segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A voz do silêncio



O seu silêncio dizia
Coisas que nunca ouvi.
Os outros, inconscientes
Falam de tudo e de nada
Do mundo intransparente
Do nada que é sempre nada.

O seu silêncio dizia
O que ninguém jamais disse.
Era uma prece sem credo
Beleza insuspeitada.
Via no avesso do medo
A morte e outros abismos
Nas dobras do silêncio metafísico.

Se me apontava a estrela
Ouvindo o sopro do vento
Se me abria a janela
Fechada no esquecimento
A paz na noite descia
Ao sul da terceira margem.

O seu silêncio me fala
E sempre em mim falará
Pois quem suprime o sentido
Que paira eterno no ar?

Recife, 20 de novembro de 2012.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Revisitando Natal



Escrevo na sala do Hotel Belo Horizonte, onde estou hospedado com Bella desde ontem. Fizemos a viagem de carro. Foi tranqüila e relativamente rápida. Receando contratempos ao longo do percurso, já que interminavelmente prossegue a obra de duplicação da rodovia BR 101 entre Pernambuco e o Rio Grande do Norte, cuidamos de sair cedinho. Além disso, gostamos de pegar a estrada logo que rompe o dia.
Embora alertado previamente sobre a extraordinária expansão urbana de Natal, sobretudo de sua rede turística, estou de fato impressionado com o que vejo, não obstante tenha ainda visto tão pouco. Infelizmente chove. Começou chovendo logo que entramos na cidade e desde então não desfrutamos sequer de uma trégua de sol. Hoje cedo, logo que acordamos, o tempo estava apenas nublado. Por isso aproveitamos a beleza úmida da manhã caminhando entre a Via Costeira e o mar. À luz do dia, tivemos uma noção mais nítida da paisagem litorânea pontilhada de hotéis. Mas logo a chuva voltou a cair sem pausa e assim seguimos para o salão onde nos servimos de substanciosa e variada refeição matinal. A primeira conversa que ouvi foi em inglês, a segunda em francês. Em 1977, quando aqui morei durante uns meses de economia penosa, precisaria ir ao cinema para ouvir essas línguas intrigantes dentro do monolinguismo nordestino. Hoje são ouvidas e lidas na nossa paisagem globalizada. Espanhol, italiano, alemão e notadamente inglês são moeda corrente no circuito turístico e sites de prostituição, uma das mercadorias mais requisitadas por turistas fascinados pelas lendas e evidências da sensualidade tropical expostas num reino sem governo e vergonha.

É bela a paisagem deserta. O mar à minha frente, recoberto de nuvens sombrias, semelha um horizonte congelado. Imerso na contemplação de um mundo sem movimento, liberto do elemento humano, recaio num desejo que ao longo de minha vida me tem poderosamente seduzido. Aludo ao sortilégio de uma serenidade metafísica que nunca alcancei plenamente traduzir em palavras, muito menos fruir enquanto estado existenciado. Se posso de algum modo expressar esse ideal de serenidade, diria ser o que os estóicos designam como ataraxia. Seria um estado de imperturbabilidade do espírito, de uma serenidade tão pura e ascética que nele nossa vontade e desejo se anulariam alcançando uma região incógnita na qual cessariam desejo, dor, perda e ressentimento. Penso que nosso obscuro desejo de morte, o deus Thanatos da mitologia grega, como lembraria Freud, também traduziria aproximadamente esse ideal de imperturbabilidade, ou ainda o que os budistas designam como nirvana.

Outro grande prazer que Natal me propicia: nenhum vestígio de festa de São João em toda essa área turística onde transito. Saio às ruas com Bella caminhando tranquilamente à beira mar. Passamos à frente de uma interminável sucessão de hotéis e pousadas isentos de foles de sanfona e ruído de fogos. Melhor que tudo, nenhuma agregação festeira, nenhum vestígio de fogueira queimando, o que representa uma bênção para minha rinite alérgica.

