terça-feira, 12 de agosto de 2014

O Ouvido


Um ouvido vaga pela cidade
Em busca de uma voz musical.
Na longa jornada do dia
Vai de um ao outro extremo
Através de uma compacta massa de veículos
Aspirando fumaça tóxica num mar congelado.
Ouve o ruído incessante
Impropérios e buzinas
Sangue no asfalto, corpos
Abatidos como aves mecânicas.

Um ouvido vaga pela cidade
Em busca de voz humana.
O estampido de assaltos
Armas de fogo abatendo
Ratos errantes nas ruas.
O mar poluído recolhe
Suas ondas e sobre a areia recoberta de lixo
O ruído das gentes se alastra
E a festa, o batuque se sucedem
Ressaca sobre ressaca.

Um ouvido luta no deserto, na noite
No escuro da sala captando em meio às balas e o fogo
A música suprimida da cidade.
As janelas, invadidas do dia à noite,
Estremecem com o ruído da construção civil.
Nos andaimes suspensos sobre o vazio
Os escravos martelam sua servidão.
Um corpo cai, outro é soterrado e segue
Indiferente o imperturbável ruído do século.

Um dia o silêncio reinará sobre o Brasil
Talvez apenas quando tudo seja já extinto
E reste apenas o vento soprando
No deserto de tudo o deserto que regamos
E empilhamos sobre a terra devastada.
Mas então já não haverá ouvido.

Recife, 19 de julho de 2014

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Condicional


E se a gente chorasse
Chorasse como quem risse
Como quem lembra e esquece?

E se a gente partisse
Partisse como quem fica
Como um ateu reza a prece?

E se a gente amasse
Amasse como quem perde
E ganha? E então recomece

O incerto jogo da vida
Que até cansada e falida
Já quase desfalecida

Dá outra volta, outro giro
E morre com o suspiro
De quem da morte adormece?

E se a gente morresse
Morresse como quem vive
Como a manhã que anoitece?

E se enfim no meu nada
No fim dessa longa estrada
Deus tudo fosse e pudesse?

Recife, 02 julho 2014.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O botequim de João Ubaldo


