sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pesquisa sobre a solidão



A doutora é tão boazinha... Envia essas pesquisas sobre os doentes de solidão, e outras indesejáveis doenças, somente para acelerar minha morte, ou me levar ao desespero de escapar da solidão casando com uma megera. Removi o link, mas saiba que li a pesquisa antes. Sério, doutora, sem ser médico, sei que a solidão, sobretudo o isolamento, que é algo diferente, pode causar muito mal às pessoas. Mas isso ocorre com quem não sabe o que fazer de sua solidão. Há pessoas que vivem a solidão de forma ativa e criativa. É o meu caso. É o caso, penso, de toda pessoa dotada de subjetividade autônoma.

Daniel Lima, uma das pessoas mais solitárias que conheci, voluntariamente solitária, morreu com 95 anos de idade. Foi a pessoa mais alegre, divertida e fascinante que iluminou minha vida, também a mais livre. Se não qualificamos os diversos tipos de solidão e solitários, parece-me que a pesquisa não faz isso, não há como compreender os efeitos psicológicos e orgânicos distintos que a solidão exerce sobre uma pessoa como Daniel e os solitários infelizes e atormentados que andam por aí.

Meu pai, por exemplo, que não pôde estudar e governou desastrosamente sua vida, não sabia o que fazer de sua solidão na velhice. Ficava se balançando numa cadeira de balanço, sem ter o que fazer, remoendo memórias infelizes e isolado. Aprendeu até a gostar de futebol ouvindo jogo com radinho de pilha para ocupar-se com alguma coisa. Não é o meu caso, fique certa. Tenho uma vida muito ativa e criativa. Não sinto nenhuma diferença de ócio e rotina entre minha vida de professor e a de aposentado. Aliás, sinto-me agora melhor, pois estou livre do trânsito e dos alunos desinteressados e mal comportados, ignorantes por convicção, que me aborreciam na universidade. Portanto, se você pensa que vou adoecer de solidão e morrer logo, procure outro viúvo para herdar fortuna. Vou viver pelo menos até os 90. Em tempo: apesar da sua solidão infeliz, meu pai viveu até os 90 anos. Tivesse ele a velhice mais saudável que hoje vivo, com certeza teria vivido mais. Tenho tanta vida pela frente que já estou pensando numa forma indolor de suicídio.

Doutora: Continuando, acho essas pesquisas no mínimo discutíveis. Elas podem aferir os efeitos negativos da solidão em pessoas com o perfil dos inativos, ociosos e isolados, mas não estabelecem qualquer comparação com os solitários saudáveis, que precisam inclusive da solidão para realizar muitas de suas tendências mais pessoais inconciliáveis com o convívio indesejável ou vicioso. Por exemplo: pessoas que apreciam literatura, arte e outros afazeres criativos precisam de solidão, seriam infelizes se fossem privadas de um espaço próprio e exclusivo. Além disso, duvido que uma pessoa incapaz de viver bem consigo própria, de andar em bons termos com a própria sombra e voz que mais verdadeiramente a revelam, possa viver livre e criativamente na companhia do outro. Não acha que quem é incapaz de viver bem consigo próprio é também incapaz de conviver bem com o outro? O convívio harmonioso é apenas o correspondente da solidão harmoniosa.

Outra coisa: antes a solidão do que a vida de família ou a vida de casado que conheço na maioria dos casos. Quantas pessoas não vivem em infernos domésticos e continuam dentro deles por que são incapazes de viver sozinhas? Quantas não se refugiam na ilusão, nas fantasias mais insensatas, contanto que a realidade intolerável lhes escape? E o que dizer desse gado errante, ululando sua histeria vazia nos mega shows e tantos espetáculos áridos acionados pela sociedade das massas? Se não estabelecemos esse tipo de comparação, como é o caso da pesquisa que você me enviou, o estudo não tem nenhuma validade, ou tem apenas para as pessoas cujo perfil de solitário eu qualificaria como negativo.

A velhinha mais generosa, viva e ativa que conheço escolheu morar sozinha num pequeno apartamento. Tem já 80 anos. Depois de uma vida inteira dedicada ao marido, filhos, netos, incontáveis parentes atados à corrente da família extensa ainda típica da nossa região fundada no patriarcalismo, descobriu que precisava viver sua solidão voluntária antes de morrer. Ninguém na família compreendeu sua decisão. Daí a perplexidade de alguns, de outros a suspeita de que sua escolha seria sintoma de alguma mágoa da família, algo indesejável e inconfessável. Nada disso. Queria apenas viver a solidão de que se sentiu privada a vida inteira. Queria sua ilha inviolada onde afinal poderia conviver consigo própria isenta do tumulto das gentes, das invasões rotineiras e não raro estafantes. Apesar do amor ao marido, que ainda impregna sua memória e ilumina sua solidão voluntária; apesar do amor que devota aos filhos e netos, sentiu que precisava viver uma dimensão de sua vida anulada ou comprimida pela presença contínua de uma família ampla e absorvente. Hoje equilibra de modo saudável os dois pratos no geral tortos da balança: a solidão e o convívio, sua ilha de eleição e a companhia ruidosa da família. É uma das poucas pessoas felizes que conheço, ou pelo menos capazes de harmonizar esses extremos desavindos da vida.

Anthony Storr, psicanalista inglês, escreveu um belo livro intitulado Solitude. Já o comentei um pouco no meu blog. É o melhor estudo psicológico que conheço sobre a solidão. Ele apresenta um quadro totalmente diferente da solidão. Ressalta, por exemplo, o quanto ela importa como fonte de realização artística, científica e intelectual, o quanto ela é importante para a pessoa comum, que pode aprender a conhecer-se melhor, a conviver melhor consigo própria. O livro dele foi traduzido há pouco. Acho que valeria a pena conhecê-lo, pois, como lhe disse, é o melhor estudo que já li sobre a solidão.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Nelson Rodrigues e a unanimidade



Uma das fontes inequívocas da celebridade de Nelson Rodrigues deriva do seu talento para criar frases de efeito, frases impregnadas de uma força inventiva que prendem num choque o leitor e se gravam na sua memória. Esse é um dos efeitos de recepção mais poderosos que seduzem o leitor da sua obra. Poderia citar uma infinidade de frases suas que entraram para o repertório de qualquer leitor de cultura média e midiática. As frases de Nelson Rodrigues são moldadas numa retórica inconfundível, pois jogam provocativamente com o paradoxo e a hipérbole, dispositivos retóricos típicos dos escritores exagerados e delirantes, caricaturais e satíricos. Acrescentaria o tom cabotino, a astúcia descarada com que manipulava e vestia os próprios ataques e críticas de que era vítima. Foi assim que fez bandeira do seu reacionarismo, da sua fama de perverso e maldito. Para os propósitos do meu artigo, no entanto, cito de imediato a frase que mais importa: “Toda unanimidade é burra”. Não é irônico que a posteridade puna o autor investindo contra ele a verdade de sua frase?

Pois, convenhamos, é isso que Nelson Rodrigues é ou se tornou: uma unanimidade. Ele que a vida inteira viveu provocando polêmica, atacando e sendo atacado, virando a mesa das ideias convencionais, fossem elas de direita ou de esquerda, populares ou impopulares, acabou empalhado numa das suas boutades mais ferinas. Hoje qualquer idiota, qualquer desses imbecis que babam na gravata (e aqui pululam, sabe o leitor informado, ecos de suas boutades agressivas e certeiras) escreve sobre ele apenas para irrestritamente louvá-lo. Flor narcisista hostil à indiferença ou ao coro unânime dos idiotas, Nelson certamente ficaria perplexo ao constatar que a posteridade diluiu ou apagou todos os traços complexos da sua personalidade provocativa.

Onde divisar o reacionário impenitente e autoirônico nessa figura anódina da unanimidade? Suas frases mais ousadas e desconcertantes, não importando no caso o que contivessem de verdade ou erro, dissolveram-se em lugares comuns inofensivos. Quem hoje não repete com tolo espírito provocativo que toda mulher gosta de apanhar? Salvo as neuróticas, claro, correção que fez em tom ainda mais provocativo, acentuando assim o tom corrosivo da boutade. Que esquerdista de idas eras, que antes o demonizava, não se apressa hoje a celebrar sua obra, seu destemor politicamente incorreto, empurrando assim para o fundo do esquecimento todo o ódio, não raro justificado, que inspirava às forças progressistas que durante a ditadura amargavam repressão, censura e medo?

Por essas e outras, prefiro celebrar o centenário de Nelson Rodrigues em tom divergente. Para começar, sinto-me à vontade para qualificar meus elogios, acentuando assim, na contracorrente, alguns dos seus erros e insuficiências que o espírito de unanimidade tende a empurrar para debaixo do tapete. Afinal, nunca o demonizei, nem quando fui de esquerda e companheiro de viagem de muitos comunistas. A grandeza e a permanência da obra de Nelson prescindem desses artifícios maniqueístas ou simplesmente levianos tão correntes na história da nossa desmemória nacional.
Sinto-me à vontade para criticá-lo, como dizia, simplesmente porque nunca o demonizei, nunca incorri na intolerância cômoda de negá-lo, como tantos dos seus inimigos ideológicos, com as armas da ignorância. Pois acreditem os jovens de hoje, que conhecem apenas o Nelson Rodrigues da unanimidade, que ele foi duramente combatido, não raro com bons bocados de razão, que foi confundido com o pior espírito reacionário da intelectualidade brasileira. De resto, ele, afeito ao combate e à negação, provocava esse tipo de intolerância convertendo-o em matéria de crônica provocativa. Bastaria lembrar personagens hilariantemente satíricas como a estudante de psicologia da PUC, o padre de passeata, D. Hélder olhando para o céu apenas para prevenir-se da chuva etc, Alceu Amoroso Lima impiedosamente ridicularizado no seu suposto catolicismo carola e hipócrita. A seara é fértil e o leitor deslumbrado pela obra e a personalidade de Nelson, o que não é o meu caso, pode à vontade preencher as muitas brechas da minha ignorância.

