quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Amor Narciso


O amor correu para a fonte
E se inclinou sobre as águas
Pra derramar na corrente
Sua torrente de mágoas.

Mas ao mirar sua imagem
Na água e luz refletida
Perdeu-se em sua miragem
Por si morreu de amores
Sem nunca amar na vida.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Aforismos e desaforos VII


O único passado feliz é o que nunca existiu.
Por que atormentar-se com o futuro, se nem a Deus ele pertence? Como ser proprietário do que não é?
Quando o futuro é, é já presente. Logo, o futuro nunca é.
O Brasil é ruim, mas o Nordeste é muito pior.
O Brasil não existe nem deveria ser inventado.
O povo que elege Lula, vulgo Mula Nine Fingers, o presidente mais popular da nossa história política, merece o país que somos.
Nunca subestimo a classe dirigente brasileira: ela é sempre capaz de ir além de minhas piores previsões.
A justiça é cega, mas no Brasil ela sabe perfeitamente o que quer ver.
Há mulher capaz de qualquer tipo de coisa para ter um homem, inclusive o homem de qualquer tipo.
Como levar a sério um país que tem 32 partidos políticos? Isso não é pluralismo democrático, mas circo ideológico.
Sempre que se pronuncia sobre a economia brasileira, o ministro Guido Mantega confunde manteiga com margarina. Vai ver que a culpa é do sobrenome.
O suicida malogrado não quer morrer, quer apenas chamar a atenção de alguém que o ajude a suportar a dor de viver.
Só há uma solução para quem quer viver sem sofrer: o suicídio.
Para Manuel Bandeira, materialista místico, o que estraga o amor é a alma. E coerentemente nos aconselha: deixe que o seu corpo se entenda com outro corpo. Quando no entanto o corpo é já velho, não será razoável, senão necessário, amar além do corpo, ainda que aquém da alma? As almas são incomunicáveis, diz ainda o poeta. Mas os corpos se fartam corroídos pelo tempo e a rotina. Esta é uma lei fatal da matéria que a cultura do presente, desvairada pelo hedonismo, não quer admitir nem na cama dos amantes já velhos.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos


Memórias de um leitor V: E. Veríssimo, J. Amado e G. Ramos

Do ponto de vista cronológico, Érico Veríssimo foi o primeiro autor brasileiro que marcou de forma mais profunda minha formação literária. Li quase toda a sua obra publicada numa coleção de capa-dura da Editora Globo, onde exerceu papel inestimável na tradução e divulgação da literatura inglesa entre nós. Olhai os lírios do campo, provavelmente ainda seu maior sucesso de público, transformou significativamente minha experiência e sensibilidade. Anos mais tarde incorri no erro de o reler, já evidentemente bem mais amadurecido como leitor. Não preciso dizer o quanto me decepcionei. O livro encolheu muito, pareceu-me empobrecido por uma concepção de humanismo sentimental que o próprio autor anos mais tarde também reconheceu. Mas como negar a importância decisiva que exerceu sobre minha vida e minha imaginação quando o li ainda jovem inexperiente, impregnado de fantasias humanistas e sobretudo carente de viver uma vida mais plena de amor e generosidade?

A obra de Érico Veríssimo me deu isso e muito mais. Através dela, dos seus personagens prematuramente fracassados, inábeis para viver, tateando como eu uma direção mais consistente dentro da vida, consegui esboçar um sentido passível de tornar minha juventude confusa mais tolerável. Na obra de Érico Veríssimo, assim como na de Thomas Hardy, as personagens mais impressivas e determinadas, portadoras de extraordinária energia moral, são quase todas femininas. Olívia e Fernanda, notadamente, tornaram-se modelos sonhados e sofridamente desejados na minha imaginação. No tipo arredio de Vasco, com sua introversão de “bicho do mato”, identifiquei com prazer minha própria e confusa introversão. Sentia-me como se encontrasse no espelho da realidade ficcional meu outro que não somente povoava a solidão da minha adolescência intransparente, mas também me reacomodava nas linhas turvas de minhas irresoluções existenciais. Supria ainda por via vicária, voltando às personagens femininas, como é freqüente na nossa experiência imaginativa, a carência de mulheres na minha infância e adolescência. Privado de mãe, de irmãs e outros modelos femininos, sofria em mim a aridez de uma juventude sem amor, o tipo de amor somente concebível na nossa relação com a mulher: o amor da mãe, da avó, da irmã, da namorada... Já nem direi da amiga, pois na atmosfera ainda asperamente patriarcal em que me formei os gêneros somente se associavam amorosamente ou por via parental ou pela via crua da iniciação sexual nos quartos das empregadas domésticas e nos prostíbulos, como foi o meu caso.

Érico Veríssimo acrescentou à literatura brasileira, num momento de grande renovação e difusão da prosa ficcional, uma vertente do romance de ambientação urbana que me marcou bem mais do que a corrente hegemônica da sua geração: o romance regionalista nordestino. Do ponto de vista ideológico, sua obra abre ou alarga um veio do liberalismo humanista com o qual ainda hoje retenho fortes afinidades. Do ponto de vista da técnica, da renovação da forma narrativa, ele incorporou à nossa literatura contribuições significativas do romance inglês que tanto difundiu no Brasil trabalhando como consultor e tradutor da Editora Globo. A técnica do contraponto narrativo, em particular, emprestada do romance Point Counterpoint, de Aldous Huxley, foi por ele admiravelmente empregada na composição de Caminhos Cruzados, um dos seus romances ainda merecedores de releitura.

Nesse momento, o romancista nordestino que mais li e me impressionou foi Jorge Amado. Se minhas leituras e meu indeciso gosto literário dependessem mais diretamente das minhas origens sociais e geográficas, o mais plausível seria tender para a leitura de José Lins do Rego e Graciliano Ramos. O fato, porém, é que nas linhas erráticas do meu itinerário de leitor o acaso foi quase sempre o fator determinante. Cheguei a Jorge Amado, suponho, de algum modo induzido por minha politização tardia, pelo menos para os padrões da minha geração, uma geração eminente e precocemente política. Minha politização foi praticamente sufocada na raiz porque, em termos geracionais relativos, cheguei a ela, a política, um pouco tarde. Comecei a me politizar em fins de 1968, portanto às portas da decretação do AI-5, que bloqueou todas as vias de militância política institucionalizada. Além da sua popularidade indisputável, nem Érico Veríssimo competia com ele em termos de público, Jorge Amado consagrou-se a uma temática literária cuja recepção foi ainda mais favorecida pelo clima de repressão política que passou a vigorar depois do AI-5. Refiro-me mais precisamente à fração da sua obra anterior a Gabriela Cravo e Canela (1958), isto é, à fase da sua militância comunista de franca adesão ao stalinismo e, no plano literário, de idealização romântica e sentimental do herói popular que, curiosamente, nem nessa fase é o proletário. Esse herói idealizado – como Guma, de Mar Morto, e Jubiabá, do romance homônimo – nutriu a imaginação romântica dos jovens de esquerda com quem convivia na universidade.

