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Fernando – Luciano, você é conhecido nos círculos acadêmicos antes de tudo como sociólogo do direito. No entanto, seu interesse por literatura e cinema é também evidente, já que você publicou artigos ocasionais sobre esses assuntos e acaba de dedicar um volume integral a um paralelo crítico entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Sei também que você nada faz no sentido de melhor administrar sua carreira acadêmica. Diante disso, por que não escreve mais sobre esses assuntos que são objeto de sua paixão?
Luciano - Porque, retomando o título daquele livro de Orígenes Lessa, existe o feijão e o sonho, e esses assuntos, que são objeto de minha paixão, como diz você, não são meu ganha-pão! Dito isso, deixe-me reparar uma possível injustiça que minha resposta um tanto brincalhona contém: também gosto de muitas das coisas que faço dentro da sociologia jurídica, porque tenho também uma paixão, um engajamento com um tema ao qual tenho dedicado boa parte da minha vida acadêmica: o problema dos direitos humanos no Brasil. Mas realmente a literatura foi, intelectualmente falando, o meu primeiro amor, e o primeiro amor ninguém esquece! Gostaria, sim, de escrever sobre outros autores que amo além de Machado e Graciliano.
Fernando – No seu livro sobre Machado de Assis e Graciliano Ramos você dá ênfase a temas pouco explorados na obra do segundo. Penso antes de tudo no tema do humor. Aliás, adianto que essa é uma das singularidades do seu livro. No entanto, é curioso que um crítico de formação sociológica, como é o seu caso, não proceda centralmente a uma leitura sociológica de Graciliano, sobretudo nas condições culturais do presente, onde se observa a franca subordinação da literatura às ciências sociais. O que você diria sobre isso?
Luciano - Eu diria que estive menos interessado numa leitura sociológica de Graciliano, ou mesmo de Machado, e mais na leitura sociológica que esses autores fazem da realidade brasileira! É o inverso da questão. De resto, a subordinação da literatura às ciências sociais, a que você se refere, não é muito minha praia. Nem a sua, pelo que conheço de você. No fundo acho que não há sociologia que explique fenômenos literários. Entenda: o fenômeno propriamente literário! É lógico que é possível analisar sociologicamente a recepção favorável do chamado "romance nordestino" nos anos 30 do século passado. Mas explicar como e por que um sujeito como Graciliano, praticamente um autodidata, dono de loja de tecidos numa cidade inexpressiva do interior de Alagoas, escreve uma obra-prima como "São Bernardo"... Aí a sociologia tem que ter a modéstia de reconhecer que está diante de um mistério da criação que escapa às suas categorias explicativas.
Fernando – O Bruxo e o Rabugento não é um livro de concepção orgânica. Explicando melhor, é composto de um conjunto de ensaios autônomos, embora confiram ao livro certa unidade na medida em que reiteram um tema comum: um paralelo, feito de muitas variações, entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Apesar do que acabo de observar, pergunto se você acaso traçou algum projeto geral para guiar sua composição do livro.
Luciano – Na verdade, no começo a ideia era a de um artigo sobre Graciliano, apenas. Mas o artigo foi crescendo e, num determinado tópico, introduzi Machado, a partir de uma ideia que colhi em Roberto Schwarz, a de que Machado teria praticado o que ele chamou de "exercício da abjeção", que era falar da classe senhorial brasileira do seu tempo a partir dela própria, da sua visão do mundo terrivelmente malvada e insensível ao drama da escravidão, por exemplo. Achei que em "São Bernardo" Graciliano fazia isso, adotando a voz de Paulo Honório, um ser humano terrível, como a voz do narrador. Foi a partir desse primeiro insight que comecei a procurar outras aproximações. Por exemplo, a metalinguagem. Machado, como Graciliano, está o tempo todo refletindo sobre o próprio texto que escreve, mostrando como os dois eram grandes escritores conscientes do seu ofício. Depois cheguei ao humor. No caso de Graciliano, ao mau humor, que é também uma forma de humor. E como os assuntos foram se atropelando, se agregando, em determinado instante tinha muita coisa escrita da qual achei mais interessante fazer artigos separados e relativamente independentes do que um livro, que, como livro, ficaria meio mambembe...
Fernando – A resposta acima, referente ao processo de composição de O Bruxo e o Rabugento, levou-me a ponderar um pouco a produção corrente no âmbito das ciências sociais e a nossa tradição ensaística. Sabemos que esta está diretamente associada ao desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Bastaria pensar em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e outros. Aludo a este fato por identificar no seu estilo de composição traços nítidos dessa tradição. Talvez isso lhe desagrade, já que sei do seu apreço pela empiria, do rigor com que você pesquisa e se documenta antes de mergulhar na redação dos seus livros e ensaios. Apesar disso, insisto na observação acima e adicionalmente pergunto se você se reconhece em algum grau herdeiro dessa tradição. Perguntaria ainda se você não acha possível conciliar a escrita ensaística com o rigor compositivo dos autores fiéis ao primado do objeto empírico que estudam.
