segunda-feira, 28 de junho de 2010

Agnieszka Holland e Christopher Hampton



O nome Agnieszka Holland atraiu minha atenção quando vi Europa Europa (título brasileiro: Filhos da Guerra), talvez o melhor filme que eu conheça sobre ideologias totalitárias (nazismo e comunismo stalinista, especificamente) e o modo complexo como atuaram sobre a consciência de alemães, soviéticos e judeus. Suponho que o tratamento impresso pela diretora polonesa a essa questão tenha mobilizado negativamente o governo alemão, impedindo assim que o filme concorresse ao Oscar. Afinal, o filme será tudo, menos uma reiteração do esquema maniqueísta muitas vezes difundido por Hollywood ao explorar à exaustão a atmosfera ideológica e política associada à Segunda Guerra Mundial.

Entre os muitos problemas propostos pelo filme, sobreleva o da identidade racial de um jovem judeu. Solomon Perel, em cujas memórias se baseiam o roteiro e a direção de Agnieszka Holland, luta para sobreviver num mundo retalhado por ideologias afins, no que segregam de representação totalitária da realidade, embora na prática empenhadas numa guerra de destruição recíproca. Este fato me lembra ecos de 1984, de George Orwell. Perel não se nos apresenta como um pobre diabo inocente ou como expressão do bem passivamente atropelado pelas forças do mal. O que acima de tudo o move a agir e recompor identidades é a necessidade imperiosa da sobrevivência. Assim, troca de lado e de identidade – ora judeu, ora comunista, ora nazista – inevitavelmente espicaçado pela culpa, mas sobretudo atormentado pelo medo de que o desmascarem. Seria nesse sentido, forçando aqui um paralelo, um primo europeu de Macunaíma, nosso emblemático herói sem caráter.

O quadro de representação das consciências e identidades vivas se compõe de modo ainda mais complexo que o sugerido no parágrafo acima. Deslocado para o lado soviético, evidencia os processos através dos quais a ideologia totalitária é introjetada nos jovens sob a ação decisiva de agentes ideológicos tais como educadores e intelectuais militantes. Detendo-se ainda mais na sua negação aparente, o lado nazista, demonstra com fatos perturbadores o funcionamento irracionalista de uma ideologia que celebra um modo de civilização, quando não seu triunfo, inconsciente dos mecanismos de barbárie devastadora intrínsecos à natureza do seu funcionamento. Mas os agentes humanos nos quais essa ideologia se encarna são seres humanos complexos, gente de carne e osso como eu e o leitor. Portanto, também nesse contexto regido por processos totalitários vibram forças humanas contraditórias e transgressoras, assim como cegamente conformistas.

Mas eis que Agnieszka Holland está de volta, agora dirigindo animada pela colaboração fundamental de um outro notável roteirista e diretor de cinema: o inglês Christopher Hampton. Se tem ela a seu crédito esse perturbador Europa Europa, deu-nos ele Carrington, filme decisivo para repor na cena cultural contemporânea o nome de Lytton Strachey (Jonathan Pryce) e sobretudo o da injustamente esquecida Dora Carrington (Emma Thompson). O filme de Hampton, que recria com fina sensibilidade estética a relação amorosa bem pouco convencional entre Lytton e Carrington, pontuada pela permissividade e o caráter excêntrico do círculo de Bloomsbury, concorreu de modo decisivo para imprimir notoriedade à pintura de Carrington. Eu próprio pude ler aqui mesmo em Recife, logo depois de conhecer o filme, um estudo acadêmico de uma feminista inglesa (Jane Hill, The Art of Dora Carrington), maravilhosamente ilustrado com reproduções da sua pintura. O próprio final do filme, aliás, justapõe aos créditos reproduções de suas obras fundamentais.

Agnieszka Holland e Christopher Hampton aliaram-se para dar materialidade fílmica a outra relação amorosa heterodoxa e visceralmente conflituosa: a de Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. Tal como ocorrera quando vi Carrington, o filme causou-me tão aguda impressão que voltei a revê-lo dois dias mais tarde. Vou porém antes anotar algo referente ao impacto imediato causado pela obra, no ato mesmo da sua recepção, antes de tratar especificamente do filme.

Se pudesse sugerir um teste puramente intuitivo e sensorial para a recepção de um grande filme, diria que tal ocorre quando, encerrada a sessão, preciso de vários minutos para gradualmente me reacomodar aos limites da realidade cotidiana e banal. Seria curioso ou talvez sintomático registrar que tal ordem de experiência estética raramente me tem ocorrido diante do grosso da produção cinematográfica dos últimos anos. Lembraria aqui casualmente, à deriva da memória involuntária, alguns filmes que em mim induziram a manifestação desse estado psicológico. Por exemplo estes: Dead Poets Society (Sociedade dos Poetas Mortos), Tous le Matins du Monde (Todas as Manhãs do Mundo) Hamlet (de Laurence Olivier) Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Rashomon, Citizen Kane, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Burn (Queimada), The Fixer (O Homem de Kiev), La Femme d´à Côté (A Mulher do Lado), Violência e Paixão, The English Patient (O Paciente Inglês), Amarcord.

Pois não relutaria em acrescentar a esta lista parcial o filme de Agnieszka Holland: Total Eclipse (Eclipse de uma Paixão). Antes de tudo, diria com certa intenção de humor que recria com cenas e diálogos cortantes uma época da história literária em que o próprio amor, a própria experiência passional, era um modo de épater la bourgeoisie. Rimbaud e Verlaine (Leonardo DiCaprio, David Thewlis) antes de tudo o primeiro, são a expressão paradigmática e arrogante da associação umbilical entre a obra criada e a vida vivida como se esta fosse uma tradução existencial da primeira. Rimbaud aspirou a ser na sua obra e ousadamente realizou na sua vida vertiginosa a conjugação entre o eu e o outro. Ao dissolver no plano da expressão estética quanto no plano existencial essa tênue fronteira, entretanto vivamente assinalada nos modos convencionais de relação e identidade social, gestou uma obra explosiva e fez da sua vida um redemoinho no qual eternidade e inferno se fundem e se repelem.
Recife, 14 de janeiro de 1998.
Ler também:
Carrington e o amor romântico.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Máximas e Mínimas III


Amigos? São os que ficam depois que a festa acaba. Quantos? É difícil estimá-los no país do carnaval, onde frequentemente confundimos festa com amizade. O brasileiro folião confunde sempre uma coisa com a outra. Por isso acredita ter tantos amigos, quando na verdade não tem nenhum.

Sei de um poeta famoso, imortal da Academia Brasileira de Letras, o que basta para esclarecer que falo de imortalidade tópica, que cultivava o hábito saudável de falar mal dos seus convivas tão logo se retiravam de suas festas. Alguns mais perceptivos, à força de lhe frequentarem a casa, acabaram notando-lhe esta particularidade e prudentemente passaram a retirar-se já no último minuto, quando a manhã já se anunciava. Sugiro que o leitor coteje esta anedota com a definição precedente de amizade e por fim tire suas próprias contas. Melhor dizendo, responda-me esta pergunta: quantos amigos tinha o poeta imortal?

