segunda-feira, 30 de maio de 2011

Debatendo com o leitor



Nota introdutória:

Tomei a liberdade de reproduzir abaixo parte do debate desencadeado pela postagem do meu artigo MEC e Populismo Pedagógico no blog Amálgama, 15 de maio de 2011 (Ver o mesmo texto no meu blog: http://fmlima.blogspot.com/2011/05/mec-e-populismo-pedagogico.html). Considerada a repercussão do assunto na mídia, meu artigo provocou reações e críticas do leitor talvez sem precedente na história do meu modesto percurso como colaborador permanente do Amálgama. Se me decido a reproduzir parte da polêmica desencadeada pelo artigo, a que me parece mais aproveitável e ilustrativa do que aqui qualificarei de debate de ideias na Internet, faço-o baseado na suposição de que ela ambiguamente enriquece e desdobra a matéria considerada no artigo.

Um esclarecimento adicional ao leitor. Desde que passei a escrever para blogues, tive sempre o zelo de ler, ponderar e quase sempre discutir o que o leitor escrevia na seção de comentário. Essa atitude traduzia, antes de tudo, um ponto de vista ético que sempre pautou minha atividade como articulista. Ciente de que escrevo para o leitor, como de resto todos que o fazem, dei sempre importância aos termos da sua recepção, à forma como me lê e me traduz. Ademais, reconheço que em princípio a introdução da seção de comentário, via de relação direta entre o autor e o leitor, constitui um louvável espaço de democratização da cultura e do debate das ideias. O que todavia constato, passados tantos meses de discussão com o leitor, discussão que com frequência exige mais tempo e elaboração da escrita do que o próprio processo de fatura dos artigos e ensaios que posto nos blogues para os quais escrevo, o que ao cabo constato, reitero, é o pífio ou nulo proveito dessa forma de interação que, convenhamos, pouco serve ao legítimo debate das ideias.

Exponho sumariamente dois procedimentos recorrentes que me parecem invalidar ou corromper a intenção de quem intervém na seção de comentário inspirado pelo propósito de adequadamente praticar o exercício de democratização, de esclarecimento e introdução de um pouco de ordem no caos das interações entre o autor e o leitor correntemente saturadas de mal-entendidos, predisposições tendenciosas, quando não pura e simples má fé. O primeiro procedimento parece-me derivar da singular capacidade que tantos leitores revelam de ler no texto o que nele não se encontra. Observo a tempo que procurei selecionar o que há de mais aproveitável nos termos inconciliáveis da polêmica. A documentação que abaixo transcrevo ilustra um pouco esta questão. Embora ressalte no corpo do artigo, também em várias respostas que postei, o fato de que todo sistema linguístico é composto de muitos estratos e variáveis decorrentes de classe, região e grupo cultural, para não falar das infinitas variáveis individuais identificáveis como idioleto ou estilo, vários comentadores, talvez sintomaticamente os mais agressivos e petulantes, insistiram em criticar o que não escrevi. Cuidei também de frisar que a língua é mutável e portanto se transforma através do tempo. Não bastasse a evidência acima anotada, frisei constituírem verdades comezinhas dos estudos linguísticos e mesmo das gramáticas normativas, pois não conheço nenhuma, por mais que se extreme no zelo normativo, que se atreva a refutar verdade tão elementar e encontradiça. Acrescentei ainda que a norma, seja ela qual for, não procede de nenhuma instância transcendental nem é investida de qualquer essência metafísica. As normas, não só as linguísticas, são uma criação humana, portanto mutáveis e corrigíveis.

O segundo procedimento consiste na confusão, não sei até onde intencional ou inconsciente, do comentador que salta do plano do debate das ideias, objetivo primacial da seção de comentário tal como a entendo, para o da ofensa pessoal. Isso fica patente, por exemplo, nos comentários postados por um certo Flávio. Por razões óbvias, não os transcrevo neste post de documentação polêmica do meu artigo. O leitor acaso interessado em conferir a procedência do meu argumento poderá consultar o tom petulante e ofensivo do que escreve, assim como o comentário de uma certa Carol. A julgar pela petulância com que esta presume corrigir minha ignorância, julgo apropriado conferir-lhe um sobrenome digno da excelência do seu saber linguístico. Vou assim identificá-la como Carol Saussure. Afinal, somente a tocante humildade intelectual dessa leitora, digna discípula do arrogante tecnocrata dos estudos da linguagem que é Marcos Magno, supostamente o guru de todos esses tecnocratas que se sentem investidos da autoridade de legislar para os néscios não linguistas o que é e o que se deve ensinar como sendo a língua portuguesa, só isso explica o prenome que nada traduz do seu gênio. Desdobrando o mesmo princípio, por que não passar a chamar Marcos Bagno de Marcos Magno (primor psicanalítico de lapso linguístico de Deonísio Silva em debate recente no programa Observatório da Imprensa) e Flávio, meu opositor mais ofensivo e grosseiro, de Flávio Jakobson?

O que aprendi depois de tanto ruído e fúria que nada significam? Aprendi afinal a inutilidade de teimar em discutir com o leitor em nome da afirmação de um critério ético que bem poucos consideram: o critério da atenção e apreço que devo ao leitor, o outro polo da função comunicativa da linguagem que constitui uma dos sentidos do trabalho de quem escreve. Acredito ainda nele. Do contrário, por que estaria ainda escrevendo? Mas acredito que a função comunicativa que nos associa se traduz acima e à margem da seção de comentário. Portanto, não mais escreverei uma única palavra nesta, salvo nos casos de correção de algum mal-entendido ou revisão necessária. Concluindo, doravante nada farei além de postar o artigo. Que o leitor o leia de acordo com sua inteligência, senso de discernimento crítico, boa ou má vontade. O que sobrar, se algo sobrar, será de todos ou de ninguém.
Abaixo a documentação transcrita da Seção de Comentário do blog Amálgama anexa ao meu artigo MEC e Populismo Pedagógico. Além de ampliada em alguns parágrafos, vai acrescida de algumas correções de linguagem, revisão e mais preciso enquadramento do meu tom polêmico:

Comentário de Fernando da Mota Lima -19 de maio de 2011.
Caros comentadores: Não me dirijo a nenhum, em particular, por serem muitos os argumentos e ainda maiores os mal-entendidos que cercam esta polêmica e meu artigo em particular. Alguns leitores, no geral escudados no linguista Marcos Bagno, cuja petulância argumentativa torna-o digno de chamar-se Marcos Magno, o Alexandre Magno da linguística, tratam meu artigo como se eu acaso ignorasse a variedade efetiva do sistema linguístico. Se nada há de novo sob o sol, como reza o Eclesiastes, esta seria a última das novidades. É claro que toda língua é um complexo de códigos e modos de expressão. Deixei isso claro no artigo quando aludi às variações de classe, região e também individuais. É claro que na intimidade da minha casa, no convívio espontâneo com os amigos, não falo como na sala de aula. Existe o falar das classes pobres e o das pessoas cultas, o do nordestino e o do sulista, o de Tiririca e o de Fernando Gabeira. Vamos ficar discutindo essas obviedades até quando?

O cerne da minha crítica a esses que chamei e chamo de populistas consiste no fato de adotarem uma norma linguística e pedagógica baseada na falsa igualdade da norma culta com a norma do povo iletrado, do estudante carente que vai para a escola e escreve “os livro num presta”. Corrigir esse erro com base na norma culta não é preconceito linguístico. A função da escola é introduzir o aluno no universo da norma culta. É ela que deve prevalecer como norma regente do código das pessoas letradas. Afirmar isso não é incorrer em preconceito de classe ou cultura. Se Ricardo Lima tem razão ao afirmar que a norma culta não é mais certa nem mais errada do ponto de vista científico (leia-se do ponto de vista dos fatos da língua estudados pela linguística), está errado ao recusar a norma culta como critério de correção instituído socialmente. Se ele pensa o contrário, então faça um concurso, um vestibular, qualquer atividade social baseada na norma culta da língua e escreva como o povo iletrado escreve, ou como ele fala no botequim da esquina.

Outra coisa: norma culta não é apenas imposição dos grupos de elite ou dirigentes. É também isso, mas é também saber objetivamente aferível. É também saber transmitido e refinado através de gerações herdeiras e representantes da alta cultura, expressão que emprego isento de arrogância, mas consciente do sentido valorativo que a diferencia de extratos culturais mais restritos e, por que não?, inferiores. Quem pensa o contrário não vê diferença entre Machado de Assis e a subliteratura que infesta a cultura contemporânea. Tampouco diferencia Tom Jobim e Chico Buarque de Garota Safada (o nome dessa banda vulgar já diz tudo) e Chiclete com Banana.
É curioso: qualquer debate sobre questões culturais acaba sempre em desqualificação dessas verdades elementares em nome do antielitismo, do preconceito de classe e região etc. Acusam de elitismo quem afirma que a norma culta é mais rica, complexa e portanto superior às demais. As pessoas que combatem essa verdade elementar, no geral limitadas ou desprovidas de legítima cultura intelectual, aceitam com santa inconsciência o que correntemente se diz no futebol, religião universal do povo. No futebol existe rei, rainha, gênio, fenômeno, imperador, príncipe, clube de elite, e todas as grandezas e até megalomanias. No reino da cultura intelectual, no entanto, não se pode falar em superior ou elite que o mundo dos pseudoigualitários e populistas cai sobre nossas cabeças. Aliás, é na cultura dos extratos inferiores onde mais prolifera o gosto arrogante, não raro ridículo e absolutamente infundado, da megalomania, do desprezo por tudo que esteja abaixo ou supostamente abaixo. Bastaria lembrar a arrogância com que na mídia e na propaganda oficial de Recife vivem arrotando “o maior carnaval do mundo”, “Pernambuco falando para o mundo”, o melhor x do mundo, o melhor y do mundo. A explicação mais elementar dessa arrogância dispensa elucubrações mais sofisticadas: estamos diante da megalomania e da arrogância que não passam de sintoma de subdesenvolvimento ou bovarismo de periférico.
Mais não digo nem me perguntem, pois acho que esse populismo é incurável. Ele é parte do democratismo picareta que tomou conta do país em que vivemos. Isso é mais revoltante quando pensamos que o Brasil é um país picotado pela espoliação, a injustiça, privilégios e preconceitos de todo tipo. A educação é um dos meios mais poderosos para que a gente adquira consciência disso e a partir da aquisição da consciência crítica lute para tornar esse país efetivamente democrático e portanto melhor. Por isso me indigna a incompreensão dos que me julgam elitista simplesmente por defender o direito de as camadas mais pobres e carentes ascenderem a um melhor padrão de vida, que não se traduz apenas em melhores condições de vida material. Ele se traduz também na aquisição de uma cultura mais refinada e complexa, a que nos faculta o acesso a e o consenso pertinente a valores humanistas mais e mais desprezados pelo materialismo predatório que domina a cultura contemporânea. A educação não é tudo, claro, mas é um dos instrumentos fundamentais para essa mudança que não sei quando virá. Postular a suposta igualdade entre a alta cultura e a cultura de massa pode sugerir na aparência a igualdade e respeito pelo conjunto das expressões culturais de um povo como se ele acaso constituísse um todo isento de diferenciação valorativa.
Fernando.

Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 5:55 pm
O papel da escola é ensinar a variedade de prestígio, à qual se dá um valor social e que, como eu também já escrevi em outros lugares, é cobrada nos vestibulares, concursos, situações formais. Entretanto, é necessário desenvolver o pensamento crítico, para que essa variedade não seja ensinada somente de forma instrumental e sem questionamento, como se tivesse sido transmitida por Deus para que alguns poucos preservassem, enquanto que outros vilões a deturpassem. Todas as variedades mudam com o tempo, inclusive a variedade de prestígio. Coisas que no passado eram totalmente abomináveis passam a ser consideradas corretas depois que são assimiladas pelas pessoas que disfrutam de maior prestígio social. NINGUÉM no Brasil se utiliza da “norma culta” utilizada por Machado de Assis, mesmo que tenha a ilusão de usá-la, pois, se o fizesse, seria internado em um hospício. É mais positivo refletir sobre a língua e observar os belíssimos fenômenos envolvidos com a formação do Português Brasileiro do que ficar reproduzindo dogmas acientíficos, movidos por crenças irracionais. Todo brasileiro tem o direito de assimilar, manipular e usar a seu favor a variedade de prestígio, assim como tem que ter toda a liberdade – sem bullying nem patrulhamento – de usar a variedade com a qual expressa as suas emoções e os seus pensamentos. Isso pode ser inclusive inferido a partir da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. O que chamamos de “norma culta” é dinâmico, nunca para de mudar e, por isso, não pode ser idealizado como A forma correta, que melhor permite que alguém se expresse. Se, na minha comunidade, alguém diz: “Oh, Cráudia, sai cá fora e dê uma espiada nesses menino danado, qu’eles num pode ficá sozim”, nada vai expressar o pensamento e sentimento tão bem nessa situação. Na escola, isso deve ser respeitado como uma variedade, ainda que – na escola – se deva compreender que, em situações mais gerais e formais, o nome Cláudia é pronunciado com “L” e não passou pela mudança linguística pela qual passaram PRAÇA (plaza, place, Platz), ESCRAVO (Sklave, slave, esclavo) etc; que, nessas mesmas situações, quando há somente um, se usa “menino”, mas quando há mais de um, se usa “meninos” (diferente do francês, que pronuncia da mesma forma o singular e o plural; do alemão, que tem outras regras de plural, inclusive manter, em diversos casos, a palavra invariável – der Lehrer, o professor; die Lehrer, os professores); que, diferente do inglês, o adjetivo deve também concordar com o nome e o artigo (danados). Mencionam-se aqui outras línguas de propósito, para demonstrar que, linguisticamente, os fenômenos são plausíveis e as línguas mudam. No inglês de Shakespeare, havia mais flexões verbais que hoje. No português, as flexões estão diminuindo também: eu falo, você/ele/ela/a gente fala, eles/elas/vocês falam – e não é impossível que em, digamos, 200 anos, só exista a forma “fala” para todas as pessoas gramaticais. Se usarmos inteligência e observação, compreenderemos muito mais as mudanças linguísticas e as variedades existentes em todos os idiomas.

Comentário de Ricardo Lima
19,05,2011 - 6:28 pm
Insisto, para que os leigos não caiam nessa: Não há – DE FATO – nenhum tipo de superioridade essencial na variedade de prestígio. Ela precisa ser descrita (sem dogmas, mas sim de fato) e precisa ser estudada/aprendida, Isso é ponto pacífico. Por quê? Por ser a variedade que favorece maior mobilidade social; por facilitar a comunicação, pois é usada de forma mais comum e geral em comparação aos dialetos; por ser a referência em concursos e diversas situações formais, até porque é necessário que algum tipo de padrão comum seja estabelecido. É por isso! Não porque ela é superior, ou seja, não por uma razão transcendental. O simples fato de que essa variedade de prestígio muda é uma prova de que ela não é essencialmente superior. Ela é – ou deveria ser – um acordo comum para facilitar a vida na sociedade. De petista, eu não tenho nada, e discordo do pensamento pseudoesquerdista e populista, do democratismo cínico. Mas isso não me impede de ver a realidade dentro do campo científico, que trata da observação de fatos. Falaram tanto absurdo porque o livro – que nem conheço – observa que não fazer concordância é plausível e normal, que, se as pessoas que entendem do assunto simplesmente se abstêm, o pensamento mítico-dogmático sobre a língua toma conta. A escola tem que, não só, mas também, mostrar que cada comunidade fala como fala e se comunica muito bem dessa forma, para eliminar os estigmas. E, além disso, a escola deve ensinar a variedade de prestígio, pelas razões citadas. É isso.

Comentário de Fernando da Mota Lima
19,05,2011 - 9:47 pm
Caro Ricardo: Sei que meus argumentos serão inúteis, mas talvez esclareçam um outro leitor interessado nesse nosso debate que mais me parece conversa de surdo. Você agora invoca o relativismo de tempo (histórico) e espaço (geográfico) para validar as muitas variáveis linguísticas que segundo você, como todo bom relativista, devem ser igualmente reconhecidas. Não bastasse tanto, você deita falsa cultura de poliglota como se isso acaso conferisse força a seus argumentos. É chover no molhado lembrar que as línguas mudam no tempo e no espaço. A questão não é essa. Vejamos a coisa de outro modo. Toda sociedade, toda cultura humana é composta de um complexo de normas sem o qual ela não se sustentaria. É claro que esse sistema de normas não caiu do céu nem é obra divina, embora muitos crentes assim pensem.

Desde Saussure, um dos fundadores da linguística moderna, sabemos que o signo linguístico é arbitrário, isto é, não é nenhuma essência, nenhuma manifestação metafísica de uma verdade absoluta e universal. Noutros termos, não existe nenhuma relação essencial entre significante e significado. A língua é uma criação humana resultante do trabalho de uma infinidade de gerações. O relativismo dos seus argumentos em nada anula o fato de que ela é composta de estratos que não são fruto apenas de prestígio social ou variação de classe, tempo e espaço.
A besteira que você escreveu sobre Machado de Assis, fosse ela verdadeira, teria internado a mais alta inteligência humanística do Brasil na Casa Verde de Simão Bacamarte.

Leia o último parágrafo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo. Se você é uma pessoa de real cultura intelectual, note que estou qualificando a cultura antes que você venha alegar que todo mundo tem cultura, o que é aliás correto segundo o conceito socioantropológico do termo, você notará que somente uma inteligência extraordinária do ponto de visto linguístico e filosófico poderia traduzir em termos de niilismo radical a concepção da condição humana ali inscrita. Por mais que você force a nota do seu relativismo, não há como pôr no mesmo patamar aquele parágrafo, expressão da alta cultura letrada, com o falar vulgar, iletrado ou mesmo o falar da cultura média. É por isso que Machado exige um leitor altamente cultivado do ponto de vista intelectual. Afirmar essa verdade não é ser elitista. É simplesmente reconhecer que Machado é expressão de uma modalidade de cultura e norma linguística que requer anos e anos de estudo e cultivo literário. No entanto, gente como você aparenta acreditar que tudo é questão de relativismo ou imposição de valor social.

Vou retomar o exemplo do futebol que usei no meu comentário precedente. Como disse, no reino do futebol todo mundo fala de rei, rainha, imperador Adriano, gênio da bola etc. Nunca ouvi ninguém acusar isso de elitismo. Pelé é até hoje reconhecido, com justiça, como o rei do futebol. No entanto, na literatura, na cultura humanística em geral, não falta quem prontamente lance mão de supostos argumentos niveladores das múltiplas expressões da cultura para desqualificar o gênio literário de Machado de Assis, o modelo estilístico que é a sua obra etc. Tratam questões dessa natureza como se tudo se reduzisse a relativismo de gosto ou imposição de prestígio sociocultural.

A explicação me parece simples. O futebol é um esporte baseado num sistema de normas e valores simples que todo mundo entende. Noutras palavras, todo mundo no Brasil tem cultura futebolística, conhecimento básico e comum para reconhecer objetivamente certos valores. Por exemplo: nunca vi ninguém negar talento a nenhum jogador convocado para a seleção brasileira. Há desacordo, claro, acerca de quem é melhor, mas nunca se desqualifica um grande jogador de futebol. Na literatura, nos códigos de linguagem, no debate sobre as normas linguísticas, todo mundo tem opinião e muitos acham que estão certos simplesmente porque não existe verdade universal, porque tudo é relativo etc. Ora, qualquer pessoa pode com facilidade dominar o sistema de práticas e normas que regulam um esporte como o futebol. Ler Machado de Assis à altura das exigências e da profundidade da sua obra é uma conquista intelectual e estética que supõe muitos anos de aprendizagem e experiência. Qualquer pessoa pode num relance identificar o gênio futebolístico de Pelé. Quantas no entanto são capazes de ler Memórias Póstumas de Brás Cubas assimilando a grandeza singular dessa obra-prima da literatura universal?

Cansei. Já que você não cede, Ricardo, o que você faria se fosse um professor? Em que norma se basearia para avaliar uma dissertação sobre Machado de Assis, por exemplo? Quanto a seu relativismo histórico, no caso pedagógico, seria razoável eu, como seu professor, dar hoje em você uma surra de palmatória alegando que no tempo do seu avô era essa a norma corrente na escola? Ou ainda surrar, quando não impunemente matar, uma mulher adúltera simplesmente por ter sido esta uma prática cultural corrente durante séculos de machismo, notadamente no Nordeste de cabra macho onde vivo? Não é por mudar no tempo e no espaço que a norma deve ser ignorada, ou trocada por qualquer outra, ou nivelada a qualquer outra.

A Cultura muda, sim, repisemos essa platitude. Minha ambição, o sentido da ideologia que professo inspirado pelo humanismo racionalista, é vê-la mudar para melhor. É por isso que me oponho à concepção de cultura hoje corrente, pois, na medida em que valida toda e qualquer expressão de cultura, anula o a noção valorativa da cultura sem a qual não iremos a lugar nenhum. Se você se recusa a estabelecer distinções qualitativas no conceito de cultura, então você precisará logicamente justificar toda e qualquer expressão de cultura simplesmente baseado no critério de que tudo é cultura. Cansei. Como dizem os belos versos de Chico Buarque: “já conheço os passos dessa estrada / sei que não vai dar em nada / seus segredos sei de cor”. Paro antes que alguém diga que esses versos fundidos à música de Tom Jobim, a mais alta expressão musical que existe neste país, são iguais a qualquer das boçalidades que passam por música em megashows de musculação e histeria de massa.Ou mera expressão de classe social, status, distinção estética imposta por meros fatores de ordem social e ideológica.