Esta crônica, com algumas velas de obituário, é culpa de João Rego. Logo, já começo solicitando ao leitor certa compaixão crítica que não precisa ser estendida a João, xará do que morreu, pois as besteiras que aqui vou verter decorrem do seu encorajamento. Pondo ordem no defunto, pois a morte é definitiva e portanto não se faz com emendas, João Rego me reprovou com razão o fato de escrever com espírito de demasiada responsabilidade. Já nos bastam a seriedade da vida e do trabalho, acrescenta ele astutamente. Desse modo, façamos a revista Será? mesclando alguns grãos de galhofa e cachaça às tolices que escrevemos. E assim, seduzido pelo Vadinho que malandramente salta das cordas do violão de João Rego, vou me aboletando sem nenhuma responsabilidade no botequim de João Ubaldo.
João Ubaldo viveu de modo perigoso para a autonomia da sua obra literária. Quero dizer, fazendo de si próprio um personagem tão sedutor e exposto à corrente mitológica gerada pela mídia, acabou sendo talvez mais importante do que a obra que escreveu, mais personagem do que aqueles tramados por sua imaginação literária. Há por certo nesse velório festivo que seguimos, transportando para o túmulo nosso defunto de botequim, muita gente que conhece o defunto sem todavia conhecer a obra que legou à nossa tradição literária. Muitos que ignoram sua obra e seus muitos personagens sabem muito bem de um outro personagem, o autor, que transportou a ilha de Itaparica para o mapa da nossa literatura.
Como nosso amigo Luciano Oliveira, que infelizmente não cedeu à insistência dos meus telefonemas para escrever esta crônica, João Ubaldo batia o ponto infalivelmente no seu “escritório” onde se misturava “ao povo brasileiro”. Embora as expressões aspeadas suponham a agregação sem fronteiras de gente procedente de todas as origens sociais, o que nelas reponta é antes de tudo o povo narrado e celebrado nas páginas de João Ubaldo e do seu padrinho literário e amigo Jorge Amado, que também já regrediu ao útero da mãe natura a quem abençoo e culpo por estar neste mundo.
João Ubaldo tanto concorria com a sua obra que foi ontem celebrado no Jornal Nacional. Do botequim de Itaparica ao fardão da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono supremo jamais abriria a porta daquela instituição vetusta para sentir o bafo de cachaça desse baiano irreverente e despachado, não se ouviu choro nem vela, mas a consagração do ser vivo, do homem João Ubaldo louvado por famosos e anônimos de muitos extratos sociais da nossa cultura. Ora, isso é justo, antes de tudo comovente, mas o leitor espera que aqui exponha alguns fiapos de razão passíveis de justificar a fama do defunto. Afinal, não foi por beber cachaça com o povo e celebrar a vida nas galhofas e estripulias dos botequins que João Ubaldo se tornou um substantivo singular ou um João indivíduo, não o João substantivo comum do Brasil.
E assim me apercebo da encrenca em que João Rego me meteu. Acenou-me um convite para induzir-me a escrever uma crônica de botequim, vertendo no texto antes cachaça do que algumas páginas suadas de cultura literária, e lá fui eu para a folia de João Ubaldo com o violão debaixo do braço e a cabeça vazia. Eis que agora me perco no labirinto que eu próprio construí com o barro da facilidade enganosa e preciso, antes que o defunto deite na vala, cavar uma vereda que de algum modo me transporte para a literatura e a estrada da vida.
Cavo então minha vereda lembrando o óbvio: ninguém, salvo Batata do celebrado Bacalhau do Batata, faz fama deitando na cama dos botequins. João Ubaldo viveu nos botequins misturado à folia cotidiana do povo brasileiro, mas suou muito decifrando os labirintos da cultura letrada. Além de nascer e se formar numa família onde essa modalidade da cultura ocupava papel central, desde cedo ligou-se por amizade e muitos modos de afinidade a gente como Glauber Rocha, prefaciador do seu primeiro romance, Jorge Amado, seu já citado padrinho literário e amigo, e foi ainda jovem reconhecido como escritor de primeira categoria ao publicar Sargento Getúlio. Além da carreira literária, consolidada pela composição de dois romances que se somam ao já citado para elevar o reconhecimento da sua obra (refiro-me literalmente entre parêntesis a Viva o povo brasileiro e O sorriso do lagarto), foi jornalista, roteirista, cronista prestigiado de importantes periódicos nacionais e internacionais. Por fim, já que nenhum escritor vive somente de botequim e cachaça, tanto se excedeu nestes prazeres, os do botequim e da cachaça, que muita gente se enganou supondo bastarem para a consagração literária. Como reza a frase famosa, embora talvez já esquecida, ledo e cego engano que esta crônica irresponsável é a primeira a empurrar para as trevas do dolce far niente dos botequins.
Concluindo, apesar de todos os despropósitos que aqui deito e enrolo, João Ubaldo suou muito o suor de todo artista merecedor de acolhida nos reinos da arte imaginativa que ele soube honrar. Por isso sua morte desperta tantos louvores, inclusive do povo que nunca o pôde ler, mas celebrou seu mais importante romance, O povo brasileiro, convertendo-o em samba-enredo num carnaval já remoto cujo ano esqueci. Mas continuaremos lembrando João Ubaldo. Quero dizer, lembrando e lendo sua obra, pois esta é tudo que fica.
Recife, 19 de julho de 2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Arrogância do Futebol Brasileiro