Liberto enfim da esperança, eu nada espero. É portanto com fundamento no desespero que nego o absurdo da vida e na minha nudez acolho o quinhão de felicidade que me cabe ou tem a medida do meu contentamento.

Há muitos anos, bracejando no pessimismo atormentado, incorri num paradoxo inconsciente ao escrever: eu nada espero e assim me poupo de desesperar. Somente agora me apercebo do quanto era escravo de minhas esperanças malogradas ao escrever esta frase que apenas teria sentido na medida em que encerrasse um paradoxo intencional. Agora sei que ser livre para não ter esperança é escolher o desespero.

Esperança não é força, mas impotência, pois esperamos o que por definição está além de nossa vontade e realidade. Seria acaso dizer-se que a profissão do brasileiro é a esperança? Ou ainda e melhor: que o Brasil é o país do futuro?

Com frequência hoje me pergunto se minha vida progride (ou regride?) para uma atmosfera de serena reclusão. A esse propósito, é curioso ou sintomático observar como a memória – tocada por filmes que ninguém vê e livros que ninguém lê, salvo eu – me transporta para a solidão inglesa que profundamente me transformou ao enraizar minha maturidade num solo de vida habitada por modos de convívio muito restrito. Não brinco quando afirmo que o mundo, como idealmente o concebo, teria uma população de 1000 habitantes. É fato que não há muitas pessoas que verdadeiramente importem para mim. Direi que falo de um mundo de serena reclusão ou de quase misantropia? Terá a solidão voluntária, à força de repetir-se, me desabituado do mundo, ou merecerá o mundo insolúvel a redução de minha drástica medida?

A vida banal, feita de repetições e máscaras que nos protegem do outro, é talvez o que mais me desencoraja do convívio rotineiro. Sem pretender subordinar a vida à literatura, não me furto ao pensamento de que num breve capítulo de Brás Cubas penetro verdades humanas infranqueáveis a uma amizade de 10 anos, por vezes de uma vida inteira. Acaso insinuo nas linhas de tal contraste a convicção de que pessoas reais são rasas, quando não vazias? De modo algum. É por assim pensar que me inconformo com o fato de que seres humanos, dotados de possibilidades e experiências tão ricas e complexas, se acomodam a um convívio de trivialidade e desperdício. Prisioneiro da experiência trivial, quando enredado no convívio ordinário, mais e mais me recolho ao cultivo do meu jardim.

Most of my life I´ve been living in wrong places with wrong people. Learning to live by myself was a way of avoiding complete moral debasement.

Vivi a maior parte de minha vida nos lugares errados entre pessoas erradas. Aprender a viver sozinho foi um meio, entre outros, de não me acanalhar completamente.

O Brasil é uma porção de terra muito grande ocupada por uma porção de gente muito pequena.

If Brazil is the country of the future, then I can surely foresee that the future will be called Brazil.

A civilização é uma conquista penosa e sempre reversível.

Conflito de geração: Os pais desejam que seus filhos sejam o que eles não puderam ser, enquanto os filhos não querem ser o que seus pais foram.

Sou humildemente um self-failed man. Posso portanto orgulhosamente afirmar que não devo meus fracassos a ninguém.

Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de suportação da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?

Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Um dia deixarei de ser Fernando para ser apenas Fernada.Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino. E nosso destino, universal e inescapável, é nossa medida mais humana suprimida pela cultura da alienação narcisista.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

José Saramago: Literatura e Ideologia


José Saramago tornou-se um escritor celebrado pela mídia desde quando recebeu o Nobel de Literatura. É certo que antes disso já conquistara um amplo público, inclusive no Brasil. Aliás, a recepção da sua obra no Brasil é um fenômeno literário inusitado, já que desde o advento do modernismo a literatura portuguesa ficou reduzida a uma faixa de circulação muito restrita entre nós. Sem dúvida, caberia lembrar o fenômeno Fernando Pessoa, escritor português de maior repercussão no Brasil no decorrer do século 20. Mas o reconhecimento da sua obra, do seu gênio único, foi tardio mesmo em Portugal. Em suma, diferentemente de Saramago, que gozou em vida de prestígio literário único no Brasil e em muitos outros países, Fernando Pessoa é um gênio de reconhecimento e fama póstumos.

A obra de Saramago importa por seu valor intrínseco, pelos valores irredutivelmente literários ou estéticos que são de resto os que asseguram imortalidade a uma obra. E esta, a imortalidade ou permanência no veio da tradição literária, esta é decidida por um juiz supremo e infalível: o tempo. Portanto, somente nossos pósteros poderão avaliar se a obra de Saramago sobreviverá ao juízo do tempo. Isso evidentemente não anula algumas evidências aferíveis no presente. A melhor crítica ainda em atividade aparenta endossar o consenso segundo o qual fração significativa da obra de Saramago sobreviverá à passagem do tempo. Como pouco a conheço, não seria honesto de minha parte propor apreciações que se sustentam na leitura de uma ou duas obras. Aliás, esclareço que foi esse declarado conhecimento restrito da obra de Saramago que me fez relutar em aceitar o convite de Daniel Lopes para registrar num artigo a morte recente do grande romancista português. Diante disso, conviria desdobrar o artigo retendo-o na franja de aspectos externos à obra. De resto, é isso o que a maioria dos artigos e notas correntes na mídia tem feito.

Saramago foi um autor deliberadamente polêmico. Sempre que solicitado a se pronunciar sobre seus pontos de vista, deu ênfase maior, senão quase exclusiva, a temas de natureza política e religiosa. O homem público, investido de um sentido de militância política e ideológica raro na atmosfera cultural em que passamos a viver depois do patente esgotamento dos ideais e utopias gestados pelos movimentos de esquerda, valeu-se sempre de sua fama literária para opinar, por vezes em tom áspero, contra o capitalismo, a religião, as formas correntes de opressão observáveis sob a hegemonia universal do capitalismo. Embora implacável na sua crítica recorrente ao capitalismo, raramente se pronunciou contra os horrores do chamado socialismo de Estado imposto pela União Soviética a grande parte do mundo. Aliás, leia-se totalitarismo onde escrevi socialismo de Estado. Embora sinceramente votado à causa dos oprimidos, dos levantados do chão, assim como daqueles impotentes para levantar-se em face de formas impiedosas de dominação, Saramago praticamente silenciou diante das tiranias impostas em nome dos ideais utópicos que abraçou e sempre defendeu.