Comentário de Ricardo Lima – 20 de maio de 2011
Engraçado, Fernando, como as pessoas se enganam quando tentam falar sobre quem – e sobre o que não conhecem. Eu sou uma das pessoas menos relativistas entre as que conheço, ao menos no sentido trazido por você. Além disso, jamais passou por minha cabeça deitar cultura de poliglota, apesar de não me sentir envergonhado de ser fluente em algumas línguas – desculpe se isso parece algum tipo de ataque, mas se trata simplesmente de uma verdade e, em relação à discussão, procuro simplesmente me basear em dados concretos. Acho que lhe faltaram argumentos mais racionais. Não acho que seja elitismo de sua parte considerar que a cultura está atrelada a um determinado padrão linguístico, mas acho que isso é uma ficção, pois tanto a cultura quando o padrão se transformam dentro do processo histórico, o qual envolve inclusive a dialética entre as diversas culturas e variedades existentes em um país. Ou seja, a variedade de prestígio existe, é uma realidade, deve ser aprendida/ensinada na escola, conforme eu também afirmei, mas a compreensão da relação que ela tem com as outras variedades, inclusive o continuum existente, os intercâmbios, fazem com que percebamos que não se trata de algo intocado, mas sim de algo que faz parte do patrimônio cultural – embora não seja a totalidade desse patrimônio, a não ser que queiramos apagar todos os discursos outros que, na realidade, existem. O que gerou essa falsa polêmica foi a ideia equivocada de que estavam querendo ensinar os alunos que é OK falar “errado” e que a variedade de prestígio não seria importante. No entanto, reconhecer que as diversas variedades são reais e não podem ser estigmatizadas é muito diferente disso. Primeiro, falar e escrever “errado” é falar e escrever em desacordo com o contexto, ou seja, de uma forma inadequada à situação de uso. Ou seja, dizer “telefonar-te-ei amanhã” numa roda de amigos é tão “errado” quanto usar “Pô, cara, não deu pra faser (sic) o progeto (sic)” em uma correspondência na empresa. Os alunos têm que ser informados disso. Por isso, têm que saber que, em alguma variedade, “os livro” é aceitável, mas na variedade de prestígio (erroneamente chamada de norma culta) não é. Segundo, ensinar a variedade de prestígio de forma instrumental, sem reflexão, pode ser negativo também. Os alunos têm que saber que não se trata de uma variedade perfeita, mas que está em constante mudança e, com o tempo, vai assimilando elementos antes considerados errados. E isso acontece à medida que aqueles que têm maior prestígio social começam a usar tais elementos. Isso é científico, não é adivinhação nem relativismo de minha parte. Os problemas do aprendizado não estão relacionados de forma simplista com essa discussão, tanto que as deficiências existem em todas as disciplinas. Espero que não lhe ofenda a citação de outras culturas, mas coloco só mais um adendo que mostra que o problema está no sistema educacional, não nessa discussão sobre variedades: nos países onde o sistema educacional funciona de forma mais eficaz – ex.: Alemanha, França, Inglaterra, Argentina etc – você acha que não existem as variedades? Na Alemanha, chega ao ponto, em alguns casos, de falantes de um dialeto não compreenderem os de outro. Os berlinenses não “respeitam” quase nenhuma regra de declinação do Hochdeutsch (alemão padrão) no seu falar cotidiano. No entanto, aprendem bem o Hochdeutsch. Na Argentina, o espanhol tem diversas peculiaridades de vocabulário e gramática, e não se deixa de usar “vos podés” no lugar de “tu puedes” nem por decreto. No entanto, aprendem o espanhol padrão. Ou seja, se a escola cita, em um livro, que existem diversas variedades, que todas devem ser respeitadas etc, isso não é obstáculo para que se assimile a variedade tomada como padrão. Por último, sobre Machado de Assis, creio que simplesmente não tenha compreendido. Só quis chamar atenção para a mudança linguística mesmo, observando que ninguém usa o português que era usado por ele.

Comentário de Fernando da Mota Lima
20,05,2011 - 9:40 pm
Caro Ricardo: você desarma meu ânimo polêmico com seu comentário acima. Não no que se refere à substância dos argumentos, que no essencial reiteram o que já nos dissemos. Você me desarma e tiro o chapéu para o seu tom de civilidade. Educação no sentido equivalente a civilidade é algo que me desarma e pouco encontro no convívio com brasileiros. Isso, friso, é o que mais importa no seu comentário. Vou ainda desdobrar a discussão pela última vez ainda com a intenção de introduzir alguma clareza no nosso debate. Estou me cansando de discutir com as pessoas que no geral comentam artigos meus simplesmente por constatar que a discussão no geral resulta inútil, já que não leva a lugar nenhum. Por isso declarei acima que isso era um diálogo de surdos. Se não damos sentido preciso aos termos fundamentais do debate, é inútil, reitero, continuar discutindo.

Por exemplo: refutei o caráter relativista dos seus argumentos e logo você me retruca afirmando o contrário. Se seus argumentos relativos a variações no tempo e no espaço não são prova de relativismo, então um de nós dois definitivamente não sabe o que é relativismo. Já estou cansado de reiterar as variáveis observáveis em qualquer sistema linguístico. São, noutras palavras, variáveis dependentes de classe social, região, indivíduo. Você simplesmente ampliou o escopo da variável espacial ou geográfica (região) ao mencionar exemplos de comparação linguística, isto é, variáveis de idioma. Além, acrescento a tempo, da variável temporal, que no jargão dos linguistas equivale à diacronia linguística quando consideramos uma língua exclusiva. Não discordamos quanto a isso. Também não discordamos quando você ressalta o prestígio social como um dos fundamentos sociológicos da norma culta.
Portanto, nossa divergência não reside no fato de constatarmos várias normas na língua nem as variáveis de contexto social e linguístico em que se manifestam as normas em questão. Meu argumento central é o seguinte: embora várias normas ou variáveis linguísticas convivam na escola, a norma regente deve ser a culta. Acrescentei no meu artigo que o domínio desta não traduz mera questão de arbítrio ou prestígio social. Traduz essas coisas, reitero minha concordância, mas a questão é mais embaixo e é aí que discordo de você, de Marcos Bagno e todos que polemicamente qualifiquei de populistas.

Uma pessoa intelectualmente culta (volto a frisar que o termo culta está modificado pelo advérbio de modo porque reconheço, seguindo o uso socioantropológico, que toda pessoa é dotada de cultura, mas nem todas são dotadas de cultura intelectual) se identifica pela aquisição e uso da norma culta. Isso supõe juízos objetivos de valor que vocês, apologistas da igualdade linguística, se recusam a reconhecer. O falante limitado ao código restrito, aquele que escreve “Os livro etc.”, não está intelectualmente habitado para perceber a realidade de forma crítica, para formular argumentos e propor alternativas à realidade. É isso o que afirmo no meu artigo.
É fato que não li o livro que gerou a polêmica que nos ocupa. Meu artigo seria obscurantista e ignorante, como disse abaixo o obscurantista e ignorante Flávio, se eu confinasse meus argumentos aos limites da reportagem divulgada pela mídia. Quem sabe ler, sabe que meu artigo visa alvos mais amplos e profundos.
Estudei durante mais de quatro anos numa universidade inglesa onde havia alunos e professores de mais de cem nacionalidades. Portanto, uma verdadeira babel de línguas e culturas. Convivendo com gente de culturas e línguas tão variáveis comunicando-se apenas por terem a língua inglesa como denominador comum, suponho haver aprendido algumas lições preciosas sobre relativismo cultural e linguístico. Mas fico por aqui, Recardo. Apesar das nossas divergências e mal-entendidos, valeu a pena discutir com você, sobretudo quando considero o tom civilizado do seu último comentário.

sábado, 28 de maio de 2011

MEC e Populismo Pedagógico



Repercutiu na mídia o fato de o MEC (Ministério da Educação e Cultura) adotar um livro de português no qual os autores, ligados à ONG Ação Educativa, justificam e validam na escola expressões linguísticas do tipo: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. A julgar pelos critérios linguísticos e pedagógicos adotados na obra, corrigir ou reprovar erros dessa natureza seria incorrer em preconceito linguístico. Aliás, a correção seria injustificada, já que não se trata de erro, mas de simples variação linguística. Há aí uma confusão que procurarei esclarecer adiante.

O MEC justifica a adoção do livro alegando que corresponde aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Suponho, baseado no mesmo critério, que o aluno carente poderia justificadamente escrever “Os Parâmetro Curricular Nacionais”. Infelizmente, não é o meu caso. Sendo assim, sinto-me constrangido a escrever seguindo a norma culta relativa à concordância nominal. Pensando melhor, vou me reeducar lendo esses livros adotados pelo MEC, primores do populismo pedagógico corrente na nossa política educacional, para não ser vítima de preconceito linguístico.
Seguindo ainda as justificativas expostas pelo MEC, a adoção da norma linguística culta nas escolas não passa de um mito do qual ele louvavelmente se declara determinado a nos libertar. É sem dúvida alentador saber que uma das missões confessas do MEC é libertar o aluno da tirania que nós professores sobre ele exercemos erradamente apoiados numa noção normativa que não passa de um mito. Esse mito opressor precisa ser varrido das nossas escolas.

Trocando a justificação da ignorância em miúdos (ou inguinorância, como escreveu Clovis Rossi com preciso corte polêmico na sua coluna da Folha de S. Paulo), insistir numa pedagogia baseada nesse mito seria mutilar culturalmente o código linguístico do aluno. Além de constituir uma forma de violência simbólica, como afirmou João Paulo Filho, essa atitude desprezaria o fato de que a língua escrita “não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos”.
Ora, quem disse que postular uma pedagogia baseada na norma culta da língua é confundir a língua escrita com a língua falada ou com os dialetos compreendidos pela língua portuguesa? O reconhecimento da distinção corrente entre língua falada e língua escrita é uma verdade elementar. Mais que essa distinção, é também elementar o reconhecimento da variedade de códigos linguísticos compreendidos pela língua geral que falamos. Eles decorrem das diferenciações objetivas inscritas nas variáveis de classe e região compreendidas por todo complexo linguístico. Uma coisa é reconhecer e respeitar esses fatos comezinhos da realidade linguística de qualquer cultura, outra bem diferente é desqualificar a norma culta, objetivo e ideal de todo processo educativo, em nome de um suposto princípio de democracia linguística que não passa de populismo pedagógico.

Aparentemente, a política educacional postulada pelo MEC é inspirada em princípios louváveis, tanto que a opinião corrente também aparenta aprová-la. Mesmo alguns críticos que contra ela se pronunciaram, como é o caso do professor Evanildo Bechara, invocam apenas argumentos restritos ao pragmatismo social, que bem entendido significa zelar pelas oportunidades de ascensão social dos estudantes. Dizendo melhor, é preciso induzir o estudante à aprendizagem da norma culta por constituir ela uma das precondições de ascensão profissional baseada na educação escolar. O buraco é mais embaixo, como reza o lugar comum. O episódio que aqui discuto é antes de tudo um sintoma entre muitos de uma pedagogia que mais e mais se impõe nas nossas escolas e o próprio MEC, instituição reguladora do nosso sistema educacional, tende a promover.

Dado que me falta autoridade para discutir aspectos mais amplos e precisos da nossa política educacional, prendo-me unicamente a algumas observações de caráter geral. Formar a criança e o jovem para o exercício da cidadania, um dos alvos da educação, é um ideal agora rotineiramente deformado por idiotices como o slogan “criança cidadã”, que evidentemente supõe a consciência e o exercício da cidadania na infância. Que dizer de um disparate desses? Outro de circulação ainda mais ampla, verdadeiro refrão da pedagogia permissiva e enganadora de adoção generalizada, reside na ilusão de supor que a aprendizagem deve basear-se no prazer. Aprender brincando, aprender gozando, são lugares comuns na representação da experiência educativa. Esse disparate circula nos clipes publicitários das instituições educacionais difundidos pela mídia e, o que é mais grave, é de fato adotado pela escola em geral, assim como em muitos projetos e programas pedagógicos.

