literatura Latino-americanas”. Além de Borges, Octavio Paz e outros poucos escritores hispano-americanos, comparecem os brasileiros Euclides da Cunha e Jorge Amado.

Saliento, todavia, que Vargas Llosa bem pouco considera a literatura compreendida no seu sentido estrito. Já aludi num outro artigo a essa característica tão marcante em romancistas de renome como Vargas Llosa e José Saramago no debate público da cultura. Embora prioritariamente escritores literários, o fato é que quase sempre se pronunciaram sobre questões políticas e ideológicas. A literatura importa, em termos práticos, apenas como aval ou credencial de sucesso para que intervenham na cena cultural contemporânea.

O que Vargas Llosa escreve acerca de Euclides da Cunha e Jorge Amado, também de outros escritores literários, amplia no campo estético suas obsessões político-culturais enraizadas na América Latina. Noutras palavras, lê Os Sertões, por exemplo, antes de tudo como uma das manifestações supremas dos males típicos que infestam nossas sociedades herdeiras do colonialismo ibérico, do misticismo obscurantista, do nacionalismo estatizante e parasitário, das ditaduras e da corrupção endêmicas apoiadas em ideologias que mantêm o conjunto da América Latina na periferia da modernidade e do autêntico liberalismo democrático.

O que é afinal o liberalismo há décadas ardentemente postulado por Vargas Llosa como solução para os problemas crônicos indicados no parágrafo precedente? A pergunta se impõe em face das incompreensões, quando não grosseiras calúnias, que sobre ele correntemente recaem no conjunto dos países latino-americanos. No Brasil, para ficar no nosso terreiro, o conceito do liberalismo é frequentemente deformado na mídia e no que se pode ainda qualificar como franco debate de ideias. Basta que se pense no abuso com que se emprega sua variante, neoliberalismo. Este é sempre usado não como um conceito, mas simplesmente um insulto ideológico, uma forma de se desqualificar sumariamente um político, pensem em Fernando Henrique Cardoso, uma orientação política ou ainda uma opção ideológica.

Mas voltemos a Vargas Llosa. Esclarecer a noção de liberalismo que adota e propõe como solução para a América Latina saturada de ditaduras e populismos é já um meio de melhor situar nossas turvas disputas relativas a conceitos políticos fundamentais. Os textos chave do livro que comento no que se refere ao liberalismo do autor são “Confissões de um liberal” (páginas 299-308) e “Ganhar batalhas, não a guerra” (páginas 245-58), ambos incluídos no capítulo relativo à democracia e ao liberalismo na América Latina.

Destaco e adiante comento estes textos porque nos ajudam a melhor compreender o liberalismo adotado por Vargas Llosa e também, à parte variantes acidentais, Octavio Paz, a quem dedica um belo artigo intitulado “A Linguagem da Paixão”, e José Guilherme Merquior. Cito nominalmente estes por se distinguirem há décadas entre os grandes intelectuais latino-americanos na defesa de políticas liberais como solução gradual para os problemas crônicos de atraso e subdesenvolvimento que tanto marginalizam nosso subcontinente no contexto do capitalismo globalizado. Assim procedendo, opuseram-se corajosamente ao que o comunismo cubano representa como expressão de caudilhismo político e violação sistemática dos direitos humanos. Quando lembramos que a maioria dos nossos intelectuais, dentro e fora das universidades, ainda reluta em tomar posição contra a persistência do comunismo cubano, para não mencionar os que simplesmente insistem em apoiá-lo, não é de espantar que sua postura liberal tenha provocado tanta incompreensão crítica, não raro também intolerância caluniosa. Embora combatam com igual veemência as ditaduras de direita, este fato, como seria previsível, não os isenta dos ataques procedentes de ambos os lados. Afinal, esta é uma verdade tão antiga quanto a política: quem ousa opor-se aos extremos acaba apanhando de ambos.

“Confissões de um liberal” é o texto de uma palestra proferida por Vargas Llosa no American Enterprise Institute for Public Policy Research na oportunidade em que lhe foi outorgado o prêmio Irving Kristol. Depois de salientar que pela primeira vez, ao lhe conferirem o prêmio, lhe reconhecem a unidade ou coerência que sempre procurou realizar no homem e na obra, na literatura quanto na identidade política, Vargas Llosa acentua a imprecisão do conceito de liberal.