A necessidade de sobrevivência, mais do que a opção política de trabalhar em contato direto com o povo oprimido, levou-me a trabalhar no Departamento de Pessoal de uma fábrica muito conhecida no Recife. Essa experiência acabou sendo um meio extraordinário e imprevisível de conscientização política. Em contato diário com o operário em todas as esferas da minha atividade profissional (da admissão e demissão de empregados, processos que passavam obrigatoriamente pelo meu birô, até a linha de montagem e o lazer à base de futebol e cachaça), lavei meus olhos e minha consciência ideológica de todas as mitificações engendradas pela militância de classe média baseada em abstrações literárias e literatura panfletária. Trabalhando na fábrica durante dois anos no auge dos anos de chumbo da ditadura militar, conheci o operário real e assim despojei-me de todas as idealizações românticas e populistas, muitas delas assimiladas através da literatura de Jorge Amado publicada durante sua militância stalinista. Foi também nessa época que li Graciliano Ramos. Desde então passei a reconhecer sua supremacia absoluta entre os escritores dessa vertente literária e sinceramente me desinteressei da obra de Jorge Amado.

Como todo grande criador de literatura, Graciliano Ramos não subordina sua obra aos ditames de nenhuma ideologia, ainda quando fora da literatura se declare militante comunista. Sabemos que aderiu ao comunismo e jamais renegou esta ideologia. Pelo contrário, na sua vida tardia empreendeu uma viagem à União Soviética. Dessa experiência resultou seu livro mais vulnerável, relato das suas impressões de viagem publicado sob o título seco e aparentemente neutro de Viagem. Ele, cuja obra é de um rigor realista intransigente, rigor que se estende da obra ficcional para a autobiográfica, ironicamente esboça nas páginas de Viagem uma representação do mundo comunista que de fato não passava de uma completa liquidação da utopia concebida por Marx e Engels.

Sua percepção da realidade soviética foi por certo induzida pelas fontes oficiais que o guiaram através do pesadelo stalinista revelando-lhe tão-só o que convinha revelar. De qualquer modo, ainda hoje me espanta que um espírito tão negativo quanto o de Graciliano Ramos tenha sido traído tão completamente pela máquina da propaganda e as tramas insidiosas da ideologia. Talvez seu engano seja apenas uma reiteração já banalizada da nossa incapacidade de suportar a realidade isentos do véu transfigurador da fantasia, que no caso corresponde à natureza deformadora da ideologia política. Confesso não haver retido nenhuma memória significativa desta obra para aventurar-me a comentá-la. Lembro apenas o que todo leitor de Graciliano Ramos sabe: ele pinta um retrato demasiado favorável da União Soviética e por isso avesso ao escrutínio impiedoso do seu realismo. Daí o espanto das linhas precedentes e a ênfase que confiro ao engano em que incorreu o realista impenitente. O que importa é sublinhar aqui a forma desse realismo que no registro especificamente estético lhe assegura a supremacia acima mencionada nos quadros da literatura de forte inspiração social e política dos anos 1930 e 1940.

Contrariamente a Jorge Amado, Graciliano jamais incorre na idealização dos seus miseráveis e oprimidos. Fiel à sua aguda percepção da realidade, expressa em prosa seca e intransigente, ele a reinventa sem deformá-la acrescentando-lhe as tintas idealizadoras e românticas da ideologia, como é o caso patente de Jorge Amado. O trabalhador rural, o flagelado e outros tipos humanos que repontam da obra de Graciliano são profundamente reveladores da consistência ética desse grande romancista que se recusa a dissolver sua força criadora povoando seu mundo árido e atormentado com heróis populares positivos cuja função ideológica consistiria em reduzir a literatura à realização de uma causa ou convicção política professada pelo autor. Fiel a seus ideais estéticos, sempre prevalecentes à ideologia que também não se isenta de revelar, Graciliano dá vida a tipos humanos cuja miséria social os reduz às formas elementares da existência. Seres esmagados pelo império da necessidade, Fabiano, Sinha Vitória, Casimiro e outros personagens da sua obra são impermeáveis ao “estalo mágico” da verdade revolucionária que lemos, por exemplo, em várias obras de Jorge Amado publicadas durante seus anos de dócil militância stalinista, quando textualmente reduziu sua literatura a um mero documento social, instrumento de expressão a serviço de uma causa ideológica.

Embora São Bernardo seja a grande realização literária, de Graciliano Ramos, talvez Vidas secas seja a obra que melhor traduza em termos formais a coerência entre fundo e forma, entre a expressão temática da realidade social do sertão nordestino e a linguagem áspera e precisa reveladora do estado de miséria primitiva em que vivem seres como Fabiano e Sinha Vitória. Em Graciliano Ramos, a literatura é um testemunho intransigente de integridade ética diante da ideologia e dos fatos da realidade, que é decantada pelos processos formais de natureza realista não para servir à representação idealizada de uma ideologia particular, mas para representar de forma radical a realidade apreendida e esteticamente formalizada por todo grande escritor realista. Por isso sua obra constitui uma veemente recusa da mitificação da pobreza, do herói popular revestido de virtudes que não passam de projeção idealizada do autor, não por acaso um membro de camadas sociais que vivem da espoliação dos fabianos da seca ou dos zé ninguém dos canaviais, e por isso nunca provaram da poeira da miséria, do nada ou quase nada que é sobreviver equilibrado sobre a linha tênue da necessidade.

O leitor carente de mudar o mundo, ou dele escapar através das muitas vias de fuga imaginária propiciadas pela literatura e a arte, saía da leitura de romances como Jubiabá e Mar morto transformado pela idealização da pobreza e dos personagens populares que nela encontram alimento revolucionário para abolir a servidão de classe, fundar a utopia passível de reconciliar nossa humanidade dividida e cruelmente regida pela dominação imposta pelos poderosos (evito a expressão marxista mais específica, dominação burguesa, porque o conjunto da obra de Jorge Amado pouco nos revela acerca da burguesia e do seu correspondente antagônico, o proletariado) e portanto transpor o céu ou o paraíso das religiões para o reino da imanência. O leitor da obra de Graciliano Ramos, contrariamente, sai mais esclarecido sobre a necessidade que governa seus personagens, a opressão de classe e outros ingredientes fundamentais que regem o mundo dividido e cruel onde habitamos e sobretudo sofremos. Parece-me enganoso, portanto, ler esse mundo inventado pela força ficcional de Graciliano Ramos como um mundo destinado à redenção ou ao ideal de uma humanidade reconciliada fundado numa ideologia.