Voltando ao assunto específico deste artigo, introduzir o aluno no universo da norma culta da língua foi sempre um dos objetivos do sistema escolar. Do contrário, qual o sentido de educá-lo? Quero dizer, se o objetivo é mantê-lo prisioneiro do código restrito que emprega, reflexo aliás da sua subordinação social e das condições culturais restritas características de um ser em formação, por que então puni-lo com as agruras necessárias de qualquer processo educativo? Ninguém aprende sem esforço, disciplina e constância, tenhamos o bom senso de admitir essa platitude implicada em qualquer experiência de aprendizagem. Ninguém toca violão sem fazer calo nos dedos que desenham uma sequência de acordes no braço do instrumento, assim como ninguém se torna um craque de futebol, valho-me do exemplo mais universal da cultura contemporânea, sem muito suor, aplicação e tenacidade. Se a aprendizagem que qualifica os atores para o reino do entretenimento é assim, o que dizer no âmbito da escola, da educação formal? Os lugares comuns que acabo de mencionar seriam inteiramente dispensáveis, não fosse o clima corrente de fantasia publicitária em que passamos a viver na mídia, nas escolas, nas práticas e representações culturais dominantes.

O populismo pedagógico que denuncio neste artigo é mais grave, também de percepção restrita, porque ele se mascara sob as vestes de uma ideologia aparentemente muito louvável. Ele supostamente se põe em defesa dos oprimidos, das camadas socialmente subordinadas ou ainda das classes desprivilegiadas, como reza outro lugar comum. Por isso é proposto por pessoas que se identificam como de esquerda, quem sabe revolucionárias. Tenhamos no entanto a coragem de afirmar que serve em termos efetivos apenas para manter o estudante pobre no estado de subordinação social que a educação deveria concorrer para transformar. Um dos meios de se alcançar tal ideal consiste precisamente no acesso ao código elaborado da língua, ou na assimilação da norma culta que conduz à consciência crítica da sociedade, à capacidade cognitiva de propor alternativas para a ordem social existente, para o estado de desigualdade e exploração corrente na sociedade brasileira. Introduzir o aluno no universo da norma culta significa, noutros termos, abrir os horizontes da sua consciência para a crítica dos preconceitos e ideias feitas enraizadas no solo social onde domina a consciência espontânea.

Já que os propositores da pedagogia populista e pseudoigualitária invocam argumentos ideológicos de esquerda, quando não francamente revolucionários, conviria ressaltar que nenhum revolucionário que conheço confiou na consciência espontânea do povo. Karl Marx, líder supremo do comunismo moderno, denunciou a consciência espontânea do povo, assim como,nas suas palavras, a idiotia rural, que precisaria ser superada como precondição da revolução proletária. Lênin foi mais longe e postulou a necessidade do revolucionário profissional, cuja função maior seria o exercício de um apostolado revolucionário intransigente, já que o povo, mergulhado na consciência espontânea e alienada, jamais se mobilizaria em favor da revolução, fato que a história das revoluções parece comprovar. A evidência disponível – ou a que conheço, noutras palavras - indica que não houve na história revolução baseada na consciência espontânea do povo.

Mas deixemos a revolução de lado, já que ela não figura nos meus propósitos ideológicos e de resto não identifico nenhuma possibilidade revolucionária no horizonte da história acaso comparável ao figurino das revoluções que sacudiram o século 20. Os limites e fins que viso são bem mais modestos, como suponho sejam também os do MEC e os do establishment pedagógico. O que tenho em mente é o que já assinalei neste artigo: a assimilação da norma culta da língua, ou do código linguístico elaborado, como uma das precondições de uma consciência social crítica, passível assim de propor mudanças necessárias no quadro de uma sociedade caracterizada por condições iníquas de desigualdade e exploração do povo. Propor orientações pedagógicas do tipo que discuto neste artigo, atinentes ao ensino da língua portuguesa, é apenas concorrer em termos efetivos para a manutenção das condições sociais que a pedagogia populista supostamente combate.
Recife, 15 de maio de 2011.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural


Já observei de passagem, noutros textos aqui postados relativos ao modernismo e ao regionalismo, a importância que a questão da identidade cultural ocupa nas obras de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Gilberto Freyre, assim como na de praticamente todos filiados a esses dois movimentos. Apesar do tempo que nos separa da irrupção desses movimentos na cultura brasileira, a questão da identidade se mantém ainda muito viva entre nós. Um fato que bem ilustra a evidência desse fenômeno é a instituição de uma secretaria de governo exclusivamente dedicada à administração política da questão, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. De imediato, isso parece contradizer a crença de que somos dotados de uma cultura forte e integrada. Afinal, se somos assim, por que precisaríamos de uma secretaria empenhada em defender e promover nossa identidade cultural?

Até onde sei, essa secretaria é uma instituição singularmente brasileira. Ela parece denotar que somos ainda um povo inseguro acerca da sua identidade cultural. Outra evidência dessa insegurança é demonstrável na frequência com que esse assunto vem a público, não raro em tom polêmico. Um dos que mais enfática e polemicamente se pronunciam sobre ele é o escritor Ariano Suassuna, que tem sempre se conduzido na esfera pública como um defensor intransigente da nossa identidade e do que no seu entender seria a autêntica cultura brasileira, baseada nas tradições enraizadas no catolicismo ibérico conservado pela história do sertanejo nordestino. Com seu dom de criar frases polêmicas, ele há pouco afirmou numa entrevista que não troca seu oxente pelo okei de ninguém.

Mas voltemos no tempo para melhor caracterizar o problema da identidade cultural brasileira. Desde o século XIX as ciências sociais aqui produzidas imprimiram relevo ao problema da identidade cultural. Também a literatura, conviria acrescentar. Basta que se pense na ênfase que nossos românticos conferiram à questão, em particular Gonçalves Dias e José de Alencar. Como antes observei (ver os textos Modernismo e Cultura, Modernismo e Regionalismo), os modernistas e regionalistas retomam a questão nas décadas de 1920 e 1930. Mas ela esteve sempre presente nos estudos e nas reflexões de nossos principais escritores. Menciono alguns com a intenção de sugerir a persistência do problema da identidade cultural no desenvolvimento da nossa cultura: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto, Nina Rodrigues, Manuel Bonfim. É curioso observar que nosso escritor mais universal e importante, Machado de Assis, passou ao largo das obsessões e polêmicas e teorias relativas ao nacionalismo e à identidade cultural.
Completando neste parágrafo a síntese do percurso histórico acima esboçado, a questão da nossa identidade cultural prolonga-se muito além das décadas de 1920 e 1930, que assinalam o auge dos movimentos modernista e regionalista. Ela é retomada durante os anos 1950, marcados pela euforia do nacionalismo desenvolvimentista orquestrado pelo governo Juscelino Kubitschek e adentra pelos anos 1960. Mesmo depois do golpe militar de 1964 e da associação flagrante do regime militar com o capitalismo estrangeiro, que promoveu a modernização autoritária atrelada à globalização econômica e cultural acelerada a partir da década de 1970, a angústia da identidade esteve no centro da ideologia nacional popular característica dos movimentos políticos e culturais, perdeu força durante as décadas de 1970 e 1980 e hoje aparenta estar diluída no clima da globalização dominante no país.

A identidade cultural é no geral considerada como um equivalente da identidade nacional. Não é à toa, por exemplo, que os dois termos percorrem o conjunto da tradição acima indicada, em particular a história do modernismo e do regionalismo, que tão obsessivamente se prenderam a uma e à outra. Macunaíma, de Mário de Andrade, é uma tentativa de responder ao problema que tanto o angustiava acerca da identidade coletiva, que na sua imaginação se confundia com sua própria identidade. Um verso famoso contido num dos seus poemas de Paulicéia Desvairada, “Sou um tupi tangendo um alaúde”, traduz sua identidade dividida entre a herança indígena e a europeia.
Também Gilberto Freyre declarou que a motivação decisiva para que ele escrevesse Casa-Grande & Senzala foi a necessidade de descobrir quem ele era como indivíduo e como brasileiro, isto é, a identidade individual era indissociável da nacional. Noutras palavras, descobrir a cultura brasileira e sua identidade, ambição maior desta obra fundamental, era também descobrir a própria identidade do autor.

O modernismo e o regionalismo, através da obra dos seus representantes maiores, desempenharam papel decisivo no sentido de melhor situar o brasileiro dentro da sua própria cultura, no sentido de integrar sua identidade à cultura plural e real do país. Antes deles, nossas elites ilusoriamente se representavam como se fossem europeias, antes de tudo francesas. Era nesse sentido que Sérgio Buarque de Holanda afirmava que somos desterrados em nossa própria terra. O brasileiro da elite via a si próprio como herdeiro da cultura europeia e assim lutava para suprimir de sua identidade seus traços indeléveis de procedência indígena e africana.

As políticas de imigração adotadas por São Paulo a partir de fins do século XIX, a teoria do branqueamento da população brasileira e a política de reforma urbana do Rio de Janeiro, inspirada no modelo do barão de Haussemann para a reforma de Paris, são evidências desse desejo de ser europeu nos trópicos. O livro de Jeffrey Needell, Belle Époque Tropical, documenta e analisa muito bem essa pretensão da elite brasileira, sua fantasia de ser europeia. Como viver essa ilusão sem reprimir ou marginalizar os fortes elementos diferenciadores da nossa cultura, precisamente aqueles que nos distinguem da Europa e resultam do nosso processo de miscigenação racial e cultural envolvendo o indígena, o português e o africano? Como indiquei noutro texto já acima citado (Modernismo e Cultura), a passagem do poeta suíço-francês Blaise Cendrars pelos círculos modernistas brasileiros ilustra muito bem essa questão.

Foi nesse sentido que os modernistas e regionalistas concorreram de forma decisiva para alterar de forma efetiva a representação da nossa identidade cultural ou a representação da cultura brasileira. Assim como Mário de Andrade converte nas páginas de Macunaíma valores culturais depreciados pela nossa elite em valores positivos, antes de tudo nossa miscigenação racial e cultural, Gilberto Freyre procede de forma semelhante ao compor num grande e poderoso ensaio o processo da nossa formação cultural. Através da apreciação positiva da nossa cultura mestiça, que desde suas origens integrou valores conflituosos ou antagônicos provenientes das diversas matrizes culturais que forjaram a cultura brasileira, ele pintou um quadro da cultura brasileira e do nosso povo tão admirável e compreensivo que levou o brasileiro a reconhecer no quadro sua própria imagem. Assim fazendo, Gilberto Freyre contribuiu de forma decisiva para reconciliar o brasileiro com sua própria cultura, com sua própria identidade.

