domingo, 27 de dezembro de 2009

Passagem do Ano


Como se um pouco morrêssemos. Como se algo em nós, assim vago e indefinível, já se fechasse ou se rompesse. Amanhecemos no entanto os mesmos, ainda que outros, ainda que nunca integralmente o que ontem fomos. Bem pensado, é antes um ano que se completa, que em cada um de nós se encerra ou se renova. Bem pensado, morre antes um calendário. Melhor pensado, não há senão um dia passando. Há porém ritos, há tradições, há criações dos homens que nos fazem viver como se tudo fosse um ano, talvez a própria vida, num dia transfundido. E tudo nesse cerrar de olhos se acumula. Como se muitos dias nos repassassem e tudo assim tão vário e longo fosse já longe, ou não tão perto.
Talvez porque falíveis, irredimíveis sujeitos de desejo, carecemos de celebrar num só tecido de sonho, poeira e esperança o rito de passagem do ano. E embora os fatos só fatos em tudo assinalem não mais que uma troca de calendário, o delírio de consumir uma infinita cadeia de objetos que em verdade nos consomem, no cerne do nosso desejo lutamos contra os opressivos limites da satisfação efetiva. Assim, se consiste o nosso desejo na busca de prazer e felicidade sempre precariamente realizados, uma força maior que a crua medida dos fatos move nossa humana oficina a forjar no chão da poeira vencida um modo de estelar transcendência.
Dorme em mim, meu fim de ano. Em mim sossega, meu simples dia. Mas tantos és, em tantos te prolongas, em tantos te multiplicas, que é impossível sejas um só. Dizer-te um dia quando tantos para ti convergem. Dizer-te um dia quando criações sociais que nos transcendem já te convertem em síntese de dias outros tão muitos e dessemelhantes. E não obstante ritmado pela rotina, cá dentro pulsa a certeza de que nenhum dia noutro se repete, que a cada manhã sou eu um outro acordado movendo-se para além do choque confortador da repetição.
Quero dormir, 2009. Acordar outro e todavia estranhamente eu mesmo. E amanhã abrir os olhos com a mesma serena desesperança com que agora te repasso e bem te deixo. E em mim nenhuma saudade, nenhuma dor a doer-me. Saber que há homens, que há amigos; que no corpo latejam vida, ânsias, desejo; que a mulher é meu princípio, naufrágio e fim. Querer meus vivos, poesia. Amar meus amigos. Com tudo embora, e apesar de tudo, saber que há campos e iguais caminhos. Que diferenças se encaram e se irmanam e se completam, também se chocam.
Ser sem tempo, ou imaginariamente de todos, não de hoje, não deste dia transpondo a fronteira do calendário, iluminando o umbral de um novo ano. Apesar de tanta divisão e finitude, apesar do culto contemporâneo da diferença e da particularidade, sonhar ainda e sempre o ideal universalista de Sócrates e Montaigne, dos iluministas do século xviii, de toda a tradição universalista inspirada pela crença de que somos antes de tudo materializações singulares do gênero humano.
Impossível já tanta coisa, coração. Mas saber que pulsamos. Entre amor e ruga, entre insônia e riso, saber que pulsamos. Há um calendário, sei, e ele segrega tempo e o tempo rompe a linha da neutralidade aparente. Mas saber que o ultrapassamos, saber que o vencemos. Ou que o suportamos. Alguns erros passaram, outros esquecemos, mais outros perdoamos. E nos perdoamos. E outros virão, saber eu sei. No fundo ensinam limites, aclaram nossa medida, estranha e humana medida.
E prosseguir a viagem. Rolar de esferas e trilhos. Saber que há múltiplos e incertos caminhos. Mas confiar, crer ainda que para algum improvável ponto muitos convergem e se enlaçam. Ou pelo menos se cruzam. Pelo menos se acenam: forma sutil de arar o caminho do outro. Poder ainda confiar em poucos e exatos homens. Confiar nesses que são eu quando fora de mim, modo de possibilidade que não pude nunca alcançar. Confiar nesses que incorporo, que além de mim me completam e nesse grau me pertencem. Acima de ilusões, do vão e vago consolo, acreditar que é ainda possível. E prosseguir a viagem. Gostando, malgrado tudo. Quanto a ti, 2009, não te dissolves senão nesse calendário de tão passado já frio.

És meu cá dentro e és presente.
Por meu direito e conquista
eu te incorporo e possuo.
Com tudo que a mim me coube
que me ofertaste e perdeste.
Com toda a dor e ausência
desejos nunca possíveis
fatalizadas passagens.

E que por fim nos encaremos. Que nosso olhar irradie essa franja de vida a desenhar-se nos trilhos onde na noite rolamos. Talvez até por acaso. Pois que hoje, pelo menos hoje, também acolhamos o acaso. Até porque temos sido demasiada necessidade. E o último dia ainda não veio. E talvez demore.


Fernando da Mota Lima.
Recife, dezembro 1996.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Silke Weber - A Queda


After the Fall
ou
Uma queda e algumas (di)versões

Silke (recolhendo, ou ocultando?, algumas provas do crime) - Quando dei por mim, Heraldo, Adriana, Jorge e Pope estavam como que miraculosamente suspensos no ar da varanda. Como se levitassem. Se eu me encontrava caída? Claro que não. Isso não passa de conversa de desafeto. Ou da oposição, se você prefere entender esse estranho episódio em linguagem política. Já lhe disse que não caí. Apenas escolhi ver o mundo de uma perspectiva inusitada. Alguma conexão entre a queda do muro de Berlim e a queda da cadeira? Mas que absurdo! O muro não caiu. Eles desceram. Do muro, claro. Se eu recomendaria uma poltrona Dolfin? De modo nenhum. Nem na varanda de um anfitrião insuspeito.

Pope (saindo do consultório do ginecologista) - Mas é claro que ele anda muito mudado. Como não, gente? Afinal, sem querer dar uma de esposa indiscreta, ele vinha tentando há mais de dez anos. Passado o susto e o alívio de não mais precisar repetir aquela frase sombria de Machado de Assis, que com certeza tentou mais do que o meu marido e sempre em vão, como atesta a história literária, ele logo cedeu a outros temores absurdos. De que tipo? Temor de o nosso futuro filho aprender a cantar como João Gilberto, ou ser uma filha paquita como a Xuxa, ou transformar-se num ator de teatro lépido e fagueiro. Espera aí: o que isso tem a ver com o serrote e a queda da Secretária de Educação? Se vi meu marido escondendo um serrote? Claro que não. Na verdade, ele falou, sim, algo parecido. Mas não sei se disse serrote ou Seurat. Por que Seurat? Ele estava folheando um livro sobre pintura impressionista. Por que serrote ou Seurat? Por que serrar?