Penso que essa é a restrição ideológica e moral mais grave que se deve fazer à militância intelectual de Saramago. Nisso, infelizmente, ele reitera o itinerário de muitos dos maiores intelectuais do Ocidente. Movidos por ideias de justiça e igualdade cuja sinceridade admito, o fato é que findaram sempre na prática silenciando sobre a opressão praticada em nome da ideologia que abraçaram. Falo nestes termos de Saramago assim como poderia falar da maioria dos intelectuais de esquerda que li e noutras circunstâncias inspiraram minhas convicções, assim como as de milhões que através do mundo lhes deram crédito. Falo de Saramago assim como poderia falar de Sartre, Georg Lukács, García Márquez, uma infinidade de comunistas e socialistas democráticos (designação que quase sempre significa comunismo isento de estalinismo) que curiosamente nunca criticaram o estalinismo com a veemência que imprimiram à crítica das ditaduras de direita.

Transpondo esta questão para a realidade ideológica brasileira, ainda hoje intelectuais e artistas silenciam sobre a ditadura cubana, último baluarte da tirania produzida pela utopia comunista. Intelectuais e artistas que profundamente admiro, como Antonio Candido, Chico Buarque e alguns dos mais importantes intelectuais acadêmicos da Universidade de São Paulo, teimam em silenciar diante da ditadura cubana. Esse silêncio cúmplice é de ordinário justificado em nome de uma noção pragmática da luta pelo poder, isto é, mesmo admitindo a tirania praticada pelo partido que adotam, esses intelectuais acreditam fazer em termos efetivos o jogo do inimigo quando a força da verdade ou o horror em face da injustiça se sobrepõe à parcialidade não raro criminosa da ação pragmática ou estreitamente partidária. Sendo assim, não apenas silenciam diante da opressão imposta pelo partido ou ideologia que abraçam, mas também atacam sem clemência os liberais ou ex-companheiros de militância que ousam denunciar a opressão exercida em nome das utopias de esquerda. Bastaria pensar nos ataques e na intolerância desfechados contra intelectuais corajosamente independentes como George Orwell, Arthur Koestler, Camus, Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, José Guilherme Merquior, Paulo Francis, Millôr Fernandes...

No plano que acima considero, o grande saldo da militância ideológica de Saramago consiste no combate que travou contra a religião no que esta encerra de superstição e intolerância. Não é sem razão que o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, desfecha dura crítica contra a posição que publicamente adotou em matéria de religião. A voz oficial do Vaticano acusa-o por recusar qualquer forma de metafísica e consequentemente pautar sua ação fundado nos valores de uma ética secular e materialista. Este é o Saramago ideólogo com quem simpatizo. Quanto à permanência da sua obra, que é de resto o que importa para a história literária, esta é uma tarefa que devemos humildemente entregar ao juízo infalível do tempo.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Nacionalismo, Futebol e Identidade Cultural


Como sabem os estudiosos da nossa história política e cultural recente, “Um dia na vida do Brasilino”, de Paulo Guilherme Martins, é uma fábula nacionalista publicada no outono de 1961. É assim que o próprio autor data muito anticonvencionalmente seu libreto. O texto está agora disponível na internet, como quase tudo. Passou a circular nela como edição comemorativa dos 41 anos do seu lançamento. Dado que retorna inalterado, é razoável supor que Martins se mantenha fiel à mesma ideologia, que a subscreva com a mesma convicção com que a escreveu no outono de 1961. O sentido ideológico da fábula é de uma transparência meridiana: o cotidiano do brasileiro, simbolizado na figura de Brasilino, é atravessado do primeiro ao último minuto pela dominação onipresente do imperialismo econômico e cultural. O processo de acelerada globalização disparado a partir de 1964, ano em que os militares impuseram às forças de esquerda uma derrota devastadora, tornou no presente o mote do nacionalismo e anti-imperialismo de esquerda inteiramente anacrônico. No entanto, a ideologia sobrevive aparentemente intocada.

Figura de mil faces, tal a variedade camaleônica com que se amolda a todos os grupos políticos, econômicos e culturais que a adotam, a ideologia nacionalista goza de excelente saúde repontando no discurso exaltado dos que defendem nossa particularidade lingüística, nossa integridade culinária, bastaria lembrar a hilariante apologia da broa de milho feita por um político de esquerda vindo do exílio, as políticas estatizantes como linha de resistência à dominação econômica imposta pelos Estados Unidos, nossa amada e ameaçada identidade cultural. Não se sabe bem o que seja, nossa identidade cultural, mas o fato é que todos os dias alguém aparece na mídia para defendê-la e não raro salvá-la. É tão viva e vigilante que ocupa lugar de destaque no seio da nossa política cultural dispondo de secretaria própria no Ministério da Cultura: a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural. O título soa um tanto paradoxal. Se celebramos a diversidade cultural, se o argumento da miscigenação cultural e racial tornou-se hegemônico na consciência brasileira, graças antes de tudo à obra admirável de Gilberto Freyre, como explicar a resistência imposta ao livre contato entre culturas em plena era da globalização? Como explicar a instituição de uma secretaria destinada a velar pela nossa identidade, além de a estimular com ações políticas concretas? Como explicar que até entre nós, entre brasileiros de uma região comum, acendam-se os ânimos de pernambucanos contra a invasão do carnaval baiano, que nos levantemos contra os sulistas, os baianos também, e portanto invalidemos um suposto princípio de unidade dentro da identidade nacional?

É também significativo o imenso prestígio político e intelectual de um ideólogo como Ariano Suassuna, defensor de uma noção de cultura e identidade cultural tão extremada que, perto dele, muitos dos nossos nacionalistas mais exaltados parecem cosmopolitas ou ainda entreguistas, se queremos usar um termo ancrônico, todavia ainda vivo na fala intransigente de Suassuna. Como ele próprio afirma sem meias medidas:
“Um prêmio chamado Sharp, ou Shell, Deus me livre! Não quero. Acho esses nomes feios. Não recebo prêmio de empresas ligadas a grupos multinacionais. Não sou traidor do meu povo nem estou à venda. (...) A globalização é uma arma que os países ricos têm para perpetuar a dominação sobre os pobres. O patrocínio de multinacionais nos eventos de nosso país é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais”.

Coerente com sua concepção extremada de nacionalismo cultural, antes de tudo regionalismo enraizado nas fontes da cultura rústica sertaneja, Suassuna abre fogo contra toda e qualquer expressão da cultura urbana de massas, assim como qualquer expressão da cultura erudita contaminada pelo livre circuito dos empréstimos culturais. Sendo assim, na entrevista citada dispara contra a bossa nova, o tropicalismo, o rock, Tom Jobim, Caetano Veloso etc. Para ele, globalização é apenas uma arma a serviço da dominação imposta pelos países do capitalismo central a países do tipo do Brasil. Para ele, os símbolos culturais americanos representam pura e simples dominação econômica e ideológica.

