quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Elogio do cigarro



Delícias e Desgraças
ou Elogio do Cigarro

Cigarro é fonte de felicidade
Assim como as paixões que nos consomem
Vivendo entre a loucura e a sanidade
Um dia todos vão, pra sempre somem.

É lindo ver você soprar fumaça
Assim quando amanhece à beira mar
Um dia hei de morrer, pois tudo passa
Fumante é um outro modo de passar.

Eu sempre digo a Ci e a Luciano
Cigarro é um bem que causa muito mal
Mas eles vão fumando ano após ano
Jurando que o fumante é imortal.

Recife, 25 de setembro de 2009.


domingo, 21 de outubro de 2012

A Culpa é dos Iluministas



Acho que tudo começou com aquele idiota chamado Kant. Sérgio Paulo Rouanet e vários professores da pós-graduação encheram minha cabeça com as ideias sedutoras de Kant e dos iluministas. Sapere aude: ousar saber. Pra mim saber é saber antes de tudo o meu corpo, a voz do meu corpo, o insone murmúrio do meu desejo. Foi assim que traduzi na minha vida o discurso iluminista e pós-iluminista da autonomia: ser livre para gozar o desejo latejante no meu corpo.

Minha mãe sempre exercendo a tirania doméstica dentro da família. Prematuramente envelhecida, dependente econômica e emocional do meu pai, vivia remoendo ressentimento contra tudo que não pôde viver. Um nada e lá estava ela repisando mágoas, cobrando dos filhos todos os sacrifícios sofridos durante a vida para nos gestar e criar. Meu pai, alto e belo, imenso na sua beleza, era meu ideal. Meu pai amava a vida, dela usufruindo tudo que eu queria e invejava: a farra com os amigos, o amor à música, que cantava com voz linda e sedutora. Fervi de ódio e ressentimento quando descobri que tinha uma outra família, com filhos ilegítimos da minha idade. Mas cedo o perdoei e continuei amando-o com um amor confuso, pois que contaminado por ressentimento e insofreáveis desejos de agressão.

Ainda adolescente, peguei a onda da liberação e caí na farra. Apesar dos privilégios de que sempre desfrutei na família, a começar pelos econômicos, trabalhei como garçonete num bar onde a garotada desatava os nós de todas as repressões purgadas por nossas mães. Não dava à mínima para o que me pagavam sugando minha mão de obra. Trabalhava somente pelo gosto da aventura, pelo prazer de estar dentro do agito nos fins de semana; trabalhava pelo prazer de provocar os garotos lindos com meu corpo moreno e sensual. Gostava quando um daqueles safados mais atrevidos se esfregava em mim depois de beber além da conveniência. Adorava o jogo que jogava seduzindo, provocando, mas sem dar, sem ir além do desejo provocado sem satisfação. Quero dizer, dei muito, mas só aos garotos que passei a namorar. Foram tantos, confesso, que logo perdi a conta.

Perdi a conta do que amei e dei por aí, errando nas noites de agito e droga. Mas sempre, em algum obscuro lugar, sempre me roía algo que era culpa ou insatisfação insaciável. Os garotos com quem transava logo me cansavam. Eram todos fúteis, todos idiotas, todos medindo num espelho invisível o próprio corpo, o amor vazio orientado para si próprio. Também eu me perdia nesses labirintos do desejo que me atava a mim própria. Mas havia algo além disso. Havia uma carência inapreensível de um grande amor, de um príncipe vindo de esferas insondáveis. Havia ainda medo e a recusa de repetir minha mãe, de acabar como ela: o corpo disforme, a ferocidade doméstica investida contra meu pai e contra os filhos.

Depois da graduação em jornalismo me mandei para São Paulo. Queria fazer pós, mas queria antes de tudo viver mais livremente, viver toda a liberdade a que tenho direito. Era à noite, no anonimato da grande noite paulistana, que o mundo misteriosamente se abria como um mar de possibilidades estonteantes. Eu tudo queria e a quase tudo me entregava. Às vezes, nas manhãs de ressaca, boiando confusa na maré da ressaca, sentia a dor de um vazio tão doloroso, mas tão doloroso, que eu me fechava na solidão do quarto para nem sequer ver as duas meninas com quem dividia apartamento. A sombra opressiva de minha mãe, esbravejando ressentimento e culpa na minha memória insone, servia apenas para empurrar-me mais e mais para a vida de dissipação que verti nas noites de São Paulo.

A meio da pós-graduação casei com Renato. Fui tola ao ponto de pensar que encontrara enfim meu príncipe encantado, aquela figura embaçada e linda, envolvente e dominadora que flutuava nos campos azuis de minhas fantasias consoladoras. Vieram os filhos, um casal, e logo mais tarde a separação. Depois que concluí a pós precisei trabalhar e então dobrei a jornada de trabalho. A partir daí o tempo encurtou, a liberdade infrene também, e logo me vi estressada e retalhada entre os filhos, o desejo de um homem para repartir as tarefas e o peso da família dissolvida entre tantas demandas desencontradas. A renda era polpuda, mas nunca suficiente para nossa sede de consumo, meu e dos filhos já crescendo para cair na vida como antes caí.

Lá dentro, no mais fundo de mim, o que me atormentava e perseguia já não era a figura tirânica de minha mãe envelhecida e frustrada; também não era o amor confuso e conflituoso que devotava ainda a meu pai, presença cada vez mais remota na minha vida. O que no mais fundo de mim me tiranizava era o espelho. Via-o até quando dele me ausentava. Aliás, logo descobri que se enraizara em mim, que me espelhava e sufocava até no escuro do quarto, deserto de companhia e amor. Não bastasse tanto, minha luta contra a balança tornou-se cada vez mais feroz. Por mais que lutasse, era sempre eu quem perdia. Daí para a academia de musculação o salto foi apenas uma passada. Caí de chofre diante daquele labirinto de espelhos refletindo gente ansiosa e atormentada à procura da medida ideal, da beleza ideal, do Narciso ideal absorto no espelho ideal das águas desenhando na superfície imóvel a beleza irretocável. Mas o que a realidade impiedosa refletia em todos os espelhos era meu corpo se avolumando, as formas dissolvendo-se em gordura inspirando-me um ódio irrefreável contra mim própria. De repente, dei-me conta de que os homens já não me olhavam como antes. Aliás, muitos passaram a me ignorar. Falavam comigo e me olhavam como se olhassem uma parede desbotada, uma porta debruçada sobre o abismo da minha insignificância.

Agora, no meio da madrugada insone, pulo da cama assaltada pela voz difusa de Kant, a voz gaga e gagá dos iluministas que encheram minha cabeça e me consumiram muitas horas de leitura durante meus anos de graduação e pós. Sapere aude: ousar saber. Que merda! Acendo a luz e ando pela casa inquieta. Será que os meninos já voltaram da balada? Encontro apenas o apartamento vazio, as camas e quartos desertos. Meu Deus, e se acontecer alguma coisa: algum crime, algum assalto... se andarem metidos com a turma da droga pesada? Ah, o sonho da autonomia feminina! Que merda! A culpa é daqueles putos do Iluminismo. Quem tem razão é Sandrinha, que renunciou à sua autonomia depois de atravessar os desertos que me assolam e se refugiou na fantasia do patriarcalismo do século xix. Agora Sandrinha se olha no espelho e vê apenas uma respeitável matrona regendo escravos na casa-grande onde sua vontade é lei. Queria ser Robespierre para guilhotinar todos os iluministas...