Visitando João Pessoa em dezembro passado, e agora Natal, depois de uma ausência tão prolongada, reitero uma constatação desoladora para Recife. Ou antes de tudo para mim. Salta aos olhos do observador isento a degradação social e urbana desta confrontada às capitais nordestinas mais próximas. É fato que as aproxima o mesmo legado histórico-social iníquo: resquícios da tradição colonial e escravista, padrões persistentes de extrema desigualdade social. Apesar da matriz histórica comum, observa-se nestas cidades de menor porte, Natal e João Pessoa, um ritmo de expansão urbana e turística muito menos predatório e portanto mais consistente do que o observável em Recife. Enquanto nesta a violência e a paranóia social estão amplamente difundidas, somadas a toda sorte de anomia urbana, em João Pessoa e Natal a atmosfera vivível e palpável é nitidamente melhor. É certo que o porte mais reduzido de ambas já por si atenua problemas sociais que tendem a ser menos controláveis numa cidade mais vasta e complexa como Recife. À parte esse diferencial, João Pessoa e Natal ostentam evidências de políticas urbanas, turísticas e imobiliárias claramente superiores. Aliás, talvez pouco dessas mudanças visíveis seja fruto de políticas propostas e executadas por agentes sociais institucionalmente definidos. De qualquer modo, importa reconhecer que, ao acaso ou deliberadamente, João Pessoa e Natal vão bem melhor que Recife.

Reservamos, Bella e eu, a primeira parte desta manhã para uma aprazível caminhada entre nosso hotel e o Morro do Careca. Entretivemo-nos tirando fotografias, documentando a bela paisagem natural e urbana e até conhecendo um ou outro tipo humano pitoresco. Nossa grande descoberta acidental foi o Elvis Presley de Juazeiro do Norte – terra do Padim Ciço, como orgulhosamente nos lembrou. Elvis chamou-me a atenção por ser um homem já idoso com longa e grisalha cabeleira encimada por um chapéu de palha em cujo centro li o nome do lendário rei do rock. Bastou-me assinalar este detalhe para que de pronto desatasse a história de sua vida com essa abundância verbal tão característica dos nordestinos.

O pai, homem alegre e festeiro, era fã de Elvis, enquanto a mãe, romanticamente passional e sombria, era devota de Nélson Gonçalves. Foi este o cerne turbulento da vida conjugal que compartilharam até a morte do pai. Se este se punha a ouvir a música ruidosa de Elvis, a mãe enfurecida logo reduzia a cacos os discos de vinil de onde saltavam os ritmos trepidantes do roqueiro. Se no entanto a mãe enroscava-se nos acordes e melodias passionais de Nélson, o pai vingativo ajustava as contas domésticas na mesma moeda e outra leva de discos de vinil era reduzida a frangalhos. E assim, inconciliáveis e turbulentos, viveram infelizes até o dia em que a romântica fechou os olhos do roqueiro. Mas deste reteve uma relíquia inseparável, símbolo do amor que, costurado na união turbulenta, converte o conflito amoroso em expressão de elo insolúvel e indissolúvel. Uma variante romântica do amor eterno enquanto dure, como escreveu o poeta.

Dado que lhe emprestamos ouvidos receptivos pontuados por comentários divertidos, Elvis grudou-se a nós detendo nossa marcha com nova enfiada de episódios engraçados, alguns literalmente desastrosos. Empolgou-se de tal modo que dispensou sem hesitar dois clientes potenciais para não sacrificar ou simplesmente interromper o fluxo de suas narrativas mirabolantes. Como sei que esses tipos nordestinos são capazes de tagarelar sem pausa um dia inteiro, encontrei um meio de sustar-lhe a fala torrenciosa e retomar meu passeio com Bella. No percurso da volta cruzamos novamente com ele, que repegou a conversa com ânimo inalterável. E lá me vi eu novamente cortando-lhe o verbo antes que se apropriasse da nossa manhã, quem sabe do nosso dia. Sabem os leitores de Macunaíma que essa tradição de verborréia está sintetizada no dito popular que alude ao bebedor de água de chocalho. Foi pensando nisso que logo cuidei de silenciar o chocalho de Elvis. Imagine-se os estragos ambientais que um tipo desses não causaria se tocasse guitarra elétrica.

