sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Sonhando na Praça


Fosse outra a festa, não essa
Que a gente bebe e até dança
Gesto ideal, não a pressa
Ferindo nossa esperança.

Fosse outro o sonho, outro arcano
Vestindo nossa paisagem
Outro o Ano Novo, outro o engano
Iluminando a viagem.

Fosse outro o som, um piano
Tecendo o acorde, harmonia
Enlace de tantos anos
Na luz do mais puro dia.

Fosse essa festa a razão
De um outro modo de ser
Outro o ideal de união
Outra a expressão de prazer.

O que por fim restaria
Imaginar e escrever?
A falta é o gen da poesia
Razão de ser e viver.

A falta figura a praça
Num gesto de pura dança
E a mão que toca e abraça
Vê na miragem que passa
O sonho que nunca alcança.

Fernando da Mota Lima.
Recife, 31 de dezembro de 2002.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

No espelho da verdade


Para Zé Luiz, lendo Machado de Assis.

A cada dia que passa
Me desconforta o que vejo
Entre o que sou e o espelho
Que impiedoso me espreita.

Mais que meu duplo, reflexo
Vejo a polícia, o juiz
Que desvelando o que escondo
Diz o que o mundo não diz
O que a voz silencia:
Eis o meu eu que o espelho
A sós comigo alumia.

Portanto, vida, o engano
Que em outros se pronuncia
Já não me causa mais dano
Não mais ilude meu dia.

Quero ser só o que sou
Ser para mim eu inteiro.
Ainda que o mundo inteiro
Não me tolere a verdade
Minha medida de vida
Comigo só ajustada
É ser comigo inteiro
Embora o mundo inteiro
Estilhaçando o espelho
Suprima a linha traçada
Entre meu ser e meu nada.

Recife, 15 de dezembro de 2012.


domingo, 16 de dezembro de 2012

Nascer


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.
Murilo Mendes

Nascer? Não me pude ainda
Pois nascer me tarda
Me demanda tanto
Nascer é uma vida.

Nascer é uma vida
Que logo se extingue
Sem que se complete.

Sou só a passagem
Em perpétua busca de mim
Que nem me sei ainda.

E entanto prossigo me fazendo
Aprendendo a nascer
A me constelar na forma Fernando
Ser singular.

Haverá tempo
Tempo de ser
Ser um dia enfim
Esse que procuro?
Nascer leva uma vida
E quase sempre morremos antes.

Recife, 12 de dezembro de 2012.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Tarde


Não é a idade que me pesa.
É essa vida sem clareiras
para a vida.
É a bruma do ser
pairando na tarde sem luz
e sem amor.

Não é a memória que me pesa
depois de anos lavada
esquadrinhada e devassada
pelo exame tenaz e recorrente
da razão eriçada pela vontade
e o medo de me tornar pior do que me fizeram.

Mas é também a memória que me pesa
quando no fim de tudo
na nitidez impiedosa da tarde
no duro balanço de tudo
sei que não sou o que quis
sequer o que poderia.
E agora é tarde
e tudo é irreversível.

Recife, 13 de agosto de 2012.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Luiza Cage


Para Dondim, que gosta de Luiza impressa.

Luiza Cage era louca
Louca de beira de estrada.
Traía a filha, o marido
Ao próprio amante enganava.

Na cama, quando gozava
Em desvario rasgava
As vestes sedas cetins.
Ia ao extremo dos fins
E quando dele voltava
Luiza Cage chorava.

Chorava como quem ria
Como quem folha vadia
Sopra no ar calmaria.
E por aí ela ia
Doida no claro do dia
Doida na treva da noite.

Luiza não tinha hora
Nem pra sair nem chegar.
Se entanto dela fugia
Cansado de esperar
A louca me perseguia
dentro da noite deserta
Aonde eu fosse parar.

E se por fim me escondia
Exausto de aturar
Sua loucura sem hora
De nos meus calos grudar
Gravava queixas chorosas
Na secretária-eletrônica
Pulverizando-me as rosas
Com sua verve histriônica.

Luiza um dia sumiu
E com alívio, confesso
Voltei à paz dos lençóis
Que antes incendiava.
Voltei aos livros, avesso
Do que ela louca queimava.
Antes eu só do que nós
Nas noites atormentadas.

Um dia revi Luiza
Louca na beira da estrada
Como se a mesma ainda fosse.
Despi-a linda, tão linda
Nadei nos mares de Olinda
E outra Luiza inventei.

Fez tantas plásticas a louca
Que lhe moldaram o corpo
Com linhas estonteantes.
Mas o juízo, a loucura
Que a cirurgia não cura
Era a loucura de antes.

Recife, 1 de dezembro de 2012.