Começa por fixar a distinção observável no emprego do termo na tradição anglo-saxônica e na América Latina – também na Espanha, país que há anos lhe concedeu cidadania quando foi expatriado do Peru por combater uma de suas ditaduras costumeiras. Na primeira o termo tem conotações de esquerda, sendo por vezes associado ao socialismo e ao radicalismo político. Já na segunda tradição o termo sofreu um processo singular de perversão semântica, sobretudo quando consideramos sua última variação, o neoliberalismo. No Brasil ele se converte num insulto ideológico, pois o neoliberal é sempre visto como um conservador ou reacionário, adepto desprezível de toda política privatista geradora da opressão imposta aos pobres do mundo. Em suma, é um chavão usado em bloco por todo esquerdista de sindicato ou militante acadêmico. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, Octavio Paz e Merquior, por exemplo, com as políticas adotadas por gente como George Bush, ou com a política externa norte-americana tout court, é mais que um erro de apreciação ideológica, é incorrer na corrupção leviana da linguagem política.

O conceito se torna ainda mais turvo quando os próprios que se definem como liberais divergem entre si, como é aliás frequente. Melhor dar a palavra ao próprio Vargas Llosa, que num parágrafo exemplar ressalta os traços fundamentais do liberalismo que defende:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação ente Igreja e Estado e defensores da descriminilização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado”. (p. 301).

A citação um tanto longa parece-me bem esclarecedora do liberalismo adotado por Vargas Llosa. Ele consiste fundamentalmente na afirmação integrada dos três pressupostos anotados ao final do parágrafo. Compreendendo-os de forma integradora, não incorre na adoção do liberalismo puramente econômico, que tudo entrega às forças do mercado. Pelo contrário, critica em termos veementes esta forma parcial de liberalismo, que na sua perspectiva precisa associar-se à democracia política. Como afirma sem meias palavras, o que distingue a civilização da barbárie não é a liberdade de mercado, não importando o quanto seja eficiente, mas a cultura consistente de um corpo de ideias, valores, crenças e costumes compartilhados em termos democráticos. Se o mercado for entregue a suas forças competitivas cegas, produzirá riqueza, mas sempre ao preço de uma batalha darwiniana, como frisa citando em seguida Isaiah Berlin, um dos teóricos supremos do liberalismo: “os lobos comem todos os cordeiros”.

Além de ressaltar a liberdade como expressão maior do liberalismo que postula, Vargas Llosa coerentemente sublinha a defesa fundamental do indivíduo perante os poderes do Estado. É em nome desse valor supremo, a liberdade individual, que assinala a tolerância como medida civilizada da nossa relação com o outro, sobretudo o outro que nos nega, que pensa diferentemente de nós. Afinal, é fácil concordar com quem conosco concorda. A liberdade individual e a tolerância cívica se expressam antes de tudo diante do diferente, do que pensa diferentemente de nós. Como disse Rosa Luxemburgo, uma comunista libertária, a liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.

O problema do comunismo, para aludir aqui a uma ideologia de esquerda que exerceu poderosa influência sobre os intelectuais e camadas mais críticas das sociedades ocidentais, é que ele, pelo menos em termos práticos, baseou a liberdade na realização da igualdade econômica, além de abolir o Estado burguês embalado pela utopia da extinção do Estado de classe. Ora, o que ele de fato realizou foi a instituição do Estado totalitário a partir do momento em que suprimiu as liberdades civis sob o pretexto de que não passavam de liberdades burguesas. Isso é tão verdadeiro que os melhores comunistas brasileiros precisaram amargar no nosso país uma ditadura militar para aprenderem a importância dessas liberdades, que não podem ser confundidas com valores da classe burguesa. Elas representam nossa defesa última contra o poder do Estado que ameaça nossa autonomia individual.

É dentro do contexto acima que me inquieta, numa dimensão em último caso política, a difusão de uma cultura narcisista, votada ao espetáculo do consumo hedonista, que induz as pessoas a renunciarem à sua liberdade, à defesa de sua vida privada que, reitero, constitui nossa defesa última contra os poderes do Estado. Essa renúncia é bem patente neste trocadilho penetrante: evasão da privacidade. Rendidas ao desejo de aparecer, de usufruir os 15 minutos de fama cronometrados na famosa boutade de Andy Warhol, as pessoas tudo negociam, relembrem o caso exemplar de Geisy Arruda, para conquistarem uma ilusória sensação de importância passível de removê-las das vidas insignificantes que sofrem. Essa renúncia à liberdade individual, servilmente negociada no palco ou passarela onde desfilamos nosso narcisismo insaciável, constitui, no meu entender, uma das mais graves ameaças à liberdade no mundo em que vivemos. Portanto, não é por motivações estreitamente moralistas que a critico, mas por considerar o valor político que em última instância encerra.