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Natalino e as meninas



O Amor nos Trópicos – Natalino e as Meninas
Severo Machado
Tudo começou com Lolita. Não a original, a de Nabokov, mas a de Kubrick. O mundo inteiro se recompôs como num sopro de iluminação e atordoamento. Amei quase sempre mulheres da minha idade, algumas até mais velhas. O que me tocava e inspirava no convívio de meninas era a imaginação contagiante que irradiavam. Nada além disso. Mas então veio a descoberta de Lolita, a obsessão comovente e patética de Humbert Humbert. E a verdade do amor que desde então passou a reger minha vida é fruto talvez de uma pura transfiguração do acaso. Ou talvez não, talvez ela em mim latejasse distante e impronunciável. Talvez já me possuísse naquele dia em que seduzi minha prima, que tinha apenas nove anos. Talvez pulsasse insensível na adoração cega com que cultuava Marilyn Monroe.
Luís Carnome, meu amigo e confidente, achava isso um absurdo. Como associar minha pedofilia ao culto de Marilyn? Marilyn é um mito gerado pela imaginação adulta, ponderava, típica da paixão por mulheres adultas. Mais que amigo e confidente, Luís era meu guru em matéria de cinema. Tudo sabendo de cinema, cultuando o cinema como passei a cultuar o corpo das meninas depois da revelação vinda de Lolita, Luís era quase sempre minha última palavra sobre a realidade paralela de Hollywood. Por isso fiquei abalado. Teria ele razão? Observe, Luís, que a raiz do erotismo de Marilyn é infantil, assim como o culto que lhe emprestamos é de natureza pedófila. A sedução poderosa e intemporal que ela exerce deriva do fato de traduzir no corpo e na linguagem uma expressão desconcertante de menina sensual, dengosa e... não sei, juro que não sei exprimir o essencial. A sedução de Lolita, ou de Marilyn é inefável, indizível como tudo que cativa e domina para além da compreensão racional.
Mas é a vida com sua força cega e irreprimível quem comanda o roteiro insensato da história humana que jogamos e sempre perdemos. Foi num domingo de sol, dentro de um antigo casarão de Salvador, que a vi pela primeira vez. Quero dizer: não ela, mas ela guiando as duas filhas presas a cada uma das mãos. A intuição brusca e fugaz cegou-me no meio da sala: estou perdido. Depois dela, com ou sem ela, nunca mais serei eu em mim como até agora me sei e me vivi e me enganei na suposição de me saber. O pior foi mais tarde descobrir que a perdição maior viria não dela, mas das duas filhas. Mal passou um mês e já nossas vidas eram tempos ajuntados e confundidos. A pedofilia, essa flor de obsessão que me consome, novamente latejava nos desvãos do corpo, vibrando quase inaudível nos subterrâneos da latência onde a carne respira sua condenação inconsciente. Eu então nada sabia da paixão que para sempre atou minha vida aos destinos de Ana Lúcia e Ana Sofia. Meu amor pela mãe, Ana Sílvia, era tão completo e absorvente que me cegava para tudo pulsando à órbita dos fatos palpáveis. Os que dizem que o amor é cego ignoram a real cegueira da razão.
Vivíamos brincando. Eu e as meninas brincávamos com a delícia e inconsciência dos inventores e habitantes primevos do paraíso. A consciência, esse graveto errante vagando nos campos sem fronteira da irracionalidade, somente a pouco e pouco se foi constelando num atormentado horizonte de desejos. Pingou aqui uma gota vibrante, mais além um noturno bater de portas, e foi avançando para o casulo onde as meninas dormiam respirando um sono de completo abandono. Nas noites de calor, a própria Ana Sílvia dizia: vá dormir com as meninas, meu amor. No quarto delas, com ar condicionado, não entram muriçocas. Eu odiava muriçocas e ainda hoje não suporto a picada de uma. Passei a dormir num colchão estendido sobre o assoalho entre as camas de Ana Lúcia e Ana Sofia. Ficava de joelhos ao pé da cama, um tempo sem memória contemplando cariciosamente a beleza daqueles corpos belos, inconscientes dessa selva em que nos consumimos, tão ainda pequenos, mas fadados à medida e gasto da nossa condição adulta. Algum tempo depois, tremendo de medo e prazer, passei da contemplação cariciosa ao toque deslizando suave por todo o corpo das minhas pequenas deusas. Um dia Ana Lúcia acordou enroscando-se feito uma gata, toda arrepiada pelo toque de minha mão: Vai embora, Natalino. Me deixa sozinha no quarto. A voz saiu-lhe grave e envolvente, como voz de mulher. E me fui atordoado e entrei no quarto de Ana Sílvia onde a possuí violentamente.
A curiosidade sexual das meninas se foi manifestando cada vez mais livremente. Queriam tomar banho comigo, dormir comigo, trepidar nas noites de rede suspensa na varanda. Sublimando penosamente meus desejos, domei-os numa clave de expressão lírica mesclando contos de fadas recriados no balanço rangente da rede, canções infantis e um despropósito de poemas tocados pela beleza e a infância de Ana Lúcia e Ana Sofia. E tudo isso em mim surdia e me sobressaltava num calor de excessos comunicados ao corpo de Ana Sílvia. Quanto mais amava e desejava as filhas, mais intensa e passionalmente possuía a mãe. Nosso gozo, um dentro do outro desavindo, era tão extremo e inefável que um dia desabei suado sobre o assoalho úmido e comecei a chorar num completo abandono de mim. A dor do prazer era tanta, tanto o desamparo da carne iluminada, que eu apenas gemia entre lágrimas: você quer me matar, você quer me deixar louco. Ela me tomava nos braços entre lágrimas de comoção e lá ficávamos largados de pura felicidade. Nenhum homem gozou como gozei em Ana Sílvia.
Em certa tarde eu lia na rede da varanda quando Ana Sofia entrou completamente nua, recostou o corpo na parede e ficou de costas para mim simulando contemplar o mar de Salvador. A beleza daquele corpo de menina, paralisado como uma oferenda ao alcance da minha mão, ainda hoje me atravessa a memória fisgada de luz e dor. Quase sem voz, pois o tuc tuc do coração me subia pela garganta, disse apenas: meu amor, entre e se vista.
Ana Lúcia, mais carinhosa e expansiva, era um tormento ainda maior. Vivia rolando nos meus braços. Muitas vezes, voltando da praia pendurada no meu ombro, corria para trás das portas para logo em seguida surpreender-me em algum recanto do apartamento. Quando menos esperava, puxava-me o calção e ria deliciada diante do meu corpo nu. Se eu entrava no banheiro, punha-se a forçar a porta querendo porque queria entrar para tomar banho comigo. Meu tormento era longo, continuado e delicioso. Nunca ninguém viveu inferno assim celestial como o que provei. Em meio a tudo, fui cada vez mais temendo perder as forças que me garantiam energia sublimadora. A paixão de possuí-las eu a continha procrastinando o gozo sonhado para um ponto indefinível do futuro, para o dia em que rebentassem na plenitude da maturação biológica.
Que fantasias tecem as linhas e cores das tatuagens impressas no corpo feminino? Um dia, possuindo Ana Sílvia, disse-lhe da minha fantasia de nela gravar um sinal do meu amor e posse. Pouco mais tarde surpreendeu-me exibindo na altura do ventre uma flor tatuada contendo as letras L e N, isto é, Luiz Natalino. Comovido, beijei-lhe o ventre e a tatuagem repetidas vezes. Logo isso bastou para que eu desandasse a desejar minhas iniciais impressas na carne de Ana Lúcia e Ana Sofia. Tanto fiz que convenci Ana Sílvia, que não precisou gastar verbo e artimanha para persuadi-las a transportar minhas iniciais no corpo. No pé direito de uma e no esquerdo da outra foram afinal gravadas as letras L e N. Correu-me por dentro um inconfessado poder de senhor de um reino, de um castelo inviolável ou um latifúndio amazonense.