Alguém teve acaso a curiosidade de ler as frases escritas na fachada dos ônibus das seleções participantes da Copa do Mundo? O que atraiu minha curiosidade foi ver hoje numa reportagem do Jornal Nacional, ainda sobre a humilhante derrota do Brasil para a Alemanha, a que escolheram para o ônibus da seleção brasileira: “Preparem-se! O hexa está chegando!” Cotejei-a com as das demais seleções. Quase todas invocam o espírito de orgulho nacional, unidade nacional, exaltação mítica da nação, espírito competitivo e guerreiro, valores enfim previsíveis em um contexto de competição esportiva entre nações.
Embora grande parte dos atletas participantes de fato já não representem seleções nacionais, diluídas pela expansão do capitalismo global (basta pensar na seleção brasileira, integrada por muitos jogadores desconhecidos da nossa torcida), o fato é que a Copa desperta um sentido de orgulho nacional que sobrevive antes de tudo como ideologia. Quero dizer, os valores nacionais que celebramos, ou nossas projeções míticas, não mais correspondem aos fatos que regem o futebol global. Dizendo melhor, grande parte dos jogadores não representa de fato suas nações de origem. São uma legião estrangeira. Se quiserem uma expressão mais forte, são como um exército mercenário, ávido de vestir a camisa do clube que paga melhor. Acabada a Copa, com ou sem título, cada um volta para o seu clube, que no geral nada tem a ver com a nação de origem dos jogadores. E convenhamos: o sonho de todo Neymar, de todo craque brasileiro, é jogar na Europa para conquistar fama e fortuna. Defender a seleção brasileira é apenas a cristalização desse sonho.
Voltando ao assunto inicial, a frase adotada pelo Brasil é muito significativa pelo que contém de previsão arrogante. É a única que dá como favas contadas o grande vencedor, o campeão supremo. O hexa foi anunciado antes mesmo de a Copa começar. Isso diz muito da arrogância que sempre regeu a cadeia emotiva do povo brasileiro, um espírito sempre marcado pela arrogância de ser o melhor. É por isso que mergulhamos sempre no apagão e afundamos na perplexidade quando sobrevém alguma derrota decisiva. Não bastasse tanto, a mídia, de forma praticamente absoluta, despreza a mais elementar noção de critério ético, isto é, de isenção informativa. Por mais discutível que seja a ética regente da ação da mídia, investida de força persuasiva e manipulativa num mundo unificado pela revolução comunicativa, ela precisa atender a um ponto mínimo de consenso irrefutável: a isenção informativa.
É claro que os profissionais do esporte, em qualquer lugar do mundo, cultivam suas paixões individuais irredutíveis, sobretudo as que envolvem competições internacionais. No entanto, o fato de torcer não anula a possibilidade, diria mesmo o dever ético, de preservar na medida do possível o caráter isento da informação. Galvão Bueno, locutor simbólico de todas as participações da seleção brasileira em competições internacionais, desmente de forma deslavada o critério de ética midiática elementar que aqui invoco. Este fato está tão entranhado na nossa mentalidade futebolística que nunca ouvi ninguém, nem o mais isento e consciente dos torcedores, dizer uma palavra sobre essa aberração nacionalista, com freqüência levada ao extremo da incitação à arrogância e desapreço pelos adversários.
No fundo, desde pelo menos o tri-campeonato de 1970, trocamos nosso espírito de vira-lata, como disse Nelson Rodrigues, pelo do “melhor futebol do mundo”. Um pouco de humildade, ou pelo menos realismo, não faz mal nem ao maior dos vencedores. Nesse sentido, a seleção alemã e várias outras nos dão uma lição que não sei se somos efetivamente capazes de aprender, ou sequer perceber. Eis o que diz a frase adotada pela Alemanha: “Uma nação, uma equipe, um sonho!” Talvez eles, os alemães, tenham ainda memória do que lhes custou, também ao mundo, sua utopia racista de cujas entranhas irrompeu a maior catástrofe da história da humanidade. Sei que a analogia é um tanto descabida, mas nos dois casos ela tem a ver com o que o nacionalismo agressivo e arrogante tem de pior, seja no futebol, seja na política. Felizmente nossa arrogância, nosso orgulho nacional, tantas vezes acintoso, fica confinado à esfera do esporte. Mas só um fanático ou um inconsciente encara o futebol, e o esporte em geral, como mera expressão gratuita e louvável do prazer lúdico inscrito na natureza humana. Embora o futebol esteja longe de ser uma guerra, nem por isso deixa de ser uma guerra domesticada pela civilização.
Queria por fim ressaltar duas coisas: 1-Minha convicção, reiterada durante toda essa histeria das massas orquestrada por uma mídia privada de qualquer critério de ética informativa, de que o irracionalismo do rebanho está entranhado no psiquismo humano; 2-O caldeirão do inconformismo popular vai voltar a ferver, infelizmente de forma anárquica, no geral como expressão de revolta sem nenhuma organicidade política. A desintegração humilhante do sonho do título, num país cujas carências são cotidianas e extremas, vai concorrer para agravar a rebelião reativa. Prevejo tais desdobramentos baseado apenas na minha percepção da realidade. Gostaria sinceramente de estar errado, tanto que espero ser desmentido pelo que virá. Mas é isso sinceramente o que prevejo isento de qualquer presunção de adivinho ou derrotado ressentido. Aliás, como ser um derrotado ressentido, se sempre vi e vivi o futebol como ele é para mim: apenas futebol? Minha convicção foi sempre e é a busca das reformas democráticas, que nunca interessaram aos que governam um país cujo povo nunca foi qualificado para adotá-las e defendê-las.
Recife, 9 de julho de 2014