Vargas Llosa dedica alguma atenção à cena política e cultural brasileiras quando de algumas passagens pelo país. Louva a política liberal adotada por Lula – o que é fato, não obstante o foguetório retórico deste e de muitos que o apoiam – ao mesmo tempo em que duramente o critica pelos passos mais desastrosos de sua política externa. Para ser mais preciso: critica-o quando posa sorridente ao lado de Fidel Castro, emprestando assim apoio público ao ditador no momento em que este golpeava de morte os direitos humanos de prisioneiros políticos da ilha.

É sem dúvida admirável a tenacidade com que, ao longo de uma longa vida, Vargas Llosa combate em defesa da liberdade compreendida dentro dos termos liberais que procurei esboçar neste artigo. O melhor evidentemente é o leitor conferir com seus próprios olhos os fundamentos do liberalismo que adota atentando em particular para os dois textos acima referidos. Melhor ainda é antes remover a névoa dos preconceitos que contaminam as apreciações ideológicas sobre o liberalismo correntes no nosso meio. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, por exemplo, com o da esmagadora maioria dos nossos políticos, dentro quanto fora do congresso, é apenas concorrer para turvar ainda mais essas águas que somente uma autêntica cultura política poderia adequadamente iluminar.

Por fim, restaria assinalar que Vargas Llosa, dentro da sua tenacidade combativa, é um dos últimos representantes de uma espécie em vias de extinção: a do intelectual público, empenhado na luta das ideias e na defesa das liberdades fundamentais do indivíduo ou ainda dos valores humanos invocados por uma longa tradição humanista que aparenta atravessar um declínio irreversível. Russell Jacoby escreveu há alguns anos um livro, The Last Intellectuals, devotado a essa questão na cena cultural americana. Nele demonstra, em síntese, o processo que deslocou os intelectuais da cena pública (bastaria lembrar nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling e Norman Mailer) para o refúgio da academia, onde hoje entretêm teorias complicadas e radicalismo de cátedra para consumo dos próprios pares, como um jogo de castália praticado em nichos impenetráveis à participação mais ampla do povo no reino da cultura letrada. Vargas Llosa, assim como seus parceiros liberais antes mencionados, Octavio Paz e Merquior, constitui a negação dessa realidade que tende a se impor cada vez mais.
Recife, 24 de dezembro de 2010.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Porto de Galinhas Era o Paraíso


Chegaram a Porto de Galinhas ao entardecer. Era como o paraíso estendendo-se diante de seus olhares maravilhados. O vento gemia nos coqueirais que se espraiavam rente à faixa arenosa. Um pouco além, na imensidão da tarde, as ondas quebravam em sucessão ritmada. O mar era o mundo alongando-se para além da linha do horizonte. Descobriram o paraíso naquele miraculoso entardecer de dezembro, 1971, e o paraíso chamava-se Porto de Galinhas.

Porto de Galinhas era então uma pequena vila habitada por pescadores, gente pobre e obscura que vivia da pesca, do trabalho nos canaviais que dominavam a paisagem entre a praia e a rodovia e de uns fiapos de economia coletora. Não havia luz elétrica, saneamento nem água encanada e o acesso à praia era difícil o suficiente para revestir-se de certo toque de aventura na imaginação exaltada daquele grupo de jovens universitários.

Alugaram a casa de um dos pescadores situada na rua que é ainda a rua central da praia. Era uma casa modesta, mas ainda assim uma das melhores da vila. Tinha dois ou três quartos nus, varanda e quintal. Levaram colchões e esteiras, além de alguns objetos necessários à sobrevivência durante um mês naquela praia remota. No decorrer desse tempo o grupo sofreu frequentes variações, pois parte dos jovens precisava dividir o tempo entre a praia e o Recife.

