terça-feira, 20 de junho de 2017

Antonio Candido (1918-2017)


Morreu enfim meu imortal preferido: Antonio Candido. Foi tão longevo e lúcido que já me parecia ser de fato imortal. Devo a ele o mais importante encontro intelectual de minha vida. Foi quando o visitei em 1995. À época era amigo de muita afeição e circunstância de Walnice Nogueira Galvão, a mulher mais culta e erudita que já conheci. Antonio Candido deixou uma legião de discípulos de alta qualidade intelectual, mas os dois mais importantes são sem dúvida Roberto Schwarz e ela. Por isso muitas vezes falamos com admiração sobre ele: eu apenas sobre a obra, tão decisiva na minha vida que determinou minha migração das letras para a sociologia da literatura, e ela sobre o homem e a obra. Difícil, talvez impossível, decidir entre o que ela mais venerava e venera. Poderia ter chegado a ele através de Walnice. Mas um certo tipo de timidez ou insegurança sempre anulou qualquer desejo expresso de minha parte.
Por fim, anos mais tarde, acabei visitando-o graças à mediação de José Luiz Passos, sempre à vontade para procurar e seduzir os que admirava e desejava conhecer. Conversamos durante 4 ou 5 horas. Ele e d. Gilda me deixaram tão à vontade que conversamos em tom espontâneo e prazeroso, pelo menos para mim, levados pelo fluxo arbitrário da interlocução associativa. Impressionaram-me seus modos cavalheirescos sem qualquer vinco de afetação ou gosto de brilhar. São assim os que de fato sabem no sentido plenamente intelectual e ético do termo, isto é, aqueles que convertem o conhecimento em experiência ou modo de ser. Antonio Candido prescindia do gosto de impressionar porque era o que era, era o que se tornou de forma lúcida, harmoniosa e coerente.
Devido às razões acima sugeridas, Antonio Candido foi um dos raros intelectuais que me impressionaram não só através da obra, que já conhecia de muita leitura e releitura, mas através da sutil apreensão de uma correspondência entre o autor e a obra, entre o texto e a vida, expressão que dá título a um dos vários volumes de ensaios enfeixados com o propósito de prestar-lhe justa homenagem.
Aludindo de passagem a alguns pontos que retive na memória do nosso encontro, lembro-me do meu desconserto quando me declarou que a obra que gostaria de ter escrito era Casa-Grande & Senzala. Alongou-se em comentários sobre Gilberto Freyre, inclusive de caráter pessoal, num momento em que a reavaliação da obra deste não estava ainda consolidada, sobretudo nos arraiais uspianos. Neste contexto, não podia deixar de animá-lo a evocar memórias dos modernistas e intelectuais uspianos que conheceu intimamente: Mário e Oswald de Andrade, Drummond (este com muita reserva, pois era por temperamento quase inacessível), Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado e Ruy Coelho. De Mário revelou-me algo que me causou forte decepção, pois então era o intelectual brasileiro que eu mais admirava, tanto a obra quanto o autor e o homem desvelado pela vasta correspondência e outras fontes íntimas.
Segundo Antonio Candido, no auge da perseguição política que Agamenon Magalhães moveu no Recife contra Gilberto Freyre, um dos mais veementes e corajosos críticos do interventor em Pernambuco, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa de encabeçar um movimento de abaixo-assinados como instrumento de pressão política em defesa de Gilberto Freyre. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento. Isso me causou grande decepção no momento em que ouvi a história narrada por Antonio Candido.
Tão à vontade estava que lá pelas tantas incorri numa séria inconveniência. Somente a civilidade e a discrição do casal explicaria o silêncio discreto com que ouviram o que passo a relatar. Falando livremente de livros e escritores que influenciaram minha experiência de leitor, mencionei a admiração que dedico a Paulo Francis e Millôr Fernandes. De passagem, assinalei o significado que o semanário O Pasquim exerceu sobre a minha juventude no auge dos anos de chumbo da ditadura. Ora, poucos anos antes de 1995 houve um incidente intelectual que com certeza feriu Antonio Candido de forma talvez irremediável.
Situando o incidente, um grupo de intelectuais uspianos, todos discípulos de Antonio Candido, gravou e publicou na revista Remate de Males uma longa entrevista, mesclada a passagens de livre debate, sobre a emergência de um conjunto de romances de cunho realista renovado pela experiência da ditadura e da abertura política e cultural. O entrevistado era Davi Arrigucci Jr. Também participavam João Luiz Lafetá, Carlos Vogt e outros que agora esqueço. Comentando essa produção inusitada, que incluía Em câmera lenta, Quatro-olhos, O que é isso, companheiro?, Davi deteve-se na crítica severa a Cabeça, romance inaugural da trilogia de Paulo Francis. Este prontamente veio a público com um dos seus artigos mais brutais e injustificáveis que o leitor possa imaginar. Além do tom grosseiro, partiu para o ataque em tom puramente pessoal. Seu alvo, que nada tinha a ver com a história, era precisamente Antonio Candido. Soltou os cachorros em tom totalmente inqualificável. Antonio Candido e seus discípulos silenciaram. Que mais restaria dizer contra um polemista que por vezes chegava às raias da brutalidade possessa?
Somente alguns dias depois da visita, refletindo sobre ela, dei-me conta do quanto fui desastrado. Como já frisei, Antonio Candido e d. Gilda ouviram-me em silêncio. Depois a conversa retomou seu tom ameno, novamente prazeroso. Retirei-me já depois das 19h. Chovia uma chuva imprevisível em São Paulo. Prontamente, Antonio Candido me deu um guarda-chuva novinho de presente. Insisti em recusar, aleguei não haver necessidade. Sorriu com aquele ar doce e sereno, porém firme e enérgico, quando necessário, e me disse: “É para você. Tenho aqui outros justamente para presentear meus visitantes imprevidentes”. Despedi-me de alma leve e lavada e continuei lendo e relendo a obra única de Antonio Candido. Tenho-a, aliás, integralmente nas minhas prateleiras. Sua obra crítica é sempre agudamente plástica, inteligente e sensível. Ela está à altura da melhor crítica que já li em algumas línguas escrita pelos melhores críticos de muitas nacionalidades que já li e prosseguirei lendo enquanto tiver vida e lucidez. Antonio Candido é uma das mais belas expressões singulares do Brasil que sonhei possível.
Recife, 12 de maio de 2017.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