Heraldo (envernizando uma cadeira de três pernas) - Quem disse que empurrei a cadeira onde a Secretária estava sentada? O gravador está desligado? Nesse caso vou falar a verdade: não empurrei, mas bem que gostaria de. Por quê? Porque talvez fosse esse o único meio de afastá-la da disputa sucessória. Meus motivos? Puramente egoístas. Sinto falta das piadas nos corredores da pós-graduação, das nossas pequenas disputas acadêmicas, dos chopes no fim do expediente. Não sabe que importância têm essas coisas banais? Também não sei muito bem. Acho que é porque uma grande amizade, resistente aos anos, rotinas e toda a sorte de divisão, é como um casamento sem sexo, comunhão de bens e sucessão de propriedade. Como há muito concluí que não valeria trocar meu cavalo (quero dizer, minha amiga) pela manutenção do meu reino, não hesitaria em empurrar a cadeira. Contanto que se fosse apenas a da sucessão, não a da minha amiga. É. Alguém disse, sim, alguma coisa sobre reino e cavalo. My kingdom for a horse, acho. Mas naquele tempo não existia ainda poltrona Dolfin. Apenas execução sumária nas disputas pela sucessão política. Também lamento. Era um método mais eficaz e suscitava versões menos fantasiosas do que essas inspiradas pela queda da Secretária do alto de uma reles cadeira.

Adriana (levantando-se da cadeira, que tinha quatro sólidas pernas e não era Dolfin) - Não, não vi nada. Quero dizer, quando vi, a Secretária estava já na horizontal. Como se levantou? Tão imperturbável quanto Heraldo diante de uma heraldete reprovada ou Thomas More diante do homem que lhe cortou a cabeça. Não vi nada disso. Acho que tanto um quanto o outro seria capaz de serrar a cadeira. Não, Moacir estava ouvindo Miles Davis. Era Jorge quem folheava o livro sobre pintura impressionista. Concordo que ele é muito impressionável, mas é preciso muita imaginação para transformar Seurat num serrote. Talvez a Secretária pense algo bem diferente, admito. Especialmente se a cadeira foi de fato serrada. Se eu empurraria a cadeira? Meu Deus, nem Heraldo chegaria a tanto.

Moacir Miles Angels (de costas para o interrogante como Miles Davis soprava o trompete de costas para a platéia) - Se a Secretária estava sóbria? Não posso garantir. Até porque não aposto em Lei Seca numa roda onde houver músico de jazz, político e intelectual, acadêmico ou não. O que vi? Mas eu não vi nada. Aliás, não costumo ver nada. Meu negócio é ouvir: jazz, Miles Davis, João Gilberto, Billie Holiday, Chet Baker. Quando estou desocupado? Ouço jazz. Ah, esqueci de dizer que vejo filmes. A queda? Que queda? Não me lembro sequer de cadeiras na varanda.

Jorge (dissimulando um objeto suspeito) - Eu estava serrando as páginas de um livro de arte. Quero dizer, estava folheando um livro de arte. Lembro, sim, que depois da décima lata de cerveja chamei a atenção de Pope para a foto de uma obra de Seurat e disse: É Seurat. Não, não me lembro se a Secretária caiu antes ou depois da invocação deste nome. Se tenho um serrote em casa? Claro que tenho. Se tanta gente tem revólver, cachorro, dólar e até fuzil em casa, por que não posso ter um serrote? Ah, é um instrumento de mil utilidades. Serve para serrar pão, antigas edições de livros com páginas lacradas, imagens de Cidadão Kane e cd de João Gilberto. Uma vez pensei em serrar o corpo de Pope. Mas foi só uma vez. Quando vi Janela Indiscreta. Mas nesse tempo eu era de fato muito impressionável. Hoje eu serraria a janela e ficaria com Grace Kelly. Quero dizer, ficaria com Pope. A cadeira da Secretária? Desculpa, eu tinha esquecido. Não, não serrei. Vai ver que foi Seurat.

Nona (removendo livros de economia da estante sólida como uma cadeira Dolfin) - Ele mudou muito. Acho que tudo começou no dia em que fez uma palestra no Mispe sobre jazz e cadeira elétrica. Perdão, eu quis dizer jazz e cinema. É verdade. Ele alcançou num dia a fama que Keynes, Delfim Netto e outros economistas lépidos e fagueiros não alcançaram depois de anos produzindo na área da ciência econômica. Ficou tão convencido que até comprou uma caneta de ouro para assinar autógrafo depois da segunda palestra. Hoje não faz mais nem orçamento doméstico. Somente pra provar que não é mais economista. Serrote? Não. Anda falando em comprar trompete, saxofone, clarineta. Falou até em comprar uma tuba. Mas serrote não. O que ele iria fazer com um serrote num conjunto de jazz? Serrar a cadeira da Secretária? Melhor serrar a de Fernando Henrique Cardoso.

O anfitrião (bocejando na manhã seguinte) - Mas como? Eu nem estava em casa.
Epílogo
A Rainha destronada - Quando me vi sobre o chão, tão nula e nua de poder quanto quando nasci, medi-me pelo metro da poeira que daqui de baixo nos espreita e afinal compreendi o que significa dizer: vaidade, tudo é vaidade.Mas de que me valeu essa lição tardia, se dentro de alguns minutos minha cabeça rolará para fora do meu corpo? Tudo como antigamente, como nos tempos em que havia reis e sucessão real. Muito, muito antes de inventarem a poltrona Dolfin. Já que vão mesmo me decapitar, por que afinal não me revelam que força me destronou?

Fernando da Mota Lima. - Recife, 12 novembro 1995.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A Modernidade nos Trópicos