Certa vez Drummond assinalou metaforicamente a ambiguidade peculiar da literatura observando que ela é uma casa com duas portas: uma conduz o leitor atormentado pela realidade em direção a uma linha de fuga, um meio de escape dessa realidade que é incapaz de suportar ou mudar; a outra, inversamente, transporta o leitor de volta à realidade franqueando-lhe uma percepção mais aguda do mundo e do que ele é dentro do mundo. Refaço a metáfora com termos muito livres e por certo menos precisos e convincentes. Não importa. Importa apenas ser fiel ao cerne da metáfora expressa por Drummond. Não preciso acrescentar que ele e Graciliano Ramos pertencem à vertente literária associada à segunda porta.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor IV


Retomo minhas memórias de leitor costuradas sem ordem ou método. Elas seguem o princípio de composição implícito em quase toda a prosa que escrevo para o meu blog. Parto sempre de uma vaga intuição (uma frase, uma ideia decorrente da leitura de alguma obra, um fio de memória...) e daí o texto se vai desatando e ganhando forma à medida que escrevo. É claro que nem tudo é improviso e facilidade desatenta no meu anárquico processo de composição. A versão preliminar é sempre revista, às vezes repetidamente revista, e a revisão pressupõe sempre correções, inserções, adição de parágrafos inteiros, também a supressão de palavras ou frases. Mas o fato é que o processo geral não obedece a nenhum plano de composição, sequer um roteiro ordenando as partes gerais do texto.

Sinceramente, nada me parece invejável nessa facilidade de composição. Ela é antes de tudo sintoma da minha formação anárquica, fruto de uma vida sem direção ou propósito orientado, de regra decorrente de uma formação de família e escola adequadamente instituídas. Nesse sentido, minhas próprias memórias de leitor esclarecem as origens e a sedimentação de uma inteligência indisciplinada e arbitrária. Esclarecem ainda muitos dos fracassos da minha vida, notadamente meu fracasso acadêmico. Por isso me vexa ainda dizer que fui incapaz de escrever minha tese de doutorado. Sei de alguns maldizentes que me acusam de haver desperdiçado tempo e dinheiro público durante meus anos de estudo na Inglaterra. No entanto, foram os anos em que mais estudei na minha vida, os anos de mais intensa aprendizagem da minha vida. Eles concorreram de forma decisiva para desprovincianizar minha percepção do mundo, em particular do Brasil. Portanto, não foi por falta de estudo e trabalho intelectual constante que falhei na redação integral da minha tese. Foi por muitas outras razões, algumas até inconscientes. Evito considerar aqui as conscientes, pois abusaria em demasia da composição digressiva deste texto que já se trai por si próprio.

Voltando ao cerne do assunto, minhas memórias de leitor, volto a recuar às leituras mais remotas, já que a cronologia destas memórias é tão arbitrária e caprichosa quanto os demais elementos da composição. A paixão de ler alimentada pela estante do meu tio Edmundo logo se revelou insaciada. Afinal, a fonte que me nutria não passava de uma estante. Melhor dizendo, de meia estante, pois suas pernas ou suportes propriamente ditos correspondiam à metade da sua altura. Em suma, a estante teria 4 ou 5 prateleiras, cuja extensão não ia além de um metro. Não bastasse isso, meu tio, leitor autodidata perdido num fim de mundo iletrado, reuniu naquele móvel solitário um punhado de livros não apenas limitado na quantidade, mas também na qualidade e variedade dos assuntos. Daí proveio minha vontade de me tornar comprador de livros. Mas como adquiri-los em Igarapeba, ou mesmo em todo um vasto recorte geográfico da mata sul de Pernambuco? De Quipapá a Palmares, não havia livrarias ou bibliotecas.

Dando um salto no tempo, para melhor ilustrar a miséria da cultura letrada ainda dominante em grande parte do Nordeste, acompanhei o Quinteto Violado durante uma curta temporada de shows que fez indo de Recife a São Cristóvão, Sergipe, onde havia um festival anual de artes. Isso ocorreu na primeira metade dos anos 1980, quando já era professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Nesse momento mantive ligeira relação com o Quinteto devido à minha amizade com Rita Melo, mulher de Marcelo Melo, líder do Quinteto. Rita foi minha aluna no curso de Ciências Sociais e através dela aproximei-me momentaneamente de Marcelo. Convidado por ambos, aventurei-me a acompanhá-los durante essa curta sequência de shows viajando no ônibus do Quinteto. Há muito cultivava o hábito de sempre viajar levando livros na bagagem. Nessa viagem, porém, tão excepcional, decidi apostar no prazer suficiente acaso propiciado pelos companheiros de viagem. Logo ao fim do primeiro dia me dei conta de que seria difícil integrar-me ao espírito dominante no grupo. Daí sobreveio a necessidade de comprar pelo menos um livro para ocupar as muitas horas vazias da viagem. Atravessamos Alagoas e Sergipe, paramos em Arapiraca, onde o Quinteto tinha um show programado, e nada de encontrar sequer uma pequena livraria. Somente ao chegar a Aracaju pude afinal comprar um livro.

Se nos anos 1980 a realidade do acesso à cultura letrada no Nordeste era a que grosseiramente esbocei no parágrafo precedente, o que dizer de Igarapeba e regiões próximas em meados dos anos 1960? Acabei descobrindo num periódico da época que a Editora Vozes vendia livros por reembolso postal. Já não lembro de que modo recebi ou tive acesso ao catálogo da editora, então ainda muito restrito e especializado em publicações religiosas, dado o fato óbvio de que era e é uma editora criada por membros do clero católico. No início dos anos 1970 a editora renovou-se de forma notável, incorporando e ativamente promovendo até a cultura de vanguarda da época: o concretismo, a poesia processo, o estruturalismo etc. Dilatando o alcance secular dos seus critérios editoriais, a Vozes se renovou de forma extraordinária acentuando no registro empresarial seu processo de renovação mais ampla observável sobretudo no domínio da política traduzida em termos práticos nas formas de oposição possíveis à ditadura militar.
Decidi então comprar vários livros via reembolso postal. Como então estava de férias em Igarapeba, usei o endereço de lá. Infelizmente, Igarapeba não tinha e nunca teve uma agência dos correios. Por isso precisei ir a cavalo até São Benedito do Sul, a cidade mais próxima, que foi aliás onde nasci. Esse breve relato sugere o atraso cultural em que essa região do Nordeste, assim como tantas outras, vivia e ainda vive. Também o acesso a jornais e periódicos era muito precário. Chegavam a Igarapeba através do trem que fazia o percurso Recife-Maceió. Portanto, seria mais apropriado dizer que passava, não que chegava. Havia no trem um jornaleiro, que na verdade era identificado como o gazeteiro. Esperava-o ansioso na plataforma da estação nos dias em que trazia as revistas e gibis que lhe encomendava. Em face dessa aridez, desloco agora o foco das minhas memórias de leitor para o Recife, onde já morava e estudava desde os 10 anos de idade.

