terça-feira, 28 de junho de 2011

O Povo Brasileiro



Darcy Ribeiro é um dos últimos grandes intérpretes da cultura Brasileira. Depois de sua morte, em 1997, restou apenas Roberto da Matta, curiosamente omitido da mais recente coletânea de textos consagrada aos intérpretes do Brasil. Refiro-me à obra Um enigma chamado Brasil, organizada por André Botelho e Lillia Schwarcz. A omissão de da Matta é ainda mais estranha se consideramos que nela figuram nomes bem menos conhecidos e influentes, além de outros pouco característicos dessa tradição que tenho contemplado numa série de artigos sobre a cultura brasileira.

A obra de Darcy Ribeiro é marcada de ponta a ponta pelo espírito de participação apaixonada. Intelectual declaradamente militante, Darcy escreveu sempre movido pelo desejo de ação. Sua luta em defesa do povo brasileiro, notadamente as camadas mais impiedosamente oprimidas, imprimiu à sua biografia tons de grandes feitos românticos, uma vontade de mudança revolucionária que lhe custou exílio político e muita instabilidade, incerteza e derrota. Sendo no entanto um otimista incorrigível, manteve-se fiel à sua convicção de que desse Brasil tão surpreendente, de tão complicada organização e explicação teórica, brotaria uma nova Roma, como dizia, lavada em sangue negro e índio. Esses rompantes nacionalistas em meio a uma obra de análise de natureza científica levam o autor a extremos confinantes com uma visão cultural ufanista. Isso é patente no tom com que louva nossa miscigenação e sensualidade.

Darcy Ribeiro foi militante do Partido Comunista nos anos 1940. Nessa mesma década especializou-se em etnologia na Escola Livre de Sociologia e Política, de São Paulo, onde foi colega de Florestan Fernandes, que se tornou o grande nome da escola de sociologia paulista. Inspirado pelas lições de Herbert Baldus, um dos professores estrangeiros contratados pela Escola Livre de Sociologia e Política, dedicou-se apaixonadamente ao estudo das culturas indígenas e viveu durante cerca de dez anos entre os índios. Isso explica o lugar de relevo que nossa matriz indígena ocupa na sua obra e em particular em O Povo Brasileiro.

Darcy Ribeiro também se destacou por sua luta tenaz em defesa da educação. Discípulo e amigo fiel de Anísio Teixeira, um dos líderes do Movimento da Escola Nova, lutou até o fim pela institucionalização da escola pública de qualidade segundo o modelo das melhores políticas de educação pública. Além de ser um dos criadores da Universidade de Brasília e da Universidade Estadual do Norte Fluminense, atuou de forma combativa na esfera universitária e política em vários países latino-americanos durante seus anos de exílio político. O exílio lhe foi imposto pelos militares devido ao papel chave que desempenhou no governo deposto de João Goulart – era Ministro da Casa Civil – além de sua tentativa de organizar uma resistência armada ao golpe militar de 1964. Os militares permitiram que retornasse ao Brasil antes da anistia política por estar sofrendo de um câncer no pulmão que, esperava-se, logo o mataria. O fato, porém, é que o tenaz e incorrigível otimista sobreviveu até 1997. Estava internado na UTI quando fugiu para refugiar-se na casa que tinha à beira de uma praia. Lá conseguiu dar forma definitiva a seu livro O Povo Brasileiro, obsessão da sua vida. O livro foi publicado em 1995.

Esta obra, que perseguiu a imaginação criadora de Darcy Ribeiro durante mais de 30 anos, como ele mesmo frisa no prefácio, é uma ambiciosa tentativa de aplicar à formação sociocultural do Brasil a teoria geral que ele elaborou durante muito tempo. Dela resultaram obras como O Processo Civilizatório, sua teoria mais abrangente, As Américas e a Civilização, restrita à antropologia das Américas, Os Brasileiros: teoria do Brasil, e por fim O Povo Brasileiro. Retrocedendo às nossas origens, como de resto procederam todos os explicadores do Brasil, Darcy Ribeiro parte das três matrizes formadoras da nossa cultura que, através de complexos processos de encontro, conflito e caldeamento compuseram as linhas fundamentais da nossa formação. Darcy Ribeiro louva o caráter híbrido da nossa cultura – não raro em tom que beira o ufanismo, como acima sublinhei -, sua sensualidade e alegria de viver, pontos nos quais muito se aproxima de Gilberto Freyre, mas também ressalta com igual intensidade os processos de conflito e espoliação que marcam o conjunto da nossa formação social.

Começando pela cultura indígena, o autor deixa evidentes os vínculos profundos que o prendem a essa matriz da nossa formação. Ela foi decisiva, entre outras coisas, por ser portadora de uma rica experiência antropológica de enraizamento no trópico, na imensidão das matas e florestas, onde os indígenas desenvolveram formas de cultura ajustadas ao ambiente. O colonizador português soube aliás astutamente assimilar no convívio com o indígena os meios técnicos e culturais necessários para adaptar-se como europeu às condições impostas pelo ambiente novo. Além de domesticar muitas plantas selvagens que transformou em meios fundamentais de nutrição, como o milho e a mandioca, o índio desenvolveu no trópico uma cultura própria e autônoma. Somente a visão etnocêntrica do colonizador poderia negar a esses grupos humanos uma riqueza de vida espiritual que é profundamente diferente da europeia, ou civilizada em geral, mas igualmente significativa do ponto de vista antropológico.

O contato das culturas indígenas com o colonizador europeu resultou desastroso para sua sobrevivência. Além de lhes impor formas brutais de deculturação, termo que copio do livro de Darcy Ribeiro, de repressão ou supressão da sua cultura, como foi patente no caso da catequização imposta pelos jesuítas, essas culturas foram submetidas a um verdadeiro etnocídio provocado por doenças trazidas pelo europeu, estranhas ao meio tropical, que dizimaram muitas tribos. Havia naturalmente um conflito insolúvel entre essas culturas, bem próximas da natureza e regidas por valores culturais incompatíveis com os do colonizador, e o projeto mercantil do português, que buscava no trópico apenas a riqueza fácil, as pedras preciosas, a natureza traduzível em lucro e acumulação. Foi também por essa razão que o português tentou sem sucesso escravizar o índio. Este importava para aquele, antes de tudo, como fonte de exploração econômica. Diante da impossibilidade de ajustá-lo à máquina de produção mercantil, o colonizador adotou por fim a política de escravização do negro.

O fim do parágrafo acima explica de modo sumário como a terceira matriz da nossa formação cultural junta-se às duas primeiras. Darcy Ribeiro descreve em dois longos parágrafos notáveis (ver pp. 119-120), de intensidade descritiva comovente e chocante, o percurso de vida do escravo africano desde o momento em que era aprisionado e vendido ou trocado no seu continente até o seu fim como trabalhador escravizado no trópico. Segundo o autor, o tempo de vida médio de um escravo submetido ao trabalho pesado – portanto distinto do escravo doméstico preferencialmente estudado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala – ia de sete a dez anos. Trabalhando o ano inteiro, sem pausa sequer aos domingos, dia em que era liberado para cultivar a rocinha de onde extrairia seu sustento. Melhor que pobremente parafrasear os parágrafos citados é citar o segundo, que vai da página 119 à 120:
“Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos – maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinquenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela como um graveto oleoso”.
Parafraseando Brás Cubas, de Machado de Assis, foi sobre esse solo tenebroso que a elite brasileira se formou, assim como foi sob ele, ou calcado pelas botas da escravidão, que se moldou e torturou não apenas um povo, o brasileiro, mas uma rede de instituições, técnicas de governo e dominação, de regime de trabalho espoliador, de práticas de vida e relação social que infelizmente não desapareceram de todo da nossa realidade presente.

