
Outra vez te revejo
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Álvaro de Campos.
Tuas ruas ainda as mesmas
quem sabe mais tristes, mais que desoladas
mais a inexorável morte cujo espectro pelo teu corpo se alonga.
Ando-te com medida lentidão e quase medo
como se teu ventre segregasse minas
tuas águas pântanos, tuas ruas túmulos.
Ando-te, Igarapeba, como se estranhos fôssemos.
Nos teus quintais procuro minha infância
na Rua do Comércio a minha casa
nas calçadas vestígios de um tempo
para sempre em tuas noites dissolvidos.
Iniludível a exatidão desta luz que nos cega:
estranha és para mim
estranho sou para ti.
De ti o tempo tão-só reteve
quando mesmo não agravou
a face mais brutalizada e triste, Igarapeba.
De ti este rio, murmúrio último
da eternidade que te sobra.
De ti a musculatura retesada
desde o princípio vencida
a errar solitária por essas ruas
gestadas do acaso e vão propósito.
De ti as casas ensombrecidas
em vagos corredores empilhando
memórias de família e agregados.
A luz fosca filtrada nos telhados
curvados sob a noite do sem-tempo.
Meu rosto, rompida fuga no tempo
eu o procuro na superfície das águas moventes
mas o leito é uma só compacta viscosidade
as águas a irrespirável matéria sobrante
de naufrágios e invernos sem reparo.
Teus homens, Igarapeba, o teu legado de sangue, são mortes
no desde-sempre-sem-som.
Conservam ainda, ó mistério, nula aparência de vida:
andam, conversam, mastigam, cochilam
entre a rotina e o sono.
O tempo é um tempo neutro de resignação e paciência
de desesperança e diluída memória.
Teus homens há muito estão mortos, Igarapeba.
Há entanto neles alguma coisa que semelha vida.
Alguns falam, me cumprimentam
outros - teimosa humana matéria! - até sorriem
um perplexo sorriso de conformação.
Teus homens, ébrios fantasmas, sobre as ruínas tombados
são pó poeira ruína
lutando nos muros e esquinas
contra a ciência da pedra
essa indomada matéria interpelando no tempo
a impotência dos que te habitam.
Teus homens há muito estão mortos, Igarapeba
e entanto a ti me devolvo
já tantas mortes morridas
já tantas vidas sofridas
para enfim andar-te certo, dolorosamente certo
de que meus passos estão já tão mortos
quanto estão teus mortos
minha vida viva quanto tuas vidas.
E eu que errei tantos dias
anos estradas sem mapas
para nas mãos tomar-te como se foras
ainda a mesma, ainda a que neguei
rasgo teu ventre à cata de raízes
que foram minhas sem que as quisesse.
A ti regrido mais que a mim e a tudo
e te devasso desnudo e te esquadrinho.
Mas tua face, a única sobreviva
é só o pó o poço
onde calaste o tempo o rio a minha infância
eco sem voz na memória.
Fernando da Mota Lima.
Recife, outubro 1975.
Reescrito em 14 outubro 1995.