Ah, esqueceu-me anotar que a relíquia de amor preservada pela mãe do roqueiro de Juazeiro do Norte foi o fragmento de um dos discos de Elvis Presley. Tratava-se evidentemente de um dos muitos que ela destruiu durante seus costumeiros excessos de amor. Elvis filho um dia perguntou à mãe: por que não joga isso fora? Para que guardar restos de alguém que já morreu, vestígios de um mundo sem volta? Ela prontamente retrucou ofendida alegando reter naquele fragmento imprestável a mais bela memória do marido perdido. Bem, concluo eu, cada um retém a memória de amor possível, ou merecida.

2 – Levo Bella à faixa litorânea mais antiga e central da cidade. No fundo da paisagem que descortino da orla à altura da casa onde morou Henfil, espanta-me a visão imponente da Ponte de Todos. É uma impressionante obra de engenharia erguida sobre as vastas águas do Rio Potengi. Para ser exato, no ponto onde o rio deságua no mar. Mas não a cruzamos, pois nosso intento era encontrar ainda aberta a Fortaleza dos Reis Magos. Embora tenhamos chegado antes das 17h, encontramo-la fechada, suas bordas batidas por altas ondas que por pouco não nos deram um banho imprevisto. Por isso demoramos apenas o suficiente para tirar algumas fotos.

No percurso da volta, antes de alcançarmos a Via Costeira que bordeja o hotel Belo Horizonte, estacionei na Praia dos Artistas. Bella estava muito curiosa para conhecê-la, pois foi um dos meus endereços no ano remoto de 1977, quando aqui morei ou vaguei durante cerca de um ano. A paisagem da orla está tão profundamente transformada que foi impraticável localizar a casa onde Avelino me acolheu naquele ano tão incerto de minha vida. Lembro-me de que a casa ficava a meio da colina numa área povoada por gente humilde, mas então honesta e pacata. Longe de mim presumir que já não seja uma coisa nem outra. O que duvido é que seja ainda a área de pobreza segura que conheci. Lembro-me até de que durante algumas madrugadas dormi de janelas abertas para o mar e o céu enluarado.

Um fato que me surpreendeu foi deparar a casa onde Henfil viveu com a fachada frontal e lateral basicamente inalterada. Como Bella não tem idéia de quem foi Henfil, embora conheça O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, precisei desenhar-lhe uma história compacta do Pasquim, dos anos 1970 sob a ditadura militar e das circunstâncias que propiciaram meu breve convívio com Henfil em Natal.

Estávamos já a alguns metros do hotel quando de súbito envolvemo-nos numa colisão com uma moto. À altura do Restaurante Abade, precisei fazer uma manobra perigosa para cruzar a Via Costeira e alcançar o estacionamento do hotel. Estava completando essa manobra quando senti um choque violento na porta direita. Mal me refiz do choque, temi pela segurança de Bella, que felizmente me disse não estar ferida. Depois de estacionar, subi a curta elevação que me separava da avenida e fui em socorro do motoqueiro envolvido na colisão. Como dirigia com o farol apagado, não tive como vê-lo, pois é escuro o trecho onde colidimos. Encurtando a história, tranquilizou-me verificar que nada de grave lhe acontecera. Embora a responsabilidade do acidente fosse dele, dispus-me a conduzi-lo a um hospital, no caso de precisar de atendimento médico. Disse-me haver sofrido uma pancada à altura do abdômen, que massageou durante alguns minutos. Refeito enfim, montou novamente a moto, com algumas avarias frontais, e foi embora. Voltando ao carro, constatei que o impacto da colisão desfigurou-lhe a faixa lateral. Que fazer? Embora dirija com tanto cuidado, acabei vítima da imprudência alheia.