A unanimidade que cerca a obra de Nelson Rodrigues, e isso não é de hoje, representa, entre outras coisas negativas, a nossa inconsciência social e ideológica, a leviandade com que vivemos e esquecemos, a inconsistência de nossas supostas convicções que hoje converte em vaca sagrada o inimigo ontem demonizado, que hoje canta loas ao gênio que era ontem um autor pornográfico e um reacionário desprezível. Já me cansei de ler em qualquer crônica ou artigo de louvor a Nelson a exaltação do seu gênio, o primor irretocável de tudo que escreveu, desde a peça teatral mais injustiçada à crônica de futebol mais banal. Aliás, ontem mesmo li num blog um artigo exaltando o dom profético de Nelson como cronista de futebol.

Fazendo justiça à história documentada, também a Nelson, cuja glória prescinde de distorções do tipo das que acima assinalei, ponhamos os pontos em alguns is. Antes de tudo, o Nelson glorificado pela posteridade é o Nelson jornalista, o autor das crônicas e contos cujo estilo inconfundível e até repetitivo acima grosseiramente esbocei. Aludo ao Nelson politicamente incorreto, ao provocador dotado de raro talento para a frase de efeito. Investindo sua retórica afiada pelo paradoxo desabusado e o descaso diante de qualquer senso de propriedade e medida, Nelson desafiou todas as unanimidades, sobretudo as progressistas, ou assim consideradas no auge da sua militância de jornalista polêmico. Fulminava não apenas as esquerdas em geral, mas também o poder jovem e a liberação dos costumes que pipocaram nos turbulentos anos 1960.

Confesso admirar retrospectivamente a coragem com que investiu contra todas essas modas, tendências e poderes. Como todavia somos o país da desmemória, da futilidade que com uma mão hoje inverte o que a outra ontem denunciava, convém lembrar que foi muitas vezes inescrupuloso e desonesto. O Nelson que habilmente diluiu seu reacionarismo em folclore, seu apoio à ditadura militar em timbre de personalidade, escreveu crônicas de louvor aos ditadores nacionais no auge dos anos de chumbo. Dizem que, no caso, adulou os ditadores para salvar o filho, Nelson Rodrigues Filho, dos cárceres da ditadura. Aliás, esta foi uma das ironias trágicas de sua vida. Ele, um dos raros intelectuais de poder que emprestaram apoio público e constante à ditadura, acabou castigado pelo destino, ou outro nome acaso menos inconveniente, que converteu seu filho amado em militante da luta armada contra o regime militar. Também perseguiu impiedosamente nas suas crônicas as poucas vozes liberais e católicas que ousavam e tinham a coragem de criticar os excessos da ditadura num momento em que todas as nossas liberdades civis estavam amordaçadas. O leitor que se der ao trabalho de folhear um livro como O óbvio ululante (Uma das suas frases, aliás, que viraram chavão), facilmente verificará que Alceu Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara eram as vítimas preferenciais dos seus ataques.
Muitos dos ataques e polêmicas desencadeadas por Nelson Rodrigues contra figuras públicas eram inspiradas por motivações mesquinhas. Nem sempre ele as explicita. Mas Nelson era tão descarado no seu narcisismo sem freios, na sua personalidade de menino perverso, que muitas vezes nem se peja de expor essas motivações mesquinhas. Derivavam, não raro, de alguma crítica contra ele ou sua obra. Como tantas vacas sagradas da nossa cultura (pensem em Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Paulo Francis, Glauber Rocha, Caetano Veloso etc), não tolerava que lhe negassem o gênio ou lhe rebaixassem a grandeza. Deixa clara, por exemplo, a razão ou uma das razões de sua perseguição implacável a Dom Hélder, reduzido a imagens caricaturais de fato deliciosas, mas cruéis e, no contexto em que foram veiculadas, no mínimo inoportunas. O mesmo se repete com relação a Alceu Amoroso Lima, Drummond, Guimarães Rosa e Chico Buarque. O leitor curioso pode ainda consultar o capítulo de um livro hoje raro que Paulo Francis dedica a ele e Gianfrancesco Guarnieri. Refiro-me a “Impressões de Nelson Rodrigues e Guarnieri”, incluído no livro Opinião Pessoal.

Assim como importa distinguir a obra e a biografia a propósito da passagem do centenário de Nelson Rodrigues, importa igualmente sublinhar o processo inverso, isto é, lembrar de passagem a glória momentânea de alguns autores revolucionários ou de esquerda cuja distinção literária foi fruto exclusivo de fatores biográficos, mais precisamente ideológicos. Aludo a escritores e artistas cuja importância estética esgotou-se tão logo foram superadas as circunstâncias históricas de que dependia o valor de suas obras. Não citarei nomes. O leitor esclarecido pode facilmente indicar vários dentre os que tenho em mente. O fato é que, tão logo se esvaziaram como símbolos de arte politicamente revolucionária, de resistência à ditadura e outros fatores de duração contingente e extrínsecos à qualidade autonomamente estética da obra, todos mergulharam no poço da obscuridade merecida.

Não é evidentemente o caso de Nelson Rodrigues. Por isso embirro com esse clima de unanimidade diluidor da própria força e complexidade da sua obra. O Nelson reacionário, cabotino e tudo mais que de negativo se possa lembrar acerca do homem, este passou, ou algum dia passará. O que fica é a obra, volto a chover no molhado. O que importa reter e justamente louvar é o cronista e o contista excepcionais e acima de tudo o dramaturgo. Sei que não há como rigorosamente dissociar uma coisa da outra, a biografia da obra, já que a personalidade poderosa e marcante do autor projetou-se indelevelmente na obra. O que não engulo, e isso justifica meu artigo polêmico, é essa unanimidade póstuma onde os inconscientes e idiotas o aprisionam. Por isso concluo o artigo repetindo a frase que anula toda essa consagração ofensiva vomitada pelos idiotas sem opinião: “Toda unanimidade é burra”.
Recife, 25 de agosto de 2012.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O país do carnaval


Pensei em dar outro título a este artigo: “O país da anomia”. No entanto, como anomia é um termo procedente da terminologia sociológica - portanto, de uso e conhecimento muito restritos - optei pelo carnaval. Além de dar título ao primeiro livro de Jorge Amado, expressão suprema de alguns mitos da identidade cultural brasileira que abaixo ilustrarei, o termo vale para designar expressões de cultura que ultrapassam seu sentido estrito. Partindo deste, o carnaval foi tradicionalmente uma festa de espantosa dimensão coletiva cuja natureza mais distintiva radicava no seu caráter anômico, isto é, ele invertia durante sua vigência, três dias, as normas fundamentais que asseguram o funcionamento regular da sociedade. Por exemplo: o macho se fantasiava de virgem, multidões de adultos saíam pelas ruas cantando “mamãe eu quero mamar”, pessoas de todas as idades liberavam fantasias amordaçadas o ano inteiro nos cárceres do superego, os casais se traíam, as mulheres castas se vestiam de puta, as ruas e clubes eram invadidos por uma festa ruidosa e infrene e por aí o mundo se perdia num delírio de fantasia bárbara.

O leitor atento por certo notou que me referi acima ao carnaval no pretérito imperfeito. Minha intenção foi aludir a um passado inconcluso, afinal o carnaval não deixou de existir, sobretudo sugerir um processo de continuidade que se transforma radicalmente no presente. Noutras palavras, o carnaval agora é outro. Para começar, não fica restrito a três dias, o tradicional reinado de momo. Agora ele recobre todo o calendário. Tanto se dilatou, para a frente e para trás, nas datas que convencionalmente o determinam, quanto invadiu muitos outros dias do ano. Um exemplo? Hoje é 16 de setembro de 2012. O que esta data tem a ver com o carnaval? Supostamente nada. Acontece que inventaram uma coisa chamada “Parada da Diversidade”. O propósito aparente dessa festa é celebrar, como o nome indica, nossos múltiplos modos de ser: modos sociais, culturais, modos de gênero, modos de viver e crer e antes de tudo fazer festa.Tudo no Brasil é pretexto para festa. A esse tipo de evento somam-se agora muitos outros que praticamente todo fim de semana pipocam nas grandes cidades brasileiras: a “Parada Gay”, a dos “Evangélicos”, que ontem fechou o trânsito da Avenida Boa Viagem, principal via de ligação entre o sul e o centro do Recife. Há muitas outras, que os desocupados, os produtores culturais e os agentes de turismo sabem na ponta da língua. Não sei e odeio quem sabe.

Aparentemente, essas festas encerram um importante sentido político e cultural: promovem a tolerância entre os desiguais de todo tipo. Ora, na minha percepção esse suposto objetivo não passa de pretexto para a promoção de formas alternativas de carnaval fora de época, ou pura e simplesmente festa desatada de qualquer princípio de controle civilizatório. Uso neste contexto o termo civilizatório, que sei o quanto se presta à controvérsia, visando traduzir algo bem simples: o reconhecimento das normas elementares de relação social. É neste sentido preciso que me oponho indignado, mas definitivamente derrotado, a todas essas manifestações coletivas que promovem antes de tudo a anomia, a supressão dos meios básicos de regulação que imprimiriam civilidade ao acampamento urbano em que vivemos. Quero dizer que, por trás da aparência louvável dessas promoções coletivas, o que pulsa é a incivilidade, a anomia que agrava um estado social de convívio já em demasia deteriorado. A pretexto de qualquer valor na fachada louvável (Deus, Jesus, o direito das minorias, a tolerância entre os desiguais etc), o que essas festas promovem é o completo desprezo pela normatividade que assegura o respeito e o convívio civilizado entre as pessoas.