Ana Sílvia deu para falar de uma vida solidamente comum. Quero dizer, uma vida casada, com papéis passados e assinados em cartório. Se nos amávamos tanto, se eu era tão feliz na companhia das meninas, por que não vivermos como uma família? Precisava recompor sua vida com as filhas em bases mais estáveis. Compreendia seus sentimentos e aspirações. Também eu queria o que ela, retesada no seu orgulho de mulher independente, confessava um tanto constrangida. Mas o medo e o desejo de possuir as meninas num futuro incerto, porém irreprimível, findou por anular qualquer possibilidade de amor casado e continuado.
Além de bela e sensual, Ana Sílvia vivia num mundo de homens. A natureza da profissão que exercia propiciava-lhe rotineiramente a oportunidade de viajar sozinha, frequentar congressos e encontros científicos, privar da intimidade de acadêmicos sedentos de aventura e até de amor refeito sobre a terra devastada das relações traídas e rompidas. O amor incerto, a insegurança sem solução previsível, tudo isso e outros imponderáveis cavaram a separação e o desenlace doloroso que findou por transportá-la para São Paulo. Soube mais tarde que casou com o homem com quem me traiu durante meses. Sabia da traição e de imediato tudo fiz para remendar nossos cacos e salvar nosso amor. Atormentada por um conflito enraizado numa formação religiosa inflexível, refugiou-se na vivência esquizofrênica de duas realidades intoleráveis: a traição efetiva contra o imperativo da fidelidade puritana. Ana Sílvia fora educada num colégio de freiras, além de criada por uma avó cujo mundo tradicional e fechado lhe impôs prisões morais inexistentes na realidade dos costumes que pipocaram a partir da década de 1960.
Muitos anos passaram enquanto errei por aí e pelo mundo. A compulsão por meninas acelerou-se a meio das minhas lutas vencidas para esquecer Ana Sílvia, Ana Lúcia e Ana Sofia. Talvez Ana Sofia me amasse ainda mais que a irmã, mas sua natureza retorcida, de expressão emocional atormentada, turvava-lhe a dor da minha perda. Era nisso igualzinha à mãe, instável como clima inglês. A imagem deriva de lá, da própria Inglaterra que, abaixo delas, amo acima de tudo mais. Ana Lúcia, porém, me perdia e pedia à distância com o mesmo desembaraço amoroso do Éden que compartilhamos em Salvador. Por isso escrevia-me cartas de dor e amor intensos na sua letra ainda à cata de uma forma madura, no traço tateante de menina. Suas cartas, tão simples e nuas, são as declarações de amor mais agudo e pungente que jamais recebi de uma mulher. Depois de as ler e chorar ferido no meu completo desamparo, eu mergulhava na solidão e no frio cortante das ruas inglesas. Andava horas a fio, sem direção ou propósito, salvo o de me castigar na minha dor sentindo o frio roer-me os ossos desertos, punir-me a carne surdamente gemendo a dor do amor irreparável.
Voltei por fim a Salvador onde nem mesmo a beleza dócil e despudorada das meninas me alivia a condição de completo desenraizamento, o desterro de judeu errante. Odeio o odor vindo das ruas, das águas sujas escorrendo pelas ladeiras ou empoçadas nas sarjetas. Odeio esse cotidiano trepidante e ruidoso, a incivilidade crônica do baiano, pior que a do brasileiro típico. Não tenho família, odeio a simples ideia de família, e nada me prende a nada. A beleza dócil e despudorada das meninas é ainda eco ou prolongamento do falo patriarcal, do escravismo que nos feriu a alma e o corpo com vincos indeléveis. A beleza dócil e despudorada excita o macho e até se deleita dobrada por sua animalidade predatória. Tornei-me uma máquina fria, movida a ódio e fantasia destrutiva. O ódio represado é tanto, de tão penosa respiração, que às vezes preciso errar dentro da noite deserta. Chego enfim à praia e brado embriagado contra as ondas invocando um deus punitivo: que venha outro dilúvio, a second coming, e tudo reduza a pedra e pó. Que sobrevivam apenas minhas deusas inconsoláveis castigadas pela condenação de me chorar para o resto dos tempos.
Durante seu exílio, tudo aqui ficou pior. Você porém ficou ainda pior que tudo. Palavras de Luís Carnome, a quem o acaso me junta num bar na noite da Barra. Mais ainda que meu guru em matéria de cinema, Luís é um sociólogo rico, um dos raros que souberam usar os instrumentos dessa profissão sórdida para enriquecer. Por isso costumo chamá-lo de Midas de Natal, terra de onde veio. Tudo que a sua sociologia toca transforma-se em pesquisa de opinião, estudo de mercado, assessoria, leite sugado das tetas violentadas do Estado. Em suma, dinheiro e poder. É humilhante o contraste entre seu poder e sucesso e meu fracasso de hedonista estoico, se é possível abusar assim de um oximoro.
Sabe do grito de guerra que adotei? Vamos às profissionais. Estou farto de mulheres complicadas infernizando-me a vida com um trem de ex-maridos, filhos delinquentes e suas opressões intoleráveis e miúdas. Faz meses que transo apenas com profissionais. São limpas, gostosas e caras. Mas posso pagar e quero, aliás, pagar algumas para você. Luís falava quase sem pausa, tomado daquela ansiedade que por aqui confundimos com alegria. Sua vida moral dissolvia-se ante meus olhos inclementes, mas como não invejar um homem que cai entre risos voltados contra si próprio? Prefiro as meninas de classe média prostituídas não por necessidade, mas por prazer e antes de tudo por escravização ao deus do consumo soberanamente regendo a vida dessas baratas tontas esvoaçando no shopping center.
Não te conto a última, Natalino. Estava em São Paulo, às voltas com um desses congressos insuportáveis de acadêmicos e políticos, quando me bateu um desejo intenso de transar com uma puta de classe média. Liguei para um corretor, eufemismo criado para designar cafetão de classe, pois existe classe até na rede dos bordéis. Perguntou-me se não gostaria de transar com duas irmãs. Topei no ato. Você não imagina a beleza delas, Natalino. Mas talvez não lhe interessassem. Tinham 18 e 20 anos. Velhas demais para mim, cortei enquanto ele caía na gargalhada. Vivi uma noite de rei. As meninas eram completas, insaciáveis e faziam de tudo com um prazer e um abandono de tudo como nunca gozei em nenhuma puta ou mulher. Já exaustos e suados, deslizei sobre seus corpos para beijar-lhes os pés. Você sabe que sou tão pedófilo quanto você, disparou o trocadilho novamente entre gargalhadas. Sabe da maravilha que descobri? Tinham duas tatuagens gravadas: uma no pé direito, outra no esquerdo. Numa a letra L, noutra a N. Mais tarde pensei casualmente: poderiam ser as iniciais de Luiz Natalino, emendou outra gargalhada. Se você tivesse tido tal sorte, encontraria afinal um motivo para invejá-lo, arrematou afrouxando nova gargalhada. Estava já tão bêbado que mal notou meu estado de miséria às bordas do desespero. Voltei para casa chutando pedra, tomado por uma dor absolutamente indizível. Foi então que me veio a ideia do incêndio. Parei num posto e comprei um bujão de gasolina. Dentro de alguns minutos tudo isso será cinzas. E ninguém saberá, sequer desconfiará que elas me consumiram e me pisaram e por fim a isso me reduziram: essa cinza fugaz dissipada na brisa noturna de Salvador.



domingo, 14 de outubro de 2012

Jorge (bem)Amado



O ano de 2012 assinala o centenário de dois dos mais consagrados escritores da literatura brasileira: Jorge Amado e Nelson Rodrigues. Em tempo, acrescentaria ainda Álvaro Lins, hoje infelizmente quase esquecido. Este, contudo, era um crítico literário e a tradição letrada nunca concede a essa categoria, a crítica, o valor atribuído ao criador literário no sentido estrito do termo (explicitando: o romancista, o poeta e o contista). O fato, de resto, deveria importar para que a cultura acadêmica tivesse a humildade de admitir a subordinação da crítica e da teoria à criação literária compreendida no sentido estrito que acabo de especificar. O assunto é de enorme relevância, mas não posso infelizmente considerá-lo sem enredar-me em digressões impertinentes.