E assim me vou e assim nos vamos de volta a Recife. Deixo Natal, depois de uma visita de quatro dias, sem reencontrar sequer um dos poucos amigos que aqui tenho. Pedro Vicente está viajando. Há muito perdi o rastro de Hermano Ferreira Lima, com quem trabalhei durante meses no projeto local sobre a história da agricultura no Brasil, no ano remoto de 1977, coordenado nacionalmente por Ieda Maria Linhares, e regionalmente por Guillermo Palácios. Como decidimos incluir no projeto um trabalho de treinamento intelectual dos pesquisadores e estagiários contratados, dirigi então uma série de seminários baseados na leitura de obras de Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Celso Furtado. Tempo e memória, em mim conciliados, são parte da bagagem que transporto na viagem de volta a Recife.
Natal, 23 a 25 de junho de 2009.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Máximas e Mínimas VI


Maturidade é a calculada medida entre o galho, de onde tememos cair, e o chão, onde quiséramos solidamente assentar os pés. Como a medida aplicada é sempre muito inexata, não importando o rigor no cálculo suposto, o homem maduro prudentemente desce da árvore, deita sobre a relva e se perde na contemplação do galho que lá do alto o atrai, tangido pelos ventos trepidantes da vida. Maturidade é assim essa sutil carência medida entre a relva e o galho. Noutras palavras, é tudo que sobra do que não poupamos. Logo, não será melhor perdê-la na queda entre o galho e a relva, no voo errante movido ao impulso dos ventos trepidantes da vida? Sobe e salta, desafia o aventureiro indiferente à flor cinza da razão maturada; desce e contempla, retruca esta no metro do olhar medindo toda a vertigem da queda.

No país da cordialidade, não falta quem confunda grosseria com franqueza, assim como não falta quem confunda hipocrisia com civilidade.

Na medida em que é condição de convívio civilizado, a hipocrisia é o preço que a tolerância paga ao consenso.

Se fosse uma casa de tolerância, o Brasil seria um modelo de civilização.

Num país onde a delinquência veste a máscara da espontaneidade, o crime banal é tolerado e até louvado como jeitinho.

Fracassados acadêmicos, como eu, sabem que o currículo Lattes, mas não morde.

Desejar a mulher dos amigos é uma tentação que sempre mascaramos, sobretudo quando a realizamos.

O Código Penal brasileiro depena o criminoso pobre enquanto tem pena do rico.

A realidade é de direita. É por isso que quando a esquerda se apossa do poder logo se confunde com a direita. É também por isso que nunca confio em esquerda vencedora. A única esquerda confiável é a vencida ou fracassada.

Vou fundar a metaesquerda. Seu único objetivo será o de civilizar a política, não o de conquistar o poder.

Na Vara da Família: O amor começa com meu bem e acaba com meus bens.

Na dúvida, duvido.

Numa de suas boutades famosas, Paulo Francis disse que foi torturado pela ditadura, pois o carcereiro do quartel onde ficou preso ouvia Vanderléa no radinho de pilha. Sorte dele. Hoje sou torturado todos os dias, sem sair de casa e sem ditadura imposta pelo poder político, por coisa inclassificável. Perto dela, dessa coisa inclassificável, Vanderléa seria um luxo, canto de sereia nos meus ouvidos.

domingo, 11 de novembro de 2012

Nós e os índios


César Melo (professor de literatura luso-brasileira, Universidade de Chicago)

