segunda-feira, 28 de maio de 2012

Saudade de Nana


Já fui teu Pinto Calçudo
na rede cantando assim:
Nana Naninha Nonada
vida iludida cansada
manda um carinho pra mim.

Fui tua cama, teu berço
teu colo calor teu ninho
fui contas tua reza terço
sei nada disso pareço
mas fui teu sono soninho.

Fui teu aviso, teu riso
tua sede rede teu dengo
teu "nem te vi, nem preciso"
tanto de ti que nem lembro
o que eu fui o que era
naquelas tardes de sol
teu riso flor primavera.

Fui tua rede teu sono
teu travesseiro na cama.
Fui tanto que nunca disse
fui sonho e mais do que sonho.
Fui o menino de Nana
infância reinventada.
Mas hoje longe de Nana
Pinto Calçudo reclama:
sem Nana não sou mais nada.

Londres, 20 junho l99l.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A estrela


Pintei no céu uma estrela
Só por desejo de amor
E à noite sonhando vê-la
No cume do Arpoador
Me perco num barco à vela
No mar sem margens do amor.

Na madrugada deserta
Abri ao vento a janela
A porta, minh´alma aberta
Para enlaçar a estrela
Pintada com tanto amor.
Mas tropeçou e caiu
No mar deserto afundou.
Ninguém nem soube nem viu
Onde perdi meu amor.
Recife, 29 de novembro de 2011.

sábado, 19 de maio de 2012

A voz do amor


A Voz do Amor - III

Apenas sei dizer que ele luzia
No fundo do olhar onde espelhava
A vaga em que nos mares me perdia
E em pânico de amor eu naufragava.

Seu corpo na penumbra me afogava
E eu náufrago mais dava e mais pedia
Insano em si morrendo me matava
Fundindo no esplendor a agonia.

Amor que me elevava e me pungia
Banhando-me de luz e epifania
Amor além de tudo que vivi

Circula dentro em mim, na luz do dia
Num sopro de saudade e de poesia
Amor que enfim ganhei, pois que o perdi.

Recife, 6 dezembro, 2001.

domingo, 13 de maio de 2012

E era Maria



Maria!, a brisa dizia
Ao sol das águas e ao tempo
E meu amor me acudia
Em vagas de alumbramento.

Maria!, e o mar se arrepia
Molhando as franjas do tempo.
E o dia vertido em guia
De um fado ou fazimento:

A minha humilde poesia
Lavrada n´águas atlânticas
E essa visão que irradia
Mares luares e ancas.

Mas era uma vez, um dia
E o luto na calmaria
Forrou as vestes do tempo.
E o mar deserto anuncia
O fim de tudo e Maria
Naufraga no esquecimento.

Porto de Galinhas, 25 de junho de 1998.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Lendo Bandeira em Freyre



Nem o menino de oito anos se deixou, em Bandeira poeta, vencer, em tempo algum, por esse precoce velho de oitenta, nem o antecipado velho de oitenta, pelo renitente menino de oito. Sempre se completaram, sem muita desarmonia entre os dois. Como avô e neto dentro do mesmo indivíduo.
Gilberto Freyre.

Em vão te diz o espelho
no fato a crua verdade:
mira tua face de velho
a vida já te vai tarde.
II
Sim, velho, que hei de fazer
do que me vai e vai tarde
se um sopro de amanhecer
inda no peito me arde?

III
Na curva que me desenha
um vago perfil da idade
vislumbro um acordo na senha
que me perfaz a idade
IV
a idade mais eu e exata
além do ser convenção
fundindo no céu de prata
a idade do coração.
V
Não miro assim nem o velho
nem o menino em meu ser
mas ambos na flor do espelho
fundidos num só viver
de extremos entretecidos.
VI
Assim me vou in-ferido
Num mar além da aparência
rindo do golpe bandido
que não me tira a inocência.
VII
Lá se vão unos fundidos
em mim o velho e o menino
retendo os tempos vividos
no ser que é ser sendo sido.