Revisitando o leito promíscuo do nacionalismo

Valéria da Costa e Silva incorre num gesto de reconhecimento generoso que bordeja a ironia temerária: convida um obscuro estudioso de Gilberto Freyre e Mário de Andrade para assinar o prefácio de sua obra consagrada à interpretação destes representantes supremos do nosso nacionalismo cultural. Ela põe com isso suas cartas na mesa, ponho eu as minhas ao arriscar-me a escrever o prefácio, e seja portanto o que Deus quiser.
Valéria é uma das mais distintas expressões de uma geração pernambucana iniciada nos bancos acadêmicos das ciências sociais que mais tarde, seguindo vias retas e tortas, alargou seus horizontes mentais integrando a sociologia à literatura, à antropologia e aos domínios polivalentes dos estudos culturais. Falando dos poucos que conheço, e cuja obra em processo posso razoavelmente avaliar, acrescentaria a seu nome os de José Luiz Passos e César Melo - além de dois outros, Maria Eduarda Rocha e Brenno Kenji cujas trajetórias bem mais diferenciadas anulam qualquer tentativa de aproximação com os demais que brevemente associarei nos limites deste parágrafo. Desmamados no Curso de Ciências Sociais da UFPE, ali encontraram ambiente pouco propício às interações entre sociologia e literatura. Daí salientar que foi decerto a passagem de todos por universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro o estímulo maior para que encurtassem a distância entre campos de saber hoje prevalecentes na formação e na obra que estão amadurecendo. Ainda mais decisiva, e definidora, foi a experiência que viveram em universidades americanas.
Atendo-me ao caso específico de Valéria, pode o leitor criterioso de pronto observar que seu livro inscreve-se numa zona de intersecção onde se cruzam e não raro se enlaçam a sociologia, a literatura, a antropologia e a história social. Todos esses saberes, integrados de uma forma incogitável dentro das reduções correntes nos campos estreitamente especializados da academia, precisam ser de resto mobilizados pelo estudioso que se aventure a investigar obras como a de Gilberto Freyre e a de Mário de Andrade movido pelas ambições palpáveis no livro de Valéria. De certo modo, esses limites abrangentes são impostos pela própria natureza do objeto que ela elegeu. Afinal, ambos os autores acima se propuseram produzir uma obra caracterizada por ambições amplamente fundadoras de projetos de cultura e identidade nacional, assim como de interpretação literária e cultural. Coerentes com esse propósito, concentraram nas obras que mais os distinguem e lhes sustentam a posteridade – Casa-Grande & Senzala e Macunaíma – uma síntese da cultura brasileira. Some-se a tudo os meios expressivos empregados pela autora cuja prosa límpida e fluida, tão afim da nossa melhor tradição ensaística, é plástica o suficiente para à vontade incorporar tons confessionais e vivas ilustrações sócio-antropológicas recortadas do cotidiano que observa com notável sensibilidade interpretativa. Atente-se ainda para alguns tons e argumentos francamente polêmicos, que adiante melhor considerarei.
A geração de Valéria passou ao largo da obra de Gilberto Freyre. Melhor diria se frisasse que a ignorou. Sendo ainda mais preciso, negou-a quase sempre sem conhecê-la. Refiro-me aqui, fique bem claro, a um fenômeno geracional. Logo, não se aplica a nenhum indivíduo específico. Não se aplica a Valéria, que não sei até que ponto está individualmente implicada nesse fenômeno geracional. Mas o fato é que o apoio ativo emprestado por Freyre à ditadura militar decisivamente concorreu para seu isolamento intelectual antes de tudo na esfera acadêmica, ironicamente convertida em nicho do pensamento de esquerda sob patrocínio da própria ditadura. A contestação, explícita ou comprimida, aberta ou dissimulada, estendeu-se à obra de Freyre, que amargou durante duas décadas um misto de silêncio e refutação baseada na ignorância. Narciso acha feio o que não é espelho. Pior ainda: o que é indiferença. Trocando em miúdos: falem mal, mas falem de mim. Quase ninguém falava e bem se pode imaginar o quanto isso castigou a vaidade do nosso grande intérprete da cultura brasileira.
Mas o fator acima, decerto o mais decisivo para o isolamento que Freyre suportou até meados dos anos 1980, foi precedido por dois outros bem anotados por Peter e Maria Lúcia Burke em livro recente: Repensando os Trópicos. Ressaltam que a obra produzida por Freyre desdobrava-se a contrapelo da sociologia hegemônica instituída pelo grupo de uspiano formados sob a liderança de Florestan Fernandes. O primeiro fator refere-se ao modo como Freyre interpreta as relações raciais no Brasil. O segundo afeta o método – ou sintomaticamente falta de método, como acusou Dante Moreira Leite em O Caráter Nacional Brasileiro - e até de concepção sociológica estrita num intérprete que tão à vontade desrespeitava as fronteiras convencionais demarcadas no conjunto das ciências sociais. Num momento em que Florestan Fernandes e seus discípulos, somados a outras correntes nutridas pelos grupos acadêmicos em ascensão, lutavam para impor no Brasil um padrão científico, com ou sem aspas, à sociologia brasileira, Freyre reiterava e até excedia um procedimento hermenêutico patente desde sua obra inicial. Além de livremente mesclar disciplinas como a sociologia, a antropologia, a história social, a psicologia e tantos outros saberes de alcance mais restrito, vertia tudo isso numa prosa fluida e inventiva revestida dos mais altos valores ensaísticos. É sabido o quanto ele prezava esses seus valores antes de tudo literários, fato que enfatizava ao ponto de se dizer antes de tudo um escritor.
Presumo que as sumárias indicações acima concorrem para em algum grau esclarecer o ajuste de contas a que Valéria procede no seu livro. Sendo uma estudiosa empenhada e franca, já no prefácio anota ser uma admiradora convertida de Freyre. O qualificativo, tão concentrado no tom alusivo apenas para o leitor desatento, remete às questões indicadas nos parágrafos precedentes. Como intelectual empenhada, a obra de Valéria diverge dos estudos neutros, não raro expressos em estilo anódino. Mais que empenhada, ela vive e escreve calibrada pelo ritmo da paixão. Sendo assim, ela enquanto autora se espelha em linhas nítidas no conjunto da obra. Pois afinal este é um ingrediente definidor das obras empenhadas e passionais. É assim coerente que anuncie, já no prefácio, sua determinação de embrulhar-se em vários ajustes de contas. O primeiro, como já sublinhei, é com ela própria, com esse passado recente, individual e coletivo, tendente ao desapreço ou franco desprezo pela obra de Freyre.