Notem que até aqui não me arrisquei a propor um conceito de identidade cultural. O motivo dessa omissão é claro: não acredito que exista uma identidade cultural objetivamente dada, uma identidade que possamos reconhecer no universo objetivo das relações culturais. Penso que a identidade é uma construção ideal, um recorte seletivo feito pelos teóricos da identidade a partir da representação ideológica que propõem sobre o que seja a identidade cultural de um povo. Mário de Andrade afirma em certos contextos de sua obra (ver o Ensaio sobre a música brasileira) que ela já existe como realidade inconsciente expressa na criação popular – na música popular, por exemplo. Nesse sentido, o papel que caberia a um intelectual como ele seria organizar essa identidade inconsciente, dar-lhe forma estética e ideológica através da criação intelectual cuja função maior seria integrar a cultura popular à cultura da elite. Noutros contextos, porém, ele se contradiz. Isso ocorreu quando se empenhou numa verdadeira cruzada proselitista destinada a promover a valorização e o reconhecimento da cultura e da identidade brasileira. Isso é evidente na passagem que abaixo transcrevo de uma carta que escreveu para Carlos Drummond de Andrade em novembro de 1924:
“Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime.” (A lição do amigo, p. 5).
A citação acima contradiz claramente o que Mário afirma no Ensaio sobre a música brasileira e noutros pontos da sua obra. Se o Brasil tem já uma identidade detectável na inconsciência cultural do povo, nas formas espontâneas e tradicionais da sua cultura, por que então ele afirma para Drummond que o Brasil não tem ainda uma alma e por isso precisamos lutar para dar uma alma ao Brasil e por fim integrá-lo no concerto das grandes nações do mundo, como ele também afirmou? Do mesmo modo, se temos hoje uma cultura e uma identidade consolidadas que nos inspiram confiança e orgulho, por que então precisamos instituir uma secretaria da identidade cultural, um órgão governamental para trabalhar pela afirmação da nossa identidade e da nossa cultura?

O fato acima parece antes de tudo traduzir a persistência da nossa angústia de identidade. O historiador Evaldo Cabral de Melo observou com razão que esse problema da identidade, da necessidade de afirmação de uma cultura nacional, é um problema típico de países de passado colonial, como é o caso do Brasil, incapazes de realizar integralmente seu ingresso na modernidade. Seria também o caso de países como a Rússia, que ficaram na periferia da modernidade. Como Gilberto Freyre ressaltou, são fortes as afinidades culturais entre a Rússia do século XIX e o Brasil da época em que ele escreveu seus livros fundamentais sobre a nossa história cultural.

A observação de Evaldo Cabral de Melo parece-me abrir uma trilha fecunda para melhor compreendermos a persistência da questão relativa à identidade cultural do Brasil. No meu entender, ela não foi nem poderia ser resolvida pelos nossos teóricos da identidade, não importando a grandeza da obra que produziram visando interpretar e resolver nossos impasses culturais. De Sílvio Romero a Darcy Ribeiro, passando pelos modernistas, regionalistas, desenvolvimentistas, nacional-populares e nacionalistas em geral, dispomos de uma grande e admirável tradição de estudos e interpretações correntemente alinhada sob o rótulo do pensamento social brasileiro. Muitos desses estudos importam, além dos seus valores teórico-interpretativos, como indicação de medidas de ação prática para a modificação da nossa realidade sociocultural. Mas o nó da questão, segundo entendo, radica na necessidade da transformação estrutural da nossa sociedade. Quero dizer, enquanto mantivermos grande parte dos brasileiros, como é fato, à margem das conquistas da modernidade, será ilusório acreditar numa identidade que não esteja sempre sonhando ser o outro, sobretudo o outro simbolizado na cultura norte-americana. Trocando em miúdos a questão do ingresso do conjunto da população brasileira no horizonte da modernidade, que no Brasil é ainda muito parcial ou restrita, somente ingressaremos de fato na modernidade no dia em que o brasileiro em geral tiver acesso efetivo à democracia social e cultural. Isso quer dizer acesso à habitação, educação, saúde, justiça, segurança social e transporte público. Em suma, qualidade de vida substantiva, que não é bem comprável nas vitrines de shopping center, como nos enganam os publicitários cuja função principal é vender ao preço de qualquer mentira.

Visando acrescentar alguns indicadores objetivos para uma melhor compreensão da identidade cultural, concluiria acrescentando que o núcleo duro da identidade cultural, valho-me de expressão escrita por Teixeira Coelho no seu Dicionário crítico de política cultural, é composto pelos traços culturais mais fortes e constantes na história do nosso povo. Eles se manifestam nas tradições orais presentes na língua, nas tradições religiosas, nos mitos e narrativas populares, nas tradições artísticas. As tradições religiosas compreendem as formas de crenças, mitos e ritos coletivos. Caberia ainda acrescentar a essas manifestações sagradas as formas da cultura profana: carnaval, tradições folclóricas, os esportes, sobretudo o futebol, as festas e as manifestações artísticas.

É preciso, no entanto, também considerar que a cultura geral do Brasil compreende uma grande diversidade de expressões ligadas às diferentes regiões, classes sociais e múltiplos grupos formadores do conjunto da nossa nacionalidade. A isso seria ainda preciso acrescentar, na realidade do mundo globalizado em que vivemos, valores e comportamentos culturais compartilhados por múltiplas nacionalidades culturais. Esse fato cada vez mais poderoso no mundo em que vivemos – o fato relativo à cultura globalizada – complica a existência da identidade cultural baseada na noção de núcleo duro. Enquanto o núcleo duro pode ser compreendido como o conjunto de valores e práticas culturais comum à maioria do povo brasileiro, a dimensão relativa à cultura globalizada, típica da sociedade contemporânea, segmenta ou fraciona as características culturais de acordo com a variação dos grupos baseados nas diferenças de região, classe e vinculação à cultura globalizada que concorre visivelmente para mudar os padrões de identidade nacional.

Referências bibliográficas:
Lourenço Dantas Mota (org.). Introdução ao Brasil – Um banquete no trópico. Volumes I e II. São Paulo: Editora Senac, 1999 e 2001.
Mariza Veloso e Angélica Madeira. Leituras Brasileiras. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Paz e Terra,1999.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Modernismo e Regionalismo




A história das relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife parece o romance familiar de dois irmãos desunidos brigando por heranças e feitos que, quando avaliados de forma isenta, são bens comumente amealhados, refeitos e transmitidos a seus herdeiros, que somos todos nós. Para ser mais fiel à analogia, a briga, ou os rompantes de desunião, são antes de tudo do irmão pobre, isto é, do regionalismo nordestino. O fato é sociologicamente compreensível. Como São Paulo tornou-se, à altura em que o modernismo lá eclodiu, a força hegemônica do país, é compreensível que não conceda importância demasiada ao irmão pobre. Aliás, o fato mesmo de o modernismo eclodir em São Paulo com as características que marcaram seu ímpeto modernizador e internacionalista constitui por si só uma evidência da hegemonia mencionada.

O fato é que só recentemente se afirma uma corrente nos estudos de crítica literária e cultural tendente a reconhecer e sobretudo demonstrar as afinidades que atam esses irmãos desavindos. O crítico pioneiro dessa corrente foi provavelmente José Aderaldo Castelo, como se pode verificar lendo seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo (1961). Aliás, antes dele Sérgio Buarque de Holanda fez o que pôde, com exemplar isenção crítica, para conciliar os irmãos desunidos quando escreveu em 1951 uma série de três artigos sob o título “Fluxo e Refluxo”. Esquecidos durante muito tempo, podem agora ser consultados pelo leitor na obra O Espírito e a Letra, composta por dois volumes que reúnem seus estudos de crítica literária dispersos durante muito tempo em periódicos inacessíveis ao público.

Sérgio Buarque põe o dedo na ferida, ou no motivo da briga, quando ressalta que o modernismo, embora de início universalista e até cosmopolita, foi também nacionalista e regionalista. Ele faz essa observação, comprovada pela história do movimento, visando corrigir o ponto de vista de Gilberto Freyre, que em 1941 escreveu uma introdução polêmica para seu livro Região e Tradição opondo o regionalismo de Recife, por ele liderado, ao modernismo de São Paulo. O eixo do conflito, ou o ponto de separação entre os dois movimentos, residiria no caráter internacionalista e até europeizante do movimento paulista. No lado contrário, Gilberto Freyre argumenta que se colocaria o regionalismo de Recife cuja inspiração regionalista procurou revalorizar a cultura brasileira a partir de suas fontes regionais e tradicionais.

Também José Lins do Rego, o discípulo mais fiel e arrebatado de Gilberto Freyre, assinou o prefácio do já citado Região e Tradição em tom de exaltada devoção à liderança intelectual exercida por Gilberto Freyre. Indo além disso, engrossou a briga aberta contra os paulistas atacando o modernismo e reiterando em tom polêmico o pioneirismo do nacionalismo postulado por Freyre a partir da perspectiva regionalista que adota no livro e no conjunto da sua obra. A valorização das fontes regionais da cultura brasileira levou Gilberto Freyre e seus seguidores a reivindicarem para o Nordeste uma posição de originalidade e fonte de valores nacionais que volta e meia são repostos em termos polêmicos.

Sem a intenção de resolver essa briga regional, que com certeza vai além das disputas atiçadas por Gilberto Freyre e José Lins do Rego, assim como por outros intelectuais e artistas nordestinos, um dado fundamental para compreendermos de modo criticamente isento essas disputas sem fim deriva com certeza das relações de rivalidade e ressentimento nutridas pelo irmão pobre contra a dominação e os preconceitos provenientes do irmão rico. Como este tem mais poder, a historiografia oficial do modernismo, produzida sobretudo em São Paulo, tendeu a subordinar o regionalismo ao modernismo tratando muitas vezes Gilberto Freyre, José Lins do Rego e outros grandes nomes da cultura nordestina como capítulos da história geral do modernismo, quando não meros anexos. Nesse sentido, é compreensível o ressentimento de Gilberto Freyre e de muitos dos seus seguidores. Mais que compreensível, é necessário salientar que a obra de Freyre, assim como dos grandes representantes do regionalismo nordestino, se fez de forma independente do modernismo paulista.

Vejamos melhor a questão da independência ou autonomia tanto do regionalismo de Recife quanto da obra dos grandes representantes do regionalismo nordestino. Gilberto Freyre formou-se até academicamente nos Estados Unidos. Além disso, sua filiação à cultura inglesa está muito bem comprovada não só em muitos dos seus depoimentos, mas sobretudo na sua obra e na sua formação geral. Gilberto foi provavelmente o primeiro jovem brasileiro que fez estudos sistemáticos de sociologia e ciências humanas nos Estados Unidos. Quando voltou a Recife em 1923, portanto no ano posterior à eclosão do modernismo, cuja data de batismo é a Semana de Arte Moderna, era portador de ideias próprias e independentes com relação à arte moderna e à cultura brasileira. Quanto a José Lins do Rego, este formou-se sob o influxo direto de Gilberto, a quem sempre devotou a mais irrestrita admiração e amizade. O caso de Graciliano Ramos também reforça o argumento relativo à autonomia do regionalismo nordestino. O mesmo, em linhas gerais, se aplica a Jorge Amado. Portanto, é coerente a resistência que todos opõem ao modernismo, resistência que em alguns chegou ao extremo da recusa a qualquer filiação ou afinidade estética e ideológica.

Considerado o argumento exposto no parágrafo precedente, é compreensível que os nordestinos, antes de tudo Gilberto Freyre, se tenham empenhado em reivindicar a autonomia do regionalismo sediado no Recife. Se já nos anos de 1920 Gilberto se ressentia do modernismo, propondo a partir de Recife um movimento de renovação cultural independente, seu espírito de independência certamente acentuou-se depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, que logo o consagrou como o mais importante intérprete da cultura brasileira. Em 1941, quando lança Região e Tradição, como acima observei, desfecha com a ajuda de José Lins do Rego uma polêmica contra o modernismo que durante muito tempo sobreviveu e alimentou muito mal-entendido. É a tal briga entre irmãos a que aludi na abertura deste texto.