Ecoando o espírito da época, muitos eram politizados, embora impedidos de praticar a política ou já desinteressados de o fazer. O sentido de politização da vida era tão poderoso, mesmo naquela vila remota, que precisavam de algum modo justificar sua omissão, sua rendição prazerosa à gratuidade da vida, sua recusa da política. Foi ali, naquele remoto verão, que alguns descobriram a literatura hispano-americana lendo García Márquez, Vargas Llosa, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Neruda. Alguns, já conscientes do engodo que é a baixa literatura travestida de literatura engajada, riam de Thiago de Melo, em particular de um livro que embrulhava em versalhada as ilusões esquerdistas do tempo: Faz escuro mas eu canto. Era o caso de José Carlos Freire, que entre risos ameaçava os que à noite lhe tiravam o sono com brincadeiras importunas: “Se não me deixarem dormir, leio em voz alta três poemas de Thiago de Melo”. Era o suficiente para que todos, entre gargalhadas, o deixassem dormir em paz.

Alguns dentre aqueles jovens estudavam medicina. Representavam na Macondo que era então Porto de Galinhas a última geração de médicos inspirados por uma formação de tinturas humanistas e decidido sentido de participação social. Daí a saliência de uma noção política da vida, daí o exercício da medicina social que nitidamente marcou a formação de todos eles. Embora impedidos de militarem politicamente, compensavam esse veto estagiando em hospitais e clínicas públicas, atuando dentro dos limites possíveis nos diretórios acadêmicos da universidade. Mas aquele mês de verão vivido no paraíso de Porto de Galinhas foi um mês de pura e inocente farra, um mês de descoberta de prazeres virgens e insólitos.

O amor era uma descoberta iluminada, diria mesmo inocente. Embora simbolizassem uma geração pioneira, a que começou a rotinizar o sexo entre namorados e a fundação de uma ética avessa à tradição assimilada dentro da família, sintomaticamente criticada a partir de ideais libertários tangidos pelo espírito de uma nova esquerda, nunca se entregaram à promiscuidade sexual, à infidelidade, à dissipação erótica e à cultura da droga que alguns somente mais tarde abraçariam ou provisoriamente provariam inspirados pela curiosidade ou gosto do experimento. A amizade entre casais de namorados, tão intensa entre alguns, era revestida de certa inocência sublimadora das pulsões eróticas que noutros círculos já começavam a arrebentar e logo mais tarde desaguariam na permissividade hoje rotineira.

Embora desatados das repressões correntes na família de então, usufruíram daquele estado de liberdade única à beira das águas iluminados pelo esplendor das noites enluaradas e pelas canções de Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Baden Powell, Vinícius de Moraes e Toquinho comportando-se como um grupo de jovens alegres e inofensivos no seu espírito festeiro. É certo que mudaram a rotina da vila entrando madrugada a dentro na ronda da praia, mergulhando nas águas em noites de luar e dançando ciranda, inventando brincadeira para ver quem seria capaz de ficar aceso na praia até o amanhecer. Também bebiam, sobretudo batida de limão, tão comum nas bebedeiras da época. Certa noite, um deles excedeu-se e armou um dramalhão de menino embriagado. Depois de muita cena e até lágrima de meninão ainda oprimido por obscuros traumas de família, entregou-se às águas num patético simulacro de suicídio para morrer nos braços de Iemanjá, mas logo foi salvo pelo lendário Capitão América.

Havia a música adornada pelos sopros líricos daquele paraíso tropical. Para alguns, os mais líricos, quatro discos compunham o fundo musical fruído à beira mar sob os esplendores da lua cheia. Levavam lençóis que estendiam sobre a areia e se deitavam namorando ou contemplando a vastidão do mar onde a lua se espelhava. Foi ali decerto que um deles viveu iluminações de fundo místico que Freud designou como “sentimento oceânico” da existência.

Mas vamos aos quatro discos acima mencionados. O primeiro era “Lotus”, de Baden Powell. Nunca foi infelizmente reeditado na forma de cd agora corrente. Algumas faixas, entre as melhores num disco de comovente intensidade lírica, circulam agora em coletâneas. É o caso de Viagem. O segundo era “Como dizia o poeta”, um dos pontos altos da parceria Vinícius-Toquinho. O disco ainda hoje impregna a memória musical de alguns que viveram o verão aqui evocado, mas caberia ressaltar Tarde em Itapuã. O terceiro era “É doce morrer no mar”, disco que reúne o melhor das canções praieiras de Dorival Caymmi. Ouvi-lo naquela atmosfera de sonho era uma experiência de dimensão emocional intraduzível em palavras. Por fim, havia “Construção”, disco lançado naquela época que evidenciava o grande poder de renovação de Chico Buarque como compositor. A faixa que confere título ao disco era sem dúvida a melhor, mas talvez outras tenham marcado bem mais profundamente a memória do paraíso fugaz que foi Porto de Galinhas.