1.
Em nenhum lugar do Brasil, a invisibilidade do índio talvez seja tão visível quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. É ali, em frente ao Parque Trianon, dando de cara com o MASP, no meio de pessoas apressadas falando ao celular, buzinas de carros, barulho de motor e poluições de vários tipos, que fica localizada a estátua de Bartolomeu Bueno Dias, também conhecido como Diabo Velho (Anhanguera). Bartolomeu foi um bandeirante, conhecido matador de índio e saqueador de tribo. No entanto, se formos ao Houaiss e procurarmos o verbete “bandeirante”, nenhum desses significados estará lá – o que diz muito também de nosso silêncio e indiferença em relações aos índios. No dicionário, você descobrirá que “bandeirante” é sinônimo de “paulista”, além de significar “aquele que abre caminho; desbravador; precursor; pioneiro”. Os bandeirantes seriam uma espécie de “vanguarda” da colonização, o que casa bem com um lugar como São Paulo, cujos políticos ainda hoje se utilizam da infeliz metáfora da “locomotiva do Brasil” para definir o estado.
Vanguarda, desbravamento, locomotiva, non ducor duco (que está na bandeira da cidade de São Paulo e quer dizer “não sou conduzido, conduzo”) são signos que fazem parte de um mesmo campo discursivo: o do progresso arrojado. Se houve algum progresso no Brasil, esse foi o progresso da colonização, ou melhor, a progressão bandeirante lenta e contínua para o oeste, escravizando indígenas, apropriando-se dos recursos de sua terra, aniquilando sua cultura. Avançamos na terra e na cultura dos outros. Progresso, progressão, invasão. E continuamos fazendo isso: seja com os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; seja com os desalojados das construções da Copa do Mundo; seja com os índios da bacia Xingu que serão desterrados pela Usina de Belo Monte. As elites brasileiras continuam progredindo em cima de terras, pessoas e direitos.
Não nos enganemos. Nosso imaginário desenvolvimentista – essa necessidade e desejo de crescer e expandir em moto-contínuo – está calcado no espírito do bandeirantismo, que nada mais é a lógica do colonizador. Bartolomeu Bueno da Silva nos representa mais do que gostaríamos.
2.
Como aprendemos na escola secundária, os romances Iracema (1865) e O Guarani (1857) de José de Alencar são considerados ficções fundacionais da nação. Embora sejam textos fortemente ideológicos – uma vez que deliberadamente escamoteiam a violência genocida do encontro colonial para narrar tal encontro numa moldura conciliatória –, carregam em si um núcleo de verdade: o desejo do letrado brasileiro – o narrador dessa história dos vencedores – de moer qualquer traço de alteridade cultural no moinho da ocidentalização. Nas palavras certeiras de Alfredo Bosi, o indianismo alencarino não passava de um mito sacrificial dos índios, no qual estes só atingiriam a nobreza quando fossem capazes de se auto-imolar. Os índios Peri, de O Guarani, e Iracema, personagem central do romance homônimo, se tornam heróis na medida em que se anulam e se sacrificam em gesto de servidão aos colonizadores portugueses. Peri se converte ao cristianismo para se unir à portuguesa Cecília e, com ela, formar o povo brasileiro. Iracema trai o seu povo tabajara para ficar com o lusitano Martim. Do fruto desse encontro, nasce Moacir, o primeiro brasileiro. Depois de cumprida sua missão no processo civilizatório brasileiro, Iracema morre. O indianismo alencarino foi assim um elogio à submissão do indígena à sabedoria europeia. Bom índio é aquele que se ocidentaliza. Que muda de lado. Que nega seu povo. Que está disposto a aniquilar a sua cultura, e até a vida, para contribuir com a nação.
Um pouco mais de cem anos depois, João Guimarães Rosa, no conto “Meu tio o iauaretê”, se propõe a questionar essa relação colonial, evocando uma outra lógica. Se os mestiços “alencarinos” são cristianizados e ocidentalizados, o que aconteceria se o mestiço escolhesse o outro lado da mistura que o compõe?
“Meu tio o iauaretê” conta a história de Tonho Tigreiro, caçador de onças, contratado por um fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para desonçar um certo território. Em outras palavras, o caçador é chamado para livrar o terreno das onças, permitindo que aquele pedaço de terra possa ganhar uma utilidade econômica. Desonçar a terra faz parte de uma operação bandeirante (sem trocadilhos). No entanto, de tanto viver isolado dos homens, o caçador começa a ter mais simpatia pelas onças do que por gente, e passa a defendê-las. O caçador escolhe claramente um lado: o das onças, da natureza, dos animais, enfim, o lado da terra onde vive. É o mesmo “lado” que os índios defendem no seu esforço de resistência aos (neo)bandeirantes que invadem sua terra. Daí a conclusão da leitura que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro faz do conto rosiano:
Não é um texto sobre o devir-animal, é um texto sobre o devir-índio. Ele descreve como é que um mestiço revira índio, e como é que todo mestiço, quando vira índio – isto é, quando se desmestiça– o branco mata. Essa é que é a moral da história. Muito cuidado quando você inverter a marcha inexorável do progresso que vai do índio ao branco passando pelo mestiço. Quando você procura voltar de mestiço para índio como faz o onceiro do conto, você termina morto por uma bala disparada por um revólver de branco.
Tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração, é eliminado. Brasileiro gosta de mistura, desde que ninguém ameace a nossa cosmovisão e epistemologia ocidentais.
3.
Em Tristes trópicos, Claude Levi-Strauss lembra de uma conversa que teve com o embaixador do Brasil na França, Luís de Sousa Dantas, ocorrida em 1934, na qual o diplomata brasileiro havia comunicado a Levi-Strauss que não existiam mais índios no Brasil. Haviam sido todos eles dizimados pelos portugueses, lamentava Sousa Dantas. E assim concluía: o Brasil seria interessante para um sociólogo, mas não para um antropólogo, pois Levi-Strauss não encontraria em nosso país um índio sequer. Nós não sabemos se Sousa Dantas nega a existência dos índios por ignorância, ou simplesmente para ocultar um aspecto do país que o diplomata brasileiro certamente considerava “arcaico”, uma vez que a existência de “primitivos” não bendizia os padrões civilizatórios da nação diante de um estudioso europeu.
Mas quem de nós nunca agiu como Sousa Dantas? Qual foi o brasileiro que, no exterior, nunca se indignou com uma pergunta de um gringo mal-informado que sugeria que nós tivéssemos hábitos próximos ao dos índios? Eis o motivo de nossa indignação: como podem nos confundir com tupiniquins (palavra usada pejorativamente por nós brasileiros para nos definirmos como povo atrasado), se nós somos industrializados, urbanizados, temos carros, trânsito infernal, sofremos com poluição e tomamos Prozac para resolver nossos problemas emocionais? Em outras palavras, como podem nos acusar de “primitivos” se desfrutamos de todas estas maravilhas da civilização moderna?
Se por um lado, hoje, os brasileiros sabemos da existência empírica dos índios, por outro lado, negamos sua existência como nossos contemporâneos, e essa é a raíz da indignação diante de uma possível confusão entre nós, brasileiros, e um povo que, na cabeça de tantos, ainda não evoluiu. Ora, de todos os esforços pedagógicos para descolonizar o imaginário brasileiro, talvez esse seja o mais importante: de mostrar como nós precisamos urgentemente do diálogo com os índios. Devemos abandonar a ótica paternalista (do Estado brasileiro) que infantiliza o índio, enxergando-o como artefato do antiquário nacional, que para alguns deve ser incorporado à nação, enquanto para outros deve ser preservado tal como está. Esse é um falso dilema, pois reifica o índio. Devemos, sim, estabelecer com os índios uma relação de interlocução, com a qual temos muito que aprender.
Nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade. Emporcalhamos nossas cidades; poluímos nosso mar, nossos rios, nosso ar; destruímos nossa natureza; criamos necessidades que nunca serão preenchidas a contento, gerando inúmeras frustrações, tamanha é a roda-viva do consumismo que determina nosso estilo de vida. Segundo Celso Furtado (que hoje, graças a Dilma Rousseff, dá nome a um petroleiro), no seu O mito do desenvolvimento econômico, “[o] custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.” Quanto mais universalizamos nosso consumismo predador, mais rápido destruímos nosso ambiente e planeta. O que teríamos a aprender, afinal, com os índios?
O que dizer de um povo que vive há milênios em co-adaptação com o ecossistema amazônico, tirando da floresta o sustento da vida, em vez de tirar a floresta de sua vida (uso aqui o jogo de palavras do próprio texto de Viveiros de Castro)? Os índios são radicalmente cosmopolitas. A palavra “cosmopolita” quer dizer “cidadão do mundo”. Cosmos, na filosofia grega significa “universo organizado de maneira regular e integrada”. Se permanecermos fiéis à etimologia da palavra, cosmopolita seria então o cidadão de um universo harmonioso (cosmo é o antônimo de caos). Por anos, filósofos antigos e modernos têm pensado o termo “cosmopolitismo” como uma técnica de convivência entre povos. O cosmopolitismo radical dos índios nada mais é que uma técnica de convivência e co-adaptação com o cosmo – o universo, o ambiente, o planeta. A destruição do planeta hoje parece mais plausível em decorrência da falta do cosmopolitismo radical dos índios do que do cosmopolitismo dos filósofos. O que teríamos a aprender com os índios? Algo muito simples e complexo: aprender a habitar o planeta.
4.
Pensar o índio no Brasil é particularmente difícil, pois as representações que temos do índio o colocam além da alteridade. O “outro” da cultura brasileira – narrada, claro, da posição do letrado urbano euro-brasileiro – é, com o perdão da redundância, outro. Ou melhor, são outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.