Falando do meu exemplo pessoal, pois estou indignado e é movido por minha indignação impotente que escrevo este artigo, estou aprendendo a dizer com certo grão de humor que passei a viver em estado de prisão domiciliar. Ontem, como acima observei, tive que suportar a “Parada Evangélica”. Em nome da religião e da celebração pública da divindade, milhares de pessoas ocupam uma das vias mais importantes da cidade para fazer carnaval animado por vários trios elétricos. O barulho é irritante. Mais do que isso, é revoltante a privação da liberdade de circular livremente através de uma das vias mais extensas e movimentadas da cidade, como já salientei. A religião, que foi tradicionalmente um meio de assegurar, entre outras funções sociais, o respeito à ordem social e ao semelhante, serve agora para promover a folia, o carnaval fora do esquadro convencional das grandes festas coletivas.

Querem uma variante desse carnaval ou dessa anomia? Pois observem com olhar crítico a campanha eleitoral corrente. Nossas campanhas políticas constituem a evidência irrefutável de uma sociedade anômica. A classe dirigente, ou aqueles que a ela se candidatam, vale-se de todo tipo de recurso para converter um fenômeno de natureza política em festa e droga barata para as massas oprimidas e alienadas. Como levar a sério um país que tem o tipo de campanha eleitoral que temos? Que tem o tipo de legislação política que temos? Como levar a sério um poder judiciário que legaliza os carros de som, a panfletagem irresponsável e politicamente inoperante que serve apenas para distribuir uns grãos de farelo ao lumpemproletariado e para sujar nossas ruas, como se já não fossem imundas além da medida mais baixa da civilidade?
Bem, meu artigo está chegando ao fim e minha paciência há muito se esgotou. O ruído, entretanto, continua ininterrupto no parque, onde se concentram os heroicos combatentes da diversidade. Segundo o noticiário da Rede Globo, somente depois das 22h a Avenida Boa Viagem será liberada para o trânsito normal de carros e pessoas. Se eu e outros recifenses agredidos por essa baderna tivéssemos direito a uma fatia de diversidade, a um fiapo de respeito dentro dessa desordem, eu pediria ao prefeito ou a qualquer das nossas autoridades festituídas, ou ao rei momo que nos desgoverna, que respeitasse meus direitos de cidadania com um minuto de silêncio.

E há ainda quem diga que essa merda desse país tem jeito. Não tem. Tive hoje cedo a oportunidade de lembrar a uma amiga a melhor definição que conheço do otimista. Repito-a aqui: o otimista é apenas um pessimista mal informado. Lamento desconhecer a autoria da frase, pois gostaria de prestar o devido elogio ao autor dessa definição perfeita. O país do carnaval é ingovernável. Portanto, não tem jeito. Ainda que se tornasse a maior potência econômica do mundo, seu povo continuaria sendo isso que neste exato momento estremece as janelas fechadas da minha prisão: um povo grosseiramente carnavalesco e irresponsável, um povo sem civilidade, um povo desprovido de consciência civilizada. Somente os nacionalistas cretinos acreditam que um país se faz apenas com crescimento econômico e política de pão e circo. Como respeitar um povo que não me respeita nem se respeita? O que é respeito? Concluo com outra definição que gosto de repetir: respeito é o que você deve dar para poder receber.
Recife, 16 de setembro de 2012.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Lições sobre Hannah Arendt


As coleções ideadas pelos editores para servirem de pórtico ou introdução didática à obra de grandes escritores e pensadores são uma faca de dois gumes. O gume cego tende a embalar a inércia mental do leitor. Nos casos mais graves, quando este é também intelectualmente desonesto, corta o corpo da obra com gume alheio escondendo a arma do crime. O gume afiado, pelo contrário, ilumina a ignorância do leitor motivando-o a ir do comentador à obra comentada. Este é o mérito que antes de tudo destaco ao resenhar o livro 10 Lições sobre Hannah Arendt. Luciano Oliveira, o autor, condensa em dez lúcidas e transparentes lições o conjunto da obra de Hannah Arendt.

Ele começa ressaltando um fato animador: a trajetória ascendente da obra de Hannah Arendt no contexto da cultura brasileira, intra e extra acadêmica. De fato, como apropriadamente informa o leitor, o essencial da obra de Hannah Arendt é correntemente acessível ao leitor interessado. Leigos como eu, por exemplo, já leram Hannah Arendt, além de possuírem pelo menos parte significativa da sua obra. Além de desconcertar o leitor, não raro também indigná-lo, ela o ilumina, termo que Luciano Oliveira faz questão de sublinhar em certa passagem do seu livro.

Por que Hannah Arendt tanto desconcerta o leitor não relutando em afrontar suas convicções e pressupostos mais enraizados, também as verdades cômodas dentro das quais nos instalamos e assim aliviamos nossa consciência do fardo das interrogações éticas e humanas mais inquietantes? É por essas e outras, de resto bem esmiuçadas no seu livro, que Luciano, de mangas de camisa no convívio com os amigos e até inimigos mais cordiais, costuma brincar com Hannah Arendt chamando-a de “velhinha irritante”. Como todo humorista usa e abusa da hipérbole como figura de retórica, Luciano, sendo dos bons, não foge à regra. No caso de Hannah Arendt, porém, ele errou de figura retórica. Isso sugere o quanto ela, intransigente no exercício de pensar, excedeu as medidas convencionais da polêmica. Pois o fato é que mais de uma vez jogou contra o leitor tomada pela paixão de pensar isenta de qualquer tipo de concessão. E ao jogar, expondo-se a todos os riscos e reações éticas, políticas e epistemológicas, ela provocou algo que vai muito além da irritação do leitor contrariado ou contestado dentro dos limites que com frequência opõem o autor e o leitor, os sentidos ambíguos da obra e a recepção equívoca que no geral suscita.

No sentido acima indicado, o melhor do livro de Luciano concentra-se na sétima e na oitava lições, respectivamente dedicadas a Eichmann em Jerusalém e a “Reflexões sobre Little Rock”, incluído no volume Responsabilidade e Julgamento. Outras controvérsias em que Hannah Arendt se meteu são também consideradas pelo comentador. Estas, porém, notadamente a que envolve Eichmann e questões conexas, se inscrevem em contextos bem mais momentosos, para não dizer politicamente explosivos. Quando se ofereceu ao famoso periódico The New Yorker para cobrir o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt escolheu mergulhar no olho do furacão. Luciano contextualiza e critica nos termos devidos esse episódio comparável ao Caso Dreyfus, que sacudiu a opinião pública francesa entre fins do século 19 e início do século 20 fixando de forma indelével na história da cultura a função pública do intelectual.

Não vou evidentemente reconstituir nesta resenha o processo que Luciano tão bem delineia e aprecia no seu livro. Minha intenção é tão-só recortar algumas questões mais relevantes contidas na obra e atadas ao contexto de que é fruto e efeito. Talvez a celebridade conquistada por Hannah Arendt graças à coragem radical do seu pensamento possa ser sintetizada na expressão que cunhou para traduzir seu juízo acerca do carrasco nazista Eichmann: a banalidade do mal. Esta expressão ganhou curso, provocou reações exaltadas e foi a extremos de ruptura de grandes amizades, como a que existia entre Hannah Arendt e Gershom Scholem. Friso, para o leitor apressado, não afirmar que a ruptura se deva apenas à expressão que anoto, mas ao fato de ela encapsular as reações extremas desencadeadas pela intervenção de Hannah Arendt no processo, que por certo vai muito além da pura qualificação jurídica.

Luciano escolheu com senso de propriedade impecável as epígrafes que encabeçam cada um dos capítulos do seu livro. No que tem por título “A banalidade do mal – Eichmann em Jerusalém”, ele recorta uma penetrante passagem de uma carta de Hannah Arendt endereçada a Gershom Scholem. Nela Hannah nega a radicalidade do mal. Noutras palavras, o mal é apenas “banal”, pois se manifesta na epiderme do mundo. O mal não teria o poder de se entranhar nas profundezas do mundo, apenas o bem. Portanto, só este é radical. Transpondo seu juízo para a personagem que desencadeou todo esse tumulto que ocupa Luciano e o leitor em geral, Hannah se põe literalmente diante de Eichmann, enjaulado sob a proteção de paredes de vidro transparente, e talvez chocada tenha constatado não estar diante de um ser demoníaco, um monstro inqualificável. Aliás, monstro é um substantivo que prescinde de qualificação.

Hannah Arendt mira, escrutina e devassa as linhas apreensíveis do carrasco e nada encontra além de um homem banal, um homem normal, um burocrata eficiente que se esmerou no exercício da sua função com zelo exemplar. Não é chocante ler isso quando ponderamos que o burocrata em questão coordenava a mais terrível operação de extermínio de um povo? Não é chocante pensar que Hannah Arendt, judia como o seu povo aniquilado em campos de concentração, escreve sobre um dos mais terríveis carrascos do nazismo qualificando-o apenas como um ser banal, um burocrata eficiente, decerto pai de família modelar? A propósito, George Steiner, outro intelectual judeu que estica ao limite a coragem de pensar, escreveu algo semelhante no seu livro Linguagem e Silêncio. Neste livro, assim como em muitas entrevistas e depoimentos, ele reitera esta verdade desnorteante: o oficial nazista que comandava os campos de concentração era um homem como eu e você. Enquanto durante o dia, servidor zeloso do regime a que servia, coordenava as operações de extermínio dos judeus, à noite, cercado pela família, lia Shakespeare e Goethe, ouvia Bach e Mozart, cultivava, em suma, a mais alta tradição da cultura humanista europeia. Logo, o humanismo sublime que tanto cultuamos não constitui nenhuma garantia contra a barbárie. Ponto.