Abro parênteses para mencionar um romance de Jorge de Lima, Calunga, cuja trama narrativa tem como fio a viagem feita pelo protagonista nesse trem que ligava o Recife a Maceió. Li o romance só por essa razão. O personagem toma o trem na estação central do Recife e a narrativa se desdobra descrevendo a viagem passo a passo: a sucessão das estações, as paradas, cenas típicas daquele mundo que tanto conheci viajando durante muitos anos de minha vida como o personagem de Jorge de Lima. Reconheci assim meu olhar de passageiro em muitas das páginas do romance onde o autor fixava tipos humanos observados em trânsito, a paisagem humana à espera do trem na plataforma das estações, as moças de vilas e cidades enfeitadas à espera de parentes ou amigos ou apenas vaidosamente expostas à curiosidade dos passageiros.
Além disso, num mundo de tantas vilas e cidadezinhas sufocadas pela rotina e a pobreza de toda sorte de meios de vida e lazer, a passagem do trem era não raro o acontecimento social mais importante. Por isso era frequente alguém convidar amigos para “esperar o trem”. De modo inconfessado, ou inconsciente, esta expressão traduzia o desejo do fato novo, ainda que irrelevante, a aragem do imprevisto num mundo onde tudo era previsível. Esperar o trem, na imaginação de tantas vidas áridas, era figurar no improvável a esperança de uma outra ordem de vida, era fabular o real factível sem contudo ser ficcionista, tão ausente era a ficção literariamente compreendida num mundo ancorado na tradição oral. Com o trem vinham viajantes frequentes ou ocasionais, as notícias da capital estampadas nos jornais vendidos pelo gazeteiro, as revistas e outras atrações procedentes de um mundo inacessível à modorra de um cotidiano regido por ritmos sociais tediosamente martelados. Aludo, em suma, ao tema da “vida besta” explorado por Drummond na sua poesia inicial e tão agudamente captado por Mário de Andrade. É bem significativa essa transição do nosso primeiro modernismo da atmosfera urbana, signo da modernidade técnica celebrada por algumas correntes da vanguarda estética, para o Brasil tradicional, o Brasil dos vastos interiores, dos traços diferenciadores da nossa “vida besta” atada ainda a ecos bem vivos da nossa herança colonial, do Brasil agrário imune ao avanço da modernidade forjada nos grandes centros urbanos.

Retomando o fio solto da minha narrativa de memórias, adentro agora nas memórias da escola onde comecei estudando no Recife. Além de a escola não ter biblioteca, como é ainda a realidade da maioria das nossas escolas, os professores eram bem pouco cultivados para sequer pensar em inculcar nos alunos algum interesse pela literatura, as artes, as disciplinas humanistas. Logo, contava apenas com minha curiosidade espontânea, minha carência de fantasia e vida imaginativa. Acho que parte considerável dessa carência manifestou-se de imediato como necessidade de existência vicária, linha de fuga de uma realidade cotidiana demasiado estreita e opressiva. Linha de fuga sobretudo do ambiente familiar que me infelicitava dolorosamente. Assim, procurei na ficção a vida imaginária e a dilatação de horizontes que compensassem a pobreza da minha vida de família, escola, vizinhança, minha carência de amor e compreensão... No ambiente em que vivia, o acesso à literatura era tão precário e acidental que atribuo a isso minha completa ignorância da literatura infantil de Monteiro Lobato, assim como muitas outras obras que enriqueceram a experiência imaginativa de tantas crianças e adolescentes. Penso, por exemplo, na literatura dos contos de fadas, nas obras de Andersen e dos irmãos Grimm, também nas narrativas fabulosas das Mil e Uma Noites. Infelizmente, meu percurso de leitor passou ao largo de todas essas obras. Ocorreu-me pensar nisso, e lastimar essas lacunas, quando pela primeira vez li um dos melhores contos de Clarice Lispector: Felicidade Clandestina.

Comecei explorando de forma insaciável a literatura barata, os livros de bolso editados pela Bruguera, Monterrey e similares especializadas em coleções de literatura policial e far-west. Mergulhei de forma tão obsessiva nesse tipo de leitura que chegava a ler três livros de bolso em um único dia. Além disso, comprava-os aos montes como tralha de segunda mão nas barracas situadas no oitão do Mercado de São José. Chegava a ler e colecionar cerca de 300 volumes. Revendia-os no mesmo lugar onde os comprava, depois de os ler, somente para ter o prazer de começar do zero uma nova coleção cujo destino refazia o ciclo da compra e venda, leitura e desapego pelos objetos do meu culto. Curioso constatar aqui como agora as duas pontas da minha vida de leitor se atam entretecendo fios desencontrados, senão avessos. No passado remoto, ensaiando meus primeiros passos de leitor, desfazia-me dos livros que lia talvez movido pela obscura consciência de que lia em trânsito, afiava a lâmina do hábito de ler desperdiçando meu tempo com livros descartáveis que por isso são livremente intercambiáveis. No fundo, apesar da sede de aventura e vida vicária que me satisfaziam, cada livro era qualquer um, era matéria impressa similar à edição diária do jornal que lemos para saber das notícias que logo se dissolvem, cedem lugar às que vêm na fila interminável da repetição da vida e por fim acabam servindo apenas para embalar peixe no mercado ou simplesmente ser atiradas à lata do lixo. Hoje, saltando para a outra ponta da vida, o que me seduz é o sonho ou mito da biblioteca essencial, a biblioteca restrita aos poucos livros que definitivamente impregnaram minha experiência de leitor.