Investigando sobre os motivos que levaram a esquerda brasileira a negligenciar o índio, Pádua Fernandes lembra que a esquerda revolucionária dos anos 70 – de onde saiu boa parte do Partido dos Trabalhadores – discutia a relação entre cidade e campo, mas era incapaz de pensar a floresta. Em parte, isso se deve à importação direta das categorias euromarxistas (e, claro, graças ao abismo das Tordesilhas, que separa o Brasil da América Hispânica; a esquerda brasileira nunca deu muita bola para o indo-socialismo do peruano José Carlos Mariátegui). No entanto, mais do que ser um problema de cegueira por parte de segmentos da esquerda, a invisibilidade do índio talvez remeta à maneira como pensamos o “povo” brasileiro, dentro do paradigma nacional-popular.
De acordo com esse paradigma, que estruturou a imaginação brasileira durante o século 20, o povo é o sertanejo de Os sertões, “rocha da nacionalidade”; o negro de Casa-grande & senzala e da vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; os retirantes desesperados Manuel e Rosa de Deus e o diabo na terra do sol; o ingênuo Fabiano de Vidas Secas; a comovente Macabéa de A hora da estrela, além de tantos outros personagens e temas das nossas produções culturais. A consciência social do letrado urbano brasileiro foi construída a partir da ideia de que o povo brasileiro – na sua imensa maioria pobre, desassistido, negromestiço – necessita ser integrado à modernidade, à cidadania plena, a um sistema educacional justo e ao conforto material.
A eleição do presidente Lula em 2002 talvez tenha sido o evento mais importante de nossa democracia exatamente porque mexeu profundamente com nossa imaginação nacional-popular: pela primeira vez, o povo assumia o poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estavam todos representados na figura carismática de Lula. E não se pode negar que o governo Lula muito melhorou a vida do “povo brasileiro”, garantindo acesso a bens e direitos antes impensáveis. O progresso finalmente havia chegado ao andar de baixo, que agora podia comprar televisão, andar de avião e até passear de cruzeiro. Nunca antes na história desse país, o povo esteve mais integrado aos padrões de consumo do mundo civilizado.
O mesmo governo que tanto fez para tanta gente (e atuou como uma força descolonizadora no tocante às ações afirmativas e na introdução de história africana no ensino médio), é aquele que age como um poder colonizador na Amazônia, e aliado objetivo dos fazendeiros do agronegócio no Mato Grosso do Sul. Desse modo, o Estado e seus sócios ocupam a terra com prerrogativa desenvolvimentista, como se fosse um território vazio, pronto para o usufruto dos agentes econômicos. Nada muito diferente dos bandeirantes. O que antes vinha coberto com retórica de missão civilizatória cristã, agora é celebrado como a chegada do progresso. Nos dois tipos de bandeirantismo, a destruição vem justificada por um discurso de salvação. O índio que habita nessas terras é tratado simplesmente como obstáculo que deve ser removido em nome do progresso da nação (progresso no caso representa: carne de gado no Mato Grosso e energia elétrica para indústrias do alumínio na Amazônia).
O índio apresenta um desafio para o pensamento da esquerda no Brasil. Um desafio que ainda não foi pensado como desafio, pois a esquerda ainda enxerga a “questão indígena” como um problema que deve ser resolvido. O desafio, ao contrário do problema, não exige uma resolução, mas uma autorreflexão. Os índios nos fazem repensar nosso modo de vida, e até mesmo o conceito de nação. Como salientei, o índio não se insere na matriz nacional-popular que mobiliza tanto a nossa imaginação. E não se insere nela pois, ao contrário do retirante, do favelado, do pobre, do negro, o índio não está buscando integração à modernidade (a grande promessa do lulismo às massas). Os índios parecem querer reconhecimento do seu modo de vida (como se pode ver nessa entrevista de Davi Kopenawa). E, para viver do jeito que sabem viver, é necessário garantir as condições mínimas de possibilidade para sua vida: terra e rios que não sejam dizimados pela usina de Belo Monte, nem pelo garimpo; segurança e tranquilidade para não serem acossados pelos capangas do agronegócio, como no Mato Grosso do Sul. Essas são as grandes lutas hoje.
A luta pelos direitos indígenas vai muito além de uma quitação da nossa dívida histórica. Mais do que um acerto de contas com nosso passado, a garantia dos direitos constitucionais dos índios é imprescindível para o nosso futuro. Precisamos cada dia mais da sabedoria desses cosmopolitas radicais, se quisermos repensar e refundar os pressupostos de nossa existência planetária.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Um olhar sobre a paisagem