No mural do Facebook XXXI


Os males do Facebook:
Os poucos que me concedem atenção no Facebook por certo já notaram que deixei de falar de política, o assunto dominante na rede. Confesso que a maior parte do que vejo, há muito deixei de ler, não tem nenhum sentido para mim. Antes que me acusem de omissão, como já o fizeram, não acho que tagarelar compulsivamente sobre toda essa lama, essa bandidagem que afunda o Brasil, seja participar da política no sentido de orientá-la positivamente.
Os poucos que me leram, e no geral convergem com minha perspectiva política, assim como no modo de praticá-la na rede, sabem muito bem o que penso. Já postei aqui com nitidez o que penso de todo esse processo de degradação da política e do país. Tanto é verdade, que perdi vários "amigos" ou oponentes ideológicos. Também fui com frequência incompreendido por opinar isento de qualquer vinco de intolerância ou partidarismo.
Sempre concebi e usei o Facebook como uma tribuna de livre opinião, um exercício de reflexão pública. Em suma, queria doar meu grão de civilidade à barbárie na qual vivo sitiado. Por isso não acho que a linha dominante do que falam, denunciam e até caluniam concorra em nada para melhorar nossa interação e o estado inqualificável da nossa crise política cada vez mais degradada e degradante.
Isso tudo que há de negativo tornou-se apenas conversa de salão no pior sentido do termo, isto é, tagarelice dos que se associam para verter o que a realidade e eles próprios têm de pior. Aliás, muitos assim procedem por não saberem o que fazer de suas vidas, do seu tempo diluído em aridez e futilidade.
Ao escrever isso, e sobretudo declarar meu distanciamento ainda maior (continuarei lendo e ocasionalmente comentando apenas o que corresponde à escolha da minha liberdade ética e subjetiva), estou me tornando ainda mais isolado socialmente. Privado de viver uma vida normal, a rede virtual era (é) meu vínculo principal com as poucas pessoas que são parte da minha vida.
Mas que fazer? Quem escolhe sua liberdade possível, cada vez mais difícil, escolhe também o preço que ela implica. Enfim, amigos do Facebook, estou saindo ainda mais. De resto, poucos notarão esse fato e aceito que assim seja.
(Publicado no Facebook, 27 de maio de 2017).