Fernando da Mota Lima
Recife, 25 de setembro de 2001.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Kafka e nossa irrealidade digital



No alvorecer do capitalismo moderno, Adam Smith cunhou a expressão “a mão invisível” para designar a força impessoal investida do poder de organizar os agentes do mercado. Essa mão, que hoje meu ódio impotente gostaria de decepar, explicaria o funcionamento das forças econômicas que milagrosamente se coordenam – o jogo da oferta e da procura, por exemplo. Como o gado errante tangido dos campos comunais para as fábricas, hoje da solidão física para as redes sociais, nada entendo disso. Sei apenas que me tornei prisioneiro de carcereiros invisíveis. A vetusta mão invisível de Adam Smith funciona hoje como a fantasmagoria de um processo kafkiano. Não cometi nenhum crime, o próprio poder digital e anônimo de nada me acusa, mas no fim do filme eu morro como um cão, como o anônimo esvaziado de humanidade da obra de Kafka.

O parágrafo acima traduz uma ironia atroz. Formei-me embalado pelo humanismo originário das Luzes do século 18. Formei-me acreditando no valor da liberdade humana, que decorreria das forças do progresso social, do desenvolvimento da democracia e das forças produtivas, e eis-me agora refletido no espelho de Kafka: o espelho que reflete um inseto chamado ser humano. Miro esse inseto, que sou eu, e vejo apenas a irrealidade do labirinto digital em que as forças invisíveis do mercado me aprisionam. Um dos deuses dessa revolução da ciência morreu há pouco e é hoje celebrado no mundo como um Deus, um Deus mais poderoso e idolatrado que o deus (minúsculo) de qualquer religião. O nome desse Deus – mortal quanto eu e você, tanto que morreu num frenesi típico do mercado voraz – é Steve Jobs. O sobrenome é arrepiante, mas sigamos.

Steve Jobs morreu, mas continua na rede, celebrado em imagens que o vendem e que ele vende. Ele posa como o gênio letal do mercado, mercadoria fundida na mercadoria, pois está sempre vendendo alguma coisa: vende a maçã paradisíaca, o Iphod, Ipad, o Iphone,o Tephod, e outras siglas que me possuem e nos possuem. Mas o gado servil e ignaro, cego de ambição e desejo voraz de consumo, o idolatra como se fosse o bezerro de ouro da lenda bíblica.

O inseto se mira no espelho kafkiano e sabe que está completamente sozinho nesse mundo de forças onipresentes e invisíveis. Não tem um amigo. Não tem com quem compartilhar um sentido humano palpável de vida, de amor, de humanidade efetivamente compartilhada. Mas liga o computador, conecta-se na rede social e lá estão seus 900 amigos. Há quem tenha milhares. Os famosos têm tantos que acionam um dispositivo digital para limitar o número de amigos que invadem sua página para tagarelar nossa futilidade, nossa insignificância digital. Lá estão os sites de relacionamentos: milhões de solitários vorazes esfomeados diante de fantasias devoradoras. Estamos todos sozinhos, dolorosamente sozinhos como nunca o fomos na história da nossa atormentada condição solitária, e no entanto saltamos como crianças insanas celebrando a beleza das nossas vidas invejáveis.

A revolução digital, a mão invisível e impiedosa do mercado, reduziu-me à condição de inseto. Mas eu pelo menos sei que fui esmagado por essa operação diabólica. Nas situações mais cotidianas, posso a qualquer momento ser reduzido a nada enquanto me debato, inseto cego e impotente, dentro da prisão que é a minha casa. Uma simples troca de operadora de telefonia suprime magicamente minha existência. Alguém, o burocrata da revolução digital, acionou indevidamente um dispositivo que não sei o que é, onde está, como funciona, e de repente suprimem o número do meu telefone, meus vínculos precários com o mundo humano, minha humanidade virtual, única que o admirável mundo novo da revolução digital me concede. O que fazer para refazer meus elos com o mundo, ouvir uma voz humana através do fio? O fio de Ariadne que me resta, único que poderia libertar-me do labirinto digital, é a telefonista eletrônica, esse ser irreal e arrepiante. Como arrepiante, se é irreal? Ora, simplesmente porque tudo agora é irreal. Embora o mundo esteja cheio de mulheres lindas, gostosas e infelizes, tantas delas histericamente em busca de um homem que lhes dê prazer, o inseto, tão infeliz e solitário quanto elas, ama uma boneca inflável, como aquela do conto profético de Rubem Fonseca.