Que me lembre, o medo hoje corrente nas nossas praias e cidades ainda não invadira as vidas ruidosas daquele grupo de jovens. Havia, sim, o medo da repressão política imposta pela ditadura em plenos anos de chumbo. Mas esse temor importava apenas para os poucos politicamente ativos dentro do grupo, aqueles que de algum modo, com ou sem medo, moviam-se entre as brechas estreitas através das quais a liberdade e o espírito de oposição respiravam. À parte isso, Porto de Galinhas era um território livre, um paraíso ecológico animando os sonhos e fantasias daqueles jovens inconscientes de forças e poderes que mais tarde atravessariam suas vidas. O fato é que nas ruas, nas praias desertas e mesmo nas grandes cidades, como era o caso do Recife, residência de todos ali reunidos, não se banalizara o medo que no presente assalta nosso cotidiano.

Havia ainda as caminhadas em grupo ao longo da larga faixa de areia que se forma na praia quando as ondas recuam. Andavam muitos quilômetros, ora em direção ao Sul, passando por Maracaípe e o Pontal de Maracaípe, ora em direção ao Norte, onde alcançavam Cupe e Muro Alto. Essas caminhadas eram tão divertidas e variadas, oscilando entre as travessuras em grupo e a formação de casais entretidos em conversas por vezes sérias e confessionais, que nem se lembravam de cansaço ou desânimo.

Mas o fato é que os anos passaram, muitos anos passaram. A ditadura recuou, sobrevieram a anistia e a redemocratização, a década perdida e outras perdas acrescidas de alguns ganhos, já que ninguém é de ferro. Hoje, no momento em que digito essas memórias turvas e grupais, o Brasil move-se na maré montante da acumulação capitalista, da febre de consumo e do otimismo coletivo típico dessa época de festas, sobretudo quando o cenário econômico é tão animador. Como não sei de bem que não segregue males, reitero o lugar comum com alguma variação de forma, a própria expansão capitalista está gerando problemas que tendem a converter o Recife num inferno urbano. Em suma, Recife está se tornando uma cidade intolerável para gente do meu tipo com seu trânsito maluco, tão anômico e violento que mais semelha um ensaio de guerra civil.

Parte desses males estendeu-se para as cidades do interior e para as praias, notadamente Porto de Galinhas. Hoje ela é a mais badalada e concorrida do litoral pernambucano. Há anos, aliás, tornou-se um dos pontos de eleição procurado por turistas de todos os lugares do Brasil, além de muitos estrangeiros. A transformação de sua paisagem humana foi tão profunda no decorrer dos anos que a separam das memórias aqui evocadas que aquele remoto verão de 1971-72 semelha antes um sonho, uma fantasia tramada pela memória carente de evasão dessa realidade espremida entre muralhas de concreto, engarrafamentos opressivos e ruas ruidosas onde circulam massas histéricas.

Há muito felizmente libertei-me das prisões emocionais que tendem a produzir nostalgia, esse tipo de olhar desfigurador do passado tendente a recompô-lo com linhas e cores e situações humanas que nunca existiram, salvo na nossa memória carente de consolação ilusória. O que esbocei nesta breve crônica de memórias foi algo da realidade objetiva e da atmosfera emocional que marcaram minha vida e a daqueles amigos, há muito dispersos no tempo e no espaço, que descobriram Porto de Galinhas quando ela se abria ante nossos olhos deslumbrados e nossa imaginação como se fosse o paraíso, o paraíso fugaz que efetivamente vivemos naquele remoto verão. Mas sei que a própria noção de paraíso é antes de tudo um outro modo de consolação ilusória. Afinal, dentro do próprio paraíso que provei, ou antes figurei na minha imaginação, sentia já o gosto amargo da realidade que me espreitava dois passos além da praia, senão dentro da sua própria paisagem embriagante. O fato é que dali parti iluminado por um mês que transfigurou minha vida crivada de carência e incerteza. Foi graças àquele verão que descobri e fruí alguns dos mais belos momentos de minha juventude; também, por contraste, sofri o bastante para perder em definitivo a poeira das ilusões que deitei à margem da estrada ou lancei ao sopro da brisa que varria o mar de Porto de Galinhas.

Recife, 24 de dezembro de 2010.