O reinado da psicologização:
No início dos anos 1960 Philip Rieff escreveu sobre a emergência da cultura terapêutica, ou do homem psicológico. Sua antevisão é hoje incontestável. Hoje tudo parece ser explicável ou diagnosticável pela psicologia. A evidência orgânica da doença, comprovada por exames sofisticados, não isenta o paciente de ouvir este diagnóstico fatal: seu problema é de cabeça, ou emocional. Os médicos também incorrem nesse diagnóstico, sobretudo quando não sabem o que fazer com o paciente e seus males. Afinal, apesar da soberania profissional e cultural que passaram a exercer, sua suposta ciência é bem mais inexata do que presumem muitos dos seus críticos.
Tenho um amigo sofrendo de problemas orgânicos inquestionáveis. Como a doença alterou radicalmente sua vida, hábitos, formas de convívio etc, é evidente que há no seu quadro clínico fatores psíquicos cuja apreensão depende apenas de bom senso. Mas o problema é que médicos, amigos, no geral com a intenção de o ajudar, invocam reiteradamente os fatores psíquicos. Tanto o fizeram que ele concordou em tomar um antidepressivo. Se estava mal, ficou ainda pior.
Saltando para outros contextos, já me cansei de ouvir amigos falando apreensivos da depressão de filhos ainda crianças. Hoje mesmo um me disse que a filha, com apenas 11 anos de idade, está tomando medicação antidepressiva. O sofrimento da perda de alguém que amamos também passou a ser diagnosticado como depressão. Poderia multiplicar os exemplos ao infinito. Vários presos da Lava Jato foram diagnosticados como padecendo de depressão, alegação usada por seus advogados para que fossem libertados. Enfim, Philip Rieff anteviu esta banalidade: a psicologização da nossa cultura, da doença em geral, de estados emotivos que são simplesmente parte constitutiva da natureza humana. Quem perde um amor sofre, se entristece, pode até ficar deprimido. Mas agora a depressão tornou-se um conceito clínico que passou a recobrir e supostamente explicar todos esses sintomas. Como todo absoluto, acaba não tendo mais nenhuma operacionalidade. É como afirmar, como tantos já o fizeram, que tudo é político. Ora, como explicar a realidade na sua totalidade com um conceito de sentido absoluto? Uma coisa acaba anulando a outra.
(Publicado no Facebook, 07 de junho 2017).

O que é democracia?
A democracia não é apenas um regime regido por valores e práticas restritos às instituições políticas. Ela só existe verdadeiramente quando esses valores e práticas se tornam normas correntes balizando o conjunto das nossas relações sociais. É por isso que a Inglaterra, o país mais democrático que conheço, nunca teve uma Constituição formal. Ela é fruto de uma longa e complexa invenção coletiva.
É devido às razões acima grosseiramente esboçadas que insisto em dizer que não somos, nunca fomos uma democracia. Basta observar questões fundamentais como o exercício dos direitos humanos, a relação entre o Estado patrimonial e os direitos individuais, a relação essencial entre a realidade e o que prescrevem as leis do país. Estamos cansados de ler e ouvir os que falam do divórcio real entre o Brasil real e o Brasil legal. No papel somos, sim, uma democracia. Mas papel aceita tudo, como dizia Graciliano Ramos, que amargou de muitas formas o gosto da nossa democracia.
É também devido à definição grosseira de democracia aqui proposta que não me canso de citar os grandes intérpretes do Brasil, notadamente Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Se o faço, é porque tiveram fina percepção do país baseados nos princípios da história de longa duração, na relação entre as instituições sociais e a vida cotidiana. É nesta que melhor captamos nossa "democracia". Seremos uma democracia quando o povo for capaz de a inventar não apenas reformando radicalmente as instituições políticas, mas praticando-a nas práticas e valores cotidianos.
(Publicado no Facebook, 10 de junho de 2017).