Passei logo em seguida aos livros da grande tradição literária européia adaptados para o público juvenil. Descobri essas obras frequentando a seção de livros da Viana Leal, situada na Rua da Palma. Era então uma grande e atraente loja, a primeira, salvo engano, dotada de escadas rolantes. Essas escadas me seduziam e assim era um prazer renovado subir e descer transportado por elas. Na seção de livros para a juventude, meu paraíso inconfessado, comprei muitos volumes editados pela Melhoramentos. Eram obras da grande tradição literária europeia adaptadas, como acima salientei, para o público juvenil. Dentre as que ainda lembro, com atraentes ilustrações sobre capa-dura, comprei e li O Conde de Monte Cristo, O Máscara de Ferro, Os Três Mosqueteiros, todos de Alexandre Dumas; A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, A Ilha do Tesouro, de Stevenson, Ivanhoé, de Walter Scott, David Copperfield, Oliver Twist e As Grandes Esperanças, de Charles Dickens; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, Dom Quixote, de Cervantes, As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz, e muitas outras obras.

O passo seguinte na minha trajetória errática de leitor está associado à Biblioteca Pública de Afogados. Como era pobre para comprar livros, pois a essa altura o declínio social e econômico da família tinha já descido ao rés do chão, o acervo da biblioteca pareceu-me um mundo inexplorável. Na verdade, era modesto e quase todo composto por volumes já gastos e remendados com fita durex. Foi lá que de fato comecei a descobrir a literatura brasileira, além de acrescentar a minhas leituras da literatura européia autores como Stendhal, Balzac, Flaubert, Thomas Hardy, D. H. Lawrence, Somerset Maugham, Graham Greene e Charles Morgan. Este, sabemos, foi um dos maiores fiascos da crítica brasileira, que inseriu sua obra no círculo dos autores canônicos simplesmente por indução equivocada da crítica francesa. O fato mereceria uma reflexão sobre os mecanismos de recepção da obra literária, com ênfase sobre os nexos entre centro e periferia literária, além do poder dos argumentos de autoridade, mecanismos de resto muito vivos na cultura acadêmica de hoje e do passado.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor III


Graças à estante do meu tio, fundei no espaço da minha solidão uma ilha imaginária dentro do mundinho de Igarapeba regulado pelo tédio e a repetição. Foi a partir daí que me afastei gradualmente da vida de dissipação da vila, uma dissipação que por certo tornava a vida mais suportável: o salão de bilhar, onde a cachaça se misturava à fofoca, às bravatas sexuais tão caras ao nosso machismo, e o futebol acalorava as discussões fúteis e arengas sem propósito. Melhor ainda, claro, era praticá-lo no campo de futebol, também nas peladas improvisadas em plena Rua do Comércio. Os banhos de rio no geral associados ao voyeurismo e à masturbação à sombra das árvores ou entre as frestas de portas e janelas. A força do sexo, vibrando na carne trepidante de vida, é em última instância incivilizável. As normas da família o abafam, também as da religião, da escola, de toda uma complexa rede de controles e repressões, mas ele irrompe dos becos e frestas mais obscuras, vaza por vias até impressentidas. É uma batalha vencida a da civilização, compreendida no sentido preciso de repressão sumária da sexualidade à margem das práticas socialmente aprovadas e consentidas. Quem ceder à vontade delirante de suprimi-lo, não importa em nome de que ideal supremo, vai fatalmente adoecer, pois seus sintomas irreprimíveis encontram sempre um meio de viver no corpo, ainda que seja através da doença.

O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semi-adormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroia o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada do meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura. Nesse momento, a literatura era ainda provavelmente uma via de escape da realidade insípida, uma fuga do tédio indescritível nas fronteiras mesquinhas de uma vila. Mais tarde descobri que ela, no seu sentido mais pleno, é na verdade uma porta de retorno esclarecido à esfera irrecorrível e necessária da experiência. O leitor esclarecido não lê para fugir da realidade que lhe parece insuportável, mas para melhor compreendê-la e vivê-la com a lucidez de quem se sabe mortal e assim passa a exercitar-se na arte de habitar o presente. Hoje, quando sei que estou ficando velho, procuro ainda aprender que o presente é imenso e é o único tempo real. Por ser imenso, ele decanta e atualiza o que foi isento de nostalgia ou consolação regressiva. Por fim, sei do fim que me espera e procuro acolhê-lo como condição da necessidade que me define.

Evidentemente, as reflexões que intercalo na narrativa, como as do parágrafo precedente, não me ocorreram no tempo a que regridem minhas memórias de Igarapeba. Talvez convenha ainda esclarecer que a mudança de mentalidade decorrente da minha experiência de leitor é fruto de um processo que em muitos casos se estende através de anos. Considerando um exemplo específico acima narrado, o relativo à minha percepção ética da homossexualidade, com certeza não me bastou a leitura transformadora do De Profundis, de Oscar Wilde. Não me passa pela cabeça supor nem induzir o leitor a concluir que os processos de mudança de mentalidade que vivemos são automáticos, muito menos se consumam num simples ato. Ser de memória, deliberadamente imantado à linha de tensão entre presente e passado, pois tenho hoje consciência de que todo ser humano é portador de uma história, há muito aprendi que toda memória é sempre uma reconstituição do passado deformado pelas condições do presente. O passado não é nunca o passado refletido no presente; é sempre o passado que o presente reflete.

O lastro de valores e convicções que internalizamos através de um processo de socialização no geral inconsciente, determinado pelo meio social, demanda experiências e revisões muito complexas, não raro prolongadas e dolorosas, para que enfim uma mentalidade cultural renovada se cristalize. Reforço este argumento lembrando a lucidez habitual com que Montaigne nos seus Ensaios ressalta o quanto o ser humano é moldado pelos hábitos. Ensaiar um estudo de compreensão da mentalidade de um povo é antes de tudo ensaiar as formas e processos através do qual a realidade histórica se transforma retendo as linhas mais fortes e resistentes do passado, dos hábitos e tradições sedimentados no leito recoberto pelo fluxo perpétuo das águas. O fluxo das águas, metáfora da mudança permanente das sociedades no tempo, está sempre fluindo, mas sempre sobre o leito que imprime direção ao movimento. É por isso que esses processos se enquadram na categoria historiográfica da longue durée, como dizem os estudiosos dessas questões. Muita gente da minha geração subestimou a complexidade desses processos, além da força poderosa da tradição, porque na nossa juventude fomos embalados por uma concepção revolucionária da história que era na verdade uma projeção mítica do nosso desejo de mudança acionado por condições históricas hoje suprimidas do horizonte no qual se enquadra a experiência da juventude atual.