De onde afinal vem esse povo tão sofridamente descrito no livro de Darcy Ribeiro, de onde procede sua identidade? O autor propõe uma teoria baseada na condição de “ninguendade”, com perdão do neologismo esquisito, do fruto da miscigenação processada inicialmente entre o colonizador português e a índia, mais tarde entre aquele e a escrava negra. Darcy afirma que os filhos brotados desses acasalamentos, origem da miscigenação generalizada que passou a caracterizar a etnia brasileira, eram ninguém, já que nem eram brancos, nem índios nem negros. Eram produto de uma mistura rejeitada por qualquer das etnias individuais das quais eram formados. Foi portanto dessa condição de zé ninguém, de “ninguendade” que se forjou a nossa identidade cultural, o brasileiro que já não era individualmente nenhuma das etnias formadoras, mas produto da sua miscigenação, isto é, um ser étnico novo.

Tanto quanto Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro ressalta o fato de que o Brasil se formou economicamente como um apêndice da Europa, como colônia produtora de bens primários subordinada à demanda do mercado europeu. Esse dado primário está na raiz da violência exercida pela classe dominante ao longo da nossa história. Está também inscrito na condição de proletariado externo vivida pelo povo brasileiro. Darcy Ribeiro usa repetidas vezes expressões cruas, mas infelizmente verdadeiras, para denunciar os processos brutais que ao longo da nossa formação histórica oprimiram nosso povo. Quando usa expressões como moinhos de gastar gente, ou gente usada como carvão, denuncia a opressão imposta pela classe dominante ao povo, particularmente o povo escravizado, o povo castigado por um regime de trabalho incompatível com o ideário humanista e cristão nunca de fato estendido à maioria da população.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Formação do Brasil Contemporâneo



Formação do Brasil contemporâneo, obra publicada em 1942, completa a trilogia clássica da tradição intelectual conhecida como o pensamento social brasileiro. As duas obras que a precedem são Casa-Grande & Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936). O consenso crítico em torno dessa trilogia deriva de um prefácio de referência escrito por Antonio Candido em 1967 para abrilhantar a edição comemorativa dos 30 anos de Raízes do Brasil. Para ser mais preciso, o crítico distingue essas três obras como decisivas para a formação da sua geração, que percorreu diferentes etapas de formação acadêmica entre as datas limite fixadas entre a publicação da primeira e da última obra. O consenso crítico apenas confirmou e ampliou essa verdade ao converter as obras decisivas para a formação de uma determinada geração em trilogia clássica de toda uma tradição inscrita no desenvolvimento das ciências sociais brasileiras.

O primeiro livro de Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil, foi por acaso lançado no mesmo ano em que Casa-Grande & Senzala veio a público. A coincidência merece registro porque as duas obras balizam duas vertentes fundamentais da sociologia brasileira associadas aos estudos de interpretação do Brasil. A de Gilberto Freyre, como sabemos, distingue-se como a obra suprema de base cultural de interpretação do Brasil, enquanto a de Caio Prado inaugura a vertente de base materialista. A fonte fundamental desta tradição cujo marco é Formação do Brasil Contemporâneo é a obra de Karl Marx, teórico mais importante do comunismo moderno.

O fundamento da concepção materialista à qual Caio Prado se filia consiste no reconhecimento das bases materiais da sociedade e da história humana. Traduzindo isso em termos mais claros, Marx e seus seguidores partem do princípio de que as necessidades materiais estão nas raízes da nossa existência. Antes de fazer qualquer outra coisa (arte, religião, ideias, leis e o conjunto das expressões de vida espiritual que Marx designa como sendo a superestrutura da vida social), o ser humano precisa comer, precisa trabalhar para garantir sua sobrevivência biológica. Visando tornar ainda mais clara a concepção materialista proposta por Marx e aplicada por Caio Prado à história da formação da nossa sociedade, transcrevo abaixo palavras esclarecedoras de Engels, o outro grande nome do comunismo moderno e amigo inseparável de Marx até a morte deste:
“Marx descobriu o fato simples (até então oculto sob a exuberância ideológica) de que os seres humanos precisam de alimento, bebida, roupa e abrigo acima de tudo, antes que se possam interessar pela política, ciência, arte, religião e coisas semelhantes. Isso significa que a produção dos meios materiais de subsistência imediatamente necessários, e com isso a fase existente de desenvolvimento de uma nação ou de uma época, constitui a base sobre a qual são construídas as instituições estatais, as interpretações jurídicas, as ideias artísticas e até mesmo religiosas. Significa que estas devem ser explicadas pela primeira, ao passo que a primeira foi no geral explicada como consequência das outras”. (Apud W. H. C. Eddy, Para compreender o marxismo, pp. 32-3).
Em termos teóricos, portanto, é preciso eleger as condições de vida material, ou econômica, para explicar as características fundamentais da nossa sociedade e da nossa cultura, o processo histórico através do qual ela se formou. Enquanto Gilberto Freyre e outros estudiosos da formação da nossa história social privilegiam a cultura, que no caso também compreende as condições de existência econômica da sociedade, Caio Prado coloca a organização econômica da sociedade acima de qualquer outro fator de ordem explicativa ou teórica.

Coerente com o princípio teórico acima indicado, Caio Prado rompe com a explicação de base cultural, exemplificada na obra de Gilberto Freyre, concentrando sua obra no estudo e análise das características econômicas que orientaram o processo de colonização do Brasil pelos portugueses. Especifico o termo colonização porque ele infelizmente não completou seu projeto original, que seria estudar o conjunto da formação da sociedade brasileira desde suas origens até o presente. Na verdade, Formação do Brasil Contemporâneo vem acrescida de um subtítulo que determina claramente os limites da obra: “Colônia”. Portanto, a obra se detém historicamente dentro dos limites da formação colonial do Brasil.

Importa no entanto salientar que o autor reconhece e enfatiza a persistência dessa formação colonial nas questões sociais do presente. É nesse sentido que, embora incompleto o projeto original, Formação do Brasil Contemporâneo foi e continua atual como fonte para a explicação das características dominantes na nossa sociedade e na nossa cultura. Noutras palavras, precisamos compreender as causas determinantes da nossa formação colonial para compreendermos adequadamente questões fundamentais do presente como nossos extremos de desigualdade social e econômica, nossa dependência cultural, o atraso observável nos nossos padrões de educação, saúde, organização urbana, transporte, segurança social etc. Em suma, é preciso saber o que fomos, de onde viemos, para saber o que somos e para onde iremos. Esse objetivo, suponho, está na raiz de todas as obras de explicação do Brasil. O que varia e até se choca, fazendo com que uma obra negue ou contradiga outra, é a forma como cada um desses estudiosos estudou nossa formação para elaborar a explicação do país contida em cada uma das obras realizadas.

É também coerente com a teoria materialista que adota o fato de Caio Prado conceder papel prioritário às bases econômicas da colonização do Brasil, assim como à questão das classes sociais. Estas, como sabemos, derivam da natureza econômica da sociedade traduzida nas condições de distribuição de renda. É isso, noutras palavras, que está na raiz da distinção que estabelecemos entre o senhor e o escravo, o empregador e o empregado, o capitalista e o trabalhador assalariado. Enquanto Gilberto Freyre reconhece esses extremos sociais baseado na objetividade das relações econômicas, mas acentua os fatores culturais que os aproximam, como a miscigenação racial e cultural, Caio Prado se concentra nas relações de conflito decorrentes da exploração econômica imposta pelo dominador ao dominado. Nesse sentido, os fatores culturais são secundários. É por aí que se explica a ruptura de Caio Prado com a vertente culturalista de explicação do Brasil acima anotada.

Passando especificamente às linhas gerais que compõem a obra, Caio Prado identifica no início do século xix, como de resto enfatiza já nas linhas iniciais da Introdução, o momento decisivo na história da formação da sociedade brasileira contemporânea. Nesse momento se definem tanto o esgotamento de uma realidade, a do sistema colonial que governou toda a nossa história anterior, do início da colonização à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, quanto o advento de uma nova fase na evolução do Brasil. Esta fase, que compreende momentos fundamentais, como o processo de independência política, o Império regido por D. Pedro II, a Abolição e a proclamação da República, desenha o longo e complexo processo através do qual se vai forjando o Brasil contemporâneo.