Ariano Suassuna fala todo o tempo pelo povo e em nome do povo. Infelizmente, o povo não parece nem um pouco interessado em seguir o enredo que escreve para a cultura e a identidade brasileira. Para desespero do nosso extremado ideólogo, os porteiros de condomínio querem mesmo dizer okei , não oxente. Nossos artistas primitivos, expressão da cultura rústica e pré-moderna celebrada por Suassuna, atendem alegremente ao convite que a cultura urbana de massas lhes acena. O povo brasileiro, não importando o sentido que desejemos atribuir a esse termo tão camaleônico como o nacionalismo cultural, persegue deslumbrado tudo o que o discurso salvacionista de Suassuna repele: o shopping Center, o consumismo desvairado, o lixo e o luxo da cultura americana, a língua inglesa disseminada em todos os poros da nossa sociedade, o batuque eletrônico da música sem fronteiras. Deixo Ariano Suassuna em paz com seu regionalismo intransigente e intolerante. Ele importa, para o meu argumento central, como evidência dos extremos a que pode chegar a ideologia que aqui me ocupa.

Se há um símbolo consensual na nossa indefinida e inapreensível identidade cultural, não duvido de que seja o futebol. Aqui vai uma ilustração que me parece mais persuasiva do que a mais refinada elaboração teórica que eu acaso pudesse acrescentar a este artigo. A seleção brasileira enfrentou a argentina na antevéspera do dia da Independência. Quatro horas antes do jogo ouvi vizinhos cantando festivamente o hino nacional. O fato me chamou a atenção o suficiente para que eu fosse até a varanda. De lá divisei grupos entusiasmados entoando o hino, alguns curiosamente perfilados em pose solene, como se tivessem a bandeira nacional tremulando à frente. Esta, aliás, não tremulava à frente desses grupos tomados de fervor nacionalista, mas tremulava em muitas das varandas e janelas que observei. Os jogadores brasileiros exibiram-se admiravelmente, venceram o jogo e a euforia atravessou sem exagero todas as nossas classes sociais de um extremo a outro do país.

Em contraste com esse espírito de autêntico orgulho nacional, de expressão de unidade cultural sobrepondo-se a divisões de classe e região, dois dias mais tarde vivemos o feriado que historicamente assinala nossa independência política. Preocupado em observar o fato cotejando-o com o precedente relativo à seleção brasileira, não deparei nenhuma expressão de autêntica e espontânea consciência nacional, nenhuma evidência coletiva de orgulho associado à nossa independência. A identidade cultural localizada por Mário de Andrade na inconsciência espontânea do povo parece emudecida durante o dia consagrado à independência política do Brasil. A julgar pela realidade visível, nosso sete de setembro é apenas um feriado qualquer que o brasileiro típico aproveita para desfrutar na praia ou dedicar ao lazer dissociado da memória histórica relativa à razão do feriado.

Mas o futebol compreendido como fator de unidade e identidade cultural justifica algumas ponderações que me parecem ainda mais relevantes do que tudo que acabo de anotar acima. Procedendo a um ligeiro exercício de imaginação sociológica, indago de mim para mim próprio qual seria a reação de um nacionalista empenhado na defesa de nossa identidade cultural se acaso vivesse na época em que o futebol começou a penetrar na nossa realidade cultural. Como sabemos, eis um fato importante para a maioria dos brasileiros, o futebol foi introduzido no Brasil por um inglês residente em São Paulo. Esporte de nacionalidade inglesa, o futebol chega à nossa terra no auge do colonialismo inglês, que de resto já dominava a economia brasileira há muito tempo. Ingressa no Brasil como esporte de elite, basta percorrer ligeiramente a iconografia relativa aos estádios de futebol nesse período inicial, e vai sendo gradualmente assimilado pelo povo. É um exemplo fascinante de assimilação cultural processado pela via do desnivelamento, como já nos ensinou Mário de Andrade. Se o jazz constituiu um exemplo de nivelamento, ascendendo de camadas negras socialmente marginalizadas para a elite, o futebol percorreu o percurso inverso.

Mas volto a nosso hipotético nacionalista paladino da identidade cultural. Seria razoável supor que no momento em que o futebol penetrava no Brasil ele reagisse indignado amparado no argumento da nossa autenticidade cultural, alegando provavelmente que o futebol não passava de um instrumento de dominação cultural imposto pelo colonialismo inglês. Falaria provavelmente em nome do povo, cuja integridade cultural precisaria ser por ele defendida, assim como no presente Ariano Suassuna e tantos nacionalistas e regionalistas generosos e abnegados o defendem. Infelizmente, o povo demonstra, mesmo quando tutelado politicamente, como é ainda fato no Brasil do século xxi, ser sujeito de determinados desejos e vontades. Assim, ignorando a alfândega cultural imposta por nosso intelectual nacionalista, foi se aproximando da bola de procedência inglesa, foi batendo bola aqui, mais adiante num terreno baldio, depois num campo de futebol e por fim chegou ao Maracanã, um dos palcos da universalidade futebolística. Como sempre ocorre em qualquer processo de empréstimo ou assimilação cultural, não adotou passiva ou mecanicamente o futebol. O que de fato fez foi adaptá-lo acrescentando-lhe sua ginga de corpo, seu modo próprio de assimilação. Sabem os entendidos, e neste assunto todo brasileiro é entendido, que nada afirmo aqui de original. Estou apenas repetindo com palavras próprias o que Gilberto Freyre e muitos outros intérpretes da cultura, nacionalistas ou não, já disseram bem antes de mim.

Mas o futebol representa no Brasil, além da unidade identitária acima argumentada, nossa maior fonte de orgulho nacional, até mesmo de arrogância nacional. Nem o avanço da globalização econômica e cultural, dissolvendo fronteiras e transportando jogadores através de nações, clubes e símbolos de paixão esportiva cada vez mais indeterminados, abala a estabilidade dessa potente raiz de orgulho e arrogância do brasileiro. O fato é que a globalização converteu a seleção brasileira numa autêntica legião estrangeira, como acertadamente observou Roberto Pompeu de Toledo. Os clubes competem agora em escala global e o jogador, apesar do costumeiro lero-lero nacionalista, quer antes de tudo fama e fortuna. Seu sonho é ir o mais cedo possível para a Europa, fazer vida e glória na Europa. Isso não anula o nacionalismo da torcida, que continua exaltando arrogante os triunfos da nossa legião estrangeira como se cada um daqueles heróis jogasse num clube nacional da nossa idolatria, mas confirma a prioridade objetiva da globalização do esporte.