Espremendo o sumo da verdade, ou antes da coragem de pensar o que poucos ousam, foi isso o que Hannah Arendt ousou ao escrever sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém. Mas Luciano nos lembra de que ela foi além disso, pois também introduziu na polêmica a colaboração dos judeus com os nazistas no processo de gradual extermínio do seu próprio povo. Esta variante do livro polêmico está bem documentada na introdução sumária de Luciano, que naturalmente não se estende além do devido. Durma-se com o barulho que essa “velhinha irritante” provocou no mundo e entre seu próprio povo. Gershom Scholem, assim como outros judeus indignados, não dormiu, mas com certeza perturbou o sono da velhinha irritantemente ousada. Como não imaginar que ela não tenha sofrido durante essas batalhas ideológicas tão momentosas? Afinal, ela sabia da radicalidade do amor, tanto sabia que foi capaz de continuar amando seu mestre, herói filosófico e amante: Martin Heidegger, nazista confesso que nunca se retratou. Amou ainda mais Heinrich Blüchner, seu marido devotado, com quem compôs, como dizia o amigo comum Randall Jarrell, uma monarquia dual. Ela amou a amizade com a integridade com que poucos o fazem. Bastaria lembrarmos o amor que devotou a Karl Jaspers, Hermann Broch e Mary McCarthy. Esta, a propósito, incluiu em Occasional Prose um belo e comovente obituário intitulado “Saying Good-bye to Hannah (1907-1975)”.

Como todos que ousam pensar o pensamento na sua radicalidade, ainda quando sabendo que não existe verdade absoluta, Hannah Arendt pagou a essa convicção o tributo que outros, antes e depois, pagaram e continuarão pagando. Penso, por exemplo, em Sócrates, epítome do pensador radical, Émile Zola e, entre os contemporâneos de Hannah, Bertrand Russell e George Orwell. Foram todos de algum modo punidos, além de transtornarem o léxico ideológico corrente. Talvez por isso Luciano inaugure sua série de epígrafes extraindo de uma entrevista a interrogação incontornável: onde situar Hannah Arendt ideologicamente? Conservadora ou liberal (no sentido americano do termo, conviria frisar)? Ela responde sem aparentar maior inquietação a respeito do assunto. Tanto que alega não acreditar que as questões do século em que viveu tivessem relação relevante com essas qualificações. Parece-me significativo registrar que, no obituário acima mencionado, Mary McCarthy a identifica como “conservationist”, termo que remete antes à ecologia do que à ideologia. Intentando ser fiel a McCarthy, esclareço que ela usa o termo no sentido seguinte: Hannah Arendt acreditava que devemos conservar tudo que já foi pensado.

Voltando à lição que dedica ao “Caso de Little Rock” , Luciano descreve com brevidade suficiente o que me parece sugerir o processo de pensar de Hannah Arendt, processo que acabava lançando-a no olho do furacão. Visando conferir precisão ao que segue, preciso acentuar brevemente que “O Caso de Little Rock” foi um episódio crucial na luta contra a segregação racial nos EUA. De que modo Hannah Arendt interveio? Ela simplesmente se perguntou o que faria se fosse a mãe de uma menina branca. Em seguida, o que faria se fosse a mãe de uma menina negra atirada - esta literalmente, a outra em termos hipotéticos - no cerne da batalha racial.

Ora, deixando de parte as respostas que propõe, e é aí que ela se encrenca com todos os bem e mal pensantes do mundo, o que ressalto é o fato de Hannah pensar o real com empatia. Esta é a forma mais radical de pensar, se podemos concentrá-la numa única palavra. Pois o que é o pensamento empático, senão esse procedimento com que ela própria ilustra sua atitude mental e política diante da realidade da segregação racial? O procedimento pode ser transposto para sua interpretação do totalitarismo, do nazista Eichmann, do comprometimento do seu mestre e amante Heidegger com o nazismo etc. Hannah pensava colocando-se imaginariamente no lugar do que pensava. É daí que me parece proceder a radicalidade do seu pensamento que projetou luz e entendimento no mundo, mas também irritação e ódio, fúria e rejeição. Pensar aderindo à perspectiva do outro, sobretudo quando este é o nosso avesso, é manifestação raríssima de liberdade e generosidade espiritual. É daí, suponho, que procede a radicalidade do pensamento de Hannah Arendt.

Não posso concluir esta resenha sem antes lhe acrescentar uma nota de frustração pessoal. Deploro o fato de Luciano simplesmente ignorar no seu estudo do conjunto da obra de Hannah Arendt o livro dela que é o meu favorito. Refiro-me a Homens em tempos sombrios. Conhecendo tão bem o autor, e portanto sabendo o quanto aprecia a literatura, causa-me certa estranheza o silêncio que aqui deploro. Afinal, ele também compartilha com Hannah Arendt um profundo apreço pela literatura, apreço que de resto se espelha na sua escrita tão avessa à padronização instituída pela cultura acadêmica. Espelha-se ainda na sua admiração de leitor fiel de Machado de Assis e Graciliano Ramos, que dele mereceram um volume de ensaios críticos. (Ver O Bruxo e o Rabugento. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2010).

Em Homens em tempos sombrios, como sabemos, Hannah Arendt reúne um grupo de grandes intelectuais marcados em circunstâncias variáveis pelos horrores do século em que viveram. A exceção é Lessing, poeta, dramaturgo e filósofo do século 18. Sua inclusão deve-se ao fato de merecer no ensaio de abertura do volume um tratamento equivalente ao de um contemporâneo dos demais estudados em seguida. Esse livro sobre o qual Luciano Oliveira infelizmente silencia revela os dotes extraordinários de Hannah Arendt como ensaísta consagrada ao ofício da biografia intelectual sintética. Retenho ainda na memória de minhas leituras desse livro as belas e comoventes páginas que escreveu sobre o caráter melancólico de Walter Benjamin. Não bastasse isso, e os horrores do século em que viveu, teve a infelicidade de estar sempre nos lugares errados.

Embora o título do livro seja extraído de um poema de Brecht, um dos artistas nele estudados, e o título bem a propósito condense a relação crucial entre o intelectual e o contexto histórico, a ensaísta é sensível aos traços distintivos que individualizam seus personagens (Abro parênteses, literalmente, para lembrar que o livro inclui dois capítulos sobre personalidades de natureza distinta: o papa João XXIII e Waldemar Gurian). Afinal, como ela própria ressalta, deles emana a luz, ainda que tênue, que nos anima a continuar vivendo e lutando quando a escuridão desce sobre as nossas vidas. É antes dessas obras e dos espíritos criadores excepcionais que lavramos um sentido para nossas vidas e para o mundo, bem mais neles do que em teorias e conceitos procedentes de outras fontes de saber e representação da realidade humana.
10 Lições sobre Hannah Arendt.
Autor: Luciano Oliveira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Memórias Musicais II


Apaixonado pela música, como anotei na primeira parte desta crônica, logo criei o hábito de copiar num caderno todas as letras cantadas por Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Anísio Silva, Ângela Maria, Orlando Dias, Caubi Peixoto e muitos outros. O desejo de cantar e aprender novas canções era tão grande que passei a esconder-me nos fundos da loja da minha tia, onde ficavam as instalações do serviço de alto-falante e a discoteca, e lá me perdia durante horas copiando as letras e cantando-as. As noites de lua cheia eram de uma beleza indescritível. Naquela vila remota, sitiada pelo canavial e privada de luzes artificiais, a lua derramava sua luz esplêndida sobre toda a paisagem apreensível pelo meu olhar maravilhado. Uma estranha comoção lírica me tomava quando erguia o olhar para a lua e em seguida girava-o sobre a paisagem recoberta por casas, canaviais, o rio, as pedras, o lajedo iluminado às margens do Pirangi. Então deitava-me sobre os lajedos, com os olhos extáticos presos à luz da lua e cantava as canções mais românticas e dolentes que sabia. Mais que isso, cantava imitando a voz do intérprete. Eram momentos de solidão epifânica vividos sem que eu soubesse o que era a epifania produzida pela arte.

Que me lembre, a solidão harmoniosa, elo inefável de comunhão entre mim e o ambiente deserto, esse acordo sutil entre mim e minha subjetividade, esteve na origem diretamente associado à música. Era a música cantada na solidão dos lajedos nas noites de lua cheia, assim como a Ave Maria ouvida com solenidade mística na hora do Angelus. Quando ouvia a Ave Maria de Bach e Gounod, introito místico de anunciação da noite, afundava num estado de melancolia serenamente recoberto pela beleza misteriosa da música. Esse momento se tornou tão precioso e comovente na minha infância que a ele me afeiçoei convertendo-o em hábito pontual. Mal escurecia, mal pressentia a hora do Angelus anunciada numa voz de soprano cantando a Ave Maria, e logo quietamente me recolhia aos degraus da calçada e ali me sentava contrito, rendido à beleza mística da música.

Nelson Gonçalves era o melhor cantor do mundo. Acreditava nisso como acredito na luz do sol e por isso aprendi todas as músicas que cantava imitando-o com a servilidade inconsciente de um papagaio. Na minha idolatria ingênua, chegava a me dizer que nunca existiria no mundo cantor igual. Enquanto menino e adolescente, essa atitude se renovou no culto de outros artistas da música, do cinema, também de jogadores de futebol. Chegou porém o dia, não me lembro precisamente quando, em que me libertei dessa idolatria cujas raízes são nitidamente eróticas, além de idealmente projetarem no objeto de culto tudo que não somos ou gostaríamos de ser. Chegou o dia em que, sem explicação precisa, libertei-me de todo esse culto que é parte de qualquer sociedade ou tribo, mas que a sociedade do espetáculo elevou a dimensões sem precedente. Hoje tenho a convicção de que a condição do homem subjetivamente livre é inconciliável com qualquer forma de culto subserviente orientada não importa para que objeto: um deus improvável, o artista mais sublime, o escritor mais extraordinário, o pensador mais profundo, o ídolo pop, o líder religioso ou político, o astro supremo da mídia... O homem livre jamais confunde a admiração, dedicada a quem dela é merecedora, com a idolatria.