O livro de Valéria sustenta, assim penso, um paralelo com a obra que me parece a mais renovadora dos estudos sobre Gilberto Freyre. Refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallares-Burke. Ela é a primeira a reconhecer a importância desta obra, fato que registra no seu prefácio. Isso todavia não desmerece os méritos de Valéria nas partes do seu livro em que explora temas semelhantes àqueles desenvolvidos por Pallares-Burke. Pelo contrário, entendo que em certos planos as duas obras se complementam. Por exemplo: Um Vitoriano dos Trópicos limita-se declaradamente a rastrear as fontes estrangeiras, notadamente inglesas, decisivas para a formação intelectual e ideológica do jovem Freyre, processo que culmina na composição de Casa-Grande & Senzala. Sua investigação se detém coerentemente nesse ponto. Valéria vai além, em certa medida confessadamente apoiando-se na contribuição renovadora de Pallares-Burke, ao estudo desta acrescentando as fontes brasileiras nas quais Freyre comprovadamente bebeu. É o caso, fiquemos neste, da contribuição que Joaquim Nabuco presta à interpretação de Freyre relativa à experiência escravista brasileira.
Além disso, o escopo do seu livro é bem mais abrangente, o que constitui outro elemento diferenciador significativo, além de acrescentar qualidades indiscutíveis à sua investigação. Não satisfeita de cobrir um amplo espectro de questões mapeadas na obra de Freyre, que pode de resto ser lida como uma micro-enciclopédia brasileira, Valéria salta para questões do presente, algumas prenhes de equívoco e matéria de controvérsia. Nesse sentido, ela antecipa o livro de Peter e Maria Lúcia Pallares-Burke recém-publicado: Repensando os Trópicos. Isso é evidente, por exemplo, na sua tentativa de articular um ponto de vista brasileiro em face do acelerado processo de globalização cultural em que vivemos. É ainda evidente nos argumentos que expõe relativos à política de cotas e suas implicações para as relações raciais no Brasil. Seu ponto de vista, neste passo, é nitidamente tributário da interpretação proposta por Freyre para um adequado equacionamento das interações entre raça e cultura. Embora refute a noção de democracia racial enquanto fato, assim como aliás procedem muitos dos que neste quesito substancialmente concordam com Freyre, ressalta com razão o significado positivo de uma política racial, melhor diria cultural, inspirada pelo mito da democracia racial, ou uma política que vise esse fim como horizonte utópico. Noutras palavras, sem negar o fato do racismo à brasileira, sobretudo as iníquas condições de desigualdade que nos distinguem daqueles países que efetivamente completaram seu projeto de modernidade, valendo-me aqui de uma alusão a argumento proposto por Habermas, Valéria aposta no sentido simbólico do mito da democracia racial. Isso ainda renderá muita briga e incompreensão, mas espero que ao cabo todos se salvem, sobretudo os valores de tolerância e equilíbrio de antagonismos, para lembrar uma expressão tão cara a Gilberto Freyre.
O zelo pelo mito da democracia racial, ou ainda a dimensão utópica inscrita no horizonte de nossas relações raciais, pode inspirar crítica ou franca aversão ao estudioso estreitamente positivista, assim como aos críticos da ideologia que nela identificam tão-só um instrumento simbólico a serviço da mistificação e dos interesses inconfessadamente orientados para a dominação. Parece-me que os que incorrem nessa clave analítica adotam uma concepção muito pobre da realidade social, assim como dos critérios de verdade entroncados nas práticas epistemológicas que sustentam. Pois me parece que só uma pessoa muito ingênua, ou intelectualmente bem apressada, teria a presunção de discriminar verdade e ilusão, mito e história em termos absolutos. Diante disso, prefiro ficar com o que chamaria de efeito de realidade. Isso quer dizer, em resumo, que a crença num mito racista, como o da pureza e superioridade ariana celebrada pelos nazistas, tem o poder de criar efeitos de realidade devastadores. Portanto, fico com Freyre, Darcy Ribeiro, Valéria, Peter Fry e Caetano Veloso, entre outros, que não obstante conscientes de que nossa democracia racial é um mito, assim como nossa iníqua desigualdade um fato que nos amesquinha enquanto povo e nacionalidade, reconhecem a força fecunda do mito e do ideal utópicos postos a serviço de fins humanistas mais altos.
Mito por mito, antes o da democracia racial. Talvez nunca alcancemos chegar lá, pois confesso ser bem menos otimista do que Freyre e Valéria. Ainda assim, antes um mito orientado para o bem do que para o mal. A propósito, gosto sempre de lembrar uma anedota relatada por Ray Monk na sua extraordinária biografia de Wittgenstein. Certo dia um discípulo deste procurou-o ansioso por saber o que deveria fazer para melhorar o mundo. Resposta de Wittgenstein: Procure melhorar a si próprio, pois isso é tudo o que você pode fazer para melhorar o mundo. Transpondo o conselho da esfera individual para a social, diria eu parafraseando o filósofo: procure cultivar e lutar por mitos culturais que concorram para melhorar a sociedade na qual vivemos. Assim você fará algo no sentido de melhorar o mundo.
Como ligeiramente já indiquei, Valéria com razão identifica na obra de Freyre uma referência crucial para orientar nosso processo de inserção no universo da cultura globalizada. Valéria é uma crítica enfática da globalização, tão enfática que em algumas passagens roça o limite de uma representação unilinear dessa rede complexa de interações. Mas ela está bem ciente disso, ciente do fato de que a globalização, embora posta a serviço, no plano das relações de poder, do capital e da hegemonia americana, supõe antes de tudo intercâmbio e negociação em todas as esferas de circulação dos bens negociados, sejam eles econômicos ou culturais. Tanto tem disso consciência que repõe a obra de Freyre na temporalidade mais inquietantemente presente, regida por essas forças globalizadoras, para simultaneamente formular uma crítica às forças dominantes do processo de globalização e assinalar as forças e vantagens culturais que o Brasil detém e precisa afirmar nesse processo. É precisamente aqui que uma atualização crítica da obra de Freyre lhe parece inestimável. A mestiçagem, fator tanto empírico quanto analítico que graças a ele tornou-se referente hegemônico na constituição da nossa identidade, converte-se agora, num mundo regido por inumeráveis formas de hibridização, em um precioso elemento de vantagem adaptativa ao cenário globalizado do mundo. Também conceitos de timbre freyreano, como plasticidade e equilíbrio de antagonismos, concorrem na visão de Valéria para melhor nos adestrarmos com vistas aos desafios e efeitos de realidade impostos pela globalização.