Penso que as questões acima esboçadas merecem uma reflexão mais detida no momento em que o mundo inteiro acompanha a Copa do Mundo disputada na África do Sul. Ela constitui mais uma evidência da globalização que dissolveu as fronteiras do futebol. Quase todas as seleções competidoras têm de nacional apenas os símbolos estampados nas cores das camisas e no hino de cada seleção. Os jogadores e técnicos obedecem apenas ao critério do melhor contrato ou salário, acrescido da fama. Nossa legião estrangeira, que veste as cores do Brasil, é tão alheia ao cotidiano do nosso futebol que eu mesmo, apreciador deste esporte, desconheço vários dos atletas que nos representam. No entanto, a torcida brasileira, assim como a das demais nações, continua investindo paixão e sentimentos nacionais em símbolos globalizados pelo mercado. Esse fenômeno que no momento coloniza a imaginação das massas em escala global mais uma vez comprova o quanto a ideologia e a realidade objetiva se desencontram na história da cultura.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Nuvem Movente


Um homem acorda no meio da madrugada. Acorda como se fosse arrancado de um poço profundo e escuro, pois de fato emerge de um sonho angustiante, quase um pesadelo. É um sonho que se repete, sempre dentro de uma atmosfera sombria e opressiva cujas variações se enraízam em cidades monstruosas. Embora sempre identificável – a deste sonho era São Paulo, Recife é a mais frequente – a cidade é uma força destruidora, um labirinto onde cada rua, cada esquina ou passagem se desdobra em vias sem saída. Não há para onde ir, nenhum mapa ou guia confiável.

O homem sabe para onde quer ir: quer voltar para sua casa, quer encontrar um caminho de volta ou fuga das ruas atemorizantes que se sucedem numa cadeia interminável. São ruas que não conduzem a lugar nenhum, salvo essa corrida ofegante e desesperada dentro da cidade hostil e eriçada de perigos. A cada esquina ele esbarra nos deserdados da vida que dele se acercam como uma horda faminta, sedenta de destruição. Quer apenas voltar para casa, repor os pés em solo conhecido. Quer encontrar um estranho confiável, alguém que lhe indique dentro do mapa confuso e atordoante a via de fuga da rua sem lei para a casa perdida, a cidade apagada do mapa onde antes, numa vida remota, traçou linhas de reconhecimento e solidariedade com o semelhante que é agora pura e brutal ameaça à sua sobrevivência. Na cidade fantasmagórica do seu sonho, o outro, o habitante sem raízes e humanidade, brota de cada esquina como uma força votada à sua destruição. Até a avenida, os espaços abertos espraiando-se pela cidade noturna, até isso avança sobre ele como potência aniquiladora.

Enfim acorda dentro do quarto escuro, dentro da noite solitária, apenas cortada pelo ruído dos aviões e dos carros que rolam no asfalto. Então respira aliviado, ciente de que tudo foi apenas a repetição de um sonho ou pesadelo recorrente. Provando a si próprio que está reposto na realidade palpável e banal, como uma âncora na qual sua solidão respira, uma ilha repacificada, lê o e-mail de um amigo que parece encontrar na fotografia a âncora que encontra na realidade acordada, na vigília noturna. Pensa então que a fotografia é na vida do seu amigo órfão de certezas o que a lógica foi no universo sem certezas de Bertrand Russell. A vida humana, pondera, é apenas uma nuvem movente. É o que se diz contemplando a nuvem fixada na fotografia enviada pelo amigo fotógrafo, uma das muitas nuvens que ele congela na câmera e depois transporta para a escuridão do laboratório onde se entrega a pacientes experimentos de cor, sombra, tonalidade, volume... O homem volta a contemplar no silêncio da madrugada a nuvem congelada na fotografia e enfim repousa durante alguns vagos minutos. Depois escreve uma resposta para seu amigo fotógrafo.

D.:

Sei do seu amor, do seu culto pela fotografia. Por isso não me surpreende tanto o fato de você agora devotar tanto do seu tempo e de sua necessidade criativa a ela. Acho isso bem mais belo do que as experiências correntes e possíveis nas nossas vidas. Como individualista e solitário, sempre acreditei que precisamos buscar algum sentido para nossa vida dentro do que somos, dentro da vida que apenas tem sentido a partir da nossa perspectiva. Se já acreditava nisso, a idade e a experiência apenas concorreram para reforçar essa minha convicção. Tolo é quem espera um sentido vindo de fora, vindo do outro, tão deslizante e compacto no seu egoísmo agora elevado a graus inconcebíveis.

O mundo tornou-se um grande espelho onde egos insignificantes, mas no geral arrogantes, se miram e exigem que o espelho reflita sua grandeza ilusória. Gostei muito de escrever uma crônica ficcional, de tom expressionista, ou coisa que o valha, no meu blog. Chama-se “O delírio de onipotência do narciso consumista”. É uma das poucas coisas que gostei verdadeiramente de fazer, pois expressa muito do que vejo e detesto na cultura contemporânea, nos modos correntes de convívio que já não tenho paciência nem interesse em tolerar. O que procurei sempre, dentro do individualismo acima mencionado, foi realizar no convívio com as pessoas um sentido de reciprocidade e compaixão (isto é, padecer com, sofrer, mas também gozar, com o outro). Duvido cada vez mais da possibilidade de realizar esse sentido de vida convivida. Drummond escreveu certa vez que viver é conviver. No entanto, penso que o sentido que encontrou para a própria vida foi criado a partir dele próprio, dentro da sua subjetividade intransigente. Um dia, quando visitei Antonio Candido em São Paulo, ele me deu o exemplo do quanto Drummond era um homem difícil, quase inacessível ao convívio espontâneo e caloroso. No entanto, ele escreveu isso que acabo de lhe escrever: viver é conviver.

Volto ao que mais importa, e deveria ter sido o centro desta crônica. Volto à sua foto, uma entre as milhares que você deve ter feito e refeito no seu laboratório ou coisa que o valha. Por que você não viu o filme sobre a vida e a obra de Georgia O´Keeffe? Acho que há nele uma mina de beleza exposta ao olhar plástico de uma pessoa como você. Há cenas, takes, enquadramentos, que valem por um quadro, uma paisagem congelada na memória. Continue devotado às suas nuvens, D., pois nossa vida é apenas uma nuvem movente e vale pela forma que para ela inventamos recortada na vasta paisagem do céu indiferente à nossa passagem por esse mundo tão incerto e fugaz.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Gildo Marçal e a Indesejada das Gentes


Começo por advertir meu suposto leitor, talvez um dos muitos amigos de Gildo Marçal, que esta é uma crônica de memória e perda escrita ao sopro do subjetivismo mais elementar. Acrescentaria que muito relutei antes de aventurar-me a escrevê-la. Afinal, não posso com justiça e verdade incluir-me na categoria dos amigos mais verdadeiros e constantes de Gildo. Assim, penso que outros testemunhariam com maior largueza de fato e sentimento, também com experiência mais intensamente compartilhada, o sentido da vida que Gildo entre nós viveu e a memória que dele reteremos. Penso, por exemplo, em Denis Bernardes, provavelmente sua mais íntima e duradoura amizade. Vieram ambos, imaginem, das noites na Praça Deodoro, em Maceió. Lá, numa já remota juventude, sem com isso insinuar que sejam velhos, começaram a conversar e a conspirar para mudar o mundo e nosso confuso sentido de justiça e beleza e nunca mais pararam de conversar. Dizem as más línguas que falavam de tudo, menos do marechal.