No capítulo intitulado “Sentido da colonização” Caio Prado sintetiza as bases profundas da nossa formação, que são, como já salientei, de natureza econômica. Descrevendo o processo geral de colonização do Novo Mundo, ressalta ele como os objetivos iniciais de todos os colonizadores europeus eram estritamente econômicos, voltados para a apropriação fácil e o comércio de riqueza. Essa característica marcou, de início, tanto a colonização portuguesa quanto as demais. Foi bem mais tarde que se diferenciaram as colônias de povoamento e as colônias de exploração. Também essa diferenciação resultou de determinações externas, isto é, de fatores ligados à história política e religiosa europeia. As colônias de povoamento foram típicas das regiões temperadas e as colônias de exploração típicas das regiões tropicais, estas baseadas na grande propriedade e no uso da mão de obra escrava organizadas como grandes empresas comerciais a serviço das demandas do mercado europeu. Em síntese, sociedades coloniais do tipo do Brasil formaram-se voltadas para fora, subordinadas aos interesses e às demandas econômicas do mercado externo. Como frisa o próprio autor,
“Se vamos à essência da nossa formação, veremos que nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. E com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras”. (Formação do Brasil Contemporâneo. S. Paulo: Publifolha, 2000, p. 20).
A citação acima se completa com uma outra observação feita por Caio Prado logo adiante: o sentido da formação do Brasil contemporâneo baseia-se nas linhas citadas.
No conjunto, a obra compreende, além da Introdução e do capítulo intitulado Sentido da colonização, três seções compostas por um número variável de capítulos referentes a cada uma delas: a primeira seção trata do processo de povoamento do Brasil, do litoral, onde de início se concentra, à ocupação progressiva do interior; a segunda, que ocupa a parte central da obra e é a determinante do conjunto estudado, prende-se à organização da vida material. Por fim, a vida social.

domingo, 19 de junho de 2011

Raízes do Brasil


Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo no ano de 1902. Era portanto muito jovem quando o modernismo irrompeu ruidosamente na cena cultural brasileira com a Semana de Arte Moderna em 1922. Embora intelectualmente muito atuante ao longo do decênio de 1920, também durante os anos seguintes, somente publicou seu primeiro livro em 1936, quando Raízes do Brasil veio a público. No entanto, o livro, tal como hoje o conhecemos, foi muito modificado entre a primeira edição e a segunda, que data de 1948. Apesar de confessadamente não encarar Raízes do Brasil como seu livro mais importante (preferia Visão do Paraíso, cuja importância capital se impõe cada vez mais aos olhos dos especialistas), o fato é que esta é a obra que o consagrou e se mantém como a mais significativa e estudada no conjunto da sua produção intelectual.

Sérgio Buarque viveu cerca de um ano e meio na Alemanha, entre junho de 1929 e dezembro de 1930. Menciono ligeiramente essa experiência porque teve muita importância na sua vida e formação, além de se refletir de vários modos no texto de Raízes do Brasil. Sérgio Buarque foi para a Alemanha como correspondente de O Jornal, periódico de propriedade de Assis Chateaubriand. Além de observar o clima de violência e tensão social que em 1933 culminou com a ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, leu muito da produção intelectual alemã desconhecida no Brasil. Leu em particular Max Weber e Georg Simmel. Do primeiro aproveitou o conceito de patrimonialismo para melhor compreender a formação do Estado brasileiro e seu aparato burocrático; com o segundo refina sua percepção analítica dos tipos sociais que certamente ilumina categorias como o semeador e o ladrilhador, núcleo e título do capítulo 4 de Raízes do Brasil.

Desde já esclareço que as citações diretas que acaso faça da obra no texto que segue serão extraídas da edição comemorativa dos 70 anos organizada por Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia Schwarcz, Editora Companhia das Letras, 2006. Além de ser uma edição previsivelmente bem mais ampla e melhor cuidada do que todas as precedentes, vem enriquecida por textos do próprio autor e de estudiosos e especialistas, arrematados pelos “Apontamentos para a cronologia de Sérgio Buarque de Holanda” assinados por Maria Amélia Buarque de Holanda, sua companheira e colaboradora da vida inteira. Além de republicar o sempre citado prefácio de Antonio Candido escrito para a edição dos 30 anos de Raízes do Brasil, são adicionados textos importantes de Alexandre Eulálio, Evaldo Cabral de Mello, Bolivar Lamounier, Antonio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro e Robert Wegner.

Enriquecem ainda o volume três documentos raros: o muito citado artigo no qual é reposta a controvérsia entre Cassiano Ricardo, autor do artigo, e Sérgio Buarque de Holanda acerca do conceito de homem cordial. Como sabemos, esse conceito, central na argumentação do livro de Sérgio Buarque, tem sido objeto de ampla fortuna crítica, mas também de muito mal-entendido. O mal-entendido aparenta originar-se das críticas formuladas por Cassiano Ricardo. Portanto, é oportuna a inclusão do seu artigo na edição que comento acrescido da resposta de Sérgio Buarque em forma de carta endereçada a Cassiano Ricardo. Essa questão é ainda melhor iluminada pela inclusão de um curto texto de Ribeiro Couto, datado de 1931, no qual ele saúda o surgimento do homem cordial na América originário da fusão do homem ibérico (o espanhol e o português) e as culturas nativas do Novo Mundo. Cuidarei melhor dessa questão no lugar apropriado, quando abaixo discutir o capítulo relativo ao homem cordial brasileiro. Por fim, um texto ainda mais precioso: o ensaio “Corpo e alma do Brasil”, publicado em 1935. Nele Sérgio Buarque sintetiza o que no ano seguinte constituiria a primeira edição de Raízes do Brasil. Como já observei no parágrafo de abertura, a obra foi refundida e ampliada na segunda edição, lançada em 1948, que passou a ser o texto definitivo da obra que estudamos.

O título da obra já indica, de partida, sua regressão às origens da nossa formação histórico-cultural com o propósito de explicar o Brasil. Essa é uma característica comum a todas as obras que compõem a tradição do pensamento social brasileiro. No caso do livro de Sérgio Buarque, porém, o objetivo de estudar o passado visando as questões fundamentais do presente é bem mais nítido, como aliás ressaltou Antonio Candido. Uma das evidências imediatas desse fato consiste nos títulos e na matéria dos dois capítulos finais intitulados “Novos Tempos” e “Nossa Revolução”. Sérgio Buarque recua portanto a nossas origens histórico-culturais para projetar luz sobre o presente, para melhor compreender e esclarecer os problemas fundamentais e impasses da sociedade brasileira.

O autor ressalta nas páginas iniciais duas questões de grande relevância no conjunto da obra. A primeira refere-se ao processo de implantação da cultura europeia no trópico, fator originário da constituição da cultura brasileira. Depois de acentuar as diferenças profundas observáveis entre esses dois mundos que se encontram, entrechocam e por fim geram uma realidade inteiramente nova, Sérgio Buarque escreve um dos períodos mais citados da sua obra: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. (p. 19)

A segunda questão diz respeito à cultura da personalidade típica do homem ibérico. Depois de observar que representou o traço mais importante desse povo, esclarece que ela traduz o valor, a originalidade de cada pessoa que assim se diferencia da coletividade e até a esta se opõe. Salientando a oposição entre o culto da personalidade e as formas de associação características de toda coletividade, Sérgio Buarque assinala que essa forma de personalismo ibérico constituiu e constitui ainda na nossa cultura uma força de oposição à coletividade, além de estar na raiz das forças anárquicas e desordenadoras da nossa sociedade. Paradoxalmente, ela supõe a obediência, que se afirma notadamente em situações de crise de autoridade. Como justamente anota, “Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. (p. 21).