Luciano - Quem dera! Sentir-me herdeiro da tradição de Euclides e Gilberto... Ok! À condição, porém, de considerar-me um herdeiro bem menor, daqueles para quem o testamenteiro deixa generosamente um pequeno pecúlio. É verdade que fico lisonjeado com a ideia de inserir-me na tradição ensaística da qual fazem parte esses autores. Bem, indo à questão do rigor empírico, é verdade que o ensaísmo é um terreno perigoso, permite muitas derrapagens, porque a subjetividade daquele que escreve está toda lá, sem enganações. Mas eu ousaria dizer que isso não exclui o rigor, o cuidado com a competência empírica, como gosto de dizer. Observo que livros como Os Sertões e Casa-Grande & Senzala têm uma riqueza empírica muito grande. Euclides, nesse sentido, fez um esforço de objetividade enorme. Lembre-se de que as teorias racistas, que eram a moda na época, e com as quais ele foi a Canudos, diziam que aqueles sertanejos eram uns degenerados, uma sub-raça degradada pela miscigenação. E o que ele vê? Ele vê um povo bravio, forte, astuto, resistindo a três expedições armadas. E a cabeça de Euclides pira! Daí ele ter escrito, n´Os Sertões, aquele capítulo tão estranho e até um tanto negligenciado a que chamou de "um parêntese irritante", no qual confessa que os dados não batiam com a teoria! Não sei o que lhe faltou para assumir que aquelas teorias racistas eram empulhação. Esse passo vai ser dado por Gilberto, que em Casa-Grande estabelece aquela famosa distinção entre raça e cultura, e que essa, a cultura, era mais explicativa do que a raça. Ou seja: ainda que sem os cuidados metodológicos dos estudos monográficos que se tornaram moeda corrente na sociologia contemporânea, a tradição ensaística pode, sim, combinar intuição e rigor, e essa é a melhor tradição da sociologia, aliás. Tenho procurado fazer isso nos meus trabalhos. O meu livro, O Bruxo e o Rabugento, tem muita liberdade, mas tem também muito trabalho de composição. É porque o leitor não sabe. Mas às vezes uma frase, uma mísera frase num texto, demanda, para ser escrita, uma semana de pesquisa! Quando em determinado instante, por exemplo, desenvolvi a hipótese de que o "segundo Machado", aquele da ironia permanente de Brás Cubas, já está em embrião no "primeiro Machado", o da fase romântica, para escrever isso foi necessário parar o que estava fazendo e reler, com atenção, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia... Isso é uma semana de trabalho. Que, lógico, em se tratando de Machado, mesmo do "primeiro Machado", foi um trabalho prazeroso!
Fernando – Parece-me que sua resposta relativa à nossa tradição ensaística confirma a existência de uma linha de nítida conciliação entre o gênero ensaístico, tão próximo do estilo literário e especulativo, e a fundamentação empírica do argumento ou interpretação. Quando me ocorreu propor-lhe esta questão, pensava no traço diferenciador do seu estilo, nesse sentido tão divergente da produção acadêmica que habitualmente leio. Você poderia acrescentar alguma observação relativa ao estilo acadêmico corrente contraposto a seu estilo de composição? Sugerindo uma comparação provocativa, por que entre Antonio Candido e Florestan Fernandes prevaleceu o estilo do último como norma de composição acadêmica do texto sociológico?
Luciano - Curto e grosso, porque acho que produção em série desse tipo de trabalho é mais fácil! Na verdade, é fácil. Pelo menos na forma como as dissertações e teses passaram a ser armadas, com capítulos-padrão que terminam na maioria dos casos sendo capítulos-chavão! Pode ver, geralmente os projetos são assim: Objeto, Marco Teórico, Objetivos (tem sempre um principal e vários secundários), Metodologia, Cronograma e pronto. O negócio é você eleger um marco teórico, que é sempre um ou vários autores estrangeiros, e depois faz uma pesquisa empírica que "enquadra" naquele marco teórico. Digo enquadra no sentido quase jurídico do termo: você tem uma definição legal e colhe nos vários e complexos elementos da realidade aqueles que confirmam o que cabe na definição. Tem vezes que você vê as coisas sendo meio forçadas para se ajustarem ao modelo forçado... Bom, mas aí já é um problema de competência ou não de quem faz o trabalho, porque há trabalhos dentro desse modelo que são de ótima qualidade, entende? O que eu digo é que um modelo assim é mais reprodutível do que um trabalho ensaístico, que exige do seu autor, pra começo de assunto, um estilo particular, erudição (não a erudição pedante), poder de criatividade... É um tipo de trabalho em que não faltam elementos de composição artística. Nesse caso, como diria Noel, "ninguém aprende samba no colégio"... No colégio você aprende os segredos da partitura, o que é outra coisa. Então, há isso no meu modo de ver: no momento em que se constituiu no país uma pós-graduação em bases regulares, com exigências de prazos, produtividade, cientificidade dos trabalhos etc., lá pelos anos 70, e foi um momento de forte influência do modelo acadêmico americano de se fazer ciência, avesso ao ensaísmo