Penso ainda em Edmilson Azevedo, carinhosamente identificado numa crônica de memórias deste blog como o Filósofo Desvairado. A idade, novamente sem insinuar que falo de um velhinho, tornou-o tão mais sensato que agora é ele quem risonhamente se reconhece e reconcilia nos desvairismos vividos. Edmilson foi amigo de Gildo quando graduandos de filosofia na Universidade Federal de Pernambuco. Aliás, confessa haver sido antes discípulo do que amigo. Dentre os amigos que Gildo deixou e preservou a vida inteira em Recife, poderia acrescentar Enilda e Emília. Também elas teriam incomparavelmente mais o que dizer e sentir do que eu.

Saltando para amigos de história mais próxima, penso também em Marcos Costa Lima. Com ele Gildo concebeu muito trabalho, política e aliança acadêmica e extra-acadêmica. Recentemente Marcos me falou de Hannah Arendt com o propósito de invocar a dignidade da política. Confesso que raramente identifico esta esquiva e equívoca senhora (friso aludir à dignidade da política, não à mais que digna Hannah Arendt) na política de que tenho notícia. Neste contexto, todavia, a alusão se faz oportuna, diria até necessária. Gildo Marçal foi um animal político como talvez não tenha conhecido outro. Dentro do meu livre entendimento, era político num sentido muito preciso e talvez arbitrário. Era político no sentido de aceitar e brigar com o outro respeitando-lhe a integridade de ser e viver. Embora militante da política, sobretudo em tempos de ditadura que exigiam coragem e convicção extremas dos poucos que a ela se opuseram com atos e palavra pública, nunca nele testemunhei a mais vaga intolerância ou sectarismo tão rotineiros nos círculos da esquerda que frequentei. Também lhe era estranho o ressentimento, outra doença juvenil e talvez ainda mais senil no círculo dos injustiçados e perseguidos.

Evoco um breve episódio do nosso convívio para melhor ilustrar a anotação do parágrafo precedente. Certo dia, hospedado por ele e Simone em São Paulo, conversávamos sobre política na sua biblioteca. Quando entramos a discutir alianças partidárias, esbocei uma crítica que poderia ser compreendida como ilustração do que Max Weber chama de ética de convicção. Ele então me fez um reparo que ainda hoje retenho como expressão de uma verdade indiscutível: disse que eu era moralista demais para fazer política. Confesso não lembrar com certeza se disse moralista ou puritano, mas no contexto da conversa os termos se equivaliam. Foi por esse e outros muitos motivos que me dei conta de minha insanável inabilidade e até inapetência para a militância política. Meu individualismo, não bastasse tanto, é tão insofreável que vivo discordando de mim próprio, discordando de mim e de todos e tudo, antes de tudo.

Gildo seguiu pela vida aceitando-me como sou e aceitando outros, talvez piores, assim como eram. Um bem melhor, mas impenitente gozador, é Paulo Carneiro, divertidamente tratado pelos íntimos como Capitão América. Aliás, o Capitão imita Gildo quase com perfeição. Queria tê-lo agora a meu lado para que melhor avivasse nos meus sentidos a fala inconfundível de Gildo. Pois Gildo gargalhava homericamente com o histrionismo e irreverência do Capitão. Outros ainda, logo desiludidos ou confusos na atmosfera da esquerda dos anos 1970, caíram no desbunde ou erraram pela vida desviando-se de Gildo e de tudo o que ele representava. Gildo aparentava compreender tudo isso, tanto que continuou lembrando com afeto, outras vezes com humor, muitos desses que seguiram ou se perderam por outras vias. Um outro, mais hipocondríaco do que amigo, perguntava-me repetidamente sobre a saúde de Gildo. Um dia ocorreu-me responder assim: Gildo já teve oportunidade demais para morrer. Se continua vivo, é porque é imortal. Logo, cuidemos da nossa mortalidade.

Mas que posso eu escrever do Gildo militante político? Deixo isso a cargo de Marco Antonio Coelho, Luiz Sérgio Henriques, Marco Aurélio Nogueira, Carlos Nelson Coutinho e tantos outros que bravamente lutaram em tempos sombrios, novamente evocando Hannah Arendt, ou ainda in dark times, como escreveu no original. A luta destes e tantos outros não consistiu apenas em manter vivo o comunismo sob a ditadura, mas sobretudo em renová-lo democraticamente. Como fui quando muito companheiro de viagem, o que posso dizer é que tive sempre um fraco pelos comunistas vencidos. Melhor dizendo, é o comunista que nunca conquistou o poder.
Luiz Sérgio Henriques acaba de me enviar um e-mail ressaltando através da citação de um verso famoso de Mário de Andrade a admirável pluralidade humana de Gildo.
Procurei nesta crônica acentuar antes de tudo minha memória do Gildo devotado à amizade. Daí haver intencionalmente citado alguns dos muitos amigos verdadeiros que conquistou e manteve ao longo dos anos. Materialistas ou não, o que de nós sobrevive é a memória preservada no amor dos amigos, pois a mortalidade é a nossa condição comum. Ademais, como Shakespeare escreveu, devemos uma morte a Deus. Gildo pagou a dívida que nós outros também pagaremos. Por isso, e por amor à memória generosa do que amamos, prefiro reter nestas linhas o Gildo que amava a vida e os amigos, o Gildo das gargalhadas que continuarei ouvindo na solidão onde enterramos e cultuamos nossos mortos.

Pergunto-me por fim se Gildo acaso alcançou diante da morte a serenidade tão singularmente expressa por Manuel Bandeira em Consoada, o poema do qual extraí metade do título que conferi a esta crônica. Não seria belo e confortador imaginar que partiu deixando “...lavrado o campo, a casa limpa, / A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar”?
Recife, 21 de fevereiro de 2010.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Entrevistando Luciano Oliveira


Fernando – Luciano, você é conhecido nos círculos acadêmicos antes de tudo como sociólogo do direito. No entanto, seu interesse por literatura e cinema é também evidente, já que você publicou artigos ocasionais sobre esses assuntos e acaba de dedicar um volume integral a um paralelo crítico entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Sei também que você nada faz no sentido de melhor administrar sua carreira acadêmica. Diante disso, por que não escreve mais sobre esses assuntos que são objeto de sua paixão?

Luciano - Porque, retomando o título daquele livro de Orígenes Lessa, existe o feijão e o sonho, e esses assuntos, que são objeto de minha paixão, como diz você, não são meu ganha-pão! Dito isso, deixe-me reparar uma possível injustiça que minha resposta um tanto brincalhona contém: também gosto de muitas das coisas que faço dentro da sociologia jurídica, porque tenho também uma paixão, um engajamento com um tema ao qual tenho dedicado boa parte da minha vida acadêmica: o problema dos direitos humanos no Brasil. Mas realmente a literatura foi, intelectualmente falando, o meu primeiro amor, e o primeiro amor ninguém esquece! Gostaria, sim, de escrever sobre outros autores que amo além de Machado e Graciliano.