quinta-feira, 1 de junho de 2017

No mural do Facebook XXX


A solidão da noite:
Acesso o Facebook porque neste momento me sinto muito sozinho, sofrendo um modo de solidão raro. Previa encontrar a tagarelice política de sempre. Também eu me indigno, me desolo assistindo a tudo isso que vai ao mais fundo esgoto do país. Mas essa obsessão com tudo que há de podre no que estamos vivendo não é também um sintoma da aridez das nossas vidas? Vejo tanta gente solitária e infeliz, tanta gente carente de amor, amizade, dos gestos de humanidade que dão sentido a nossas vidas. Mas quase todos se prendem a tudo que há de pior na nossa realidade, aos apelos de mudança e justiça abstratas enquanto nos ignoramos e mudamente acenamos para o vazio na solidão das ilhas que habitamos.
Queria simplesmente uma voz amiga, alguém em quem me reconhecesse e reconhecesse minha humanidade, um modo de vida e país que estão devastando. Estou nauseado de tanto ler ou ouvir falar dessa política suja, de todos esses bandidos que estão destruindo o que resta de vida bela e decente neste país. E assim, solitário e carente no deserto da cidade sem gente, me perco do meu senso de discrição e privacidade e assim desabafo sem esperança de um eco humano que replique: "Aqui, Fernando, aqui também fala no deserto da noite outra voz carente de humanidade, de um senso de presença e delicadeza que estamos suprimindo do solo quotidiano de nossas vidas".

Qual é a sua droga?
Drummond escreveu num poema que cada um tem sua droga. A dele, está no poema, é a poesia. Freud morreu viciado em charuto. Fumava uma média de 20 por dia mesmo sofrendo estoicamente de câncer na mandíbula e mais de 30 cirurgias durante seus últimos 16 anos de vida. Também ele dizia: o ser humano não pode viver sem algum tipo de droga. Qual é a sua?
Tenho as minhas e algumas são muito saudáveis. Sem elas, minha vida seria mais infeliz, ou menos tolerável. Portanto, deixemos que cada um viva de suas drogas. Mas escolho meus drogados.
Confesso que ando fugindo dos drogados pela política. Estes parecem ignorar que atacando, perseguindo, odiando todos esses bandidos incontáveis, os que convertem a grandeza da vida em esgoto e sarjeta, estes indignados obsessivos estão injetando o que a vida tem de pior no recesso da sua liberdade, naquela esfera única de nossas vidas onde podemos ser mais livres e saudáveis.
Jamais permiti nem permitirei que esse esgoto da vida contaminasse o melhor do que sou, vivo, penso, compartilho com os que elegi para fazer de minha vida algo melhor. Pense nas drogas que você injeta na sua subjetividade. Pense ainda em se curar ou pelo menos manter à distância tudo que você odeia e deforma sua percepção e vivência da realidade. Saiba que, se não fizer isso, a vítima maior será você. Por isso quero ser fiel ao cultivo do meu jardim,como diria Voltaire. Todos os dias rego algumas drogas preciosas. São elas que conferem sentido e beleza à minha vida.
(Publicado no Facebook, 20 de maio de 2017).