Assim, na terra onde medra o personalismo altaneiro, não raro arrogante, em termos políticos o autoritarismo típico da América Latina, medra também a obediência imposta por uma autoridade temida nos momentos de crise. A terra do personalismo ibérico é também fértil na produção de forças sociais anárquicas, como também já ressaltei. Sérgio Buarque acrescenta, a esse propósito, que essas forças sempre se manifestaram na nossa história, não raro favorecidas pela cumplicidade e a leniência das instituições. Importaria esclarecer, visando melhor contextualizar a obra, que ela foi escrita em meio a esse clima no qual se manifestavam forças anárquicas representadas por rebeliões armadas e combates ideológicos e conflitos violentos travados por comunistas e integralistas, ambos buscando soluções políticas e sociais avessas à democracia. É significativo que o Estado Novo, instituído através de um golpe de Estado por Getúlio Vargas em 1937, portanto no ano seguinte ao da publicação de Raízes do Brasil, tenha imposto essa autoridade temida diante da qual o personalismo assina o pacto social da obediência. Como sabemos, o Estado Novo vigorou até 1945. Depois de um período conturbado, durante o qual o Partido Comunista manteve-se na legalidade apenas por um curto período, sobreveio o golpe militar de 1964 e a ditadura militar que se prolongou até 1985. Esses poucos fatos históricos conferem força explicativa ao livro de Sérgio Buarque.

Penso que as forças anárquicas sublinhadas na obra de Sérgio Buarque também se manifestam em âmbito distinto do estritamente político acima mencionado. Elas são observáveis, por exemplo, no cotidiano da nossa cultura, na nossa incapacidade crônica de instituirmos relações de convívio baseadas na distinção fundamental entre a esfera pública e a privada. Nossas forças de desregramento social são facilmente visíveis numa cena qualquer de rua, no estado típico de uso e conservação da rua. Afinal, é ela quem define culturalmente a concepção inconsciente e a prática de sentido público que imprimimos à nossa experiência social.

Outra questão relevante, também salientada por Sérgio Buarque, liga-se à condição excêntrica do mundo ibérico na Europa. Essa excentricidade resulta tanto da posição geográfica da península ibérica, espremida entre o continente europeu e o africano, quanto de caracteres culturais diferenciadores fruto do contato do ibérico com o árabe e o judeu. Essa experiência de contato cultural com povos do continente africano familiarizou o português com a mestiçagem e lhe foi de grande utilidade no processo de colonização do Brasil onde desde o início, como bem sabemos, livremente se mesclou com as tribos indígenas através do acasalamento com a mulher índia, mais tarde com a negra. Trata-se, em suma, de uma questão antes bem explorada por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala. Portanto, Sérgio Buarque apenas reitera o que se pode ler nas páginas da obra do seu antecessor.

Retomando a questão pertinente ao culto da personalidade, ela se irmana ao conceito de cordialidade que estudarei adiante. O personalismo ibérico, tão acentuado no livro de Sérgio Buarque, atua como força avessa à organização coletiva da sociedade. Quando se associa, tende a associar-se baseado em relações de sentimento, não de interesse. Esse é um dos aspectos em que é possível notar a profunda diferença entre o individualismo moderno, típico da tradição anglo-saxônica, e o personalismo ibérico. Este produz um tipo de individualismo com razão detestado e detestável, pois se afirma indiferente aos interesses e direitos coletivos. Noutras palavras, o que entre nós ainda vigora não é o princípio segundo o qual minha liberdade termina onde a do outro começa, mas sim o princípio que autoritariamente ordena: os incomodados que se mudem.

Caberia ainda acrescentar, nesse paralelo sumário entre o individualismo de extração anglo-saxônica e o personalismo ibérico, que este mascara interesses explícitos naquele. Já que se baseia nas relações de sentimento, o personalismo rejeita a atuação dos interesses nas relações associativas. Assim procedendo, tende a mascará-los, além de sempre reprovar quem acaso tenha a consciência de explicitar esta verdade elementar: as relações humanas em geral envolvem interesses unilaterais ou recíprocos. Se o individualismo moderno é em muitos sentidos reprovável, na medida em que encoraja em demasia os interesses de ordem privada, tem ele a vantagem de reconhecer sem máscara ou isento de inconsciência danosa o lugar efetivo que os interesses ocupam nas relações humanas. Nosso personalismo, atado às razões sentimentais, repele o individualismo consciente e prático, mas é pautado por interesses inconfessáveis ou inconscientes como os que latejam nessa frase modelar da nossa cultura: antes ter amigos em casa do que dinheiro na praça. Ou ainda esta: para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.

Concluo essas considerações em torno de alguns aspectos de Raízes do Brasil tecendo algumas anotações relativas ao capítulo intitulado “O homem cordial”. Além da importância fundamental que desempenha no conjunto da obra, o conceito chave aí exposto por Sérgio Buarque, o da cordialidade brasileira, tem dado margem a muito mal-entendido. Houve quem erradamente o interpretasse lendo efetivamente o livro, como foi o caso de Cassiano Ricardo, e houve sobretudo quem remasse nessa canoa furada simplesmente por opinar sem o ler. A canoa furada consiste, noutras palavras, em interpretar cordialidade como sinônimo de bondade. Daí não faltou quem concluísse que Sérgio Buarque de certa forma endossava interpretações ufanistas do Brasil ao caracterizar o brasileiro como acima de tudo bom. Tentarei esclarecer agora esse equívoco indo ao próprio texto da obra.

O próprio autor, visando corrigir a incompreensão de Cassiano Ricardo, assim como de tantos que traduzem cordialidade num sentido incompatível com aquele contido em Raízes do Brasil, cuidou de inserir na obra, a partir da segunda edição, longa e esclarecedora nota explicativa. A ela agora se acrescenta, a partir desta edição comemorativa dos 70 anos em que me baseio para a redação destas notas, a carta que escreveu para Cassiano Ricardo em setembro de 1948. Divergindo deste, que identifica cordialidade com polidez e opõe cordialidade a bondade, Sérgio Buarque deixa claro, aliás desde o texto da primeira edição, conceber a cordialidade como a expressão dos vínculos de cunho emotivo característicos das relações sociais brasileiras. Essa característica, de resto, irmana o conceito de cordialidade com o do culto da personalidade, como acima observei.

Indo adiante na intenção de bem esclarecer o desacordo, Sérgio Buarque alude à etimologia da palavra cordial. Procedendo do latim cordis, isto é, “relativo ao coração”, às expressões humanas de fundo emotivo procedentes do coração, visa ele acentuar a descontinuidade, ou melhor, a oposição entre as relações de fundo emotivo ou pessoal, típicas do homem cordial, e as relações de base legal, que entendo características da democracia moderna baseada nos valores de cunho impessoal, universal e abstrato típicos da ordem legal inspirada no individualismo moderno. O sentido que procuro aqui esboçar parece-me evidente já na abertura do capítulo “O homem cordial”, onde o autor começa por ressaltar a descontinuidade, ou mais exatamente a oposição, entre a ordem familiar, notadamente a ordem familiar patriarcal típica da formação da cultura brasileira, e a ordem do Estado. Como Sérgio Buarque acertadamente pontua, o Estado precisou negar a ordem privada da família para se constituir como expressão política das leis impessoais e abstratas da Cidade. Daí também deriva a oposição clara que estabelece entre cordialidade e polidez. Também nesse ponto volto a recorrer à etimologia, embora Sérgio Buarque não repita esse procedimento que emprega para melhor esclarecer o sentido de cordial, cordialidade. O ser polido é aquele cultivado, educado pelas leis da polis, isto é, da cidade politicamente organizada. Penso que a oposição que o autor fixa entre a ordem familiar e aquela instituída pelo Estado é da mesma natureza da que opõe o homem cordial ao homem polido.

Negando ao brasileiro esta qualidade, a da polidez, o que Sérgio Buarque pretende mais uma vez enfatizar é a prevalência na nossa cultura das relações de fundo emotivo enraizadas no coração. Ora, ele nitidamente identifica nessa nossa característica um traço negativo que precisaria ser superado pela ordem social em formação naquele período, aludo à época em que o livro foi escrito, para que no Brasil efetivamente se realizasse uma democracia moderna, isto é, baseada no império das relações legais, que como tal suprimem os valores oriundos do culto da personalidade e do homem cordial. Em suma, a ordem legal na qual passariam a dominar relações legais baseadas em princípios universais e abstratos.