tipicamente europeu, o "modelo Florestan", chamemos assim para simplificar, presta-se a isso que estou chamando de reprodução fácil. Mas deixe-me fazer uma pequena observação para não sermos injustos com o pobre do Florestan. A ciência brasileira deve-lhe muito. Muito mesmo. E, aliás, por ser um marxista de verdade e certamente estar mais ligado intelectualmente, doutrinariamente, ao mundo de Marx, Durkheim e Weber do que o do empiricismo americano, muitas vezes ingênuo, a designação "modelo Florestan" que usei precisa ser matizada. O que existe de Florestan no modelo é a exigência com o rigor metodológico, o cuidado com o embasamento empírico das afirmações etc. A eventualidade disso terminar gerando trabalhos acadêmicos medíocres, por parecerem a aplicação de uma receita de bolo, não tem nada com Florestan, que foi um dos maiores sociólogos brasileiros. Veja a contribuição enorme que deu para a fortuna bibliográfica de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto. No caso, uma fortuna crítica. Criticíssima! Na verdade Florestan, nome incontornável no modelo USP de sociologia, foi um dos grandes responsáveis pela ojeriza que boa parte da intelectualidade brasileira desenvolveu durante muito tempo em relação à obra-prima de Gilberto. (Num breve parêntese, observo que Florestan nunca escreveu uma obra-prima...). Gilberto, mesmo não tendo sido o autor da expressão, é verdade que deu munição teórica à tese da "democracia racial" brasileira, que hoje qualquer conhecedor de Brasil não hesita em considerar um "mito". Pois bem. Foi a produção uspiana, inclusive de Florestan, com o seu importante "A Integração do Negro na Sociedade de Classes" que erodiu o mito. E essa erosão se deu a partir de trabalhos sociológicos dotados de um rigor metodológico que a produção ensaística, pelo menos a princípio e a olho nu, não tem. Então, que fique bem claro que sou intransigente em relação ao rigor do sociólogo. Agora, se ele puder embalar esse rigor numa roupagem ensaística (que não se confunde com o mero discurso ideológico, note bem), ótimo! Ótimo sobretudo para o leitor, que vai saborear, e não estudar, a sociologia... Digamos que o ideal é o famoso dístico de Barthes, do saber com sabor. Não é fácil...
Fernando – Refletindo um pouco sobre os paralelos que você traça entre o bruxo Machado e o rabugento Graciliano, retenho a impressão, não sei se equivocada, de que você se inclina mais para o segundo. Fale-me um pouco, muito livremente, sobre sua leitura de Machado e de Graciliano.
Luciano - Machado, literariamente falando, é insuperável.Os seus textos, pelo menos a partir de um certo momento (digamos, o "segundo Machado"), são tão graciosos, tão engraçados, tão elegantes, que às vezes faço como o crente que abre a Bíblia em qualquer página e começa a ler. Dela ele sempre extrairá algo para o seu senso ético e estético. Pois bem, de qualquer página de Machado sempre extraio qualquer coisa que causa prazer ao meu senso estético. Mas Machado como pessoa é uma figura completamente desinteressante! Foi um funcionário exemplar, deferente, um mulato que subiu na vida graças ao próprio gênio e apagou os rastros da origem pobre, da qual se envergonhava. Foi um dissimulado. Vingou-se escrevendo uma obra tão corrosiva que não conheço autor que, como ele, deixe pedra sobre pedra da suposta grandeza do homem. Já Graciliano, como procuro sustentar no ensaio "O Caçador de Hinos", que é o último do livro, foi um herói brasileiro. Somos um país com uma vocação tão grande para a molecagem, ao mesmo tempo tão aferrados a um incrível bacharelismo oco em que ninguém acredita, que você falar em herói brasileiro já parece que está de gozação. Mas, não! Graciliano foi isso. Além de ter sido o extraordinário escritor que foi, o velho Graça era um sujeito de uma integridade moral tão grande que nem parece ter existido um sujeito assim num país como o Brasil. Célebre e amigo do ministro da educação Capanema, poderia ter sido um sinecurista de primeira, sobretudo depois que saiu da prisão e virou uma celebridade que todo mundo queria reverenciar... Pois só conseguiu empobrecer ao longo da vida. Terminou seus dias vivendo como copy-desk de jornais e inspetor de ensino secundário no Rio de Janeiro, onde passava as tardes pegando ônibus e gastando a sola do sapato para visitar as escolas que devia fiscalizar... Dos onze meses no inferno que passou nos cárceres da ditadura de Getúlio, extraiu uma obra-prima da literatura mundial, "Memórias do Cárcere", um livro que todo brasileiro deveria ler. Enfim, entre Machado e Graciliano, minha razão balança. Mas se for escutar o coração, um carinho especial vai para o alagoano, sem dúvida. Que escritor! Aquela primeira página de "São Bernardo", acho a melhor primeira página de toda a literatura brasileira... Ih, estou me deixando levar pelo entusiasmo. Digo isso porque me lembro que uma vez lhe disse isso e você, muito maliciosamente, perguntou: "Mas você já leu toda a literatura brasileira?..." Lembra da risada que demos?