Tentando pôr ordem na casa, se possível reconciliando de vez os irmãos brigados, conviria destacar que modernismo e regionalismo têm bem mais em comum do que tendiam a admitir nossos regionalistas ressentidos. Personalizando a questão, pois a briga foi com frequência encarnada nas figuras dominantes dos dois movimentos, Mário de Andrade e Gilberto Freyre, Mário e Gilberto seguiram linhas muito convergentes na obra que produziram e nos caminhos que trilharam visando interpretar e valorizar a cultura brasileira. Corrigindo a crítica enviesada de Gilberto Freyre, que negou caráter nacionalista e regionalista ao modernismo com o propósito de reivindicar exclusivamente para si próprio e para o regionalismo que liderou os méritos das realizações culturais do período, é preciso reconhecer que o modernismo concorreu de forma decisiva para a valorização da cultura nacional, para o estudo e a defesa da identidade cultural brasileira, para os estudos dedicados à exploração e esclarecimento de todas essas questões.

Ambos os movimentos, através de vias autônomas, convergiram na busca de uma melhor compreensão da origem e formação da cultura brasileira, assim como no reconhecimento da importância de valores culturais reprimidos ou depreciados pelas elites brasileiras. Livros como Macunaíma e Casa-Grande & Senzala traduzem esses valores e sentidos culturais no sentido mais alto das realizações intelectuais do Brasil. Quase tudo que o modernismo realizou depois de 1924 está associado à busca de uma cultura brasileira autêntica e renovada. O mesmo se pode afirmar com relação ao regionalismo recifense, em particular, e ao regionalismo nordestino em geral, que viveu nos anos de 1930 o ponto alto das obras de inspiração regionalista, ou pelo menos geograficamente situadas na região que, embora empobrecida em decorrência da longa e lenta decadência da oligarquia açucareira, mostrou-se dotada de grande vitalidade artística e cultural.

Em suma, talvez o melhor modo de conciliar os dois movimentos, ou indicar suas afinidades substanciais, consista em reuni-los à sombra do designativo neorromantismo, termo empregado por José Aderaldo Castelo no seu livro pioneiro acima citado para traduzir o fato de que ambos constituíram uma atualização do espírito do movimento romântico. Este, como sabemos, tem como características dominantes traços comuns ao modernismo e ao regionalismo: o espírito nacionalista, a valorização da cultura e da identidade nacionais, a acentuação dos valores particulares e subjetivos.

Referências bibliográficas:
Gilberto Freyre. Região e Tradição. Com Introdução do autor e prefácio de José Lins do Rego. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1941.
Idem. Manifesto Regionalista. 7ª. edição revista e aumentada. Prefácio de Antônio Dimas. Recife: Fundaj; Editora Massangana, 1996.
Valéria da Costa e Silva. A Modernidade nos Trópicos: Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.
Ver também os dois artigos contidos nos links abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/brasileiros-de-sao-paulo-e-de.html
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/nacional-e-universal.html

sábado, 14 de maio de 2011

Modernismo e Cultura


Modernismo: conceito e aspectos culturais.

Mais que um movimento literário ou mais amplamente artístico, como é no geral compreendido nas letras e nas disciplinas relativas ao estudo das artes no Brasil, o modernismo foi de fato um movimento muito mais abrangente. Por isso é justo propor neste artigo um conceito que melhor expresse o que representa para a história da arte e da cultura brasileiras no século XX. Como bem observa Antonio Candido, nosso crítico mais lúcido e qualificado, o modernismo traduz um amplo e complexo movimento de mudanças culturais na sociedade brasileira. Essa realidade pode ser melhor compreendida se consideramos a obra dos seus dois representantes maiores: Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Embora praticamente inseparáveis durante a fase inicial do modernismo, também conhecida como a fase heroica do movimento, Mário e Oswald eram personalidades muito diferentes, embora não faltasse quem os confundisse até como parentes. Ora, as diferenças entre ambos eram nítidas até do ponto de vista físico. Mais do que poetas e escritores literários, como são convencionalmente identificados, ambos tiveram participação decisiva na renovação das artes e da cultura. Questões como as dos estudos de interpretação da nossa formação históricocultural e da nossa identidade, de que mais adiante cuidarei, ocupam lugar de relevo na obra de ambos.

Importa deixar claro, visando melhor justificar o conceito de modernismo que aqui proponho, que a própria poesia que ambos realizaram traduz um esforço de compreensão da nossa formação como uma cultura singular, assim como uma tentativa de definir a nossa identidade de povo colonizado e dividido entre a Europa e nossa herança indígena e africana. Livros como Paulicéia Desvairada (1922), marco inaugural da poesia moderna brasileira, e Clã do Jabuti (1927), de Mário de Andrade, e Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, renovaram a poesia brasileira tanto do ponto de vista formal quanto temático. Atentando em particular para este, o ponto de vista temático das obras, notamos a transparente preocupação de refletir sobre as nossas características culturais a partir das origens da nossa formação. É assim que Oswald de Andrade retoma os historiadores e cronistas coloniais para compor seu livro acima indicado. Bastaria correr os olhos pela composição deste livro, Pau-Brasil, especialmente as seções intituladas História do Brasil e Poemas da colonização.

Dentro da perspectiva acima indicada, a obra de ambos alcança seu ponto culminante nos anos 1920 em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e no “Manifesto Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade, precedido pelo “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924). Nestas obras ambos traduzem sua concepção nacionalista do modernismo, que na sua fase inicial caracterizou-se por seu empenho internacionalista sob a influência direta das vanguardas europeias.

O caráter nacionalista do modernismo se define nitidamente a partir de 1924. O marco dessa conversão do movimento ao nacionalismo foi a viagem que um grupo de modernistas de São Paulo fez às cidades históricas de Minas Gerais. Esses modernistas (Mário, Oswald, Tarsila do Amaral, entre outros) empreenderam a viagem para mostrar parte significativa do Brasil ao poeta suíço-francês Blaise Cendrars, um dos grandes símbolos da poesia de vanguarda na Europa, acolhido em São Paulo por Paulo Prado, membro da elite cafeeira de São Paulo e patrocinador do modernismo. Ao guiarem Cendrars pelas regiões e paisagens mais singulares e pitorescas do Brasil, os modernistas acabam ironicamente descobrindo seu próprio país que até então ignoravam. O fato de identificarem essa viagem como “viagem de descoberta do Brasil” é revelador da descoberta que fizeram do seu próprio país enquanto ciceroneavam o poeta europeu.

O episódio acima descrito ilustra uma característica estrutural da nossa formação cultural, assim como da nossa identidade. Como todo povo de largo passado colonial, dividido entre a Europa e o país novo, fruto do encontro e entrechoque entre a Europa e a América, entre a cultura europeia, a indígena e a africana, somos ao mesmo tempo europeus, indígenas, africanos e outras misturas. Somos acima de tudo isso: mestiços, povo formado a partir da mistura de múltiplos elementos que se compuseram numa identidade nova, brasileira, a partir de complexos processos de aproximação e conflito, dominação e mistura.

O problema é que nossas elites, alienadas da sua própria cultura e do seu próprio povo, eram incapazes de se espelharem na realidade concreta do seu próprio país, na realidade baseada nas características acima indicadas. Daí a situação irônica acima descrita: elas precisam apresentar o Brasil ao estrangeiro, a um membro da elite intelectual europeia, para afinal se darem conta do Brasil. Pois os aspectos do Brasil que fascinaram Blaise Cendrars eram exatamente aqueles que nos diferenciam da Europa, aqueles que temos de próprio e que nossas elites reprimiam na sua postiça identidade europeia. Noutras palavras, o que fascinava Blaise Cendrars, assim como acontece com os estrangeiros que no geral nos visitam, é o que temos de diferenciadamente brasileiro: as paisagens históricas, o carnaval, nossas expressões artísticas, os costumes típicos do nosso povo e das nossas regiões diferenciadas por circunstâncias de vida e formação econômica e social etc.

Nossos modernistas, sobretudo Mário e Oswald de Andrade, lideraram um grande movimento de renovação artística e cultural e produziram uma obra identificada com esse movimento tendo as questões acima indicadas como horizonte de sua atividade criativa. Por isso produziram uma obra que vai muito além dos marcos meramente literários, como antes assinalei. Nesse sentido, a obra de Mário de Andrade é ainda mais rica e representativa do que a de Oswald de Andrade. Grande estudioso dotado de extraordinária capacidade de trabalho e realização, Mário devotou-se à sua obra com autêntico espírito missionário, com o espírito do grande reformador cultural que efetivamente foi. Sua obra, de grande abrangência temática, testemunha a observação que acabo de fazer. Além da obra convencionalmente catalogada no âmbito da literatura (poesia, romance, conto, crônica e crítica literária), Mário aventurou-se pelos estudos do folclore, do qual foi um dos primeiros pesquisadores qualificados, da música, erudita e popular, das artes plásticas, do cinema, da fotografia, da antropologia, dos estudos etnográficos etc. Como educador e intelectual empenhado no exercício da política cultural, ele foi também um extraordinário renovador da nossa cultura.

O movimento antropófago, vertente radical e anarquista do modernismo, irrompeu em 1928 nas páginas da Revista de Antropofagia. Ele se afirma em tom barulhento e polêmico, refletindo assim características marcantes de Oswald de Andrade, seu idealizador e líder. A antropofagia, tal como concebida por Oswald, representa uma das mais extraordinárias e eficazes estratégias de luta contra a nossa dependência cultural. Artista de grande talento intuitivo, Oswald baseou-se nos rituais canibalistas dos indígenas brasileiros para enfrentar a questão da nossa dependência cultural da Europa. Assim, ele converte o ato de devoração canibal do inimigo colonizador numa metáfora de combate ideológico que nem se confunde com o nacionalismo que rejeita a cultura estrangeira fechando fronteiras contra o mundo, o que é de resto impossível, nem adere acriticamente a qualquer influência externa. Sua atitude antropofágica consiste, noutras palavras, em devorar tudo o que vem do estrangeiro com o espírito do canibal que comia o inimigo para se fortalecer. Esclarecendo melhor o sentido da metáfora, devemos devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer nossa cultura.

Essa estratégia de luta contra a dependência cultural foi retomada nos anos 1960 por movimentos de vanguarda como o concretismo, o tropicalismo e o Teatro Oficina. Caetano Veloso e Gilberto Gil, aliados aos concretistas, sobretudo a Augusto de Campos, retomaram as ideias de Oswald de Andrade para criar uma música brasileira contrária à ideologia nacionalista dominante na MPB (Música Popular Brasileira), corrente dominante na era dos festivais de música e dos movimentos de oposição à ditadura militar em meados dos anos 1960. Já nesse momento, quando a televisão começava a dominar o sistema de comunicação cultural brasileiro, eles adquiriram a consciência da impossibilidade de um nacionalismo fechado contra o fluxo da cultura de massa e das influências da cultura internacional, sobretudo a proveniente dos Estados Unidos. Por isso, seguindo o exemplo proposto por Oswald de Andrade, eles se entregam à devoração crítica do pop internacional mesclando sem preconceito o rock e o baião, o berimbau e a guitarra, o rural e o urbano, o luxo e lixo da cultura de massa brasileira. Gilberto Gil condensou numa frase precisa a estratégia antropofágica adotada por ele, Caetano Veloso e os seguidores do tropicalismo: “Existem muitos modos de fazer música; eu prefiro todos”.