Fazendo uma aposta otimista acerca do nosso futuro, Sérgio Buarque acreditou que essa nova ordem triunfaria graças ao processo de urbanização em marcha acelerada, à instituição de novos métodos educativos e práticas de organização do trabalho, casos exemplificados no capítulo que comento. Embora acentue ainda a predominância do funcionário patrimonial em oposição ao burocrata, parece-me também clara sua convicção de que este se imporia àquele. Temos aqui uma outra ordem de oposição clara. Enquanto o funcionário patrimonial prende-se à ordem tradicional associada à família patriarcal que se projeta sobre a ordem política privatizando a esfera pública, o burocrata pauta sua função pelos mesmos princípios impessoais e abstratos observáveis na instituição do Estado moderno. Os exemplos que o autor expõe acerca da psicologia moderna aplicada à educação também reiteram e reforçam a oposição que percorre todos os pares acima considerados. Portanto, entendo que em resumo o universo das relações cordiais identifica-se com o império das relações de fundo emotivo, pessoais e antidemocráticas. No outro extremo, situam-se as relações de fundo legal, típicas da democracia moderna.

No frigir dos ovos, se minha interpretação é correta, sem dúvida avançamos em muitos sentidos em direção à ordem legal e democrática postulada na obra de Sérgio Buarque. Ele postula essa mudança e nitidamente declara a esperança de que ela venha a se consumar na sociedade brasileira. Embora possamos constatar avanços inegáveis na direção apontada, infelizmente o homem cordial é ainda uma realidade muito viva na nossa cultura. Seus valores são ambivalentes, como aliás já o reconhecia o autor. Se de um lado estão enraizados em muito da nossa espontaneidade, da nossa aversão a ritualismos estéreis, mas também a ritualismos em geral, e aí a coisa já complica o sentido dos ganhos entre espontaneidade e formalismo social, de outro lado eles estão nas raízes das nossas relações desiguais, do favorecimento dos parentes, amigos e apadrinhados, da ordem social baseada no privilégio e, no limite, na apropriação corrupta do público pelo privado.

Concluindo, o Brasil encontra-se já no início do século 21, sua economia está entre as dez mais poderosas do mundo, mas no âmbito cultural e institucional continuamos nos balançando sem solução entre os valores da cordialidade, ou das relações de fundo emotivo e pessoal, e os valores da ordem social democrática baseada em relações legais de fundo universal e abstrato. Pior para a maioria e portanto para o conjunto da nação, ainda atada a uma ordem de realidade cultural que bem justifica a frase famosa de Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes”. Sendo assim, as explicações aqui estudadas sem dúvida muito nos esclarecem, mas não são nem podem ser a solução dos problemas que entravam nosso ingresso na modernidade plena. A solução, suponho, depende de transformações socioculturais e econômicas profundas, que ninguém sabe quando se completarão.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Casa-Grande & Senzala


A publicação de Casa-Grande & Senzala, em 1933, representou sem exagero uma revolução no desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido ressaltou num célebre prefácio escrito para Raízes do Brasil que o livro de Gilberto Freyre foi um dos três decisivos na formação da sua geração. Esse juízo tornou-se tão consensual que hoje muitos estudiosos aludem à apreciação de Antonio Candido para apontar as duas obras acima, acrescidas de Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., como as três grandes obras clássicas do pensamento social brasileiro. Darcy Ribeiro foi mais além. Escrevendo um outro prefácio, este para a edição venezuelana do próprio livro de Gilberto Freyre, afirmou com todas as letras que Casa-Grande & Senzala era a obra mais importante da cultura brasileira.

Inicio este artigo com o parágrafo acima para sugerir ao leitor a importância inegável que esta obra passou a exercer na nossa história cultural desde o momento em que foi publicada. Gilberto Freyre escreveu uma obra ainda hoje reconhecida como fundamental para se estudar e conhecer o Brasil, sua formação cultural e suas características mais fortes. Ela mudou a maneira de o brasileiro, sobretudo o brasileiro da elite, encarar a si próprio como brasileiro. Levando adiante e consolidando tendências culturais inauguradas por alguns estudiosos isolados do passado, e mais amplamente pelo modernismo, como observei ao estudar este movimento e a contribuição dos seus dois representantes mais significativos, Mário e Oswald de Andrade, em outro artigo postado neste blog, Freyre inverteu a imagem dominante no seu tempo, uma imagem ainda muito influenciada pela antropologia racista de procedência europeia. Baseada em teorias de cunho determinista, tanto do ponto de vista geográfico quanto racial, ela representava o Brasil como um país inviável ou incapaz de ingressar na corrente da civilização ocidental.

Ao publicar Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre expõe evidências e argumentos que invertem essa visão do Brasil. Antes de tudo, como ele próprio salienta no prefácio também célebre escrito para a primeira edição do livro, sua obra baseia-se numa distinção fundamental entre raça e cultura. Discípulo do grande antropólogo Franz Boas, de quem foi aluno nos EUA, Freyre reuniu farta documentação, também inovadora dos estudos sociais no Brasil, para refutar as teses racistas. Além disso, também dialoga com a tradição nacional tanto aproveitando lições de antecessores que convergem com suas teses, como é o caso da obra de Joaquim Nabuco, quanto refutando contemporâneos como Oliveira Vianna e Paulo Prado, tendentes seja a adotar teses racistas, seja a depreciar os valores culturais brasileiros.
Casa-Grande & Senzala constitui a primeira parte de uma obra mais ampla e ambiciosa designada por Gilberto Freyre como uma “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. A segunda parte, lançada três anos mais tarde, intitula-se Sobrados & Mucambos. Enquanto a primeira obra concentra-se na formação da nossa sociedade patriarcal durante o período colonial, a segunda prende-se à decadência do patriarcalismo na contracorrente da nossa formação urbana. A terceira parte, publicada bem mais tarde, 1959, sob o título Ordem e Progresso, concentra-se no advento do Brasil republicano e na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado.

O título da obra já indica sinteticamente muito do seu conteúdo e das teses sustentadas pelo seu autor ao longo de mais de cinco centenas de páginas. Mais do que meros designativos de duas formas de moradia ou habitação, a casa-grande e a senzala, na concepção de Freyre, condensam todo um sistema social. Em primeiro lugar, elas constituem antagonismos sociais, já que a casa-grande é a habitação do senhor de escravos, do patriarca e latifundiário todo-poderoso da nossa sociedade colonial, enquanto a senzala é a moradia do escravo negro importado da África. Mas esse antagonismo é abrandado – ou adoçado, como diz Freyre abusando da metáfora demasiado integradora – pela miscigenação que marcou toda a nossa formação social.

Importa salientar que a miscigenação, nas palavras do próprio autor, não constituiu um fenômeno apenas físico ou biológico. Ela foi também cultural. Suas causas ligam-se, em primeiro lugar, à experiência de miscigenação vivida pelo português antes mesmo de vir colonizar o Brasil. Sua condição bicontinental, espremida entre a Europa e a África, tornou-o adaptável à miscigenação com o árabe e o judeu. A isso somou-se o fato de que, provindo de um país pequeno de população também pequena para povoar a imensidão do nosso território, o português chega ao trópico antes de tudo como um aventureiro sedento de riqueza fácil e gozo sensual. Como havia durante grande parte da colonização escassez de mulher branca, ele facilmente se acasalou com a índia.

Essa foi a base da nossa miscigenação que se estendeu através dos tempos coloniais e hoje está completamente consolidada na nossa formação cultural. Como o indígena resistiu ao trabalho forçado, necessário para que o português realizasse seu projeto de enriquecimento no trópico através da monocultura exportadora, foi preciso importar o elemento africano, que chegou aqui já escravizado e passou a constituir a força de trabalho da colônia e mais tarde do país independente. A presença do negro na nossa cultura amplia o processo de miscigenação, além de enriquecer nossa cultura em muitos aspectos.