Num país cujo público letrado é tão ralo, Jorge Amado e Nelson Rodrigues distinguem-se antes de tudo pelo extraordinário sucesso editorial, notadamente o primeiro. Jorge Amado alcançou o raro privilégio de viver de literatura bem antes do advento da televisão e da expansão da universidade brasileira. Enquanto a primeira contraiu ou desviou o público potencial da literatura, a segunda pouco concorreu para ampliá-lo. Com isso ou contra isso, Jorge Amado foi o mais afortunado dentre os representantes de uma corrente ficcional que conciliou de forma inusitada na nossa tradição literária a qualidade estética e o sucesso editorial. O leitor sabe que me refiro à corrente do romance social nordestino, cuja irrupção, no início dos anos de 1930, afetou a orientação da literatura experimental da década precedente e pouco mais tarde deslocou para segundo plano o romance de cunho psicológico e metafísico de Cornélio Pena, Octavio de Faria, Lúcio Cardoso e alguns outros. A cristalização e ápice desta última corrente é constituída pela obra de Clarice Lispector.

Já que o mercado é a única ideologia que nos sobra no presente, não é à toa que inicio este artigo ressaltando o singular sucesso editorial de Jorge Amado. É certo que, a julgar pelas estatísticas correntes, Paulo Coelho o superou como expressão desconcertante da literatura globalizada. Ainda assim, Jorge Amado detém trunfos estranhos ao sucesso colossal do rival. Além da amplitude da sua obra, acumulada dentro de um ritmo de progressão regular que se estendeu do início dos anos 1930 a 1994, data de publicação do seu último romance, teve grande parte da sua obra adaptada para o cinema, a televisão, o teatro e o rádio. Não bastasse tanto, Jorge Amado foi dos raros escritores brasileiros inventores de uma mitologia nacional. Ele traduziu em termos estritamente ficcionais o Brasil mítico inventado por Gilberto Freyre no âmbito das ciências sociais. O Brasil da sua ficção, sobretudo a Bahia, é uma reinvenção sua de tal modo impregnada no imaginário nacional que com ele, assim como com Gilberto Freyre e alguns poucos, aprendemos a ver e sentir o país real transfigurado por sua imaginação lírica, romântica, porejante de sensualidade e idealização imantada não no que somos, mas no que desejamos, não na tradição realista que ele sempre subverteu, mas numa forma de idealização romântica que nos representa como certamente gostaríamos de ser.

Diante do que acima esbocei, é previsível que a magnitude da data, o centenário de Jorge Amado, pouco encoraje apreciações pautadas pela isenção crítica, pela avaliação indiferente ao espírito de celebração. Lembrando ainda os soberanos interesses do mercado, a pressão é grande e espontânea o suficiente para que fiquemos apenas no batuque do samba exaltação, virtude de resto distintamente brasileira. Friso, portanto, que este artigo desdobra-se deliberadamente na contracorrente dessas manifestações previsíveis. Antes, porém, ressalto que Jorge Amado, como aliás qualquer autor de obra e biografia complexas, pode ser abordado em consonância com inúmeras perspectivas e escalas de valor. O que cabe ao crítico é explicitar seu ângulo de apreciação argumentando de forma coerente com o que se propõe a explorar. Antes de explicitar o meu, cuido de reconhecer alguns méritos inegáveis do autor e da obra.

Um dos grandes méritos de Jorge Amado, extensivo aos melhores representantes do romance nordestino dos anos 1930, foi conferir expressão palatável para o público leitor mais amplo conquistas estéticas propostas e limitadamente experimentadas pela linha de ponta do modernismo difundido no curso da década anterior. Refiro-me mais precisamente à incorporação do povo na literatura, à introdução bem sucedida da linguagem coloquial no discurso literário, à representação ficcional da cultura do povo. Estes são postulados pelo modernismo a partir de sua guinada nacionalista, isto é, a partir de 1924. Mas essa tradução de postulados estéticos e ideológicos do modernismo em clave regionalista não se fez sem alguns problemas que foram bastante discutidos pela crítica. Mário de Andrade, por exemplo, enfrenta essa questão no texto da sua célebre conferência de 1942 quando, a pretexto de celebrar os 20 anos do modernismo, procede a um balanço do movimento em tom isento de complacência mesclando crítica objetiva e apreciação impiedosa do papel que individualmente desempenhou no processo cultural.

Considerando o lugar central ocupado na literatura brasileira pela corrente do romance nordestino, Mário de Andrade louva as conquistas compreendidas pelos postulados que acima indiquei. Não o faz, entretanto, sem na outra dobra criticar nesses romancistas (à parte Graciliano Ramos, ressalva minha) o excesso de inspiração e improviso. Noutras palavras, a ausência de rigor construtivo que sempre exigiu do artista. O fato de empenhar-se em produzir uma obra comprometida com ideais humanistas e politicamente progressistas, apreensíveis na sincera identificação com o povo iletrado e oprimido, não isenta o artista do domínio da técnica e da linguagem artística, dos meios culturais necessários à criação literária.
Ora, sabemos que essa crítica afeta diretamente a obra de Jorge Amado, pois nele sempre prevaleceu, de par com seu notável talento para a fabulação e a transfiguração lírica da realidade, o desleixo relativo ao estilo e à linguagem. Por isso, mesmo a crítica mais favorável e simpática à sua obra (destacaria aqui Álvaro Lins, Antonio Candido, Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima) critica sua imaginação sensualista e primitiva, sua representação sentimental e idealizada do povo expressa na solução mágica dos conflitos e na caracterização psicológica das suas personagens demasiado esquemática. Parece-me de fato muito pobre a caracterização psicológica das suas personagens. À diferença de um Graciliano Ramos, que articula com maestria ação e caracterização subjetiva, ambiente e personagem, quando não um termo através do outro, Jorge Amado tende sempre para a caricatura quando formaliza literariamente antes tipos sociais (como o personagem de extração popular investido de virtudes idealizadas ou o pequeno-burguês, contra quem investe seu espírito satírico) do que representações realistas convincentes.

Aparentemente, o romancista nunca deu muita importância a essas restrições. Pelo menos é o que se deduz de uma frase conhecida com que à vontade se definiu: “Sou apenas um baiano romântico e sensual”. Alfredo Bosi não deixa por menos e assim comenta a frase: “Definição justa, pois resume o caráter de um romancista voltado para os marginais, os pescadores e os marinheiros de sua terra que lhe interessam enquanto exemplos de atitudes ´vitais`: românticas e sensuais...” (Ver História concisa da literatura brasileira, 34ª edição, pp. 405-6). Bosi vai adiante frisando que essa poética espontânea passou ao largo do realismo crítico contentando-se em fornecer ao leitor “...pieguice e volúpia, em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ´folclóricos` em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano” (Id., p. 406).