Falando ainda dos ídolos musicais do mundo em que vivi, certamente chocaria o leitor saber que Luiz Gonzaga não fazia parte dos objetos de culto na minha infância e adolescência. O fato é ainda mais chocante se consideramos o lugar supremo que passou a ocupar em toda a cultura de massa nordestina e se a isso acrescentamos que sua música está enraizada nas tradições rurais brasileiras. O fato encerra significações sociológicas que merecem um breve registro. Antes de tudo, voltando às minhas memórias, Luiz Gonzaga era parte apenas do repertório obrigatório durante o ciclo das festas juninas. Aí ele imperava sem concorrente. Mas era só. Penso que um dos fatores de resistência à sua música derivava do preconceito de classe e região.

Talvez muita gente hoje esqueça que sua música passou a integrar o repertório e os padrões de gosto da classe média urbana graças ao movimento tropicalista. Foi o meu caso. Foi exatamente por força da influência do tropicalismo, que bravamente desafiou preconceitos e noções estabelecidas de qualidade estética, que comecei a ouvir a música de Luiz Gonzaga. Lembro precisamente que isso começou com as interpretações renovadoras de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. É também verdade que a era dos festivais de música, dominados ideologicamente pelo nacionalismo musical que privilegiava fontes musicais rurais e notadamente nordestinas, valorizava indiretamente a música simbolizada na figura de Luiz Gonzaga. Digo indiretamente porque a música dos festivais, apesar das fontes e tradições que exprimia, era recriada por artistas de classe média urbana e universitária num momento em que a incipiente montagem do nosso sistema de cultura de massa era ainda dominada pelos valores da elite urbana.

Apreciando a questão da perspectiva do presente, é claro que a dominação dos valores da elite era superficial e apenas momentânea. Basta observar agora quais são os valores dominantes da cultura de massa, que forma de cultura de massa prevaleceu no Brasil. Apesar da extraordinária expansão do capitalismo, agora globalizado de forma irreversível, de décadas de urbanização, da universalização dos meios de comunição de massa, da educação de massa e da revolução tecnológica extensiva em graus variáveis a todas as esferas sociais, o baixo padrão dominante de cultura é patente. Diria mais. Diria, para quem não receia ser levianamente confundido com um elitista desprezível, que o padrão da nossa cultura de massa constitui uma ofensa ao receptor inteligente e cultivado. O que prevalece no sistema midiático, sobretudo na mídia aberta, na que expressa os valores da maioria e por isso dá as cartas dos níveis de audiência, é o que há de pior nos valores dos diferentes grupos e classes constituintes da sociedade global.

Retendo a argumentação no domínio desta crônica de memórias, nossa música de qualidade refugiou-se, dentro do processo de segmentação cultural imposto pelos interesses e a complexidade do sistema dominante, em nichos somente acessíveis a uma minoria bem formada e portanto autônoma o suficiente para mover-se por conta e escolha própria através dos labirintos da cultura midiática. A minoria de qualidade, com perdão do truísmo, já que maioria e qualidade são incompatíveis, sobrevive em nichos tão inacessíveis que é preciso um bom trabalho de garimpagem para chegar a essas pérolas. Como não sou navegador frequente da internet, sei de algumas e descobri outras graças a alguns amigos melhor informados, ou mais pacientes no exercício da garimpagem; de outras, através do acaso afortunado. Seria contudo insensato esperar que essas pérolas tivessem lugar na televisão e na rede de consumo de massa.

Reato o fio volúvel da minha memória, demasiado poroso às digressões e desvios tecidos por fios associativos insondáveis, apenas para arrematar a crônica. Contraí pneumonia num certo dia do segundo semestre de 1967. Prisioneiro do repouso forçado, vi-me de repente atado a uma cama na sala de visita da casa onde morava a minha família. Como esta era bem maior que a casa, nunca desfrutei do privilégio de ter meu próprio quarto, o quarto só meu pelo qual durante muitos anos ansiei. Portanto, não precisaria ser feminista para compreender muito bem o sentido da expressão “um quarto todo meu”, que com a devida variável subjetiva confere título a uma das obras mais celebradas de Virginia Woolf. Um acaso feliz prendeu-me à cama diante da televisão precisamente quando começou o terceiro festival da música popular brasileira produzido pela TV Record. Foi o mais importante da era dos festivais de música. Foi também o ponto de inflexão da minha conversão apaixonada à MPB.

Diante dos meus ouvidos e olhos deslumbrados, passei a conhecer verdadeiramente a música da melhor geração musical que já tivemos: Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Francis Hime, Dori Caymmi, Sidney Miller e outros um pouco mais velhos ou mais jovens. Devo todavia acrescentar que o fato verdadeiramente revolucionário na minha obscura trajetória de amante da música ocorreu um pouco mais tarde. Entusiasmado ao adentrar aquele mundo musical que me penetrava os ouvidos e a imaginação lírica, passei a conhecer tudo que podia dessa tradição que desembocou na geração acima, protagonista dos festivais de música. Foi assim que num certo dia ouvi “Chega de saudade” e senti o choque de saber que Tom Jobim e João Gilberto existiam. Depois disso, sem exagero, aposentei Nelson Gonçalves e quase toda a música que amava ouvir e cantar durante minha infância e adolescência.

E assim, repetindo Drummond, cansei-me de ser eterno e então me tornei moderno. Ninguém sabe bem o que é isso, muito menos eu, mas quem resiste à fluida sedução dessa palavra tão desejada e contestada que, a troco de tudo e de nada, foi reiteradamente invocada durante o século vinte? Tanto a invocaram e ainda o fazem que, na falta de alguma exatidão conceitual, passamos a recorrer aos prefixos pré e pós também a troco de tudo e de nada. E por aí vamos nos desentendendo. Não importa. Importa apenas afirmar que aprendi a ser musicalmente moderno com Tom Jobim e João Gilberto. Depois deles, atirei o repertório da Amplificadora Santo Antônio na lixeira da história, como prezavam desprezivelmente decretar certos marxistas detentores das leis implacáveis da deusa História.

O que a experiência me ensinou, se com ela aprendi alguma coisa, é que convém dar razão ao humor cético e corrosivo de Millôr Fernandes: a história é apenas uma istória. E a memória é uma recriação ficcional do memorialista, acrescento eu. Longe de mim sequer insinuar, ao compreender a memória nestes termos deliberadamente provocativos, que tudo que acabo de escrever é pura invenção da minha imaginação. A matéria bruta da crônica são fatos e experiências vividos e retidos na memória. O que intento traduzir, ao afirmar que a memória é uma recriação ficcional, é a natureza do processo de composição de qualquer texto biográfico, diria por extensão qualquer texto baseado na memória e nos múltiplos modos de documentação do passado. Esse processo é sempre uma recriação parcial. Além de ser uma faculdade de poderes falíveis, como tudo que é humano, a memória é refém de uma infinidade de armadilhas, muitas inconscientes, que sempre deformam o vivido. Fico todavia por aqui. Ir além disso seria vestir-me da presunção de ser um teórico da história ou da psicologia.

Recife, 16 de agosto de 2012.

sábado, 8 de setembro de 2012

Memórias Musicais I


Who hears music, feels his solitude
Peopled at once.
Browning.

A música é talvez o mais poderoso catalisador da memória. À parte sua beleza intrínseca, ela converte o momento em duração enraizada na memória. Dado o fato de que povoa, como foco ou fundo, grande parte do que vivemos, impregna não raro de forma inconsciente fração significativa da nossa vida. O avanço extraordinário da tecnologia que a registra, difunde e amplifica concorreu, em escala sem precedente, para fazer com que penetrasse de múltiplas formas o cotidiano que vivemos. Afinal, agora ela está em tudo, sobretudo numa cultura privada de regulação, como é o caso do Brasil e notadamente do Nordeste. Isso a torna hoje, para gente do meu tipo, antes de tudo indesejável e até irritante, pois o que passamos a ouvir, de ordinário contra nossa vontade, não passa de lixo ruidoso. A onipresença da música inclassificável, por ser boçal e ensurdecedora, suprimiu as condições ambientes indispensáveis à recepção e à interpretação da música que importa para a minha vida, pois esta é indissociável do silêncio e da solidão.

A música é a nota dominante da minha memória, pois o próprio amor, no que contém de mais belo e memorável, está com frequência associado à canção que ouvia enquanto dançava, ou na amada me perdia dentro da penumbra do quarto ou da sala, à explosão de gozo e momentâneo apagamento do ser, ou fusão mágica que se esgota na duração do instante. Está ainda associada ao trânsito lírico dentro da noite, quando Recife e outras cidades eram propícias à livre expansão do amor fora do círculo privado da casa e do motel. Aludo a um tempo, não muito distante, em que ainda não se cavara o fosso intransponível entre a rua e a casa, entre o território público e o privado. Está ainda associada às festas que variavam da euforia, da diluição ruidosa dentro do grupo, à meia-luz íntima dentro da qual os corpos se respiravam e se apertavam antecipando a penetração e o gozo indizíveis. A música, até quando harmônica e ritmicamente “fria”, é expressão suprema do princípio do prazer e das pulsões dionisíacas.