Há uma passagem de A Modernidade nos Trópicos que evoco com o propósito de chegar a uma breve consideração relativa à política ou ausência de política de expansão urbana do Recife. Recompondo com fina argúcia analítica as impressões que Freyre recolhe de seus primeiros contatos com a Nova York do início dos anos 1920, já em acelerado processo para converter-se no símbolo mítico da modernidade global, assinala a sensibilidade tradicionalista de Freyre. Daí em parte a crítica deste à arquitetura urbana recortada nas linhas verticais e febris dos skyscrapers. Isso me fez imaginar o horror com que ele hoje observaria essa expansão insensata e predatória do Recife tristemente expressa na corrida em que céu acima se engalfinham Moura Dubeux e Queiroz Galvão esfolando operários cobertos de cal e pó para ver quem primeiro assalta os limites da Torre de Babel. Seguindo sugestão semelhante já proposta por Peter Burke e Fernando Henrique Cardoso, eis aí um tema precioso para os atualizadores críticos da obra de Gilberto Freyre.
Um dos pontos mais altos de A Modernidade nos Trópicos consiste na aproximação que Valéria argutamente traça entre Sobrados e Mucambos e Orientalismo, de Edward Said. Começa frisando conceber Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos como uma unidade, além de ressaltar a beleza deste evocando juízo certeiro de José Guilherme Merquior. Vale a pena de passagem lembrar que o próprio Gilberto Freyre certa vez referiu-se a este livro como sendo sua obra-prima. Também Darcy Ribeiro propõe que se leia ambos como uma unidade, tanto que no seu entender as duas obras deveriam ser publicadas conjuntamente. Contrastando estas duas partes da celebrada trilogia de Freyre, opõe Valéria as relações de continuidade observáveis em Casa-Grande & Senzala ao rico e complexo tecido de polaridades que estruturam seu prolongamento publicado em 1936. Mas o ponto mais original e fecundo de sua leitura reside sem dúvida na já aludida aproximação entre Sobrados e Mucambos e Orientalismo. Depois de sintetizar o sentido substancial do conceito de orientalismo extraído da obra homônima de Said, passa ela a sustentar e sobretudo comprovar que a obra de Freyre constitui uma expressão de orientalismo às avessas.
A valorização inusitada de nossa herança oriental é já patente em Casa-Grande & Senzala. Ao retomá-la aprofundando-a na obra seguinte, Freyre sem dúvida procede a uma operação interpretativa que converte valores culturais tradicionalmente encarados como negativos, ou mesmo desprezíveis, os de matriz oriental assimilados através dos contatos estabelecidos entre Portugal e Espanha com o Oriente, em valores positivos. É isso, em suma, o que Valéria designa como orientalismo às avessas. Sua demonstração do conceito e do argumento acima esboçado constitui, já frisei, um dos pontos mais altos do seu livro. Melhor deixar que o leitor confira com seus próprios olhos.
Noto que já estiquei bastante meu prefácio sem no entanto sequer mencionar muitos outros aspectos igualmente fecundos e sugestivos de A Modernidade nos Trópicos. Diante disso, vejo-me forçado a encurtar minha incursão pela obra de Valéria. Se o livro é já tão extenso, mas nunca excessivo, é no mínimo inconveniente alongar o prefácio além de certa medida razoável. Concluirei, portanto, fazendo ligeira menção às relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife espelhado, como faz Valéria, na ação de liderança intelectual exercida pelos dois intelectuais brasileiros mais decisivos e seminais do século xx: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Valéria lê ambos, assim como os movimentos que lideraram, num registro pautado pelo princípio da convergência. Nesse sentido, propõe aproximações consistentes fundamentadas na obra destes intelectuais que melhor traduziram o sentido culturalmente renovador do modernismo e do regionalismo. A revisão a que procede parece-me ainda necessária, embora outros tenham já felizmente aderido a essa perspectiva. Meu intento, nesse sentido, é lembrar que durante muito tempo prevaleceu na nossa historiografia literária e cultural uma apreciação de ambos os movimentos baseada num princípio de oposição e não raro até de franca hostilidade entre eles. Valéria demonstra o quanto essa apreciação é infundada e foi em certo grau nutrida e incentivada pelos próprios líderes de ambos os movimentos, notadamente Gilberto Freyre. Não posso infelizmente expor aqui esta questão de modo mais adequado. Mas o leitor poderá fazê-lo indo diretamente ao livro de Valéria.
Assentada muita da poeira que por décadas turvou nossa percepção das relações controversas entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife, assim como as relações entre Gilberto Freyre e a escola uspiana de sociologia, questão acima considerada, parece-me que agora respiramos uma atmosfera ideológica bem mais propícia a apreciações mais precisas e isentas. No que se refere a este quesito, o das relações entre modernismo e regionalismo, importaria fazer a devida justiça cronológica a José Aderaldo Castello, que no seu livro consagrado a José Lins do Rego propõe uma leitura integradora de ambos os movimentos, leitura que Valéria e eu livremente refazemos. Importaria ainda lembrar outros críticos importantes seguidores da mesma pauta integradora: Gilda de Mello e Souza e Antonio Dimas.
Por fim, uma consideração relativa ao nacionalismo cultural que percorre muitas das entrelinhas deste prefácio. Gilberto Freyre e Mário de Andrade são, acima de qualquer dúvida, os grandes representantes brasileiros desta fecunda e controversa corrente cultural e ideológica que impregna o conjunto da nossa vida espiritual. A partir de um certo momento histórico ela se faz tão onipresente, acasalando-se assim com toda a sorte de ideologia e movimento de idéias, até de ausência de idéias, que me ocorreu caracterizá-la como um leito promíscuo, expressão que Valéria adota extraindo assim do anonimato, com um gesto de reconhecimento generoso, um obscuro artigo que escrevi sobre o assunto. Lamento frisar que neste ponto crucial do livro adotamos posições divergentes. Como Valéria, segui apaixonadamente durante anos o enredo do nacionalismo cultural assinado por Gilberto Freyre, no meu caso ainda mais Mário de Andrade. Hoje alcancei um processo de revisão cuja resultante é meu distanciamento de ambos no ponto em que se apóiam nessa ideologia nacionalista para interpretarem o conjunto da nossa experiência cultural, assim como problemas de ordem sociocultural que há muito entravam nosso pleno ingresso na ordem da modernidade ocidental. Mas isso não importa para o leitor, que afinal abriu este livro para ler a autora de A Modernidade nos Trópicos. Espero que a leitura que se segue confirme pelo menos um pouco deste muito que sinceramente nele encontrei: é um dos cinco melhores estudos sobre a obra e vida extraordinárias de Gilberto Freyre.
Fernando da Mota Lima.
Recife, 2 de outubro de 2009.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Flávio Brayner -como uma canção de Jobim