Cito e, além de citar, subscrevo o juízo crítico. Mais longe ainda que Bosi foi Walnice Nogueira Galvão, outra grande representante da crítica acadêmica. É dela a crítica mais devastadora que conheço sobre a obra de Jorge Amado. No auge da ditadura militar brasileira e do sucesso editorial do ficcionista baiano, 1973, ela escreveu um ensaio crítico a propósito do lançamento de Tereza Batista Cansada de Guerra (Ver “Amado: respeitoso, respeitável”, in Saco de Gatos).
Walnice abre seu ensaio esboçando uma equação complexa, mas essencial à análise da relação entre o escritor, o Estado e o mercado na tradição literária brasileira. Depois de louvar a coragem cívica com que Jorge Amado e Érico Veríssimo ousavam pronunciar-se contra a censura dentro dos limites de expressão impostos pela ditadura, contrapõe estes romancistas, significativamente independentes do Estado, já que dependentes do gosto público na esfera do mercado de livros, aos intelectuais dependentes do Estado, isto é, aqueles que são empregados públicos por não lograrem viver profissionalmente do exercício da literatura. Esboçadas essas linhas (remeto o leitor interessado ao ensaio de Silviano Santiago que replica e desdobra as consequências do teorema de Walnice, como escreve ele, no livro Vale quanto pesa), Walnice explora em termos críticos a relação entre a dependência do mercado e a qualidade da obra examinando em tom devastador o romance Tereza Batista Cansada de Guerra.

Analisando aspectos fundamentais do romance com corte preciso e polêmico, a ensaísta demonstra nesta obra particular as insuficiências formais e ideológicas da obra de Jorge Amado. Argumentando contra o caráter populista da sua ficção, sempre marcada pela idealização dos oprimidos, que são antes de tudo figuras da marginalidade baiana, ou do lumpemproletariado, fato que parece no mínimo irônico num escritor que foi militante comunista durante grande parte de sua vida, Walnice contrasta Tereza Batista com Moll Flanders, protagonista do romance homônimo de Daniel Defoe. O paralelo resulta constrangedor para nosso fabulista baiano. Bastaria lembrar que Tereza Batista é uma prostituta dotada de grande consciência política, portadora das melhores virtudes populares. Isso se aplica a ela quanto a todos os heróis marginais de Jorge Amado, o que contradiz liminarmente o conceito de lumpemproletariado.

Citando a própria Walnice, “Já Tereza não resvala, única personagem sempre virtuosa do romance. Se puxamos à memória os pobres de Brecht e de Buñuel, pensamos que Jorge Amado está brincando uma brincadeira sem graça; tudo se passa em seu romance como se a ética da miséria fosse outra e pobre virtuoso não morresse de fome; a idealização da miséria nada fica a dever a Gilberto Freyre. A tessitura ficcional interrompe-se a todo instante para dar ocasião a enunciados abstratos e polêmicos sobre a miséria; concretizada em Tereza, jamais aparece. Ela é, de fato, um ser moral, como alguma duquesa riquíssima de Balzac; no quadro frio e cruel das altas esferas francesas do século XIX, onde todos se entredevoram, de vez em quando há uma personagem assim. E Balzac aponta a condição, necessária mas não suficiente, pois só como exceção se dá, em que pode surgir um ser moral: em cima de um monte de dinheiro” (op. cit., p. 16).
Além dessa idealização da miséria, Walnice também ressalta um dispositivo formal, o discurso indireto livre, empregado por Jorge Amado para resolver em termos ambíguos, que variam da representação realista à mítica ou mágica, conflitos sociais evidenciadores da sua ideologia populista. Trocando novamente em miúdos: a heroína do povo é sempre virtuosa e vencedora, as divindades africanas sempre intervêm em defesa dos heróis populares. A isso se soma o discurso saturado de baixo calão, quando não da pura e simples pornografia e da perversão sexual. Walnice alinha exemplos convincentes da sua crítica relativa a esses aspectos do romance, também presentes noutras obras de Jorge Amado.

Seria simplista, como alguns supõem, considerar a crítica acima como evidência da polaridade entre rejeição da crítica acadêmica da obra de Jorge Amado versus aceitação unânime do público. Há sem dúvida alguns críticos acadêmicos que reconhecem no romancista baiano um dos mais importantes da literatura brasileira. Por outro lado, seria um engano traduzir seu extraordinário sucesso de público como evidência de unanimidade. O que me parece todavia previsível é o clima de irrestrita celebração assinalando a passagem do centenário desse extraordinário inventor de um Brasil mitológico. E o fato é que a mitologia é avidamente consumida e amada não apenas pelos brasileiros carentes de uma representação mítica e romântica da nossa cultura cujos traços predominantes são a sensualidade, o excesso desatado de culpa e governo, a idealização das nossas misérias seculares e o sincretismo mágico mesclando em tom confraternizador o arcaico e o moderno, os grupos e classes que não são o que são, mas por certo são o que o típico leitor amadiano (brasileiro ou estrangeiro ávido de exotismo cultural) gostaria que fossem.
Recife, 25 de setembro de 2012.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Anovelhoariando