Prolongando ainda as considerações acima esboçadas, vivi por dentro, nas camas e fora delas, as mudanças radicais de comportamento que irromperam nos anos 1960. Foi sem dúvida uma década muito turbulenta, tão turbulenta que muitos a encararam como uma autêntica revolução. Sem dúvida, muito do que era autêntica e explosivamente novo naqueles anos revestia um caráter de mudança revolucionária consolidado pelo desdobramento do processo de mudança então detonado. Isso me parece verdadeiro sobretudo quando avaliamos a mudança radical da condição da mulher dentro de um intervalo de tempo relativamente muito curto. Em uma ou duas gerações a mulher conquistou direitos e ocupou espaços na sociedade absolutamente impensáveis quando recuamos um pouco no passado, notadamente num país de poderosas e seculares tradições patriarcais como o Brasil.

É também uma banalidade observar que todos esses processos de mudança cobram um preço bem alto àqueles que neles se empenham. Importa no entanto reiterar essa banalidade porque a mentalidade corrente, forjada pelo hedonismo consumista, alude a esses processos, diria que à realidade em geral, como se tudo dependesse do nosso desejo e vontade e toda fruição de prazer não implicasse algum tipo de preço ou consequência. Basta olhar à volta com um mínimo de atenção para perceber que tudo isso não passa de grosseira inconsciência ou mera ilusão vendida pelo mercado, única ideologia soberana no nosso tempo. As mudanças implicam custos, frequentemente altos e dolorosos. Qualquer mulher que ousou transpor a fronteira do passado patriarcal sabe o quanto precisou lutar e sofrer para conquistar direitos e privilégios hoje generalizados. Reiterando outro lugar comum, no capitalismo não existe almoço gratuito. Há quem atribua a frase a Margaret Thatcher. Como se tornou lugar comum, já não importa a fonte, mas a verdade do que diz. Acrescentaria apenas que o dito não se aplica tão somente ao capitalismo, mas a qualquer regime necessário de organização da vida coletiva. Em suma, tudo tem preço e alguém tem sempre que pagar a conta.

Muito do patriarcalismo que moldou nossa mentalidade está ainda infelizmente muito vivo. Parece-me ilusório acreditar que esse passado negativo pode ser superado dentro do horizonte previsível. O Brasil é um país de ritmos de mudança notavelmente lentos. Mesmo nos momentos de crise provocados por intensa pressão social, no geral predominam as forças conservadoras. Não é acidental o fato de o mais importante e influente intérprete do Brasil ser um intelectual de perfil nitidamente conservador. Refiro-me sabidamente a Gilberto Freyre. É inegável que foi antes de tudo um genial inventor do Brasil, uma personalidade extremamente complexa e contraditória, assim como a obra definitiva que legou à posteridade. Não tenho dúvida, entretanto, de que nele e na sua obra, pois que são em muitos sentidos inseparáveis, prevalecem os valores do Brasil patriarcal, que ele captou e interpretou de forma absolutamente única. Portanto, quem como eu aspira ao ideal de viver num país mais igualitário e civilizado, lutando ou não para mudá-lo, vai ter que esperar ainda muito tempo. Como a longo prazo todos estaremos mortos, lembrando uma frase antes muito citada, não estarei por aqui quando o Brasil, o eterno país do futuro, escrever nas suas fronteiras o romance que tanto sonhei ler, idealmente adicionando-lhe uma frase que gravasse minha passagem por esse mundo.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor II


Um dia um adolescente gay apaixonou-se por mim. Chamava-se também Fernando. Como reza o chavão discriminador, era uma bicha louca. Aliás, sempre me perguntei por que o homossexual brasileiro é de ordinário representado nas artes (cinema, teatro, música...) e sobretudo nas comédias e programas de humor, para não falar no anedotário popular e desabrido, dessa forma caricatural e ofensiva. Mais perturbador ainda é constatar que muitos gays se comportam de modo a enquadrar-se nessas formas de representação. Identificam-se, noutros termos, com a projeção do agressor, daquele que os discrimina e rejeita. Como Sartre observou, o judeu portador de todas as deformações raciais e morais que justificam sua supressão não existe; é uma invenção do antissemita. O mais grave é que muitos judeus acabam vestindo a natureza repulsiva inventada pelo antissemita e assim fazendo negam em si próprios sua natureza essencial, que é a de todo ser humano.

O mesmo processo de redução ideológica se repete no estereótipo do homossexual, assim como no estereótipo de todos os condenados e suprimidos da esfera da “normalidade” humana. Conheci alguns desses estereótipos no mundo da minha infância: o camponês rebaixado à condição de bicho semi-escravo, a bicha louca ou lacrada dentro de armários invisíveis, a adolescente desfrutável, a mulher desonrada, a Bovary dos canaviais (como foi minha mãe), o garanhão, o corno manso, o matuto, sempre negativamente contraposto ao citadino, o coronel do latifúndio, o usineiro. A literatura, através das misteriosas veredas da imaginação mais verdadeira do que a realidade empírica mistificadora, a literatura lavou meus olhos e meu coração ao desvelar a humanidade dos seres humanos comprimidos nessa rede de estereótipos que prevalece ainda no mundo. Infelizmente, continuamos a representar o outro baseados antes na realidade da empiria mistificadora do que nas camadas humanas invisíveis que nos traduzem como modos múltiplos e complexos de ser humano. Para ser ainda mais realista, outros diriam pessimista, piso num terreno movediço demais para me pronunciar em nome de qualquer princípio de progresso iluminista. Se é fato que ultrapassamos muitos desses preconceitos e estereótipos, em compensação cunhamos outros que atendem à nossa necessidade de liberação da nossa crueldade e agressividade constitutiva. Freud tem razão. Somente os órfãos incuráveis da utopia continuam acreditando que um dia inventaremos uma humanidade reconciliada.

Quando vivi na Inglaterra, detive-me muitas vezes na consideração do problema do homossexualismo enraizado nas memórias da minha infância. Desatando a imaginação comparativa, espantou-me de início aferir a profunda diferença de representação do gay na cultura inglesa e na brasileira. O que me pareceu mais espantoso foi considerar que cultuamos ainda hoje uma ideologia de liberação sexual do brasileiro contraposta à rigidez puritana dos ingleses. No entanto, ainda que discriminada legalmente na Inglaterra até meados do século passado, a homossexualidade lá, tal como a conheci, goza de um estatuto legal e de uma tolerância e reconhecimento maiores do que o observável na nossa cultura “sem culpa”, expressão, desde os tempos coloniais, de que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Quem quiser que acredite, assim como há quem acredite que somos uma democracia racial. Ou ainda que somos um país cuja história é incruenta, pois as desigualdades e antagonismos se misturam de forma criativamente integradora. O problema nosso, nisso como em muitas outras coisas, é que as relações cordiais, no sentido usado por Sérgio Buarque de Holanda, que só para os ignorantes é uma ideologia justificadora da nossa “história incruenta”, com freqüência se sobrepõem às relações legais. Não me detenho para esclarecer esse mal-entendido relativo ao conceito de cordialidade na obra de Sérgio Buarque porque já dediquei um artigo inteiro à consideração deste problema quando no meu blog escrevi sobre Raízes do Brasil.