Paulo Francis declarou certa vez que estamos ligados aos amigos verdadeiros pelos vínculos inapreensíveis da experiência geracional compartilhada. Noutras palavras, a amizade compreendida no seu sentido mais profundo seria inconcebível abstraída de um solo geracional comum. Penso que isso é discutível por anular uma noção de universalidade expressa na linha do tempo e do espaço que acredito verdadeira. Mas me parece inegável que sua afirmação contém muitos grãos de verdade. Amigos da mesma geração comungam uma unidade de sentido que é fruto de experiências sociais irrepetíveis e incomunicáveis a gente de outra geração, portanto singularmente associadas a determinadas circunstâncias infranqueáveis a quem viva antes ou depois delas. Pessoas pertencentes a uma geração distinta podem apreender o sentido dessas experiências, mas a apreensão será sempre de segundo grau, sempre mediada pela imaginação. Mesmo a imaginação empática, tão pouco comum, pode recriar o sentido do vivido, não a vivência. A vivência é privilégio ou desgraça exclusiva de quem viveu, não de quem pensa ou recria imaginariamente o vivido.

Vou falar de uma amizade perdida e no entanto presente na memória que no caso se traduz antes de tudo em memória musical. Se pudesse reduzir essa memória a elementos sensíveis constantes, minha descrição seria simples: dois amigos à volta de um piano, um tocando e outro cantando. O quadro se completa com alguma canção de Jobim, sempre Jobim, por vezes Chico Buarque, e bebida, cerveja e uísque ou vinho. Mas o solo profundo dessa amizade perdida, como acima sugeri, é incomunicável. Ele se enraíza na singularidade de situações próprias às pessoas que conviveram no contexto cultural típico de Recife e Olinda nas décadas de 1970 e 1980. Daí vieram desdobramentos musicais no cerne dos quais a música de Jobim se impõe soberana.

Flávio Brayner aprimorou seu toque de pianeiro durante os anos que viveu na França. O termo pianeiro, friso, nada encerra de pejorativo. Emprego-o com o propósito de sugerir que Brayner é um amador da música. Corrompido infelizmente pelo processo de mercantilização universal do amor, o termo amador hoje se reveste de sentidos depreciativos. Amador é agora oposto a profissional. Por extensão, o amador é aquele privado da competência ou qualificação do profissional, até porque não exerce seu ofício por dinheiro ou interesse, circunstâncias que adicionalmente o depreciam num mundo regido pela ideologia do mercado. Assim, foi sempre como amadores da música e da celebração da amizade e do convívio humano expresso em gratuidade e prazer que tocamos, bebemos e cantamos através de noites insones num país sem mapa ou exclusivismo de qualquer natureza. Sem nenhum ranço elitista, o que nessa atmosfera espontaneamente se manifestava era certa distinção de classe, traduzida no repertório ou gosto musical, hoje inconcebível nos círculos sociais que freqüentamos, o que nesse sentido justifica a observação de Paulo Francis relativa ao vínculo necessário entre amizade e unidade geracional. Como cantar e de fato ouvir as sofisticadas harmonias jobinianas dentro do tumulto que agora dá a nota a qualquer reunião social?

Flávio Brayner se gastou e nos gastamos em farras não raro sem hora ou lugar definíveis. Certa madrugada, acolhidos por amigos portugueses num hotel em Tomar, tocamos e cantamos para celebrar a passagem de três noivas cuja beleza deslizava pelo salão deserto alongando-se na cauda impecavelmente branca dos vestidos de casamento. Era como se do bojo daquele mundo remoto irrompesse uma cena felliniana pontuada pelos acordes do piano de Brayner. Poderia desfiar aqui um novelo infinito de memórias musicais variando os tons e circunstâncias da que acabo de sumariamente evocar. Mas ficarei na recomposição de apenas uma outra memória. É a que para mim mais importa, a que mais zelosamente retenho no baú das amizades idas e dissipadas, algumas irreversíveis, por ser a que melhor sintetiza o sentido da amizade que através de muitos anos me prendeu a Flávio Brayner. Antes mesmo de aventurar-me a esboçá-la na memória que aqui improviso, rendo-me humildemente à incapacidade de a contento traduzi-la. Seu sentido último e primeiro é intransferivelmente musical. Logo, não há para ele correspondente exprimível em palavras.

Um dia nos reencontramos no seu apartamento em Paris. Antes disso bebemos durante horas pelas ruas da cidade mais bela que conheço, não há bem como fugir no caso ao lugar comum. Com um litro de uísque diante do piano aberto, tocamos e cantamos até o amanhecer para matar saudades do Brasil. Vinha não apenas das ruas de um mundo estrangeiro, mas sobretudo de dois anos de absoluta ausência do Brasil, absoluta ausência da mais elevada expressão musical brasileira na companhia de brasileiros. Mais precisamente: da companhia do brasileiro com quem realizei um sentido de amizade intraduzível em palavra e gesto, em comunidade de confidência ou ofício.

Introvertido impenitente, Flávio Brayner pouco de si falava, salvo no que me dizia através da música de Jobim e Chico, nossa dupla suprema. Depois de mais de 30 anos de amizade, é espantoso considerar que nunca nos derramamos em conversas acaso comparáveis à magia da música através da qual sempre nos comunicamos e nos compreendemos e como amigos nos comovemos e sem palavras nos perdoamos o desleixo e o excesso tão freqüentes nos modos brasileiros da amizade. Foi no decorrer dessa madrugada que mais me senti amigo de Flávio Brayner, que, longe do Brasil, mais profundamente o senti revivendo em solo estranho, na inefável comunidade dialógica da amizade puramente musical, o que de mais alto e humano este país produziu. Cantamos Jobim e Chico, Lupiscínio e Caymmi, Noel e Pixinquinha, Edu Lobo e Antonio Maria, os frevos pernambucanos, a bossa e a fossa, tudo que é coisa nossa.

Quando enfim abrimos as altas janelas do apartamento, apercebi-me maravilhado de que a aurora já recobria os céus de Paris, seus telhados e boulevards. James Joyce celebra e recria na sua literatura os estados de epifania somente concebíveis através da experiência estética. Há outros modos de epifania, claro, mas o que para mim importa é o estético. Meu reencontro em Paris com Flávio Brayner foi um momento miraculoso, um momento de pura epifania que viverá em mim enquanto memória e enquanto sobreviva eu na matéria falível que sou.
Fernando da Mota Lima
Recife, 3 de dezembro de 2009.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Paulo Francis na Cabeça


Para Paulo Fradique e Tarcísio – amigos que saberão ler as linhas e sobretudo as entrelinhas deste texto.

Concebi estas breves notas opinativas, quando possível com seu grão de humor, em memória e louvor de Paulo Francis, um dos raros intelectuais brasileiros de opinião livre. Não raro divergi dele, do seu tom por vezes brutal, mas nele muitas vezes humildemente inspirei-me para ousar viver na contracorrente dos bem pensantes, do bom mocismo humanista, do servilismo mental que induz à adoção do juízo corrente. Sei bem disso porque foi nesse solo que me (de)formei: o do bom mocismo humanista de esquerda, o caldo de ideologia edificante correntemente batizado como o saber politicamente correto. Sapere aude, como reza a máxima procedente de Kant, tantas vezes amplificada no ensaísmo refinado e racionalista de Sérgio Paulo Rouanet, outra expressão de liberdade intelectual que também me inspira. Inspirei-me ainda no humor corrosivo de Millôr Fernandes, talvez o espírito mais livre que já existiu em toda a nossa tradição intelectual, tão afeita ao tribalismo ideológico, também ao radicalismo de cátedra, para evocar um outro intelectual que também me inspira: José Guilherme Merquior.
Foi com Paulo Francis e Bertrand Russell (um dos seus heróis intelectuais, também meu) que comecei a compreender o horror da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos. Mas logo também passei a compreender que a opressão política não tem bandeira, o que não quer dizer que seja a mesma em qualquer lugar, época ou circunstância. Mas acredito que pensar com liberdade é questionar qualquer poder, qualquer forma de dominação, não importando suas credenciais ou procedência. Acredito ainda que pensar com liberdade é aprender a discernir as infinitas tonalidades do mal e seu avesso, sobretudo a inesgotável cadeia de racionalizações de que nos valemos para mascarar ou justificar o que somos ou temos de pior. Neste quesito, o guia supremo talvez seja Freud, que também inspirou Russell, Francis e alguns dos outros modelos que procuro sempre lembrar quando tentado por todas as baixezas da nossa condição. Enfim, como diria Machado de Assis, longamente incompreendido por todas as correntes ideológicas como se fora apenas a estátua oficial erguida pela Academia Brasileira de Letras, tudo, menos ser empulhado. Repito Machado: tudo, menos ser empulhado. Encerro este intróito às breves notas opinativas que seguem citando com justiça e propriedade o próprio Paulo Francis: “Aceito os riscos e incertezas dessa liberdade, essencialmente modesta, pois me acho disposto a aprender do que e de quem me persuadir. Ainda que sozinho continuarei assim, pois sei que estou muito bem acompanhado”. Em suma, aludindo ao título de um dos seus livros, sigo as certezas da dúvida dentro da minha obscura solidão. Por mais metódica ou sistemática que seja, a dúvida encerra, sim, as suas certezas. Sem estas, ela está condenada ao niilismo inoperante e autodestrutivo.