Mas o profeta supremo é Kafka. Ele intuiu de forma genial o mundo da irrealidade carcerária em que passaríamos a habitar. Como os carcereiros são agora invisíveis, a mão milagrosa do mercado foi convertida numa cadeia infinita de carcereiros que nos controla do berçário à UTI (U Teu Inferno, na minha tradução). O carcereiro é uma figura de mil faces, ou uma figura sem face, mas está investido do poder de nos acorrentar do útero ao túmulo. O nome genérico dessa figura sem face é a Dívida, a Conta imperiosa que estamos condenados a pagar aos poderes anônimos que nos dominam. Esse poder está em tudo e em tudo milagrosamente se transfigura.

Não sei que crime cometi. Não cometi nenhum crime. Estou apenas tentando sobreviver ao naufrágio que consome tudo que conferiu sentido à minha existência, tudo que procurei realizar como ideal de humanidade livre reconciliada com o outro que se tornou minha própria irrealidade. Não cometi nenhum crime, repete desesperado o inseto espelhado na invisível prisão kafkiana. Mas a voz inaudível da revolução digital, a mão assassina da revolução que produz deuses como Steve Jobs simplesmente afirma que não há crime nenhum, que nada fiz ou preciso fazer. O que há, o que existe é o poder invisível da máquina indomável e onipresente produzida pela diabólica inteligência humana. Ela agora nos aprisiona e nos fiscaliza e pune do útero ao necrotério. E alguém tem que pagar a Conta, pois todos têm Dívida a pagar. Esta é a realidade tenebrosa da irrealidade digital que nos reduziu a insetos kafkianos: precisamos pagar nossa Dívida imposta por uma Culpa abstrata que para sempre me condena ao labirinto digital. Quero protestar, afirmar meu único e último direito humano, mas o operador invisível vai me deletar, vai me suprimir, vai me del... , vai me su...
Recife, 19 de abril de 2012.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Liberdade subjetiva