Agora, entretanto, recuo no tempo, pois escrevo apenas uma crônica de memórias centradas na música, no lugar que ela ocupou na minha vida desde a infância. Os anos mais significativos da minha infância vivi-os na vila de Igarapeba. Um dia escrevi uma crônica sobre uma dessas enchentes previsíveis que devastam cidades e vilas do Brasil. Como Igarapeba, apesar de sua obscuridade, é também vítima dessas catástrofes que não queremos prevenir, dela fiz o objeto da minha crônica, antes de tudo uma crítica de fundo sociológico às nossas misérias seculares. Mas incorri na ofensa de qualificá-la como Sibéria tropical e outras analogias metaforicamente justificáveis. Não obstante minha consciência do quanto somos governados por paixões etnocêntricas, cuja estupidez não resiste a um parágrafo de apreciação racional, perturbaram-me as pedras e o orgulho ferido dos igarapebenses caindo sobre meu telhado de vidro.
Encurtando o enredo (que está documentado na crônica e devidos comentários postados no meu próprio blog e sobretudo no blog Amálgama), eis um conselho que dou de graça ao leitor avesso a brigas inúteis e insolúveis: nunca se atreva a criticar sua terra de origem. O orgulho ferido dos conterrâneos, não importando o quanto haja de verdade na sua crítica, jamais o perdoará. Em suma, a razão e o etnocentrismo tacanho nunca se entendem.

Pessoas que vivem infelizes dentro da atmosfera poluída, violenta e ruidosa das grandes cidades tendem compreensivelmente a idealizar a vida dos vilarejos e cidades pequenas. É um fenômeno tão compreensível e universal que se espelha tanto nas memórias nostálgicas das pessoas comuns quanto na mais alta tradição teórica apreensível no estudo da sociologia, da antropologia e da psicologia social. O exemplo mais célebre consiste na tipologia de farta e longa recepção crítica proposta por Ferdinand Tönnies: gemeinschaft e gesellschaft, isto é, comunidade e sociedade. O primeiro tipo, a comunidade, caracteriza-se pelas relações homogêneas amplamente baseadas nos vínculos de parentesco e em formas orgânicas de convívio entretidas por uma população restrita. Essa população confunde-se praticamente com os elos da vizinhança dentro de um mundinho onde todos se conhecem. O segundo tipo, em oposição, é regido pela divisão do trabalho, o individualismo, a competitividade, as relações impessoais e abstratas, em suma, por processos sociais geradores de solidão e isolamento, perda de vínculo significativo com o semelhante e outras consequências indesejáveis.

Embora não negue o fundo de verdade inequívoco contido na tipologia acima sumariamente descrita, vivi nos dois mundos e não tenho dúvida de que, apesar de tudo, prefiro de longe o mundo da cidade, a sociedade com tudo que contém de bom e de ruim. O ideal, claro, seria fundir o melhor dos dois tipos num tipo único de sociedade. Aderir a essa fantasia é renunciar à compreensão realista da sociedade, ou wishful thinking, como dizem em inglês. Comigo não, violão. Confesso odiar a cidade em que vivo, entregue a uma classe dirigente estúpida e corrupta que a empurra a passos acelerados para um inferno urbano nitidamente visível. Daí à regressão para uma comunidade idílica e fantasiosa... bem, a passada é grande demais para as pernas curtas das minhas fugas insensatas.

Vivi numa vila o suficiente para saber o quanto doem e frustram as rotinas rangendo ao longo do dia previsível na sua miudeza, na pobreza e miséria irreparáveis, no tédio abafante do dia sob o sol e da noite imersa em trevas. Que há de tão desejável num mundo de horizontes literalmente apertados, de vidas sem perspectivas diluindo-se na fofoca, na polícia que cada vizinho exerce sobre o outro, numa prisão comunitária cuja eficiência e olho inescapável tornam a instituição policial prescindível? Que há de tão desejável num mundo onde a tradição e o costume anulam qualquer veleidade de liberdade individual? Isso é tão verdadeiro que todos que migram para a cidade grande nunca mais voltam, embora zelosamente desatem o fio fantasioso da nostalgia quando o presente se torna irrespirável ou mesmo banalmente infeliz. Comigo não, violão. Logo, o olho do leitor é torto se o leva a confundir esta crônica de memórias com nostalgia, história social em registro memorialístico com regressão lírica ao passado.

A música – ainda que barata, como a qualifica Drummond num poema – foi desde cedo uma clareira aberta dentro do mundo opressivo em que cresci. Quis um feliz acaso que minha tia Vitória, comerciante viúva estabelecida na rua principal da vila, fosse proprietária do serviço de alto-falante, único meio público de difusão musical que animava nossas pobres noites sem variação. Nesse tempo não havia ainda luz elétrica, somente instalada em meados dos anos 1960. Havia apenas um motor gerador de luz fornecida entre as 18 e as 21h. Como a geringonça com frequência quebrava, Lula Pesseta, o mágico da luz, acorria às carreiras para consertar a máquina e repor a luz na vila que ruidosamente acolhia a repetição do milagre.

Desde menino fui tocado pela magia da música. A memória mais remota que a ela me prende está associada à morte do meu tio Edmundo. Vivia ainda em São Benedito do Sul, onde nasci. Fui levado pela família para assistir às cerimônias do enterro. Teria uns 4 ou 5 anos quando isso aconteceu. Enquanto na sala minha tia chorava descontrolada, em franco estado de histeria, eu brincava no jardim indiferente à morte e à dor que ela desencadeava no mundo dos adultos. Brincava no jardim quase frontal à casa onde pouco mais tarde passaria a viver, quando meu pai trocou sua vida de comerciante na cidade pelo cultivo da cana de açúcar numa propriedade que se estendia até às bordas da vila. De repente ouvi, no outro lado do muro, o canto da empregada que varria a sala com a porta aberta: “Lá de trás da minha casa tem um pé de ... Você vai? Você quer?” Há uma palavra apagada pela memória, como o indica a reticência, mas lembro ainda a música. Logo que a ouvi, prontamente me intrometi na cantoria escondendo-me atrás do muro e respondendo ao refrão da música: “Você vai? Vou; você quer? Quero”. A cantora gostou da minha intromissão e assim fomos adiante brincando com a letra da música. Essa anedota diz muito não apenas do meu amor precoce pela música, mas também da inconsciência da criança em face da morte e da dor que ela provoca nos que perdem seus entes amados.

Como observei, as noites, entre as 18 e às 21h, eram povoadas pela música emitida pelo alto-falante instalado no teto da casa comercial da minha tia. O locutor era Anibal Pontual, um pobre alcoólatra que se distinguia pela beleza do seu timbre de voz. Era assim que saudava a vila todas as noites: “Boa noite. Você está ouvindo a Amplificadora Santo Antônio, na frequência de 35 watts para um setor”. Mais tarde meu primo Mário Celso passou a dividir o serviço de locução e programação musical com ele. Como era proprietário, filho primogênito da minha tia, minha memória desconfia de que se sobrepôs ao locutor oficial. Mas convém não confiar muito na minha memória.
Nota: Como minhas memórias musicais são longas, em contraposição à paciência e o tempo do leitor, que são curtos, pareceu-me melhor dividi-las em duas partes. A próxima daqui a três dias.
Recife, 16 de agosto de 2012.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Denis Bernardes


No fecho de uma das obras-primas de Bergman, O sétimo selo, a morte conduz o séquito das suas vítimas recortadas na linha do horizonte. Seguem-na, os mortos, enfileirados e dançando. Dançam uma dança solene rumando para a escuridão irreversível. A cena é narrada por um obscuro artista ambulante. À luz do amanhecer, descreve a cena para sua mulher que traz o filho pequeno ao colo. A visão do narrador se dilui quando a mulher sensatamente observa: você e suas fantasias... E se vão puxando a carroça através dos campos desertos da vida. Cito de memória, daí a omissão das aspas.

Foi a morte de Denis Bernardes, no último sábado, 1 de setembro, o que me induziu a evocar o filme e a cena acima descrita com as tintas borradas da memória. Quem conhece o filme sabe que é uma luta entre o cavalheiro medieval (Max von Sydow) e a morte. A luta se trava na forma de uma partida de xadrez. O cavalheiro é um jogador exímio, um adversário refinado na arte do jogo, que é o jogo da vida, mas sabemos que está fadado à derrota. Pois quem teria gênio, astúcia e poder para dobrar a Inescapável nesse longo e fatal combate que contra ela travamos?

Setembro chegou privando-me, sem aviso prévio, de mais um dos grandes amigos de minha vida. O primeiro, Daniel Lima, morreu em abril. Com sua imaginação irreverente, Daniel habituou-se nos últimos anos do nosso convívio a aludir à morte como a Magra Caetana. Na visão do saltimbanco do filme de Bergman, ela lidera o séquito dos mortos portando a foice e a ampulheta. Nunca conversei com Denis, a sério ou brincando, sobre essa figura mítica e aterradoramente real. Lembro-me de que falamos com muito humor da velhice. Meu último encontro com ele e Gildo Marçal foi com certeza o mais divertido de tudo que com ambos compartilhei. Entramos a falar da vida e da velhice com a imaginação transfigurada pela magia do vinho tinto (que Gildo há muito estava proibido de beber e por isso nos acompanhava com a sobriedade lúdica dos viciados em Coca-cola) e daí fantasiei nosso internamento numa clínica geriátrica em tom bem mais delirante do que o da personagem de Bergman descrevendo a Magra Caetana e seu séquito dançando rumo à escuridão definitiva.

Além da beleza da cena que encerra o filme de Bergman, achei belo fantasiar meus amigos Daniel e Denis somando-se ao séquito da morte dançando como crianças. Ambos reverteram, fatalidade dos que morrem, à escuridão que ata os dois extremos de nossa passagem por este mundo: a escuridão do útero, de onde brotamos, e a escuridão do desconhecido, obra da foice e da ampulheta empunhadas pela Magra Caetana. Nada me custa imaginar Daniel saltitante, dançando a dança incontornável da morte. Custou-me um pouco figurar Denis despedindo-se da vida e dos que o amam, e aqui ficam, seguindo as pegadas dionisíacas de Daniel, a este dando uma mão, a Gildo a outra, enquanto mergulhavam na escuridão que doravante nos separa.