Leio nesses olhares ávidos de triunfo a expectativa da confirmação de uma verdade evidente e indisfarçável. Portanto, o que me resta é reconhecer o meu crime: sou velho, sim. Melhor dizendo, tornei-me velho. Mas estejam certos, vocês que vieram depois de mim, vocês também chegarão lá, ou aqui. Meu consolo é refugiar-me na linguagem publicitária do nosso tempo. Sendo assim, não sou nem me tornei velho, sou apenas um membro tardio e descuidado da terceira idade. Aliás, a única terceira do meu tempo era a terceira via, expressão com que se procurava tornar palatável a abominável socialdemocracia. Se tentasse ainda melhor sugerir os abismos que se cavaram entre gerações vizinhas, entre tempos que em eras remotas eram vividos como uniformes, ou quase inalteráveis, anotaria distinções do tipo das que seguem:
Sou do tempo em que sexo era pecado.
Sou do tempo em que cachorro era cachorro e gente era gente.
Virgindade era virtude. Perdê-la era perder-se, mancha indelével de desonra. Refiro-me evidentemente à virgindade feminina.
O Brasil parecia ter jeito, ou pelo menos a gente acreditava. Hoje a gente sabe que é insolúvel, mas finge acreditar que ainda dará certo.
Todas as pessoas de bem, ou supostamente de, tinham orgulho de ser de esquerda. Quem não era comunista era com certeza simpatizante ou companheiro de viagem.
Sou do tempo em que meus amigos brigavam por ideias, ainda que tortas e dogmáticas. Hoje brigamos apenas por cargos e escalas de renda e consumo.
Sou do tempo em que Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues eram reacionários e liberalismo era um insulto ideológico. George Orwell era agente do imperialismo americano e Stálin era o grande benfeitor da humanidade. Che Guevara simbolizava um fuzil varrendo a América Latina com múltiplos focos revolucionários. Hoje, como o compram, é um mito romântico domesticado pelo consumo que o converteu em pura dureza enternecida. Vestir o mito de Che tornou-se tão inofensivo quanto beber Coca-cola.
Sou do tempo em que acadêmicos de esquerda iam fazer pós-graduação nos EUA e retornavam a suas universidades de origem para dissertar sobre paradigma histórico-estrutural com ares de quem estivesse fermentando uma revolução comunista nos minúsculos círculos elitistas da pós-degradação que se tornou uma fábrica de diplomas para doutores iletrados.
Sou do tempo em que pessoas de direita mascaravam seu direitismo alegando ser de esquerda. Com a derrocada fragorosa dos regimes supostamente comunistas, somada à ascensão da esquerda em países do tipo do Brasil, esquerda e direita foram ficando semelhantes ao ponto de em termos práticos se confundirem. Sendo assim, não é de espantar que esquerdistas se orgulhem agora de ser de direita e direitistas se orgulhem de ser de direita. Enfim, parece que agora todos chegaram ao consenso tardio de que a realidade é de direita. Digo isso porque Freud – também eu, imodestamente – há muito sabia disso, fato que de resto não o torna necessariamente de direita. A propósito, quem sabe mesmo o que é ser de direita ou de esquerda?
A classe média ouvia bossa nova, Chico e Caetano, Edu Lobo e Gilberto Gil. Por isso olhava de cima, com patente desprezo, para bregas e bolerões como Waldick Soriano e Benito de Paula. Hoje, pasmem, Waldick, Benito e Ivete Seugalo são clássicos da MPB.
Filme de arte era atestado de identidade intelectual e ideológica. A gente morria de tédio, mas o tédio pagava os créditos do reconhecimento, nosso orgulho mimético de pertencer a uma casta privilegiada.
Nosso sonho de uma sociedade sexualmente liberada, fundada na livre escolha do sexo e do prazer, deu nisso que hoje vemos: sexo tornou-se a mercadoria mais universal e barata do capitalismo de consumo.
Sou do tempo em que havia barulho no ar, nossa cultura foi sempre ruidosa, mas em algum remoto lugar era ainda possível captar no silêncio miraculoso da madrugada as ondas sutis de um acorde dissonante. Hoje, até dentro de minha casa, último e vulnerável reduto de minha liberdade, sou forçado a ouvir tudo que rejeito e odeio: o vendedor de gás, o traficante de cd pirata, o alarme dos carros, a febre trepidante da construção civil, o buzinaço dos torcedores de futebol eufóricos e toda a boçalidade repetitiva que designam como música popular contemporânea. A tortura mais inescapável e corrente do nosso tempo é a auditiva. Isso explica o paradoxo seguinte: num país orgulhoso de ser tão musical, bem poucos fazem e ouvem música. Ninguém precisa da idiossincrasia de João Gilberto, nem do recolhimento dos monges, para constatar o quanto fomos privados da liberdade de ouvir o silêncio.
Fumar era um ato de ingresso e afirmação dentro do mundo adulto. Era sobretudo sedutor e por trás da névoa de fumo a gente dissimulava a timidez e insegurança diante da mulher desejada. Hoje o fumante é o equivalente do comunista na década de 1970.
Ah, o cinema ia morrer. Somente o livro, na crônica dos vaticínios catastróficos, teve e tem fôlego de sete gatos para morrer e ressuscitar mais que o cinema.
Como veem, sou velho. Sou tão velho que nasci num outro século, num tempo em que palavrão era palavrão. Hoje é apenas refrão do vocabulário infantil.
Sou do tempo em que todo mundo era contra o mercado, tinha horror ao mercado. O mercado que reconhecíamos, e amávamos com tinturas de lírico esquerdismo populista, era o mercado popular com sua sujeira, seu tradicionalismo insalubre, sua inércia mercantil. Shopping, invenção posterior agora convertida em templo do consumo, shopping era apenas chope.
Sou de tempo em que honestidade era virtude. Meu pai, já falido, vendeu os cacos sobrantes para pagar a seus credores, não para antes investir num outro meio de vida. Bem, acho que ele confundiu honestidade com imprevidência. A prova é que durante anos vivemos apertados pela pobreza. Subi tanto, pasmem novamente, que hoje até pareço rico.
Sou do tempo em que havia apenas um marco teórico: o marxismo. Os outros estavam condenados ao paredão da justiça pós-graduada. O mundo deu voltas tão alucinantes que até eu fui elevado à gloriosa categoria de marco teórico. O autor desta façanha, provável candidato ao Bobel das Ciências Humanas, é meu delirante amigo Flávio Brayner.
Por volta de 1915, Lytton Strachey, constrangido, declarava-se um velho à sua jovem amada Carrington. Tinha então 36 anos. Pouco mais tarde, aí por 1942, Drummond gravou este verso num poema: “há muito pressenti o velho em mim”. Tinha 40 anos. Não recuo ao século XIX porque então as diferenças eram ainda mais extremas. Basta lembrar que as pessoas já nasciam velhas. De lá para cá, sobretudo hoje, essas medidas de idade sofreram uma autêntica revolução. Hoje os menores de 15 anos, incluídas as crianças, querem ser adultos apenas para terem acesso a prazeres inacessíveis à criança e ao adolescente. Os adultos, maduros e velhos (perdão, quis dizer terceira idade) querem apenas ser adultescentes, isto é, aduladores dos delinquentes. No futuro, não muito remoto, a cultura narcisista abolirá a velhice e a morte e então seremos todos eternos. Aviso que já sou.
Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de tolerância da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?
Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino.
Espanta-me ainda toda a cantilena que desenhamos em nome da felicidade. Dela falamos sempre e desejosos a evocamos como se ser feliz fosse um fim, quando não é sequer uma possibilidade. A felicidade é apenas um delírio obsessivo que inventamos, pois seres feitos de nossa insensata matéria não podem nunca alcançá-la. Os afortunados, poucos mas reais, poucos mas empiricamente assinaláveis, provam-na enquanto estado, enquanto deleitação momentânea, não enquanto expressão de permanência. Se fôssemos capazes de ajustar a medida do que desejamos à medida do que efetivamente somos, regularíamos nossos desejos e fantasias imantados na medida da felicidade momentânea. Noutras palavras, não estamos no mundo para ser felizes.
Uma das mais graves e difundidas moléstias do nosso tempo é a compulsão de ostentar felicidade e otimismo. Pessoas visivelmente infelizes falam de si próprias como se fossem clipes publicitários ambulantes. O cúmulo dessa estranha forma de alienação é o slogan “sem medo de ser feliz”. Se bem o entendo, ele sugere que a única razão de nossa infelicidade radica no medo que sofremos de conquistá-la.
A mulher? Sei que é a grande ausência aparente deste delírio em que racionalmente me meço e me repasso. Como falar da mulher num texto em que ironicamente me cotejo no tempo neste acentuando as linhas indisfarçáveis de sua passagem e ação? Se de algum modo somos vítimas do tempo, ninguém o é mais que a mulher. Daí tantas vezes lembrar a amigos, em nossa correspondência mais íntima e livre, as formas mais cruéis de manifestação da mãe natura. A mulher não se espelha nas linhas deste discurso porque temo de algum modo feri-la aludindo aos estragos que o tempo risca sobre sua pele, sobre sua inefável beleza que é objeto de meu culto mais lírico e secreto. É preciso que num homem se combinem a privação de uma mãe e a fatalidade da poesia antes vivida que realizada para que bem se compreenda a razão do meu objeto de culto. A mulher é tudo e tudo é apenas a mulher. Por que então precisaria eu iluminá-la nas linhas tortas de minha noturna e encantada navegação?
Mas acreditem: meu tempo é hoje, como na canção de Paulinho da Viola.
A música é a arte do tempo. No entanto, sou eu que passo. Ela fica. Até os gênios da música passam, pois são matéria humana como eu. O que fica é a música que os imortaliza.
Em suma, sou culpado do crime de ser velho, pois somente um velho evocaria no dia do seu aniversário tanto passado ido, irreversível e consumado. Fugindo ainda e sempre das convenções sociais que me oprimem, vivo o dia do meu aniversário como se fosse um segredo, um pacto de sangue entre mim e minha solidão. Ou ainda um pacto somente comunicado a dois ou três amigos. Mas eles próprios já o esqueceram, pois a memória humana é compreensivelmente curta e logo apaga o que não importa. Por que não admitir que no fundo o aniversário importa apenas para o aniversariante? Parabéns pra vocês.