Voltando a Fernando, ele me amava enquanto eu o repudiava. Ele me assediava com sua delicadeza, sua carência de amor de homem, enquanto eu o humilhava e me sentia agredido pelo que me propunha ou de mim desejava. Um dia morreu num acidente de trem quando vinha para o Recife. Senti sua morte, mas não a real dimensão da culpa que veio muito mais tarde, quando minha consciência, já mais esclarecida pela alteridade escrita na literatura, revelou-me camadas humanas que eu ignorava. Para ser exato, essa mudança ocorreu quando li, na Biblioteca Pública de Afogados, no Recife, De Profundis, de Oscar Wilde. Para quem não sabe, é uma obra escrita na forma de uma longa carta para Lord Douglas, o grande amor de Wilde. Fiquei chocado ao descobrir, lendo esse opúsculo, que “o amor que não ousa dizer seu nome”, eufemismo célebre procedente do próprio Wilde, é um amor tão humano quanto as formas de amor legitimadas por nossa cultura. Foi aí que sobreveio a culpa, pois minha memória regrediu no tempo revelando-me o quanto fora preconceituoso e cruel ao rejeitar Fernando, o quanto fora cego e intolerante ao humilhar ou simplesmente rejeitar tantos homossexuais que conheci no internato onde estudei em Palmares.

Voltei a reler De Profundis quando vivi na Inglaterra. Desta feita, a versão original da obra. Aliás, de acordo com os editores do volume The Portable Oscar Wilde, a primeira edição integral e fiel ao texto original escrito por Wilde. Surpreendeu-me a decepção decorrente desta releitura, em certo sentido apenas uma leitura ou nova leitura. Julgo agora compreender melhor minha decepção, que pouco tem a ver com o texto em si. Este é até melhor, já que restaurado à forma do autor. Decepcionei-me simplesmente porque a importância maior da obra, para minha posição de leitor singular, derivava das circunstâncias biográficas e mentais demarcadoras da minha primeira leitura. É por essas e outras que toda obra é também uma criação do leitor. O leitor não lê apenas para saber que não está sozinho, frase luminosa que muitas vezes tomei de empréstimo a William Nicholson; o leitor lê para mudar sua vida ou acrescentar a obra à consciência da sua vida. É por ler desse modo que ele reinventa a obra e nesse sentido retraduz o autor.

Suponho que o leitor de hoje leia Oscar Wilde isento da imagem de autor maldito e assim confira à obra que escreveu a prioridade que deve ocupar em relação à biografia. Durante muito tempo, porém, o leitor comum foi atraído para aquela através desta. O que mais fascinava o leitor era a vida dissoluta do autor, sua perversão, sua coragem de viver “o amor que não ousa dizer seu nome”, o processo legal para o qual foi arrastado e cujo desenlace se resume na sua desgraça pública, a condenação à prisão sob o regime de trabalhos forçados e a ruína que foram seus últimos anos de vida. Hoje, suponho ainda, a obra se impõe por si própria e o estilo epigramático de Wilde, saturado de paradoxos e jogos de palavras agudamente deliciosos, o intraduzível witticism inglês, expressão do melhor decadentismo estético da época, sobrevive por força de suas virtudes literárias. Tornou-se afinal possível retratar a vida do escritor dentro das linhas de “normalidade” que o restituem à humanidade espontaneamente reconhecida num escritor heterossexual. Detendo-me apenas no exemplo do cinema, expressão da melhor cultura narrativa do século 20, bastaria comparar Os crimes de Oscar Wilde (The trials of Oscar Wilde), filmado em 1960, e Wilde, de 1997, baseado na biografia escrita por Richard Ellman e dirigido por Brian Gilbert. Para bom entendedor, sem trocadilho, os títulos das duas obras são por si sós bastante reveladores.

Apenas 37 anos separam os dois filmes. No entanto, quanta diferença entre ambos, a partir do próprio título das obras, como assinalei. Por nos conhecer bem acima do pouco que sabemos e queremos saber, Freud não se iludia acerca do progresso humano. Por isso, ao saber dos seus livros ardendo nas chamas das fogueiras da inquisição nazista, evidência ainda amena da catástrofe que se anunciava, limitou-se a dizer: “What progress we are making. In the Middle Ages they would have burnt me; nowadays they are content with burning my books”.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor I


Eu era cego e não sabia. Embora estudante aplicado na infância, conhecia apenas os livros adotados na escola que bem pouco educava, como é ainda a norma neste Brasil indiferente à necessidade de uma reforma profunda do nosso sistema educacional. Menino de rédea solta, criado como Deus criou batata, a frase ouvi-a do meu próprio pai, vivia pintando o sete e até o oito. Brás Cubas dos canaviais, como qualquer filho de proprietário um pouco acima da miséria, pintava e bordava acima da lei num mundo sem lei. Perdido dentro de uma família sem lei nem rei, fazia o que queria e sobretudo o que não sabia. Eu era cego e não sabia. A literatura, no sentido em que dela aqui tratarei, não existia na escola que frequentei. Nossa escola era e é ainda tão pobre, tão impermeável à literatura, que precisei descobri-la por mim próprio fora da escola. O fato me faz lembrar um dos deliciosos aforismos de George Bernard Shaw: Minha educação somente foi interrompida durante os anos em que frequentei a escola. Cito de memória, daí a omissão das aspas.

Voltando aos trilhos do meu raciocínio, eu era cego e não sabia. Um dia, graças a um acaso milagroso, descobri a literatura. Como narrei essa descoberta num outro texto de memórias postado no meu blog (remeto o leitor curioso à crônica de memórias Minha avó Hannah), retomo o fio da minha memória de leitor escavando outras memórias do meu baú já empoeirado. Descobri a literatura por conta e risco próprios, privado de um mentor capaz de me guiar, de iluminar o mundo da imaginação explorado e escrito pelos incontáveis escritores que fundaram a tradição letrada da humanidade. Isso quer dizer que adentrei a literatura através da primeira porta aberta pelo acaso. Mergulhei no mundo dos símbolos impressos simplesmente lendo o pouco que havia à mão, herança ociosa do meu tio Edmundo - já que cultuada, mas ignorada pela família. A estante fechada, com seus símbolos lacrados, era um talismã da família, um medalhão nobilitador da cegueira da família, que era também minha própria cegueira.