Sou do tempo em que sexo era pecado.
Virgindade era virtude. Refiro-me evidentemente à virgindade feminina.
O Brasil parecia ter jeito, ou pelo menos a gente acreditava. Hoje a gente sabe que é insolúvel, mas finge acreditar que ainda dará certo.
Todas as pessoas de bem, ou supostamente de, tinham orgulho de ser de esquerda. Quem não era comunista era com certeza simpatizante ou companheiro de viagem.
Sou do tempo em que meus amigos brigavam por idéias, ainda que tortas e dogmáticas. Hoje brigamos apenas por cargos e escalas de renda e consumo.
Sou do tempo em que Gilberto Freyre era reacionário e liberalismo era um insulto ideológico. George Orwell era agente do imperialismo americano e Stálin era o grande benfeitor da humanidade. Che Guevara simbolizava um fuzil varrendo a América Latina com múltiplos focos revolucionários. Hoje, como o compram, é um mito romântico domesticado pelo consumo que o converteu em pura dureza enternecida.
Sou do tempo em que João Mohana era um iluminista da pedagogia sexual. Quem ainda sabe quem foi João Mohana? Pois esclareço: foi um padre e psicólogo autor de uma obra obscurantista que fez grande sucesso entre o público jovem e cristão: A Vida Sexual dos Solteiros e Casados. Punido por minha insaciável curiosidade juvenil, li a obra de ponta a ponta, entre excitado e temeroso. O efeito mais desastroso dessa insensata viagem no bojo do iluminismo católico da época foram as noites em claro atormentadas pela ameaça de contrair tuberculose e doenças ainda mais tenebrosas, pois esta era uma das mais doces consolações que o padre assegurava a quem ousasse masturbar-se ou ceder a outras práticas sexuais horripilantes.
Sou do tempo em que acadêmicos de esquerda iam fazer pós-graduação nos EUA e retornavam a suas universidades de origem para dissertar sobre paradigma histórico-estrutural com ares de quem estivesse fermentando uma revolução comunista nos minúsculos círculos elitistas da pós-degradação que se tornou uma fábrica de diplomas para doutores iletrados.
Sou do tempo em que pessoas de direita mascaravam seu direitismo alegando ser de esquerda. Com a derrocada fragorosa dos regimes supostamente comunistas, somada à ascensão da esquerda em países do tipo do Brasil, esquerda e direita foram ficando semelhantes ao ponto de em termos práticos se indiferenciarem. Sendo assim, não é de espantar que esquerdistas se orgulhem agora de ser de direita e direitistas se orgulhem de ser de direita. Enfim, parece que agora todos chegaram ao consenso tardio de que a realidade é de direita. Digo isso porque Freud – também eu, imodestamente – há muito sabia disso, fato que de resto não o torna necessariamente de direita. A propósito, quem sabe mesmo o que é ser de direita ou de esquerda?
A classe média ouvia Bossa Nova, Chico e Caetano, Edu Lobo e Gilberto Gil. Por isso olhava de cima, com patente desprezo, para bregas e bolerões como Waldick Soriano e Benito de Paula. Hoje, pasmem, Waldick, Benito e Ivete Seugalo são clássicos da MPB.
Filme de arte era atestado de identidade intelectual e ideológica. A gente morria de tédio, mas o tédio pagava os créditos do reconhecimento.
Sou do tempo em que Porto de Galinhas era um paraíso antropológico, uma povoação de pescadores de repente invadida por Marcelo Guerra, Maria, Maridite, o lendário Capitão América, Sueli, Zé Carlos, Bete, eu e outros bárbaros da civilização urbana. As meninas, pasmem novamente, acampavam a pretexto de dar plantão nas clínicas e hospitais. Era o único meio capaz de fazer a família, zeladora da virgindade feminina, afrouxar as rédeas de nossa liberdade juvenil.
Sou do tempo em que havia barulho no ar, nossa cultura foi sempre ruidosa, mas em algum remoto lugar era ainda possível captar no silêncio miraculoso da madrugada as ondas sutis de um acorde dissonante. Hoje, até dentro de minha casa, último e vulnerável reduto de minha liberdade, sou forçado a ouvir tudo que rejeito e odeio: o vendedor de gás, o traficante de cd pirata, o alarme dos carros, a febre trepidante da construção civil, o buzinaço dos torcedores de futebol eufóricos e toda a boçalidade repetitiva que designam como música popular contemporânea. A tortura mais inescapável e corrente do nosso tempo é a auditiva. Isso explica o paradoxo seguinte: num país orgulhoso de ser tão musical, bem poucos fazem e ouvem música. Ninguém precisa da idiossincrasia de João Gilberto, nem do recolhimento dos monges, para constatar o quanto fomos privados da liberdade de ouvir o silêncio.
Fumar era um ato de ingresso e afirmação dentro do mundo adulto. Era sobretudo sedutor e por trás da névoa de fumo a gente dissimulava a timidez e insegurança diante da mulher desejada. Hoje o fumante é o equivalente do comunista dos anos setenta.
Ah, o cinema ia morrer. Somente o livro, na crônica dos vaticínios catastróficos, teve e tem fôlego de sete gatos para morrer e ressuscitar mais que o cinema.
Como vêem, sou velho. Sou tão velho que nasci num outro século, num tempo em que palavrão era palavrão. Hoje é apenas refrão do vocabulário infantil.
Sou do tempo em que todo mundo era contra o mercado, tinha horror ao mercado. O mercado que reconhecíamos, e amávamos com tinturas de lírico esquerdismo populista, era o mercado popular com sua sujeira, seu tradicionalismo insalubre, sua inércia mercantil. Flávio Brayner e Luciano Oliveira, por exemplo, marcavam namoro aos sábados no mercado da Madalena, ou no de Casa Amarela. Em tempo: namoro com as namoradas, não namoro entre eles. Aliás, no meu tempo todos éramos machões, até as bichas. Shopping, invenção posterior agora convertida em templo do consumo, shopping era apenas chope.
Sou de tempo em que honestidade era virtude. Meu pai, já falido, vendeu os cacos sobrantes para pagar seus credores, não para antes investir num outro meio de vida. Bem, acho que ele confundiu honestidade com imprevidência. A prova é que durante anos vivemos apertados pela pobreza. Subi tanto, pasmem novamente, que hoje até pareço rico.
Sou do tempo em que havia apenas um marco teórico: o marxismo. Os outros estavam apenas condenados ao paredão da justiça pós-graduada. O mundo deu voltas tão alucinantes que até eu fui elevado à gloriosa categoria de marco teórico. O autor desta façanha, provável candidato ao Bobel das Ciências Humanas, é meu delirante amigo Flávio Brayner. E eu que sonhei ser apenas o marco zero. Friso a tempo, antes que me leiam como um seguidor da humildade, ou da nulidade intelectual, que o marco zero que tenho em mente é o fundador do Recife, a origem de todo esse vasto acampamento urbano que tantos orgulhosamente confundem com uma cidade.
Depois de transpor a barreira dos setenta, meu mítico amigo Daniel Lima divertia-se lembrando sua juventude de homem magro. Por isso ria repicando o mesmo e engraçado bordão: eu era tão magro... Pois também posso eu agora começar repetindo sua toada: eu era tão magro...
Por volta de 1915, Lytton Strachey, constrangido, declarava-se um velho à sua jovem amada Carrington. Tinha então 36 anos. Pouco mais tarde, aí por 1942, Drummond gravou este verso num poema: há muito pressenti o velho em mim. Tinha 40 anos. Não recuo ao século XIX porque então as diferenças eram ainda mais extremas. Basta lembrar que as pessoas já nasciam velhas. De lá prá cá, sobretudo hoje, essas medidas de idade sofreram uma autêntica revolução. Hoje os menores de 15 anos, incluídas as crianças, querem ser adultos apenas para exercerem o direito de praticar prazeres inacessíveis à criança e ao adolescente. Os adultos, maduros e velhos (perdão, quis dizer terceira idade) querem apenas ser adultescentes, isto é, aduladores dos delinqüentes. No futuro, não muito remoto, a cultura narcisista abolirá a velhice e a morte e então seremos todos eternos. Aviso que já sou.
Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de suportação da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?
Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Aliás, meu nome é gerúndio: Fernando. Faltou-me a coragem de ser Infernando.Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino.
Espanta-me ainda toda a cantilena que desenhamos em nome da felicidade. Dela falamos sempre e desejosos a evocamos como se ser feliz fosse um fim, quando não é sequer uma possibilidade. A felicidade é apenas um delírio obsessivo que inventamos, pois que seres feitos de nossa insensata matéria não podem nunca alcançá-la. Os afortunados, poucos mas reais, poucos mas empiricamente assinaláveis, provam-na enquanto estado, enquanto deleitação momentânea, não enquanto expressão de permanência. Se fôssemos capazes de ajustar a medida do que desejamos à medida do que efetivamente somos, regularíamos nossos desejos e fantasias imantados na medida da felicidade momentânea. Noutras palavras, não estamos no mundo para ser felizes.
Uma das mais graves e difundidas moléstias do nosso tempo é a compulsão de ostentar felicidade e otimismo. Pessoas visivelmente infelizes falam de si próprias como se fossem clipes publicitários ambulantes. O cúmulo dessa estranha forma de alienação é o slogan “sem medo de ser feliz”. Se bem o entendo, ele sugere que a única razão de nossa infelicidade radica no medo que sofremos de conquistá-la ou simplesmente fruí-la.
A mulher? Sei que é a grande ausência aparente deste delírio em que racionalmente me meço e me repasso. Como falar da mulher num texto em que ironicamente me cotejo no tempo neste acentuando as linhas indisfarçáveis de sua passagem e ação? Se de algum modo somos vítimas do tempo, ninguém o é mais que a mulher. Daí tantas vezes lembrar a amigos, em nossa correspondência mais íntima e livre, as formas mais cruéis de manifestação da mãe natura. A mulher não se espelha nas linhas deste discurso porque temo de algum modo feri-la aludindo aos estragos que o tempo risca sobre sua pele, sobre sua inefável beleza que é objeto de meu culto mais lírico e secreto. É preciso que num homem se combinem a privação de uma mãe e a fatalidade da poesia antes vivida que realizada para que bem se compreenda a razão do meu objeto de culto. A mulher é tudo e tudo é apenas a mulher. Por que então precisaria eu iluminá-la nas linhas tortas de minha noturna e encantada navegação?
Mas acreditem: meu tempo é hoje, como na canção de Paulinho da Viola.
No dia do meu aniversário – 03 de outubro de 2007.