03 de outubro de 2012.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Aniversário



No dia do meu aniversário
quando mais um dia envelheço
ou mais um ano acumulo num só dia
confesso que pouco queria
pouco à vida pediria.
Pois que a idade me ensinou
(se algo acaso aprendi)
minha insignificância pessoal
dentro da ordem das coisas.
II
O cosmos ou seu avesso
o caos e sua renovada colheita de ruínas
ignoram o grão de areia que sou
soprado pelos ventos que às cegas
para a morte me impelem.
Sou no entanto um grão pensante
um grão sensível
dotado da energia miraculosa de se saber
grão que pode gerar fruto
transcender a areia errante
e o próprio grão que é.
Por isso meu aniversário é apenas
um acidente imperceptível na ordem das coisas.
Mas também um milagre
como os que a todo momento
refazem o curso da vida.
Recife, 3 de outubro de 2012.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Gore Vidal: Cinema e Autoria


Além de romancista de grande renome, Gore Vidal é um notável e provocativo ensaísta. Seu gosto pelo ensaio polêmico ou pelo jornalismo de opinião concentrou-se notadamente na crítica ao sistema político e econômico americano, que a depender dos seus prognósticos de Cassandra já teria desmoronado ou mergulhado em crise muito mais profunda. Na cena cultural, que mais me interessa, ele já cruzou armas com Norman Mailer e movimentos ideológicos poderosos, como é o caso do feminismo. Aliás, sua independência crítica de corte polêmico se afirma até diante do movimento gay, embora há muito, bem antes da moda, ele já houvesse corajosamente assumido sua condição de homossexual.

Seu ensaio polêmico relativo ao diretor de cinema compreendido enquanto autor é provavelmente o mais conhecido e discutido. Foi publicado em 1976 no The New York Review of Books. O argumento central do ensaio visa elevar o roteirista à condição de real autor do filme, não o diretor. Mas o argumento não incorre nas simplificações grosseiras comuns nos ensaios ou artigos de viés polêmico. Recuando no tempo, até a era do cinema mudo, ressalta que então a supremacia do processo de criação fílmica cabia ao diretor. Mas eis que o cinema começa a falar e, como se sabe, ninguém fala sem um texto. É a partir daí que sobrevém a supremacia do roteirista. Embora reconheça o timbre autoral de um diretor como Ingmar Bergman, que é de resto um escritor, Vidal reduz a figura do diretor, notadamente no decurso dos anos 1930 e 1940, ao papel de um técnico competente como tantos outros diretamente envolvidos no processo de realização de filmes nos grandes estúdios americanos.

Para Vidal, o diretor enquanto autor é uma invenção dos críticos franceses, de intelectuais ligados ao grande crítico André Bazin e à revista Cahiers du Cinéma. Criada em 1951, esta célebre publicação está ainda viva. Nela se iniciaram grandes nomes do cinema francês do século 20, como François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer e Jean-Luc Godard. Este grupo, Truffaut em particular, muito fez pelo reconhecimento estético e intelectual de diretores como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks. Embora ressalve a importância indiscutível do primeiro – que eu ousaria qualificar como um diretor-autor, embora não assinasse o roteiro dos filmes que dirigiu – Gore Vidal considera John Ford apenas um técnico competente. Vai adiante ao afirmar que o diretor típico da época de Ford via a si próprio desse modo e assim era tratado pelos grandes estúdios de produção e pela opinião crítica corrente à época. É fato que também ressalva a qualidade distintiva de Hawks, que trabalhou em parceria com grandes escritores empregados na indústria do cinema, como é o caso de William Faulkner. Em parceria com Hawks, Faulkner criou dois filmes importantes na história do cinema americano: To have and have not (Ter e não ter) e The big sleep (O sono eterno).

Ao salientar a distinção autoral do roteirista, Gore Vidal concede atenção a alguns escritores que escreveram roteiros para grandes estúdios americanos. Além de Faulkner, acima mencionado, argumenta em defesa de F. Scott Fitzgerald, Aldous Huxley, Nathaniel West e James Agee. Vidal não atribui muita importância literária a este último, para dizer o mínimo, mas ressalta a extraordinária precisão e qualidade visual ou cinematográfica da sua escrita como roteirista. Segundo Vidal, os roteiros escritos por Agee, cuja melhor crítica cinematográfica está reunida no volume Agee on Film, eram dotados de extraordinária exatidão visual. Como foi um cinéfilo e apaixonado crítico de cinema, além de portador de imaginação literária antes de tudo visual, Agee escreveu roteiros suficientes para assegurar-lhe a autoria da obra, que assim poderia em princípio ser dirigida por qualquer técnico.

A obra que acabo de mencionar, Agee on Film, foi publicada numa coleção cujo editor é Martin Scorsese. Ela reúne a crítica produzida por Agee entre 1941 e 1948 para dois periódicos americanos: The Nation e Time Magazine. Além de uma introdução assinada por David Denby, o volume é enriquecido por uma carta que Auden endereçou ao The Nation. Embora pouco apreciasse cinema, Auden fez questão de escrever a carta para expressar seu louvor à crítica de cinema de Agee, crítica que Auden distingue como o mais notável acontecimento do jornalismo americano da época. Mas não deixa de arrematar em tom mordente: “Pode-se prever o dia triste em que Agee on Films será objeto de uma tese de Ph.D.”.

Baseado em fatos extraídos da obra Some time in the Sun, de Tom Dardis, Gore Vidal realça a relação de escritores de renome com Hollywood, os que citei dois parágrafos acima, para reforçar seu argumento central em defesa do roteirista como autor. Cuida entretanto de corrigir Dardis ao afirmar que as características de exatidão visual verificáveis nos roteiros de James Agee não eram exclusivas dele, mas sim a regra observável nos roteiristas da época. Vale a pena, neste passo, citar uma observação de Kurosawa que Vidal com prazer transcreve no seu ensaio, já que leva água para o seu moinho: “Com um roteiro muito bom, até mesmo um diretor de segunda classe é capaz de fazer um filme de primeira classe. Mas com um roteiro ruim, até mesmo um diretor de primeira classe é incapaz de fazer um filme que seja realmente de primeira classe”. (Gore Vidal, De Fato e de Ficção, p. 76).

Vidal retraça a linha crítica de procedência francesa que resultou na entronização do diretor como autor. Para isso, ressalta em particular um artigo de 1948 assinado por Alexandre Astruc, discípulo de André Bazin. Nesse artigo ousadamente polêmico, cujo título é “La Caméra-Stylo”, Vidal identifica mais que um artigo polêmico, identifica um manifesto em defesa da autoria absoluta e solitária do diretor. Embora a tradutora brasileira, Heloísa Jahn, traduza stylo meramente como caneta, suponho que Astruc confere ao termo, além deste sentido, o de estilo, que confere singularidade autoral a uma obra.

Entre outras teses ousadas, Astruc sustenta que Descartes, fosse ele acaso nosso contemporâneo, faria um filme para expressar apropriadamente suas ideias contidas no Discurso do Método. Vidal retruca com razão que o cinema é incapaz de expressar ideias complexas. Acrescenta ainda que o Descartes contemporâneo, Sartre, expressou sua filosofia num romance, A Náusea, não num filme. Aliás, conviria acrescentar o fiasco cinematográfico que resultou da experiência de Sartre quando este se associou a John Huston para escreveu o roteiro – infilmável, segundo Huston – do filme Freud.