Ah, quantos de nós
Que já vivemos o mundo
E lhe sofremos o peso
Não gostaríamos de apagar as luzes do templo
E em seguida queimar todas as imagens?

Quantos de nós
Delirantemente tragados pela voragem do amor
Afundados na corrente
Cativos da miragem na margem remota
Não fomos devorados pelas sereias?

Quantos de nós
Serenadas as águas
E abrandado o fremir dos anos
Não repousamos agora à sombra das margens vorazes
Timbrando resignação e ceticismo
Enquanto a vida avança em ondas
Ameaçadora e insensata
Contra a clepsidra e a memória?

Um rugido se eleva no centro da paisagem
Enquanto o fogo crepita
Como um vulcão de carne e força cega.
Os jovens se lançam na fogueira
Brandindo a chama de armas mortíferas.
Na sombra remota, no cerne da ilha sitiada,
O homem fura os olhos desencantados
E naufraga no ventre das águas indiferentes.

Recife, 30 de outubro de 1999.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Pai e mãe


O pai que nunca tiveste
E que ainda procuras
No avesso de ti se veste
Vagando em noites escuras.

Um dia em ti fundirás
A luz na treva do dia
E enfim a paz fruirás
Na ilha azul da poesia.

A mãe que um dia perdeste
De fato não te faltou
Pois nunca em ti a tiveste
Nunca no nada o amor

Traiu o que nunca foi
Velou na vida o que vejo.
A dor da falta ainda dói
Mas é um outro. É o desejo

Que te supunhas faltar
Como o amor que te trai.
Eis que a medida de amar
É ser tua mãe, ser teu pai.
Recife, 30 de outubro de 2012.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Drummond



Releio Farewell, o último livro de poemas de Drummond. Estou agora vivamente impressionado com o fato de não haver antes concedido a este belo e sofrido livro a atenção merecida. Estava ontem remexendo as prateleiras à procura de uns livros e de repente o vi diante de mim. Abri-o ao acaso e logo o primeiro poema me tocou profundamente. Então deixei-o à cabeceira de minha cama, pois queria ler alguns outros antes de dormir. Foi o que de fato fiz. Novamente senti-me tomado por sensações intensas, como se a voz de Drummond, sussurrando-me segredos provindos do fundo do tempo, misteriosamente ressoasse na madrugada fechada sobre o meu quarto. Lendo os poemas, em muitos, com certeza mais que em qualquer dos livros canônicos de Drummond, retive a dor estoica com que se debruçou sobre a velhice tardia, no fundo de tudo recolhendo a dor do farewell definitivo. Um passo além e me vi retraçando a linha embaçada do niilismo insinuando-se em entrelinhas dolorosas. Por fim me vi a mim próprio lentamente deslizando para a borda do abismo que tragou meu amado Drummond, assim como um dia também me tragará. Foi quando o poema abaixo quase que se fez em mim, pois pouco, bem pouco o trabalhei depois de me sentar à mesa para rabiscar os versos, alterar-lhe duas rimas e acrescentar-lhe a estrofe de fecho.
Drummond
Drummond Drummond
Tão longe vibrava o som
Que o ouvido se confundia
Entre teu nada e teu tom.

Drummond Drummond
Tão perto retinha o som
Que o eco se refazia
E o mundo enfim era bom.

Drummond Drummond
Que trilha percorre o som
Quando o que era poesia
No nada já dissolve?

E nada aqui se resolve
Nada no antes, no além
Pois tudo que o ouvido ouve
Não é Drummond nem ninguém.

Recife, 17 de agosto de 2010.