A memória involuntária, entretanto, astuta como a Magra Caetana no jogo de xadrez da vida, salta do fundo do meu inconsciente e repõe na luz transparente do dia uma cena de certo carnaval de Olinda. De repente, me vi na folia ao lado de Denis, Rita, Marjorie e Natan Sarmento. Logo que Denis e Rita casaram, depois de um namoro que começou no meu apartamento, o casal Marjorie e Natan a ambos somou-se criando uma espécie de confraria de farras de fim de semana. Participei de poucas, duas ou três, mas foi o suficiente para avaliar o quanto se ligaram através dos elos profundos da amizade feita de convívio alegre e festivo. Até onde pude perceber, esse foi o momento mais feliz da vida de Denis. A partir de então, nossa amizade encolheu e foi recuando para encontros esparsos e ocasionais. Outros amigos bem mais importantes entraram na sua vida. De uns dez anos para cá, diria que são eles, não eu, que melhor poderiam pronunciar-se sobre Denis, sobre fatos e experiências que mais profundamente vincaram seus últimos anos de vida.

Mas a imagem do carnaval que brotou do meu inconsciente traduz algo do espírito festeiro de Denis, avesso das suas características mais notáveis, aquelas que moldavam as linhas de um temperamento introspectivo, não raro dissimulado atrás de muitas portas inacessíveis. O Denis que aqui reponta, em plena folia do carnaval de Olinda, é o folião fantasiado como Dom Quixote, galopando um cavalo de fantasia escudado por seu fiel Sancho Pança, Natan Sarmento. Poucas vezes me diverti tanto no carnaval de Olinda seguindo-os rua afora na caça dissimulada, mas sempre sintomática, das mulheres lindas enfeitiçadas por esse circo colossal, esse delírio da imaginação coletiva que é o carnaval. Essas impressões me marcaram de forma tão profunda que na mesma tarde, recolhendo-me momentaneamente da folia, comecei a compor um longo poema intitulado Carnaval de Olinda. Por isso tomo a liberdade de abaixo transcrever os versos inspirados nas fabulosas aventuras que a fantasia carnavalesca os impeliu a desatar pelas ruas coloridas de Olinda:
De repente, um homem magro e recluso
se transfigura em Quixote
erra pelas ruas perseguindo mulheres
belas e atormentadas pela falta de amor ou pura carne.
Outro homem, um que fazia concursos e que já foi comunista
agora se chama Sancho e é louco qual o seu amo.
Mulheres vão libertando
que vivam o que desviveram.
A virtude atirem contra o diabo
que o corpo será dos homens,
amém.

São essas as memórias e imagens que quero reter nesta crônica dedicada a Denis Bernardes. Já que não era Bernardo, mas Bernardes, ficam aqui implícitos os muitos que foi. Outros com certeza melhor diriam sobre a obra de historiador que produziu, tão pouco conhecida. Mas o fato de Evaldo Cabral de Mello, um dos maiores historiadores brasileiros, distingui-lo com referências elogiosas a seu O Patriotismo Constitucional: Pernambuco, 1820-1822, sugere um pouco do que esta obra representa para o estudo do processo histórico complexo, e ainda pouco estudado, da nossa independência. Outros ainda, a maioria, poderiam opinar sobre sua vida de professor e pesquisador. Outros sabem melhor da coerência discreta com que militou em nome de causas e movimentos políticos temperados por sua presença sempre admirável no seu timbre de tolerância e civilidade, no senso de virtude agregadora que assinalava sua participação em muitos grupos intelectuais e políticos.

Alguns amigos comuns ocasionalmente me falavam nos últimos tempos de um Denis transformado por experiências dolorosas associadas à doença e circunstâncias privadas alheias ao nosso convívio direto, que se estendeu, com as interrupções inevitáveis, de 1974 à época em que casou com Rita de Cássia, sua segunda mulher. Depois disso nossos encontros foram sempre, como acima salientei, esparsos e ocasionais. Costumo dizer que a amizade é o privilégio da intimidade. Tive a ventura de compartilhar isso com Denis e alguns poucos, pois amizades autênticas não se fazem nem perduram em redes sociais ou no circuito volátil das festas e reuniões sociais. E a intimidade é por natureza inconciliável com a exposição. Denis foi dos raros dotados de um senso não somente ético e político, mas também temperamental, nitidamente discriminativo da fronteira entre vida pública e vida privada, entre o privilégio da intimidade, expressão maior da amizade, e a vida pública.

A propósito, conviria religá-lo neste ponto a Daniel Lima. Ato assim, por mero arbítrio associativo, as duas pontas da crônica, já que comecei juntando-os num mesmo parágrafo e agora volto a reuni-los para concluir a crônica. Foram ambos homens afortunados, pois tinham o dom de se fazer amar. Embora tão distintos em termos de personalidade e temperamento, desfrutaram sempre do privilégio de serem bem amados, de preservarem amizades fiéis ao longo da vida. Até onde sei, essas amizades essenciais se prolongaram até à linha fatal onde foram colhidos pela Magra Caetana portando sua foice e sua ampulheta. Um dia, nós que aqui ficamos e lhes preservamos a vida que sobrevive na memória e nos ritos simbólicos que atualizam no tempo os que partiram, um dia seremos também colhidos pela Inescapável. Tudo que desejo (que mais desejar em face da necessidade?) é que ambos, Daniel e Denis, tenham partido dançando de mãos dadas com Gildo Marçal, Paulo Medeiros e tantos outros que já percorreram a linha irreversível da vida. Tudo que desejo é também saber dançar a dança da morte, que se aprende na vida, no momento em que a foice e a ampulheta sobre mim descerem.

Recife, 3 de setembro de 2012.

sábado, 1 de setembro de 2012

Minha avó Hannah


A foto que ilustra esta crônica não é infelizmente a que a inspira. Procurei-a, a inspiradora, no Google e noutras fontes possíveis. Não a encontrei. Sendo assim, peço ao leitor benevolente um certo exercício de imaginação visual ao ler o que segue.
Um dia vi uma foto de Hannah Arendt. Lembro-me de que foi pouco depois de ler a tradução brasileira, Companhia das Letras, de Homens em tempos sombrios. Aliás, andei remexendo minhas prateleiras, agora bem encolhidas, pois me desfiz de muito que erradamente julguei não mais precisar, na esperança de encontrar nessa edição a foto que procuro, a inspiradora desta crônica. Não encontrei meu exemplar. Certamente dei-o a algum amigo. Resta-me o exemplar de uma edição em inglês, mas nesse não há sequer uma foto. Privado da foto que procuro, valho-me tão só da minha memória.

Recuando no tempo, foi ao ver a foto de Hannah Arendt que me comovi prontamente, pois ela me fez evocar a imagem de minha avó Joaquina, a quem sempre chamei de vovó Quininha. Achei extraordinária, à altura da vida de ambas, a semelhança – semelhança estritamente física, acentuo. Em tudo mais que poderia considerar, tendo em mente o pouco que sei da vida e da obra de Hannah Arendt, associo mulheres de mundos e experiências totalmente diferentes. Mas espanta-me ainda a semelhança física que me leva sempre a associar a imagem de minha avó à de Hannah.

Sugiro ao leitor cultivado na obra de Hannah Arendt que largue a crônica por aqui, se acaso espera ler em qualquer sentido uma apreciação crítica da sua obra. Não é meu propósito. Esta crônica, deixo claro, não passa de um exercício arbitrário de memória inspirado por uma foto dessa extraordinária pensadora, tão independente e corajosa na defesa de suas convicções que induziu meu amigo Luciano Oliveira, estudioso de sua obra, a chamá-la de “velhinha irritante”. Antes que o confundam no sentido que imprime ao aposto com seu toque tão pessoal de humor, o tom e a intenção de Luciano é de admiração e afeto.

A foto de Hannah tocou-me de modo singular. Não apenas levou-me prontamente a evocar a imagem de minha própria avó, como já afirmei, mas me mordeu a consciência com um travo de culpa sem reparação. A imagem de minha avó que me veio à memória foi a da última vez em que a vi. Eu estava dentro de um ônibus cheio de passageiros trafegando na Rua Imperial, que foi cenário tortuoso da minha infância e adolescência. Ia na direção de Afogados quando, por alguma razão que me escapa, fiquei retido em meio ao trânsito paralisado, fenômeno então incomum. Daí dizer que a razão desse fato me escapa.

Coincidência ainda mais singular foi o fato de o ônibus parar bem próximo à casa onde minha avó vivia com meu tio Nelson. Depois que deixei minha família e passei a mudar de endereço como um judeu errante, minha avó foi viver nessa casa apenas compartilhada com meu tio Nelson. Como este vivia pelo mundo, rodando pelas estradas no exercício itinerante de sua profissão de caminhoneiro, ela ficou reduzida a uma solidão quase absoluta. Em pé no ônibus cheio de passageiros, vi-a no centro da porta de entrada, os cotovelos apoiados na parte inferior da porta que se dividia em duas partes. A parte superior estava logicamente aberta.

Lembro-me de que era tardinha, aí pelas cinco da tarde. Minha avó fitava a rua sem prender os olhos em nenhum objeto preciso. Seu olhar era portanto o olhar vago de quem olha para fora como se olhasse para dentro, ou simplesmente neutralizasse a visão dispersando-a numa sucessão de sensações móveis. Dentro do ônibus imobilizado no rio congelado do trânsito, esqueci-me de mim e de tudo que me rodeava enquanto concentrava minha visão em minha avó. Separava-nos a distância de uns cinquenta metros. A imagem que dela irradiava era a da velhice abandonada e solitária. Vendo-a paralisada na tarde, o olhar perdido no movimento da rua, senti uma dor imensa, um dó imenso da minha avó. Não bastasse a imagem para sempre pregada na minha memória, leio ainda naquele ser miúdo e solitário todo um longo e doloroso percurso de privação fechando o círculo estreito e opressivo de sua vida.