Os desdobramentos do modernismo nos anos 1930, também de grande renovação sociocultural, confirmaram ainda mais o caráter de movimento de renovação cultural do modernismo. Como a essa altura ele tinha já se consolidado como movimento triunfante nas artes e na cultura geral do país, muitos dos seus representantes integraram-se a instituições governamentais para imprimirem forma efetiva a seus projetos. A grande expressão dessa mudança, que Antonio Candido acertadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, foi a experiência vivida por Mário de Andrade como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo entre 1935 e 1938. Apoiado pela colaboração decisiva de alguns dos seus companheiros de luta modernista, Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, Mário contou ainda com os apoios também decisivos de Paulo Duarte, articulador político das ações culturais do Departamento, e Oneyda Alvarenga, discípula dileta de Mário e apaixonada estudiosa da música.

Ainda nesse decênio, o dos anos 1930, Mário de Andrade dá forma, atendendo a um pedido de Augusto Meyer, seu chefe no Instituto Nacional do Livro durante a gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação e da Saúde, ao anteprojeto da enciclopédia brasileira. Infelizmente o anteprojeto viveu e morreu como tal. Aliás, sobreviveu, já que foi afinal publicado em 1993. Esta obra irrealizada ilustra muito bem a amplitude dos interesses culturais de Mário de Andrade, que são no fundo os interesses e ambições do movimento cultural que ele, mais que qualquer modernista, melhor encarnou.

Outra evidência justificadora do conceito de modernismo que neste texto proponho é observável na trajetória de outros modernistas de grande importância infelizmente omitidos num mero resumo restrito à demonstração de um conceito. Tal qual Mário de Andrade, modernistas como Sérgio Buarque de Holanda e os já citados Sérgio Milliet, Paulo Prado e Rubens Borba de Morais partiram da literatura e da crítica literária para horizontes intelectuais mais amplos. Sérgio Buarque, ainda muito jovem, fundou e coeditou o periódico Estética, um dos grandes veículos de difusão e debate do ideário modernista. Lançado logo em seguida ao esgotamento de Klaxon, periódico inaugural e oficial do movimento, Estética torna-se um dos focos do debate cultural do momento, anos 1924 e 1925. Na década seguinte lança, em 1936, seu livro de maior repercussão até o presente, embora não fosse o seu preferido. Refiro-me a Raízes do Brasil, que será objeto de um artigo exclusivo dentro da série que estou escrevendo. Daí Sérgio Buarque deriva para as pesquisas e estudos históricos dos quais resultarão suas obras mais sólidas e permanentes na historiografia brasileira: Monções (1945), Caminhos e Fronteiras (1957) e Visão do Paraíso (1959).

Quanto a Sérgio Milliet, embora antes de tudo um crítico da literatura e das artes, distinguiu-se como estudioso da sociologia e da história, como o comprova seu livro Roteiro do Café (1938). Sua obra de crítico mais importante está reunida nos dez volumes do seu Diário Crítico. Paulo Prado, antes mencionado como patrono do modernismo, dedicou-se aos estudos de história regional e lançou em 1928 um ensaio de interpretação do Brasil que é ainda objeto de muita atenção crítica dos estudiosos: Retrato do Brasil. Por fim, algumas palavras relativas a Rubens Borba de Morais. Modernista da primeira hora, assim como todos aqui citados, escreveu um livro de crítica de ideias muito esclarecedor sobre as características iniciais do modernismo: Domingo dos Séculos. Nos anos 1930, além de colaborador decisivo de Mário de Andrade no Departamento de Cultura, distinguiu-se como especialista em biblioteconomia.

Referências bibliográficas:
Mário de Andrade. “O movimento modernista”, in Aspectos da Literatura Brasileira. 6ª. edição. São Paulo: Martins, 1978.
Antonio Candido. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, in Literatura e Sociedade. 8ª. edição. São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha, 2000.
Alfredo Bosi. História Concisa da Literatura Brasileira. 34ª. edição. São Paulo; Editora Cultrix, 1994.
Wilson Martins. A Ideia Modernista. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2002.
Ver também o artigo de síntese sobre modernismo e ciências sociais cujo link anoto abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2010/06/modernismo-e-ciencias-sociais.html

terça-feira, 10 de maio de 2011

Palavras de Vida Fácil




A semântica estuda o sentido das palavras, notadamente as modificações que sofrem ao longo do tempo. Adiantaria ainda, para os propósitos deste artigo, que também estuda as relações entre a linguagem, o pensamento e o comportamento, além das formas como este é influenciado pelas palavras. Há quem considere problemas dessa natureza dentro de uma perspectiva estreitamente gramatical. Reduzindo a linguagem a uma codificação abstrata, dissociam-na da realidade viva da língua perdendo assim de vista e de consciência o fato de que a língua existe para representar a realidade.

É por isso que as pessoas podem chegar ao extremo de matar ou morrer por causa das palavras. No tempo das guerras religiosas, que banharam de sangue o solo de muitos países europeus, ser identificado como calvinista por um católico intolerante ou paranoico, e vice-versa, poderia significar morte certa. Na Alemanha nazista, o mero fato de ser judeu poderia significar condenação à morte, ou uma via crucis cujo fim seria o forno crematório. Logo, as palavras não são meras abstrações ou atividade anódina de gramáticos casmurros fiscalizando o uso impróprio da língua com o código em punho. Também a palmatória, fosse ainda este o tempo da palmatória.

Foi-se a palmatória, outros meios repressivos de socialização, e na casa de mãe Joana desregulada por toda sorte de costumes, sobretudo dos maus, a semântica fatalmente saiu pelas esquinas da vida rodando a bolsinha. Do dia para a noite, quando não na mesma página da vida saltitante entre parágrafos de vida pouco recomendável, palavras de sentido consolidado e contornos precisos mudaram completamente de roupa, quando não simplesmente se despiram. Uma delas, em particular, de sólida tradição no léxico da filosofia política e da economia, não obstante saturada de ambiguidade, saltou dos códigos assépticos manuseados nos círculos intelectuais para a cama dos bordéis. Aludo, noutras palavras, ao termo liberal.

O termo liberal encerra muitos significados, tantos que nem eles próprios, os liberais, se entendem. Se no contexto anglo-saxônico o liberal é identificado com alguém de esquerda, chegando no limite à adoção de políticas socialistas e libertárias, no contexto latino-americano esses sentidos se invertem ao ponto de o termo converter-se em insulto ideológico.

Mas os tempos mudaram e mais que eles os costumes. Nos sites pornô, tipo Garota Nacional, liberal é agora outra coisa. Será acaso o tipo da prostituta que em tempos remotos “topava tudo”? Peço perdão por me valer de termos tão pouco elegantes, mas compreendam que opino apenas como leigo. Confesso não saber precisamente o que seja, pois há muito deixei de frequentar esses ambientes de vida fácil. Embora não tenha competência para opinar sobre o assunto, duvido que vida de prostituta tenha sido em algum momento ou lugar essa vida fácil que a mentalidade moralista cunhou e inseriu na cadeia dos lugares comuns da língua e da moralidade pública.

É tão pouco fácil, diga-se, que não ousa dizer seu próprio nome. Pelo menos nos círculos da prostituição chique, das prostitutas que optam por entrar no fascinante mercado do consumo conspícuo pelo caminho mais curto e a porta mais larga. Como a profissão não é de todo recomendável, mesmo no reino da cultura da permissividade, as prostitutas já não são o que são ou eram. São agora modelo, acompanhante e até massagista, fato que com certeza tornou mais embaraçoso o exercício de uma profissão que, dentro dos seus limites convencionais, nunca foi da competência das garotas nacionais. Ponhamos também as estrangeiras. Trocando as linhas turvas nos termos da vida prática, se você é uma fisioterapeuta que também presta serviços de massagem em domicílio, pense duas vezes, preferivelmente três, antes de estampar na página de classificados um anúncio de massagista.

A velhice também não ficou imune às mutações que a revolução dos costumes impôs à semântica. Se a ambição maior dos publicitários - corruptores por excelência não apenas dos consumidores, mas também da língua - é vender ilusão torcendo e retorcendo as palavras ao gosto do freguês, por que não suprimir do horizonte linguístico esse terror da cultura narcisista: a velhice? Portanto, doravante fica abolida a velhice. Como entretanto é biologicamente impossível aboli-la, troquemo-la por um termo ou expressão palatável, por uma outra cadeia de sons que funciona como um sopro de transfiguração da realidade, isto é, a velhice passa a ser terceira idade. Os mais exaltados, confiantes na desmedida do nosso antoengano, vão ao extremo de trocar a terceira idade, que pode sugerir um fim próximo aos mais impressionáveis, pela boa idade. Como os marcos temporais dessas novas categorias etárias não são delimitados, fica ao gosto do freguês precisar quando começa a terceira idade ou a boa idade.

Já que o mundo anda mesmo de pernas para o ar, se é que há ainda quem tenha o pudor de não mostrar por aí o que ficava sempre encoberto por calças e vestidos, alguns dos termos que aqui aprecio acabam contaminando um ao outro. É o caso da cadeia lógica que associa termos como criança, adolescente, jovem, adulto, maduro, velho ou idoso. A invenção de neologismos como terceira idade e boa idade, como acima observei, borra as fronteiras temporais, quando não transborda ao capricho do interesse, da conveniência e até da inconveniência. Um idoso inconveniente, por exemplo, pode sem mais assediar uma gatinha, ou gatinho, confiante de que tem ainda idade e sobretudo permissividade para fazer o que noutros tempos seria intolerável. Os tempos sempre mudaram, volto a chover no molhado, mas agora os costumes mudam bem mais depressa. A semântica paga a conta e o o usuário criterioso da língua paga a conta, a taxa de juros e as sucessivas edições corrigidas dos dicionários.

A coisa piora ainda mais, se isso é ainda possível, se saltamos do bordel dos costumes para a babel da política e da publicidade. Como o capitalismo, sobretudo o de timbre brasileiro, vende tudo, inclusive a mãe, para vender segurança, não raro insegurança, o publicitário espreme a semântica para dela extrair sentidos domesticadores escolando o usuário para a servidão. Nossa privacidade é agora filmada, rastreada, dissecada e estripada em todo o espaço social - do elevador ao vaso sanitário; da invasão dos que lutam para preservar sua liberdade à evasão dos que a esta renunciaram; da praça, que já foi do povo, à Internet. Tudo isso é tecnologicamente executado, monitorado e arquivado para em último caso ser usado como instrumento de violação da liberdade individual a pretexto de servir à nossa segurança, nosso narcisismo, nosso bem-estar, nossa felicidade e à mais alta glória de Deus, que evidentemente é fiel. Confesso não compreender bem o sentido desse slogan, mas suponho tratar-se de mercadoria dotada de extraordinária potência metafísica.