A inconsciência nacional brasileira:
Quando Macunaíma perde Ci, a Mãe do Mato e único amor de sua vida, e em seguida a muiraquitã, pedra mágica presenteada pela amada, viaja para São Paulo à caça do Gigante Piaimã, que se apropriara da pedra. Antes, porém, deixa a consciência na ilha de Marapatá.
Segundo a lenda, os que iam para a floresta amazônica explorar os seringais deixavam a consciência na ilha antes de mergulhar na aventura em busca da riqueza. Aventurar-se voluntariamente sem consciência significa fazer qualquer coisa por dinheiro. Pensemos aqui nos "seringueiros" da nossa classe dirigente. Depois que mata o Gigante e retorna à floresta, Macu vai recolher a própria consciência, mas não a encontra. Então pega a de um hispano-americano e se dá bem do mesmo jeito. Sei que é possível ler o texto de muitos modos. O que ressalto é que também traduz a inconsciência do herói da nossa gente.
Precisei espremer o contexto do meu argumento para chegar ao presente que mais importa. Estamos mergulhados na mais grave crise da nossa história republicana, que aliás, nunca chegou a ser isso. Num país cujo povo tivesse consciência nacional, haveria no mínimo uma reação popular que forçaria uma mudança radical. Aqui, no entanto, a maioria, assiste ainda bestificada (como diz certa frase famosa sobre a Proclamação da República, que não passou de um golpe de Estado) à podridão sem precedente vazando dos esgotos e invadindo as ruas.
O povo continua bestificado. Imaginem como reagiriam os corinthianos, por exemplo, se o time caísse para a 2a. divisão, ou simplesmente fosse ameaçado por tamanha tragédia. O povo no Brasil continua constituindo unidade nacional se se trata de futebol ou carnaval. O que estamos vivendo é para mim uma prova de que estamos ainda longe de constituir, enquanto povo, uma entidade nacional.
(Publicado no Facebook, 24 de maio de 2017).

quarta-feira, 24 de maio de 2017

No Mural do Facebook XXIX:


A beleza pura:
A beleza que mais amo e cultuo é a beleza pura, isto é, isenta de adereços e artifícios. Ela é como é, transparente como a luz que a revela na pureza das linhas em que é moldada. Refiro-me antes de tudo à beleza da mulher, que é a forma suprema da beleza. Contemplá-la adormecida, ou acordando tocada pela primeira luz do dia, foi sempre um momento de mistério e emoção inefável na minha vida.
Produto e expressão da natureza, ela é mutável como tudo que é da ordem da natureza humana. Portanto, muda sem dissimular o seu ser mutável. Infelizmente, no mundo de simulacro em que vivemos, ela é cada vez mais rara. Hoje, até na plenitude do seu esplendor ela já não se contenta com sua forma de esplendor. Por isso quer sem além do que é e acaba sendo apenas simulacro, além de valer-se de todas as formas de artifício para ser o que apenas parece. Por isso nunca é.
(Publicado no Facebook, 30 de abril de 2017).


Relendo Macunaíma
Ci, ó Ci, ó Mãe do Mato
Gemia Macunaíma,
Imperador da Amazônia,
Amor primeiro, ó Ci
Nunca terá companheiro.
Seja no céu, seja aqui
És meu gozo e cativeiro.
(Publicado no Facebook, 7 de maio de 2017).

Nossa orfandade política:

Embora tão grande e velho, meu Deus, o Brasil continua sendo um país de órfãos políticos. Digo um porque o fenômeno é extensivo à América Latina. Não explicito as raízes históricas desse fenômeno (dissecado, entre outros, por Octavio Paz) porque aqui a gente tem que ser curto (não falta quem seja curto e grosso).
O mito do rei Dom Sebastião, lá dos fins do séc. 16, continua bem vivo no presente. O povão, o povo e até a maioria da nossa suposta intelligentsia aguarda ainda o salvador da pátria. Já houve muitos e outros virão, à esquerda quanto à direita.
E assim vamos à deriva variando do delírio otimista à perplexidade expressa em frases que deveriam ser gravadas na nossa bandeira cujo lema, aliás, deveria ser Desordem e Regresso. As frases? Por exemplo assim: Que país é este? Por que o Brasil não deu certo? Por fim há também as frases consoladoras do tipo: Deus é brasileiro; Brasil, país do futuro; Com jeito vai; Deus é fiel...
Nenhum país é fruto de um pai salvador. Nenhum país se constrói vivendo de ilusões consoladoras. O verdadeiro agente fundador de qualquer país é o seu povo. Portanto, o que precisa mudar é a nossa mentalidade, as nossas instituições, a consciência coletiva. Em suma, a conversão do órfão em sujeito da sua história.
(Publicado no Facebook, 9 de maio de 2017).