E assim salto da imagem para a memória distendida no tempo carente de reter na crônica os vincos dominantes da passagem de minha avó por este mundo. Ela pouco falava de si própria, das dores que acumulou ao longo de uma longa vida. O que sei de mais pessoal e doloroso é de certo modo parte da memória comum da família. O marido era um bruto, por um tudo, sobretudo por um nada, tratando os filhos a pancada, não raro impondo aos mais rebeldes, como minha mãe e meu tio Aloísio, surras impiedosas. Quando morreu, deixou a família praticamente desamparada: minha avó e cinco filhos. Foram salvos por meu pai que, depois de casar com minha mãe, abrigou a família inteira na sua casa de comerciante solteirão e abastado.

Na verdade, meu pai não casou com minha mãe, mas com a família dela. Minha avó continuou prisioneira da casa e da cozinha, espaço natural da mulher dentro da ordem patriarcal. Depois vieram os filhos das suas filhas, netos quase sempre entregues aos cuidados de minha avó. Quanto aos filhos dela, foram cuidar de suas vidas e ela ficou entre as famílias constituídas por minha mãe e minha tia Vitória. Encurtando o enredo, esse foi seu destino: cuidar até à velhice dos filhos das filhas, além do filho Nelson, homem de nervos abalados, miseravelmente escravo de uma avareza intransigente.

Prisioneira de uma vida tão áspera, marcada pela privação e a rudeza do trato, além da violência sem reserva do marido, não é de estranhar fosse minha avó uma mulher também áspera e pragmática. Via a realidade através do filtro estreito do grupo familiar, a vida regida por interesses materiais. Cuidava dos filhos, mais tarde dos netos, com um senso de dever impecável, mas nada punha de amor, de expressão afetuosa manifesta nesse trato com os parentes. Pelo contrário, vivia quase sempre resmungando pelos cantos da casa, sempre cuidando das tarefas repetitivas e repreendendo com severidade, embora não me lembre de vê-la uma única vez castigando fisicamente nenhum filho ou neto.

Um dia me dei conta de que aquela aspereza de trato, a função provedora isenta de afeto, neutra de amor e carícia, era apenas uma couraça defensiva, o meio que desde cedo precisou aprender para lidar com a brutalidade do mundo. Descobri um dia, noutras palavras, que minha avó era apenas um ser carente de amor, privado portanto de tudo que era incapaz de nos dar de forma manifesta em ato e palavra. Minha avó não me dava amor. Resmungava comigo como se eu fosse apenas um objeto de dever maternal devido à razão muito simples de que não sabia o que era dar e receber amor.

Menino carente de amor, privado de amor de mãe e de necessária regência paterna, comecei timidamente, em tom meio de brincadeira, a alisar os cabelos de minha avó, acercar-me dela e de repente tocá-la com uma carícia corrida, curta o suficiente para prevenir qualquer rejeição. Ela reagia crispada, resmungava um “vai pra lá” sem convicção, e assim fui lentamente dissolvendo-lhe a couraça. De tanto cercá-la com gestos cada vez mais ousados e firmes de afeto, acabei conquistando seu amor. Não que tenha passado a me tratar com carícia e afago, mas passou a aceitar sem reservas meus gestos de afeto. Foi assim que me tornei seu neto favorito.

Preocupada com meu futuro, passou a seguir-me com advertências pragmáticas ao me surpreender com frequência absorto na leitura de algum livro. É que certo dia, por um desses acasos felizes e simplesmente inexplicáveis, pus-me a remexer o topo da estante do meu tio Edmundo, já falecido, que ocupava lugar central dentro da sala de estar. Essa estante era uma figura ambígua, símbolo do lugar que a cultura letrada ocupava num mundo povoado pelo analfabetismo e as tarefas imediatamente orientadas para o duro exercício da sobrevivência. Num mundo tão primitivo, de cultura letrada tão raquítica, o livro e a estante ocupavam lugares desprezíveis e enigmáticos, objeto tanto de desprezo quanto de admiração. Daí a ambiguidade acima assinalada.
Meu tio Edmundo, leitor de jornal e gramática, de romances e outras matérias intrigantes, foi até colaborador ocasional do Jornal do Commércio, um dos dois principais periódicos de Pernambuco. Morto ainda relativamente jovem, deixou no mundo minha tia Vitória e seus quatro filhos. De quebra, essa estante de livros intocáveis dominando com silêncio inquietante para minha curiosidade de adolescente a sala de estar quase sempre deserta, pois há muito a família morava em Recife. E eis que chegou esse dia em que, mordido pela curiosidade, desandei a catar a chave da estante. Encontrei-a afinal, já recoberta pela ferrugem do esquecimento. Abri-a sem ainda saber que estava descortinando um mundo, o mundo que se sobreporia à minha paixão febril pelo futebol, às vagabundagens pelo desgoverno de Igarapeba com seus canaviais, sua gente pobre e rude, seus horizontes que, na minha imaginação, aquelas milhares de páginas já desbotadas pelo tempo ampliariam até os confins da Sibéria, guiado por Dostoiévski, até as múltiplas e míticas paisagens europeias traçadas pela pena de Alexandre Dumas, o pai e o filho, Walter Scott, Charles Dickens, Thomas Hardy, Eça de Queiroz e folhetinistas como Lorenzo Gualtieri, autor de Maria, a fada do bosque.

A descoberta desse mundo fabuloso da imaginação, até então silenciado e protegido pelo vidro e a poeira da estante do meu tio, foi sem exagero uma mudança radical na minha vida. Para começar, como já sugeri, afastei-me das vagabundagens da vila e até o futebol ficou um pouco encolhido dentro da fatias de tempo que dividiam as rotinas do meu dia. Os amigos, dando pela minha falta, surpreendendo-me encolhido na solidão dos livros, retido no silêncio da sala deserta, não entendiam o que se passava comigo. A oposição mais firme, embora recoberta de cuidados antevistos no futuro sombrio que me aguardava, procedia de minha avó. Temendo ver-me reduzido à solidão inútil de um leitor de livros mofados, avessos à ordem prática do mundo, minha avó continuamente se acercava de mim e me advertia: “Vai cuidar da vida, menino. Livro não dá dinheiro a ninguém. Por que não segue o exemplo de Antônio Costa? É um ativo, um sacudido, sempre ganhando dinheiro...”

Era assim que minha avó procurava salvar-me da inutilidade, da catástrofe que seria tornar-me mais um letrado desocupado no mundo regido pelo trabalho árduo e a necessidade vigilante. Não sabia ela, coitada, nem teria como, que aqueles livros obscuros e desprezados, mas também portadores de segredos invejados pelos iletrados, salvaram-me das rotinas tediosas da vila, descortinaram na minha imaginação e na minha inteligência relutante, mas carregada de interrogações, um rastro de luz e entendimento que passei a seguir diligentemente através de minha vida. O que de melhor fiz de mim, não tenho dúvida, teve início na solidão e no silêncio daquela sala de estar no dia em que abri a porta da estante com a chave enferrujada e um sopro de vento correu as páginas dos livros mofados contaminando-me para sempre.

Quem diria que meu errático percurso de leitor me transportaria da estante do meu tio às páginas da “velhinha irritante”? Mais improvável ainda pareceria essa semelhança física que surpreendi espelhada entre a foto de uma e a memória da outra. Para além da minha culpa, ainda latejante, por não ter naquela tarde distante descido do ônibus para espantar a solidão desamparada da minha avó, enredo-me em vagos e improváveis símbolos que me prendem à lenda do judeu errante ou à semelhança física entre uma judia, a mais extraordinária judia da cultura do século vinte, e minha pobre e obscura avó. Como não me decidi a descer do ônibus para ir ao encontro de minha avó, aquela foi a última imagem que dela retive. Logo mais tarde segui errando pela vida, enquanto ela foi viver em Salvador acolhida pelo amor do meu tio Aloísio.

E segui errando, errando através de cidades, estradas, ruas e endereços como um judeu errante. Errando nos bares, no trânsito promíscuo de corpos sem aderência, meros móveis de carne e prazer momentâneo. Errando através de pousos, refúgios, pensões e camas sempre moventes. Errando também através de livros, dos labirintos traçados pelo pensamento e a imaginação de escritores e artistas incontáveis. Esse é meu melhor e mais fiel modo de erro. Não daria completa razão à minha avó, quando me advertia vaticinando um futuro de fracasso para seu neto querido, porque, vindo de um mundo tão obscuro, tão crivado de erros e fracassos, chegar aonde cheguei é inegavelmente um triunfo. Portanto, o fantasma de Judas, o obscuro, o trágico e pungente personagem de Thomas Hardy que tão poderosamente vincou minha imaginação com linhas sombrias, não se converteu na realidade que poderia ter sido a minha vida. Mas acreditem que cheguei bem perto dele, do seu fracasso irreparável.

Voltando a Hannah e minha avó, presto minha humilde memória a esta ao lhe emprestar o nome de uma das mulheres mais admiráveis do século. Houvesse eu descoberto a judia, “a velhinha irritante” durante o tempo em que convivia ainda com minha avó, teria com certeza falado de uma à outra, teria sobretudo ressaltado a semelhança física que entre elas identifico. Receio porém que minha avozinha, prisioneira irredimível do seu orgulho obscuro, atado à medida crua da razão utilitária, confinaria sua curiosidade a uma pergunta curta e direta: “Quanto ela ganha pra escrever esses trastes?”
Recife, 14 de agosto de 2012.