Não obstante a discrição com que procuro viver minhas rotinas alheias à corrente ruidosa e até histérica da vida pública, sou controlado, fiscalizado, monitorado, taxado e intimidado numa sucessão de situações sociais que pouco diferem do inferno totalitário de Winston Smith, o protagonista do Big Brother. Conviria lembrar aos escravos do programa de TV homônimo que aludo ao romance de George Orwell, isto é, à obra original, libelo devastador contra o totalitarismo contemporâneo que acabou apropriado, ironia das ironias, pela cultura de massas da democracia em que vivemos. Como nunca assisti a um minuto desse fenômeno espantoso, não teria como sobre ele opinar baseado em evidências empíricas. Já que todavia não preciso beber o mar para saber que ele é salgado, sei desse programa o suficiente para afirmar que simboliza, entre outras coisas igualmente nefastas, uma das evidências exemplares da nossa servidão aos poderes do mundo.

Odeio o servilismo inconsciente e passivo que se escuda na racionalização autocomplacente isentando-se assim de qualquer responsabilidade pela defesa da liberdade individual. Trocando isso em miúdos, quero dizer que todo ser humano, não importando a quanto desça na privação da sua liberdade, dispõe ainda de uma liberdade última e inalienável: a de preservar sua vida e dignidade ao preço de perder a própria vida, pois desta nenhum poder ou controle é proprietário. Trocando isso em miúdos mais práticos e amenos, nenhum poder me impõe o Big Brother e congêneres como instrumento de controle ou supressão da minha liberdade. Se dela no caso me privo, é simplesmente porque consinto em perdê-la, porque a defesa da minha liberdade individual é um peso que não tenho a integridade e a energia de suportar. Por isso docilmente me rendo aos poderes do mundo. Sei que eles são poderosos, o truísmo intencional vai apenas com o propósito de enfatizar que com o poder ninguém brinca, mas também sei que não são absolutos. Portanto, mesmo dentro de uma ordem totalitária resta-nos um grão de liberdade, uma franja de vida liberta dos poderes do mundo que nos oprimem.
Salvador, 9 de fevereiro de 2011.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Meu Filho


O filho que não frutive
Ou que em mim recusei
Na sombra imóvel ele vive
Fiel a tudo que amei.

Meu filho que é meu silêncio
Voz que no mar afoguei
Sopro secura silício
O outro que em mim neguei.

Meu filho seria sendo
O que seria e não sei.

Recife, 29 de novembro de 2009.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Brasileiros e Universais


“O brasileiro em média soa mesmo expansivo, caloroso, simpático, mas isso no contato superficial. Grandes escritores, como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, viram que por baixo dessa atmosfera quente havia uma série de problemas existenciais e sociais, de ressentimentos e covardias, o que em geral os turistas não captam. Nações cultivam mitos? Sim, mas nações sérias os revêem constantemente. Como explicar tanta violência e tanto desrespeito num país que se gaba de ser uma alegre democracia racial? Por uma história na qual nunca houve disposição para alterações profundas, estruturais. Consultar Octavio Paz”.

As palavras acima são de Daniel Piza. Recortei-as de uma conversa entre ele e João Pereira Coutinho reproduzida na coluna que este assina para a Folha de S. Paulo. O assunto é de constante interesse para mim e de resto há muito me intriga. Nutrido pela minha leitura continuada dos nossos intérpretes, é ainda reforçado por minhas observações rotineiras relativas ao comportamento do brasileiro. Antes de tudo, ressaltaria concordar com Evaldo Cabral de Mello, que desqualifica as muitas interpretações do Brasil baseadas numa suposta psicologia dos povos. Para ele, tudo isso não passa de impressionismo sociológico. Argumenta ainda lembrando contradições meridianas, como a que nos singulariza pela nossa tristeza (ver Retrato do Brasil, de Paulo Prado) e a que põe o acento na nossa alegria. Esta, sabemos, é a versão dominante.

Mencionei Evaldo Cabral mas poderia mencionar com propriedade ainda maior o livro de Dante Moreira Leite: O Caráter Nacional Brasileiro. A primeira parte do livro, onde Moreira Leite desce às raízes histórico-antropológicas das noções de caráter e nacionalismo para acentuar-lhes a inconsistência científica, constitui a mais aguda crítica que conheço no contexto intelectual brasileiro à tradição dos nossos estudos baseados na psicologia dos povos. Dentro desses limites, endosso ainda as restrições enfáticas que dirige contra Mário de Andrade, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e muitos outros intérpretes do Brasil.

Nossos nacionalistas culturais mais triunfalistas têm inegável culpa em cartório. A eles devemos em larga medida a persistente disseminação de um mito que nos representa como sensuais e alegres, sempre a um passo do passo do frevo ou do samba, quando já não delirantemente por eles possuídos. O mito está de tal modo enraizado na nossa ilusória autopercepção que o ouvimos a todo instante escorrendo da boca de qualquer brasileiro orgulhosamente cotejando nossas virtudes com as qualidades depressivas de alguma cultura hegemônica. Dando nome a alguns bois, citaria Gilberto Freyre e Jorge Amado. É claro que ambos, sobretudo a obra do primeiro, têm méritos independentes da questão que aqui me ocupa. O que intento salientar de passagem é o quanto concorreram para difundir dentro e fora do Brasil uma representação mítica do país e do povo na qual prevalecem valores culturais que tendem a obscurecer ou idealizar o que temos de pior.

Daniel Piza tem razão ao ressaltar como na linha dos contatos epidérmicos projetamos essa imagem lisonjeira de um povo expansivo e caloroso e simpático. Como no entanto compatibilizar tal imagem com uma realidade social retalhada pela violência, a incivilidade, a grosseria corrente do brasileiro, o atraso social rançoso que explica tantos dos nossos horrores cotidianos? Se há para isso alguma explicação convincente, é preciso escavar bem mais além dos sintomas encontradiços, bem mais além da superfície recoberta por uma alegria enganadora. Piza indica o caminho das pedras, ou da mina desmitificadora, quando alude a escritores como Machado de Assis e Lima Barreto, que sem dúvida retratam um outro modo de ser brasileiro. Graciliano Ramos constitui talvez exemplo bem mais corrosivo de contraparte da nossa propalada alegria, já que o oposto desta se espelha não apenas na sua obra áspera e rabugenta, mas na sua própria personalidade. Aliás, se queremos acentuar o dado objetivamente aferível da nossa diversidade enquanto povo, conviria lembrar a imagem típica do sertanejo bem concentrada no perfil em demasia conhecido de Graciliano Ramos.

Saltando para o plano de minha experiência pessoal, cansei-me e me canso ainda de observar o contraste gritante entre os modos aparentes do brasileiro gregário e ruidoso e os desse mesmo brasileiro entretendo uma conversa íntima. De início o contraste intrigava-me e em alguns casos memoráveis chegava mesmo a chocar-me. Mas precisaria agora prender-me ao convívio mais íntimo para melhor justificar os termos em que acima propus os contrastes e contradições observáveis no comportamento do brasileiro. Vivi muitas vezes a experiência de freqüentar o ambiente de família de muitos amigos. Também os bares naquela hora sombria e semideserta propícia ao jogo das confissões e desabafos. Em suma, toda a variedade de contextos assinalados pelo convívio à margem das convenções hipócritas, da simulação de papéis e identidades aderentes de forma até inconsciente às máscaras que vestimos. A discrição, todavia, retém a mão que estendo para descerrar a cortina do palco onde poderia verter uma corrente infinda de expressões íntimas em tudo opostas a essa representação mítica de um Brasil festeiro, feliz e esperançoso.

Aliás, aqui no Recife é praticamente impossível dissociar o convívio com um determinado indivíduo do convívio com a sua família. Em grupo, predominam as manifestações de alegria ruidosa e afetividade derramada. Quando no entanto a relação é transposta para a atmosfera íntima, propícia aos tons confessionais mais reveladores do que subjaz à aparência ilusória, tenho com freqüência a surpresa de mergulhar em paisagens sombrias, visões atormentadas, cenas como que extraídas das páginas mais sofridas compostas pela pena de um Machado de Assis, um Lima Barreto, um Graciliano Ramos. De repente, o amigo risonho e galhofeiro, sempre desatado nos gestos de alegria contagiante, revela-se presa de angústias e ansiedades cuidadosamente abafadas. A mulher sempre sorridente e sensual, facilmente contagiada pela música e a dança, dissimula nas linhas do corpo desfrutável o travo de inconfessável tristeza, a infelicidade revestida em cores alegres. E assim constato que alegria e tristeza se acotovelam e até se irmanam no brasileiro como de resto em qualquer outro povo, pois somos humanos antes de brasileiros.

O argumento geral acima exposto poderia ser desdobrado com mais fortes evidências se deslocado para o campo da expressão musical. Além da importância cultural ocupada pela música no Brasil, provavelmente nenhuma outra forma de arte espelha de modo mais nítido nossas tradições populares, traços bem diferenciados da totalidade do povo brasileiro. Sempre que querem destacar nossa alegria, nosso esfuziante prazer de viver, estudiosos e observadores do assunto recorrem à música e ao carnaval, à sensualidade do samba ou à vibração do frevo e outros ritmos enérgicos e ruidosos. Esquecem todavia de considerar que na outra dobra do ritmo pulsam valores opostos. Se o carnaval sem dúvida manifesta num grau delirante nosso prazer de viver e celebrar desmedidamente a vida, também se impregna de tristeza e melancolia, de saudade e dor. Por isso há quem acertadamente o interprete como uma linha de fuga da realidade. Chico Buarque traduz bem esse fenômeno: “Carnaval desengano / deixei a dor em casa me esperando / E brinquei e gritei / e fui vestido de rei / Quarta-feira sempre desce o pano”. Poderia lembrar uma infinidade de canções compostas nessa clave para melhor esclarecer a natureza contraditória das expressões humanas.

No caso do frevo pernambucano, abundam exemplos de tristeza e saudade, dor e perda. O frevo de bloco transpira saudade e melancolia, pesar diante de um passado irreversivelmente perdido. A marcha lenta constitui outra evidência em defesa do meu argumento. Basta que se lembre e cante a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Não vou nem perder tempo citando-a, já que sua atmosfera emocional está inteiramente impregnada de dor e perda, saudade e melancolia. Lembraria ainda o Cordão da Saideira, de Edu Lobo. E os belos frevos de Antonio Maria.

Reiterando algo que acima de passagem registrei, parece-me que uma das mais graves inconsistências desses mitos ou representações idealizadoras de povos e culturas reside no desapreço pelo fato de que somos antes de tudo humanos. Sei que isso soa um tanto descabido numa época de nítida depreciação dos valores universalistas. Ainda assim, ou talvez por isso, insisto em ressaltar que antes de sermos ingleses, brasileiros, franceses, nigerianos, iranianos ou membros de qualquer outra nacionalidade, compartilhamos traços de humanidade comum. Acima de todas as nossas singularidades irrecusáveis, somos humanos e como tal portadores dos sentimentos fundamentais da alegria e da tristeza, do amor e do ódio, da euforia e da depressão. O resto é idealização mítica de discutíveis virtudes nacionais. Mas não me iludo presumindo que os mitos não estejam investidos de força poderosa. A história da humanidade está empapada de glória e devastação decorrentes de ações humanas inspiradas em mitos e representações míticas de grandezas e misérias. Melhor batucar agora um samba desses bem vibrantes e alegres e sensuais. Quero ver a mulata quebrando as cadeiras...
02 de dezembro 2008