Rubem Fonseca para César Melo


Dedicatória para César num livro de Rubem Fonseca

Se leio Rubem Fonseca
Eu rio e faço careta
E o livro me faz feliz.
Esse malandro capeta
Ouviu as nossas conversas
Gravando o que a gente diz.

Nossa vingança e humor
O espinho picando a flor
Ah, como isso é cruel!
Fonseca vai reto e fundo
Revira as pernas do mundo
Com corte de faca e fel.

A gente lá na Jaqueira
Brechando a mulher faceira:
Carne solar e nudente.
E Rubem no nosso andar
Gravando as nuvens e o ar
Roubando os contos da gente.

Retrato Ideal



Ser vário como foi Mário
E o homem renascentista.
Buscar o uno no vário
O plástico na voz do artista.

Ir de algum som a Drummond
Do fato a Wittgenstein
Em cada escala de tom
O voo de tudo que cai.

Na malha do transitório
Reter o que vai passando
Ir do mais alto ao inglório
Ser muitos sendo Fernando.

Fernando da Mota Lima
Quem muito ou pouco se estima
Não sabe a própria medida
Humana que nos conforma.

No conteúdo e na forma
É una e universal
Mescla de voo e norma
Do bem no avesso do mal.

Natura ambivalente
Razão no corpo que sente
Mistério exposto na cifra
O homem se pensa em vão
Pois não tem fim, solução
E nunca a si se decifra.

Fernando da Mota Lima
Recife, 29 de novembro de 2009