Completando a explicação referente ao título do livro, Gilberto Freyre concentra seu estudo nas relações entre o senhor da casa-grande e o escravo doméstico, diferenciado do escravo destinado ao trabalho mais duro e castigante do eito. Essa, aliás, é uma das críticas feitas a Freyre, que tenderia a generalizar relações entre senhor e escravo restritas ao ambiente da casa-grande. Mas seria injusto afirmar que Freyre omite de sua obra os horrores da escravidão. Mesmo no ambiente doméstico, onde descreve as relações entre o senhor branco e a negra escrava, o sinhozinho e o moleque, a sinhazinha e a mucama, ele ressalta a violência e o sadismo impostos pelo dominador ao dominado. Propondo uma explicação para a opressão imposta pela classe dominante ao povo brasileiro, Freyre afirma que o sadismo da primeira e o masoquismo do segundo decorrem “[d]o simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho”. Esta é outra tese bastante criticada, mesmo por estudiosos que enaltecem a obra de Freyre, como é o caso de Darcy Ribeiro e Elide Rugai Bastos.

Completando afinal a explicação de aspectos fundamentais da obra a partir do seu próprio título, importa observar a conjunção aditiva “e” que enlaça os dois substantivos à primeira vista antagônicos. Já antes acentuei as forças socioculturais que concorreram para aproximá-los. Adianto agora que essa concepção supõe uma interpretação integradora das três matrizes formadoras da cultura brasileira já estudadas na aula cujo título é A Cultura Brasileira e Suas Matrizes.

Embora reconheça os aspectos violentos e corruptores da escravidão, Gilberto Freyre adota uma concepção sem dúvida integradora da cultura brasileira. Ele é sem dúvida a grande fonte de uma representação hoje oficializada que representa nossa cultura como integradora de todos os seus componentes, uma cultura que confunde miscigenação com democratização social. Daí provém o mito de que somos uma democracia racial, o que não é verdadeiro. Embora nosso racismo seja mais brando do que o norte-americano, por exemplo, onde foram adotadas medidas de segregação racial nunca felizmente praticadas no Brasil, o fato é que não somos uma democracia racial. Basta observar a extrema desigualdade social que ainda vigora na nossa sociedade. Não é acidental um outro fato também facilmente observável: a predominância do elemento negro e mulato nas camadas mais pobres e sofridas da nossa sociedade.

A crítica acima não refuta o fato de que Gilberto Freyre contribuiu com sua obra mais do que qualquer outro dos nossos estudiosos para a valorização da cultura negra. Além de inverter o sentido antes conferido ao negro na constituição da nossa cultura, sentido que correspondia à condição inferior do negro, Freyre expõe na sua obra evidências e argumentos sólidos em defesa do negro, a quem aliás caracteriza como agente civilizador, apesar da sua condição de escravo. Sua suposta inferioridade, como Freyre bem o demonstra, não tem nenhuma comprovação de base científica ou racial. A inferioridade do negro, assim como do brasileiro pobre em geral, é fruto de condições culturais, frisa Gilberto Freyre, não raciais. E ele vai adiante e assinala alguns desses fatores responsáveis pelas condições de subdesenvolvimento do nosso povo: a monocultura, que impôs condições de subnutrição crônica à nossa população pobre ou simplesmente desamparada; a sífilis que se difundiu através de um estado de promiscuidade sexual que perversamente induzia o macho, como é típico de sociedades patriarcais, a exibir com orgulho as chagas da doença, prova de que ele era macho.

Pode-se afirmar que Freyre foi o introdutor no Brasil de técnicas e métodos sociológicos modernos aprendidos durante seus estudos de formação sociológica nos Estados Unidos. Outra inovação extraordinária, esta bem pouco seguida nos círculos acadêmicos onde se formam nossos cientistas sociais, consiste na qualidade da sua prosa, devedora de sua formação também amplamente literária. Sua obra destaca-se pelo estilo plástico e sedutor com que expõe seus argumentos e descreve relações e tipos sociais. Utilizando tanto a linguagem técnica quanto a coloquial, para a qual demonstra uma sensibilidade típica dos melhores prosadores e artistas da palavra, Freyre foi muito criticado pelos cientistas de formação estreitamente acadêmica que sempre o depreciaram alegando faltar rigor e precisão conceitual à sua obra. O irônico disso tudo é que muitos desses autores acadêmicos passam, alguns depois de gozarem de grande prestígio no meio universitário, enquanto a obra de Freyre fica e pode com justiça ser encarada como uma das obras definitivas da cultura brasileira.

Ler também:
Impacto e Permanência de CG&S
O transitório e o permanente
Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco
Sob o signo da ambiguidade
Gilberto Freyre de A a Z
Um Vitoriano dos Trópicos
A Modernidade nos Trópicos
Modernismo e Regionalismo
Modernismo, Regionalismo e Identidade Cultural

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Interpretações da Cultura Brasileira



Nota explicativa – O texto abaixo constitui uma breve introdução a uma série de capítulos nos quais estudo sinteticamente algumas das obras fundamentais incorporadas à tradição do pensamento social brasileiro. A introdução e os capítulos mencionados derivam de uma disciplina sobre cultura brasileira que ministro dentro de um curso à distância coordenado pelo Depto. de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Além dos capítulos individualmente consagrados ao estudo das obras incorporadas ao programa da disciplina, já escrevi e postei no meu blog outros capítulos do programa. É o caso dos textos sobre o conceito socioantropológico de cultura; cultura e conceitos conexos; etnocentrismo, universalismo e relativismo cultural; a cultura brasileira e suas matrizes; modernismo e cultura; modernismo e regionalismo; modernismo, regionalismo e identidade cultural. Esse conjunto de textos, acrescido dos que postarei em seguida, compõe o conjunto do programa da disciplina já mencionada. Assim, especificando-os, virão em seguida: Macunaíma, de Mário de Andrade; Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior; O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Fechando o conjunto, um capítulo conclusivo sobre cultura, identidade cultural e globalização.

Seguindo o roteiro traçado no programa da disciplina, passarei agora ao estudo esquemático de algumas obras fundamentais da cultura brasileira. Começaria destacando a importância que essa tradição, a dos intérpretes do Brasil, ocupa no conjunto do pensamento social brasileiro. Ela obedece a certas características evidentes nas obras que estudarei nesta seção da disciplina. Antes de tudo, como antes assinalei, ela expressa uma angústia ou obsessão relacionada à nossa identidade cultural. Presos a esse problema, todos os intérpretes que estudarei e já estudei em textos referidos na nota explicativa acima, além de vários artigos postados no meu blog, escrevem obras que remontam às origens da nossa formação sociocultural. Isso é claro em todas as obras que ocupam esta parte do programa que tracei para explorar algumas linhas da cultura brasileira. Algumas das obras aqui consideradas prendem-se mais diretamente à formação cultural, como é o caso de Macunaíma e Casa-Grande & Senzala; outras mais ao ensaio de base histórica e sociológica como observamos em Raízes do Brasil e além disso antropológica,como é o caso de O Povo Brasileiro; outras ainda à interpretação de base econômica, como é o caso de Formação do Brasil Contemporâneo. Lembro que essas distinções são muito esquemáticas, pois as obras que acabo de citar se cruzam ou sobrepõem de muitas formas. Afinal, quase todas obedecem a um estilo de composição ou exposição do assunto típico do ensaio de interpretação sociocultural.

O problema acima mencionado, o da angústia relativa à nossa identidade cultural, é típico de países portadores de um longo passado colonial. Como sabemos, o Brasil é fruto de longo e complexo processo de formação histórica e cultural baseado no encontro e entrechoque das três matrizes da nossa cultura já estudadas em outra aula: a indígena, a lusa e a africana. Mesmo depois da nossa independência política continuamos dependentes da Europa, particularmente da Inglaterra, no plano econômico, e da França, no plano cultural. Mais tarde, já no século 20, essa dependência deslocou-se para os Estados Unidos.