Comecei a ver e decifrar o mundo dos símbolos a partir do dia em que abri a estante e estendi a mão da intuição cega em direção ao primeiro livro que removi da estante e comecei a ler. Já não me lembro qual foi. O que sei é que a partir daquele momento um mundo incogitável e maravilhoso se apossou da minha imaginação. A literatura descortinou-me um mundo que transfigurou a rotina opressiva da família residente no Recife, assim como a rotina ainda mais opressiva de Igarapeba, a vila onde vivi meus primeiros anos conscientes ou memoráveis. Lá vivia todas as férias escolares. É certo que Igarapeba era um mundo fascinante para um menino sem rédeas, privado da polícia de hábito imposta pelos pais e outros agentes socializadores dos pequenos selvagens que fomos. Uma infância sem pais, com sua polícia e controle, grava carências definitivas na nossa experiência de desamparo, mas pode propiciar uma forma única de liberdade. Daí afirmar que cresci sem rédeas. As da religião eram também muito frouxas e assim fui poupado das figurações aterrorizantes do inferno e outros castigos insondáveis.

Mais que um mundo maravilhoso, a literatura revelou-me a alteridade. Foi ali, na solidão povoada da minha cadeira de leitura, que o outro se foi desdobrando em camadas infinitas à minha sede de imaginação e descoberta do mundo. O outro simbolizava outras possibilidades de vida, outras culturas e modos de ser, um mundo infinito quando cotejado com os horizontes mesquinhos da vila da minha infância, do próprio Recife ainda tão provinciano, fechado no seu culto de tradições que nos retêm prisioneiros do provincianismo. Esse provincianismo tão tenazmente cultuado estreita e deforma nossa percepção do mundo e no limite delira atado a expressões de bovarismo cultural simplesmente ridículas. Sem que então o soubesse, comecei a escapar dessa prisão quando soltei minha imaginação e minha sede de estranhamento através das páginas que me abriram as fronteiras da Europa, do mundo medieval reinventado pela imaginação romântica, da península ibérica, da Rússia, dos Estados Unidos, das fronteiras redesenhadas por guerras de conquista e resistência. Foi também uma descoberta chocante considerar o quanto, através da história humana, grupos e povos guerreiam e se entredevoram em nome dos mais belos idéias: Deus, a religião, que provocou tantas guerras e intolerância, a liberdade e os ideais utópicos. Como não temer e duvidar da espécie depois de despertar para todos esses horrores?

O ser humano, não importa de que latitude ou tempo, é espontaneamente etnocêntrico. Sua medida do mundo, seu poder de apreensão da realidade, esgota-se nas fronteiras da sua cultura. Somos assim e talvez poucos tenham a coragem de ser diferentes, a coragem de ultrapassar a fronteira do mesmo, controlável e conhecido, para defrontar a estranheza do outro, impregnar-se de modos de humanidade que ignoramos e por isso inspiram medo e rejeição. Confesso que não fugi a esta norma. Noutras palavras, internalizei os preconceitos e superstições dominantes no meio social em que me formei ou deformei e cegamente agi movido por eles. Rebento de uma cultura patriarcal, impregnada de violência e práticas obscurantistas, herdei e afirmei na ação a ideologia inconsciente justificadora da desigualdade brutal que caracteriza ainda nossa sociedade; assimilei passivamente a realidade da subordinação opressiva da mulher, da criança, do negro, do homossexual... Em suma, agi cegamente seguindo os preconceitos e idéias feitas instituídos.

Cresci num mundo dominado por homens rudes, no geral iletrados. A violência assaltava de múltiplas formas o tédio do cotidiano. Ainda menino, assisti a muita briga de bêbado, notadamente aos domingos, dia de feira, quando a população dos sítios e propriedades vizinhas acorria à rua central da vila para negociar a rala agricultura de subsistência da região e intercambiar produtos parcamente ofertados pelo comércio regular. Essas transações se faziam em meio ao ruído dos feirantes e ao consumo incontinente de cachaça. Um nada e logo os ânimos se exaltavam, não raro descambando para a luta física. Nos casos extremos, brigava-se com ponta de faca. Havia ainda a matança brutal de bois no matadouro à beira do rio. Assisti a essas cenas, apenas uma prática rotineira para os que delas viviam. A imagem de um boi sendo abatido a machadadas, e em seguida sangrado, perseguiu-me durante vários dias e desde então passei a evitar o matadouro nos dias em que abatiam animais.

Foi através das portas e janelas abertas pela literatura que passei a reconhecer a alteridade, a possibilidade de ser outro, de viver numa outra ordem de realidade. Mas não faltou quem se empenhasse em me fechar essas vias de liberação subjetiva. A resistência procedia antes de tudo do próprio universo familiar. Que pais e adultos não encaram com inquietação, não raro com oposição determinada, a ameaça representada por um menino ou adolescente questionador das verdades consagradas? A linguagem da mesmice e do conformismo está facilmente ao alcance de quem se sente ameaçado pelos desviados que ousam sacudir o sono da rotina, o movimento previsível e sólido da repetição. Há todo um vasto e diferenciado léxico à mão dos guardadores da ordem ilusória e mistificadora do mundo. Basta abrir a boca apontando com dedo acusador o desviante: sonhador, romântico, ingênuo, desmiolado, doente, anormal, doido, comunista, ateu, desvairado, anarquista, desequilibrado... Digito termos ao acaso, indiferente até às linhas de gradação semântica que prendem essa rede da linguagem discriminadora e intolerante.

Saio do terreno das abstrações acima assinaladas para ilustrar, com base na memória da minha infância e adolescência, a mudança de consciência e modos de ser que devo à literatura. Começo pela sexualidade supondo não precisar justificar sua centralidade na nossa condição humana. Nenhum adulto, nem mesmo meu pai, prestou-me qualquer orientação e esclarecimento a respeito do que todo menino e adolescente vive como expressão da sua sexualidade. Nisso, como em tudo mais, tive que fazer algo de mim e por mim por conta e risco próprios. Os desejos que na adolescência irromperam no meu corpo e na minha consciência foram tão perturbadores e intensos que temi não ser “normal”. Alguns eram tão antagônicos às noções correntes aprovadas e aprendidas no meio social, na família, que acabei me debatendo em aflições e incertezas agravadas pelo fato de não ter com quem discuti-las, aclará-las, dar-lhes um sentido que me enquadrasse na normalidade do mundo. Foi graças à literatura, com seus multifacetados personagens e enredos, que descobri aliviado a possibilidade de outros modos de normalidade, a complexa e liberadora percepção da inesgotável variedade dos modos de ser humano.