No meu entender, o cinema sempre precisará da palavra, isto é, da literatura para expressar dimensões da realidade cujo sentido último é abstrato e portanto inacessível à pura exposição apreensível pelos sentidos. Uma das grandes forças expressivas do cinema reside, por exemplo, no seu poder de descrição. Isso explicaria em parte o fato de hoje um leitor, mesmo dotado de cultivada formação literária, ter bem pouca paciência para atravessar páginas e páginas de descrição de paisagens, cidades, lugares, tipos humanos etc. Bastaria pensar nos grandes romances do século 19, uma época ainda privada da cultura audiovisual disseminada no mundo contemporâneo.

Eu mesmo confesso já não ter tempo e pachorra para fixar na memória, depois de páginas e páginas de descrição cerrada, uma cena de batalha ou um baile da alta sociedade ou ainda a simultaneidade febril de uma metrópole. Estas cenas são muito comuns na grande literatura do século 19 e sobretudo na do século 20. Se vemos um filme, bastam alguns planos gerais alternados com alguns planos médios e outro tanto de close-up. Isso importa mais e tem muito mais eficácia e economia expressiva do que dezenas de páginas de um romancista genial como Dostoiévski, por exemplo.
Um telefilme ou minissérie baseado em Crime e Castigo ilustra muito bem meu argumento. Produzido pela BBC e dirigido por Julian Jarrold, é uma obra que nada tem de especial e de resto não tem como traduzir em linguagem cinematográfica as abstrações psicológicas e metafísicas supremamente realizadas em termos literários por Dostoiévski. No entanto, do ponto de vista descritivo, o filme facilmente traduz em alguns enquadramentos e takes o que, na obra de Dostoiévski, demanda páginas e páginas de descrição minuciosa e alentada. Todo o ruído e a sujeira e a miséria humana das ruas e cortiços de Petersburgo podem ser sinteticamente expostos em alguns enquadramentos variáveis de câmera.

Nenhum diretor assistido por seu cinegrafista precisa de gênio descritivo para imprimir realidade e sentido a cenas ficcionais desse tipo que se tornaram banalidade no universo cultural contemporâneo saturado de tecnologia e imagens. Qualquer diretor de telenovela da Globo, qualquer cinegrafista pode hoje sem embaraço transpor imagens desse tipo para a tela e daí para os nossos sentidos que há algumas gerações atrás precisavam valer-se do talento descritivo dos escritores. Essa é uma das razões de obras de grande fôlego analítico e densa complexidade teórica resultarem infilmáveis ou então findarem amputadas de seu sentido mais definidor em adaptações cinematográficas. Que diretor, não importando seu talento, pode transpor Em Busca do Tempo Perdido para a tela e ainda, para considerarmos um pouco a nossa literatura, Memórias Póstumas de Brás Cubas? Conheço as tentativas feitas em ambos os casos, mas lamento dizer que os resultados são bem pobres.

Como sabemos, Gore Vidal tem razões pessoais de sobra para argumentar em defesa da função autoral do roteirista. Além de romancista e crítico de literatura, trabalhou também como roteirista nos anos 1950, entre o esplendor e a decadência dos grandes estúdios afinal arruinados pelo advento da televisão como veículo hegemônico da cultura de massa na cena americana. Convém todavia destacar que essas razões pessoais entram no seu argumento apenas por via indireta e de resto em nada comprometem a força objetiva do que postula no seu ensaio. Como já deixei evidente, o alvo que mira negativamente é o diretor, que no seu entender, salvo as exceções antes referidas, se apropria injustamente dos créditos autorais do roteirista. Avançando no argumento, ele também concede qualidades autorais ao fotógrafo – ou câmeraman, como vem escrito no ensaio. Aqui ele acentua o papel fundamental desempenhado por Gregg Tolland em Cidadão Kane, o grande ícone da história do cinema cuja autoria, à exceção da crítica devastadora procedente de Pauline Kael, é sempre conferida a Orson Welles às expensas de Tolland e do roteirista Herman Mankiewicz.

Indo além do próprio argumento de Gore Vidal, que de passagem atribui funções autorais ao fotógrafo e ao cinegrafista (por vezes os termos se confundem, como na obra Trajetória Crítica, de Jean-Claude Bernardet) e também ao montador, atualmente também confundido com o editor de imagens, acrescentaria que a direção de arte também exerce papel fundamental no processo de factura da obra. Lembro-me, a propósito, de que Hector Babenco honestamente declara no making of de Carandiru que seus filmes seriam irrealizáveis sem a contribuição decisiva de Clóvis Bueno, seu diretor de arte. Faço esse registro ligeiro para concluir que, no meu entender, o filme é uma obra de criação coletiva. Esqueceu-me também ressaltar o papel dos atores, que para o grande público são os únicos que de fato importam.

No frigir dos ovos, considero que o argumento de Gore Vidal em defesa da autoria do filme atribuível ao roteirista encerra peso ponderável. Os filmes que distinguiram a carreira de Joseph Losey no cinema inglês, conferindo-lhe uma discutível aura autoral, seriam inconcebíveis sem os roteiros assinados por Harold Pinter. Vidal sublinha este fato, que integralmente endosso. No presente, ficando ainda restrito ao cinema inglês, distingo dois entre vários outros roteiristas ingleses que ficam injustamente à sombra dos diretores para os quais escrevem roteiros extraordinários. Refiro-me a Christopher Hampton, que além de escritor é também diretor ocasional, e David Hare, nome importante da dramaturgia inglesa. Hampton tem entre outros créditos – ou teria, pois o crédito autoral conferido ao roteirista é sempre secundário em relação ao diretor – o excelente roteiro que escreveu para Atonement (Desejo e Reparação). Quanto a David Hare, ressaltaria o roteiro que escreveu para The Hours (As Horas).

Gore Vidal é injusto ou desatento ao passar ao largo de diretores como Charlie Chaplin, Hitchcock, cujo peso autoral menciona muito sumariamente, Fellini, sobre quem simplesmente silencia, e François Truffaut, a quem de resto recusa mérito autoral. Outros críticos do seu ensaio poderiam ainda, baseados em argumentos objetivamente sustentáveis ou inclinações subjetivas, acrescentar nomes fundamentais da história do cinema. Penso aqui, ao correr da memória, em Billy Wilder, Visconti, Pasolini, Glauber Rocha, Buñuel, Godard, Fassbinder, David Lean, Kubrick... Não entro nos meandros e no varejo da questão. O que acentuo, agora em defesa de Gore Vidal, é a importância decisiva do roteirista, quase sempre subestimada em benefício do diretor.

O fato é que a crítica francesa, no ponto de partida, entronizou o diretor como essa figura mítica a quem passamos a atribuir a função autoral da obra cinematográfica. É um excesso injustificável. Nisso concordo integralmente com o ensaio de Gore Vidal, que todavia incorre num outro extremo também insustentável na ordem objetiva da controvérsia ao reivindicar a autoria da obra para o roteirista. O que penso, e assim concluo, é que o filme é uma obra de autoria coletiva. Os pesos e papéis são variáveis, mas o resultado final é fruto de uma atividade colaborativa e grupal muito complexa. Por isso é injusto conferir o mérito da autoria a qualquer agente individualmente considerado, seja o diretor, o roteirista, o cinegrafista ou ainda, pensando nas projeções míticas do grande público, o intérprete.
Recife, 3 de outubro de 2010.