Além disso, ainda hoje sofremos de problemas internos crônicos que tornam nossa inclusão na modernidade muito peculiar ou problemática. Se de um lado já figuramos entre as dez economias mais poderosas do mundo, de outro somos ainda um país dividido por extremos de desigualdade social. Noutros termos, a grande concentração de riqueza continua impedindo a realização de uma autêntica democracia moderna no Brasil. Isso é evidente na qualidade precária dos quesitos que mais importam para definir uma democracia social moderna: habitação, educação, saúde, segurança, transporte, além de um sistema legal ainda baseado em privilégios e desigualdades incompatíveis com as características dos países nos quais procuramos nos espelhar.
Penso que todos esses fatores contribuem de forma decisiva para explicar nossa angústia de identidade e nossa dependência cultural. Acredito que o estudo individual das obras incluídas no programa da disciplina é fundamental para melhor compreendermos esses problemas. Resumindo, precisamos ainda de reformas sociais profundas. Enquanto isso não acontecer, continuaremos presos a essa angústia de identidade que continuamente repõe nos estudos sobre a nossa cultura e no debate cultural brasileiro a questão da nossa identidade cultural, da imitação versus autonomia cultural e temas afins.

sábado, 11 de junho de 2011

A Vida num Filme



A vida num filme
ou revendo La Femme d´à Côté

As luzes se apagam e ele está sozinho no cinema.
O que sofre um homem
Quando suas histórias de amor
Se confundem com as do filme?
As imagens da memória
Tantas já congeladas nos porões do inconsciente
Se vão milagrosamente recompondo
Indissociadas das imagens na tela projetadas.
Se nestas Eros e Tânatos se fundem no momento supremo
Naquelas repica o ranger dos freios desgovernados
A colisão dentro da manhã ensolarada
A vida refeita por um triz.

Antes da colisão contra o muro
A memória de um olhar pânico dentro do outro
O medo paralisante da morte provocada.
Depois a bruma dentro da ferragem retorcida
O sangue no pára-brisa estilhaçado
Foco metálico do sol fervendo na lataria.
A multidão dos banhistas gozando
A brutalidade do espetáculo imprevisto
Enquanto o corpo ensanguentado capotava sobre o asfalto.

Nem com você, pior com você.
Mas a vida, dissentindo do filme,
Se remenda e sobrevive em câmaras frias
E corredores indiferentes
Enquanto a amada homicida geme desvairada na antessala.

Antes de tudo, porém, como no filme
Veio o beijo indiferente ao imperativo da gravidade
O corpo afrouxando de desejo
E ruindo como um saco vazio amparado no meu corpo.
Entre a queda e a colisão
A viagem sem governo dentro da noite
Um poço sem fronteiras
Cavando as possibilidades mais exaltadas e destrutivas.

E caíamos e caíamos
E caíamos gozando o frenesi da queda
A viagem terminal dentro do amor.
E nos dizíamos e jurávamos:
Eu com você e só com você.
Até que a vida, como no filme,
Converte o júbilo em ruptura
A unidade momentânea
Em estranheza enfurecida.

O amor cai.
Antes de morrer o amor cai.
Cai por vezes no tumulto do orgasmo
Outras esbarrando na própria sombra sem comando.
Cai rolando nas escadas
No piso escuro onde suado o amor se mede e desregula.
Cai literalmente da janela
Traçando no vazio da tarde inglesa
Tão recatada e perplexa
A curva fatal do desespero.
A voz de um homem desamparado (“Meu amor, por quê?”)
Embalando-a agonizante nos seus braços
E a morte chegando no sopro congelado do campus.

Antes do fim o amor trai.
O amor mente, depois trai
Ou trai para no amor mentir.
Traição e mentira: uma e outra de tal modo entrelaçadas
Uma na outra mirando o seu avesso
Como se o amor traído não as visse e sofresse
Com a intuição penetrante que desnuda
A verdade soterrada na linguagem.
Ah, o meu amor despido
Nas próprias vestes da mentira invocada.

O que sofre um homem
Quando suas histórias de amor
Se confundem com as do filme?
As feridas do amor
São o lodo acumulado no piso da memória
Atualizada na sala indiferente
Onde áridos semelhantes mascam chiclete
Atados à âncora de celulares emudecidos.

As feridas do amor
Acumuladas no piso da memória
Poeira nas fotos picotadas
Dentro de uma névoa de lágrimas
Rangem sob as solas fatigadas
E o homem braceja agora
Dentro de um mar de luzes acesas e sem humanidade.

Retido no cerne da aridez circundante
Tânatos acena a possibilidade do tiro
Explodindo no fulgor cego do orgasmo.
Mas tudo humano e neutro se refaz
E o público vai lentamente repondo os pés
Na mecânica engrenagem da rotina.

O homem refaz o curso da solidão e da casa
Vergado ao peso da memória sem bobina.
O tempo da vida material é o presente
Mas a memória trabalha contra o tempo
E dispersa nas ruas, na aridez do asfalto
O filme do vivido irreversível
O amor que é porque acaba
Pois que ser é contingente.

Mas por que, eis se pergunta,
Por que há o amor de ser sempre a mesma história?
Por que há de sempre e contra si assim fazer-se
Negando no ofício da fatura
A imagem com que sempre a si se veste?
Por que em cada história que se tece
O amor desmente a força estranha que o move?
Por que não se realiza contra as forças que o destroem
Tecendo no corpo e leito um outro fecho de filme?

Fernando da Mota Lima.

Recife, 06 e 07 novembro de 1999.

domingo, 5 de junho de 2011

A Modernidade em Olinda



A Modernidade Carnavaliza os Quatro Cantos

Ó abre alas – O indivíduo que busca pessoas e não encontra senão o outro pulverizado em massa – eis a dilacerante provação existencial da modernidade.
Vem Pitombeiras, vem Elefantes, blocos e troças e tudo numa boa se mistura: brancos, negros, cafuzos e mulatos. É o povo brasileiro carnavalizando os Quatro Cantos e toda Olinda, cara. Mas num supetão (você nem viu) tô eu ali tomado pela consciência de ser indivíduo dissolvido em massa. Quem que me ensinou isso, cara? Foi a teoria das três raças tristes, o Brasil caboclo, tropical e sambante? Foi isso não, cara, foi a modernidade.
E passam blocos, mulatos passam, passam figuras imperiais que logo na primeira esquina são atropeladas por um Chevette. É o Brasil arcaico simbolicamente confrontado com o Brasil moderno, cara; o Brasil do Banco Econômico, cuja faixa carnavalescamente compete com a do Pitombeiras, arrancando de um folião o comentário indignado: “O capitalismo infiltrou-se no carnaval de Olinda”.
E vem um homem e beija você, cara; vem uma mulher e beija você. E nada é proibido, cara, nada de nada recusas. Só por que é carnaval? Não só. Carnaval e modernidade. Quero dizer: a inversão da norma contaminada pelo sentido de ruptura dos padrões estéticos, bestéticos e morais. Modernidade é o lugar de instauração da anomia, cara.
A modernidade desfila nos Quatro Cantos e eles nem sabem, não obstante a encenem. Dissolvido na massa (a massa e a multidão, a multidão solitária, a indústria e a cidade são expressões da modernidade) num lance, ou relance, você se pega roendo as unhas. Roer as unhas, em semelhante contexto, não será uma forma de indiciar a distância (distanciamento, diria nossa modernidade brechtiana) entre a sua consciência, vincada de modernidade, e a explosão alegórica do Brasil primitivo? Entre você e a massa, entre a consciência e o passo (do frevo, bem entendido. Bem entendido noutro parêntese. Vê como as associações se atropelam? Não é que antes não se atropelassem. É que antes não sabiam, nem sabia você, da psicanálise) se interpõe a modernidade. E que diabo é a modernidade senão o fosso cavado entre a consciência e o objeto, o uso e a troca, a perversão e a inocência, o Brasil arcaico pulsante no primitivismo de suas expressões, e o Brasil moderno vincado pela força da máquina, racionalização, automação, minicomputador, antimísseis e explosões atômicas?
A modernidade frevou nos Quatro Cantos e você nem viu, embora professe sua psicanálise diluída, seu marxismo de manual e guie seu carro movido a álcool – único indício, aliás, do Brasil agrário engrenado no seu motor. A modernidade é toda essa complexa e promíscua e confusa realidade que o devora sem que dela você se dê conta. E no entanto, Machado de Assis, que viveu no século 19 (mas foi mulato de alma branca, dizemos nós ilusoriamente rebaixando-o na sua expressão de modernidade artística brasileira) disse a modernidade em pleno Brasil Pedro II com uma agudeza que todo nosso nacionalismo populista, e pululantes excrescências, não consegue dizer ainda à altura desse tumultuoso declive que de cabeça nos impele de encontro aos vulcões do século 21.
A modernidade pintou nos Quatro Cantos e você nem viu, cara, tão absorto estava nas arcaicas paisagens desse Nordeste miscigenal-tropical-canavial arquitetonicamente dançando sobre as ruínas das casas-grandes e senzalas. A modernidade cruzou certa janela dos Quatro Cantos de Olinda e só Carolina não viu.
Ó fecha alas – Universal é a estupidez, não a modernidade.
Olinda, setembro de 1984.
Nota – crônica publicada na revista Extensões, da Universidade Federal de Pernambuco, no. 1, agosto/outubro 1984.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Brasil, 7a.Economia do Mundo