Carta sobre a liberdade subjetiva

Meu caro amigo:
Acabei de encontrar, por mero acaso, o site da revista Piauí. Para minha grata surpresa, os textos, pelo menos os que acessei, estão disponíveis gratuitamente para o leitor. Foi assim que li o obituário de Millôr Fernandes escrito por Mário Sérgio Conti, um retrato ¾ de Millôr escrito e lido em podcast por Fernanda Montenegro, e uma bela e comovente memória dos últimos tempos de vida de Tony Judt escrita pela mulher dele, Jennifer A. Homans. São leituras que acabo de fazer não apenas sobre intelectuais que admiro, que li nos limites possíveis e sobretudo me inspiram a ser e viver melhor como ser humano.
Lembro-me de que, durante nossa última conversa, lamentei o fato de nos deixarmos dominar no cerne da nossa reserva última de liberdade, nosso self, pelo que a realidade que cotidianamente vivemos tem de pior. Se bem o entendi, você parece discordar do meu ponto de vista, parece acreditar que não há como dissociar nosso self, ou nossa subjetividade, dessas condições que tão negativamente nos afetam. Discordo de você, se bem o entendi, e continuo pensando que essa questão é crucial não apenas para definir o que entendemos como autonomia individual em face da realidade, mas sobretudo como um modo de viver.
Essa expressão banal, nosso modo de viver, é aqui intencionalmente posta porque remete ao livro de Sarah Bakewell sobre Montaigne: How to live or A life of Montaigne. Não bastassem tantas evidências que já conhecemos, a começar pelos próprios Ensaios de Montaigne, o livro reafirma em mim essa convicção de que temos sempre uma margem de autonomia diante da realidade, não importando o quanto seja adversa. A margem varia, claro, conforme a relação específica inscrita entre o indivíduo e o mundo fora dele. Alongando o exemplo do próprio Montaigne, convém lembrar que viveu a maior parte de sua vida em meio a uma feroz guerra civil que por pouco não esfacelou a unidade da França. No entanto, ele foi capaz de preservar ao longo de sua vida, num mundo religiosamente dividido dentro da sua própria família, qualidades pessoais que me parecem torná-lo um sábio. Longe de mim, também de você, essa ambição, a da sabedoria. Falo de conquistas subjetivas mais modestas e, tenho essa convicção, perfeitamente alcançáveis.
Traduzindo isso em termos práticos, há muita coisa da realidade em que vivemos que procuro compreender, procuro tolerar, até porque não estou investido do poder de modificá-la ou suprimi-la, mas não a quero como parte de minha vida, do meu reduzido mundo de convívio. É nesse sentido que deploro, como deixei claro durante nossa conversa, o fato de tão facilmente cedermos ao poder dessas forças negativas que em larga medida se impõem à nossa liberdade estreitando assim nossa margem de realização, aquela que melhor traduziria nossa liberdade subjetiva. A maior evidência dessa rendição consiste no fato de trazermos o que a realidade tem de pior, ou mais negativo, para dentro do nosso convívio, para o centro do que compartilhamos. Confesso que por vezes tenho dificuldade de compreender como pessoas tão cultivadas, através da leitura e outras fontes privilegiadas de acesso ao que nossa humanidade tem de melhor, se acomodam ou se rendem a conversas sobre o que a realidade me parece conter de pior. Por exemplo: a corrupção endêmica entranhada na nossa política, o cotidiano horrível da cidade em que vivemos, a futilidade do que a mídia noticia e tanta gente que em nada importa para a minha vida, salvo para envenená-la. Da realidade negativa, já nos basta vivê-la. Quando vamos além disso, quando convertemos a vivência imperiosa em modo privado de ser, ou simples matéria de convívio lá onde temos a liberdade de escolher o que viver e do que falar, então é certo que ela se apossou da nossa liberdade subjetiva. Melhor dizendo, é certo que renunciamos à nossa liberdade subjetiva, já que ela nunca se subordina integralmente às condições da realidade objetiva.
Enfim, meu amigo, gastei tinta demais apenas para dizer isso que aqui vai como conclusão: quando leio Montaigne, ou essa biografia escrita por Sarah Bakewell; quando leio a poesia de Drummond, Fernando Pessoa, Auden e tantos poetas que amo; quando leio sobre a coragem, a integridade, a liberdade com que um homem como Millôr Fernandes viveu; quando leio o melhor da correspondência de Mário de Andrade, da obra tão comovente e generosa que escreveu impregnada de um humanismo católico ao qual procuro ser fiel, independente do fato de ser ou não católico; quando leio cada vez mais o que quero ler, a leitura que me ensina que não estou sozinho, como diz a bela e precisa frase de William Nicholson extraída do filme Shadowlands, isso tudo me deixa de alma mais leve, me infunde ânimo para viver, ânimo para tolerar a realidade que nunca é nem será como gostaria que fosse. Pena que no convívio geral que travo com o mundo fora de mim não possa compartilhar essas crenças modestas e seus valores correspondentes. É por isso que, muitas vezes contra a minha vontade e minha aspiração ao convívio humano, escolho ficar em casa com minha solidão. Um abraço,
Fernando.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Marina


Se vem e diz que hoje canta
O sol no mar se levanta
E a lua nada no mar.
Brisa no ar, maresia
Sopro, teu mar é poesia
Boiando à luz do luar.

Tua beleza tão alta
Não sei se acalma, se exalta
O meu desejo de amar.
E erro de rua e esquina
Chutando estrela. Marina,
Que canto é esse no mar

Na noite céu serrania?
Que sopro ébrio ou poesia
Me vem na noite espantar?
E a luz me cega e ilumina
Bóia em teus olhos, Marina
E vai enfim me afogar.

Recife, 1 de maio de 2002.