Fernando – No seu livro sobre Machado de Assis e Graciliano Ramos você dá ênfase a temas pouco explorados na obra do segundo. Penso antes de tudo no tema do humor. Aliás, adianto que essa é uma das singularidades do seu livro. No entanto, é curioso que um crítico de formação sociológica, como é o seu caso, não proceda centralmente a uma leitura sociológica de Graciliano, sobretudo nas condições culturais do presente, onde se observa a franca subordinação da literatura às ciências sociais. O que você diria sobre isso?

Luciano - Eu diria que estive menos interessado numa leitura sociológica de Graciliano, ou mesmo de Machado, e mais na leitura sociológica que esses autores fazem da realidade brasileira! É o inverso da questão. De resto, a subordinação da literatura às ciências sociais, a que você se refere, não é muito minha praia. Nem a sua, pelo que conheço de você. No fundo acho que não há sociologia que explique fenômenos literários. Entenda: o fenômeno propriamente literário! É lógico que é possível analisar sociologicamente a recepção favorável do chamado "romance nordestino" nos anos 30 do século passado. Mas explicar como e por que um sujeito como Graciliano, praticamente um autodidata, dono de loja de tecidos numa cidade inexpressiva do interior de Alagoas, escreve uma obra-prima como "São Bernardo"... Aí a sociologia tem que ter a modéstia de reconhecer que está diante de um mistério da criação que escapa às suas categorias explicativas.

Fernando – O Bruxo e o Rabugento não é um livro de concepção orgânica. Explicando melhor, é composto de um conjunto de ensaios autônomos, embora confiram ao livro certa unidade na medida em que reiteram um tema comum: um paralelo, feito de muitas variações, entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Apesar do que acabo de observar, pergunto se você acaso traçou algum projeto geral para guiar sua composição do livro.


Luciano – Na verdade, no começo a ideia era a de um artigo sobre Graciliano, apenas. Mas o artigo foi crescendo e, num determinado tópico, introduzi Machado, a partir de uma ideia que colhi em Roberto Schwarz, a de que Machado teria praticado o que ele chamou de "exercício da abjeção", que era falar da classe senhorial brasileira do seu tempo a partir dela própria, da sua visão do mundo terrivelmente malvada e insensível ao drama da escravidão, por exemplo. Achei que em "São Bernardo" Graciliano fazia isso, adotando a voz de Paulo Honório, um ser humano terrível, como a voz do narrador. Foi a partir desse primeiro insight que comecei a procurar outras aproximações. Por exemplo, a metalinguagem. Machado, como Graciliano, está o tempo todo refletindo sobre o próprio texto que escreve, mostrando como os dois eram grandes escritores conscientes do seu ofício. Depois cheguei ao humor. No caso de Graciliano, ao mau humor, que é também uma forma de humor. E como os assuntos foram se atropelando, se agregando, em determinado instante tinha muita coisa escrita da qual achei mais interessante fazer artigos separados e relativamente independentes do que um livro, que, como livro, ficaria meio mambembe...

Fernando – A resposta acima, referente ao processo de composição de O Bruxo e o Rabugento, levou-me a ponderar um pouco a produção corrente no âmbito das ciências sociais e a nossa tradição ensaística. Sabemos que esta está diretamente associada ao desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Bastaria pensar em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e outros. Aludo a este fato por identificar no seu estilo de composição traços nítidos dessa tradição. Talvez isso lhe desagrade, já que sei do seu apreço pela empiria, do rigor com que você pesquisa e se documenta antes de mergulhar na redação dos seus livros e ensaios. Apesar disso, insisto na observação acima e adicionalmente pergunto se você se reconhece em algum grau herdeiro dessa tradição. Perguntaria ainda se você não acha possível conciliar a escrita ensaística com o rigor compositivo dos autores fiéis ao primado do objeto empírico que estudam.


Luciano - Quem dera! Sentir-me herdeiro da tradição de Euclides e Gilberto... Ok! À condição, porém, de considerar-me um herdeiro bem menor, daqueles para quem o testamenteiro deixa generosamente um pequeno pecúlio. É verdade que fico lisonjeado com a ideia de inserir-me na tradição ensaística da qual fazem parte esses autores. Bem, indo à questão do rigor empírico, é verdade que o ensaísmo é um terreno perigoso, permite muitas derrapagens, porque a subjetividade daquele que escreve está toda lá, sem enganações. Mas eu ousaria dizer que isso não exclui o rigor, o cuidado com a competência empírica, como gosto de dizer. Observo que livros como Os Sertões e Casa-Grande & Senzala têm uma riqueza empírica muito grande. Euclides, nesse sentido, fez um esforço de objetividade enorme. Lembre-se de que as teorias racistas, que eram a moda na época, e com as quais ele foi a Canudos, diziam que aqueles sertanejos eram uns degenerados, uma sub-raça degradada pela miscigenação. E o que ele vê? Ele vê um povo bravio, forte, astuto, resistindo a três expedições armadas. E a cabeça de Euclides pira! Daí ele ter escrito, n´Os Sertões, aquele capítulo tão estranho e até um tanto negligenciado a que chamou de "um parêntese irritante", no qual confessa que os dados não batiam com a teoria! Não sei o que lhe faltou para assumir que aquelas teorias racistas eram empulhação. Esse passo vai ser dado por Gilberto, que em Casa-Grande estabelece aquela famosa distinção entre raça e cultura, e que essa, a cultura, era mais explicativa do que a raça. Ou seja: ainda que sem os cuidados metodológicos dos estudos monográficos que se tornaram moeda corrente na sociologia contemporânea, a tradição ensaística pode, sim, combinar intuição e rigor, e essa é a melhor tradição da sociologia, aliás. Tenho procurado fazer isso nos meus trabalhos. O meu livro, O Bruxo e o Rabugento, tem muita liberdade, mas tem também muito trabalho de composição. É porque o leitor não sabe. Mas às vezes uma frase, uma mísera frase num texto, demanda, para ser escrita, uma semana de pesquisa! Quando em determinado instante, por exemplo, desenvolvi a hipótese de que o "segundo Machado", aquele da ironia permanente de Brás Cubas, já está em embrião no "primeiro Machado", o da fase romântica, para escrever isso foi necessário parar o que estava fazendo e reler, com atenção, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia... Isso é uma semana de trabalho. Que, lógico, em se tratando de Machado, mesmo do "primeiro Machado", foi um trabalho prazeroso!

Fernando – Parece-me que sua resposta relativa à nossa tradição ensaística confirma a existência de uma linha de nítida conciliação entre o gênero ensaístico, tão próximo do estilo literário e especulativo, e a fundamentação empírica do argumento ou interpretação. Quando me ocorreu propor-lhe esta questão, pensava no traço diferenciador do seu estilo, nesse sentido tão divergente da produção acadêmica que habitualmente leio. Você poderia acrescentar alguma observação relativa ao estilo acadêmico corrente contraposto a seu estilo de composição? Sugerindo uma comparação provocativa, por que entre Antonio Candido e Florestan Fernandes prevaleceu o estilo do último como norma de composição acadêmica do texto sociológico?