O ministro da Fazenda Guido Mantega (ver Folha de S. Paulo de 3 de março) veio a público anunciar que o Brasil ultrapassou as economias do Reino Unido e da França passando assim a ocupar a sétima posição no ranking das economias do mundo. Sei que muito brasileiro idiota, além sobretudo dos que lucram com esse fato, deve estremecer de orgulho ao tomar conhecimento desse feito extraordinário. Antes de nos valer como motivo de orgulho nacional, essa notícia deveria cobrir-nos de vergonha e antes de tudo inconformismo e revolta. Durante muito tempo os beneficiários do nosso capitalismo espoliador e predatório puderam escudar-se na desculpa de sermos subdesenvolvidos para justificar a iníqua realidade das nossas desigualdades e injustiças. O que dizer agora?

O que dizer agora, agora que somos a sétima economia do mundo? Olhem à nossa volta e deleitem-se diante do espetáculo exaltante da sétima economia do mundo. Nossas cidades, salvo as exceções de praxe, são verdadeiros acampamentos urbanos. Infernos urbanos. Basta que desabe meia hora de chuva sobre elas para que logo mergulhemos no caos desamparados de qualquer governo. Observem, por exemplo, as cenas filmadas de helicópteros sobrevoando cidades submersas. Observem ainda o pesar ou desespero – também o riso e o trejeito lúdico desse povo que teima em rir e cantar em meio à miséria rotinizada – dos desabrigados, no geral gente pobre, feia e mal nutrida. Onde está o governo? Onde os bombeiros, as forças públicas que deveriam ir em socorro da população desamparada? O governo, os bombeiros, a polícia, os médicos, enfermeiros e hospitais não chegam, mas em compensação chegam novos impostos que nos convertem no país detentor de uma das mais escorchantes e aviltantes políticas tributárias do mundo. Cobram-nos tanto, taxam-nos tão impiedosamente e todavia o que nos devolvem em termos de serviços públicos?

Vêm as chuvas, vão-se as chuvas e todavia continuamos à deriva da caridade cristã do povo que de algum modo se mobiliza para catar comida e abrigo para os castigados pelo clima e nossos dirigentes irresponsáveis. O governo, do municipal ao federal, vem à mídia para verter o lero-lero habitual: que farão isso, farão aquilo, que já fizeram isso, fizeram aquilo. Como fazem tanto e prometem ainda mais, se vagamos na vida como um trem descarrilhado? Cidades do poder e grandeza de São Paulo foram até hoje incapazes de efetivar uma política de transportes capaz de articular toda a rede urbana num sistema de metrô. Pelo contrário, a política dominante privilegia ainda o transporte rodoviário enquanto as montadoras continuam cuspindo veículos sobre ruas e cidades intransitáveis. Um dia essa merda vai parar. Um dia ficaremos engavetados no portão de saída dos nossos condomínios, o que de resto já se tornou fato em alguns existentes em São Paulo. Nossos aeroportos não funcionam. Nosso transporte público é uma máquina ruidosa tangendo gado enlatado sempre exposto a ficar congelando ou fervendo dentro do calor no trânsito paralisado de ruas sem alma e governo.

Também deveriam envergonhar-nos coisas como a Ação Global, movimento que num fim de semana mobiliza profissionais e voluntários para concederem atendimento médico e concessão de documentos ao povo privado de ambos. O que deveria ser um direito de acesso rotineiro assegurado pelas instituições competentes, no caso incompetentes, passa a depender de iniciativas extraordinárias para viabilizar ações de cidadania restritas a grupos privilegiados. A isso se somam campanhas de solidariedade em si louváveis, mas que, consideradas de outra perspectiva, deveriam constituir motivo de revolta e indignação cívica, já que existem para suprir a carência de direitos negados pelo Estado à população.

Fiquei portanto muito feliz ao ler a notícia transmitida pelo governo. De fato, ser a sétima economia do mundo é algo que me enche de orgulho do meu país, da classe dirigente cruel e irresponsável que nos desgoverna. Ela continuará acumulando impiedosamente às custas da espoliação de milhões de brasileiros que trabalham feito mula sem compensação sequer salarial para o tanto que sua e constrói. Como tenho o privilégio de viver em casa, salvo quando preciso sair para trabalhar ou fazer o estritamente necessário indo às ruas onde o trânsito logo me prende em nós que vou pacientemente desatando, contornando, contorcendo, continuarei prudentemente encerrado entre minhas paredes, prisioneiro dentro da minha própria casa.

O fato de a notável expansão econômica do Brasil não mudar significativamente nossos problemas fundamentais, aqueles que efetivamente definem uma democracia moderna, é uma evidência de que crescimento econômico não é suficiente por si só para nos elevar à condição invejável alcançada pelos países do capitalismo central. A dívida histórica das nossas elites ou classes dirigentes é enorme e é ilusório pensar que essa dívida será paga sem reformas sociais e culturais profundas. Importa também ressaltar que o povo espoliado pelo nosso capitalismo perverso, que cresce reproduzindo as condições de desigualdade e injustiça de que contraditoriamente se alimenta para acumular e concentrar riqueza, o povo não é vítima inocente. Ele tem também sua parcela de culpa, antes de tudo por ter sido sempre incapaz de se organizar como força de pressão política orientada para um conjunto de mudanças efetivamente democratizante. O que de tudo isso resulta é a persistência prática de uma ditadura social e econômica suportada por grande parcela da população. Como falar de democracia de fato para um povo privado de direitos elementares, do acesso a bens e serviços básicos como educação, saúde, segurança, habitação e saneamento, transporte e por fim o senso de dignidade e saúde civil que derivam do acesso a isso que falta a tantos?

No mais, apesar de sétima economia do mundo, o Brasil continuará torrando irresponsavelmente a economia em escolas que não educam, hospitais que não curam, segurança social que gera insegurança e medo, transporte que não nos leva a lugar nenhum, salvo aos engarrafamentos monstruosos convertidos em paisagem urbana banalizada na mídia e no horror cotidiano que precisamos sofrer. O dinheiro público, que constitui fração colossal da sétima economia do mundo, continuará vazando pelo ralo, rolando nas sarjetas das nossas políticas públicas capengas e sobretudo alimentando o desperdício, o superfaturamento e a corrupção, doença endêmica da política nacional. Salve a sétima economia do mundo, que continua mantendo no garrote um povo de colônia ou fazenda subdesenvolvida. Ser sétima economia do mundo dentro de tais condições é algo que deveria servir apenas para nos envergonhar e sobretudo revoltar.
Recife, 11 de maio de 2011