Luciano - Curto e grosso, porque acho que produção em série desse tipo de trabalho é mais fácil! Na verdade, é fácil. Pelo menos na forma como as dissertações e teses passaram a ser armadas, com capítulos-padrão que terminam na maioria dos casos sendo capítulos-chavão! Pode ver, geralmente os projetos são assim: Objeto, Marco Teórico, Objetivos (tem sempre um principal e vários secundários), Metodologia, Cronograma e pronto. O negócio é você eleger um marco teórico, que é sempre um ou vários autores estrangeiros, e depois faz uma pesquisa empírica que "enquadra" naquele marco teórico. Digo enquadra no sentido quase jurídico do termo: você tem uma definição legal e colhe nos vários e complexos elementos da realidade aqueles que confirmam o que cabe na definição. Tem vezes que você vê as coisas sendo meio forçadas para se ajustarem ao modelo forçado... Bom, mas aí já é um problema de competência ou não de quem faz o trabalho, porque há trabalhos dentro desse modelo que são de ótima qualidade, entende? O que eu digo é que um modelo assim é mais reprodutível do que um trabalho ensaístico, que exige do seu autor, pra começo de assunto, um estilo particular, erudição (não a erudição pedante), poder de criatividade... É um tipo de trabalho em que não faltam elementos de composição artística. Nesse caso, como diria Noel, "ninguém aprende samba no colégio"... No colégio você aprende os segredos da partitura, o que é outra coisa. Então, há isso no meu modo de ver: no momento em que se constituiu no país uma pós-graduação em bases regulares, com exigências de prazos, produtividade, cientificidade dos trabalhos etc., lá pelos anos 70, e foi um momento de forte influência do modelo acadêmico americano de se fazer ciência, avesso ao ensaísmo tipicamente europeu, o "modelo Florestan", chamemos assim para simplificar, presta-se a isso que estou chamando de reprodução fácil. Mas deixe-me fazer uma pequena observação para não sermos injustos com o pobre do Florestan. A ciência brasileira deve-lhe muito. Muito mesmo. E, aliás, por ser um marxista de verdade e certamente estar mais ligado intelectualmente, doutrinariamente, ao mundo de Marx, Durkheim e Weber do que o do empiricismo americano, muitas vezes ingênuo, a designação "modelo Florestan" que usei precisa ser matizada. O que existe de Florestan no modelo é a exigência com o rigor metodológico, o cuidado com o embasamento empírico das afirmações etc. A eventualidade disso terminar gerando trabalhos acadêmicos medíocres, por parecerem a aplicação de uma receita de bolo, não tem nada com Florestan, que foi um dos maiores sociólogos brasileiros. Veja a contribuição enorme que deu para a fortuna bibliográfica de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto. No caso, uma fortuna crítica. Criticíssima! Na verdade Florestan, nome incontornável no modelo USP de sociologia, foi um dos grandes responsáveis pela ojeriza que boa parte da intelectualidade brasileira desenvolveu durante muito tempo em relação à obra-prima de Gilberto. (Num breve parêntese, observo que Florestan nunca escreveu uma obra-prima...). Gilberto, mesmo não tendo sido o autor da expressão, é verdade que deu munição teórica à tese da "democracia racial" brasileira, que hoje qualquer conhecedor de Brasil não hesita em considerar um "mito". Pois bem. Foi a produção uspiana, inclusive de Florestan, com o seu importante "A Integração do Negro na Sociedade de Classes" que erodiu o mito. E essa erosão se deu a partir de trabalhos sociológicos dotados de um rigor metodológico que a produção ensaística, pelo menos a princípio e a olho nu, não tem. Então, que fique bem claro que sou intransigente em relação ao rigor do sociólogo. Agora, se ele puder embalar esse rigor numa roupagem ensaística (que não se confunde com o mero discurso ideológico, note bem), ótimo! Ótimo sobretudo para o leitor, que vai saborear, e não estudar, a sociologia... Digamos que o ideal é o famoso dístico de Barthes, do saber com sabor. Não é fácil...


Fernando – Refletindo um pouco sobre os paralelos que você traça entre o bruxo Machado e o rabugento Graciliano, retenho a impressão, não sei se equivocada, de que você se inclina mais para o segundo. Fale-me um pouco, muito livremente, sobre sua leitura de Machado e de Graciliano.

Luciano - Machado, literariamente falando, é insuperável.Os seus textos, pelo menos a partir de um certo momento (digamos, o "segundo Machado"), são tão graciosos, tão engraçados, tão elegantes, que às vezes faço como o crente que abre a Bíblia em qualquer página e começa a ler. Dela ele sempre extrairá algo para o seu senso ético e estético. Pois bem, de qualquer página de Machado sempre extraio qualquer coisa que causa prazer ao meu senso estético. Mas Machado como pessoa é uma figura completamente desinteressante! Foi um funcionário exemplar, deferente, um mulato que subiu na vida graças ao próprio gênio e apagou os rastros da origem pobre, da qual se envergonhava. Foi um dissimulado. Vingou-se escrevendo uma obra tão corrosiva que não conheço autor que, como ele, deixe pedra sobre pedra da suposta grandeza do homem. Já Graciliano, como procuro sustentar no ensaio "O Caçador de Hinos", que é o último do livro, foi um herói brasileiro. Somos um país com uma vocação tão grande para a molecagem, ao mesmo tempo tão aferrados a um incrível bacharelismo oco em que ninguém acredita, que você falar em herói brasileiro já parece que está de gozação. Mas, não! Graciliano foi isso. Além de ter sido o extraordinário escritor que foi, o velho Graça era um sujeito de uma integridade moral tão grande que nem parece ter existido um sujeito assim num país como o Brasil. Célebre e amigo do ministro da educação Capanema, poderia ter sido um sinecurista de primeira, sobretudo depois que saiu da prisão e virou uma celebridade que todo mundo queria reverenciar... Pois só conseguiu empobrecer ao longo da vida. Terminou seus dias vivendo como copy-desk de jornais e inspetor de ensino secundário no Rio de Janeiro, onde passava as tardes pegando ônibus e gastando a sola do sapato para visitar as escolas que devia fiscalizar... Dos onze meses no inferno que passou nos cárceres da ditadura de Getúlio, extraiu uma obra-prima da literatura mundial, "Memórias do Cárcere", um livro que todo brasileiro deveria ler. Enfim, entre Machado e Graciliano, minha razão balança. Mas se for escutar o coração, um carinho especial vai para o alagoano, sem dúvida. Que escritor! Aquela primeira página de "São Bernardo", acho a melhor primeira página de toda a literatura brasileira... Ih, estou me deixando levar pelo entusiasmo. Digo isso porque me lembro que uma vez lhe disse isso e você, muito maliciosamente, perguntou: "Mas você já leu toda a literatura brasileira?..." Lembra da risada que demos?