A história tem sentido?

Observo de passagem os posts em louvor da família, do dia das mães, de todos os valores típicos da sociedade burguesa que os rebeldes da minha geração queriam destruir. O auge dessa "onda revolucionária" (com as devidas aspas) foram os anos 1960 e 1970. Também joguei esse jogo com razões pessoais ponderáveis, pois minha família se desintegrou de fato. Mas conheci muita gente careta (como dizia a gíria da época) que não passava de rebelde financiado. Quanto a esses, nunca me enganei. Sabia que voltariam para casa e para o aconchego do mundo burguês tão logo a chuva passasse. Escrevi alguns artigos dizendo isso no jornal anarquista O Rei da Notícia. Aliás, era anarquismo patrocinado pelo Estado, o que é típico do Brasil.
Saltando para o presente, há muito noto que todo mundo se reacomodou com total inconsciência no mundo que negava radicalmente. Parece que a real herança daqueles anos loucos e inconsequentes foi o vale tudo em que passamos a viver. De fato, reduzimos a poeira os valores mais sólidos da família e das instituições integradoras dos indivíduos na sociedade, mas voltamos a celebrar a família e tudo que ela tradicionalmente representava como se tudo fosse como antes. Parafraseando Shakespeare, inconsciência, teu nome é Brasil.
(Publicado no Facebook, 16 de maio de 2017).

O Horror, o horror:

Sei que esta frase aparentemente banal já está mais do que banalizada. Ela condensa o sentido de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, uma das obras fundamentais da literatura moderna. Corro os olhos pelos comentários do Facebook, quando o Brasil mergulha cada vez mais no abismo, e me desola a aceleração da histeria maniqueísta. Noutras palavras, tudo serve de munição para o Fla X Flu ideológico que já não suporto. Poucos vislumbram o horror perpetrado pela classe dirigente que governa este país há séculos garroteando e alienando o povo.
horror parece a muitos invisível ou até inexistente, fruto da imaginação de quem leu Conrad em excesso. Mas ele lateja e sangra nas ruas, nos hospitais, nos crimes inomináveis praticados por um Estado parasita e cruel. Ele depreda e impede qualquer processo efetivo e sustentável de reformas substanciais que nos libertariam da canga do passado, do horror que condena à miséria e ao desamparo um país rico onde a riqueza criminosa e a bandidagem nos condenam à condição de uma republiqueta de terceira classe. É esse o horror que governa o Brasil.
(Publicado no Facebook, 19 de maio de 2017).

quinta-feira, 4 de maio de 2017

A casa vazia


Há muito vive na casa vazia.
Tão ele ela, tão ela ele
Que se fundiram numa inconsútil unidade.

A casa vazia, mas habitada
Pelas imagens
Sombras e luzes
Vozes do tempo
Recobrindo as paredes.

A noite deserta dentro da casa vazia.
Mas sente e vive no bojo do tempo
A ausência viva de tudo que amou e perdeu.
Logo, a perda é plenitude
Na eternidade do tempo
Unificando o pleno e o vazio.
Tudo que ama é presente na ausência.

Recife, 14 janeiro 2017.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Seu nome


Reduzido ao mais íntimo e insondável
Seu nome recobre
Infinitos matizes de sentimento e memória.
Ora suspiro saudade
Ora silêncio e perdão
Ora ainda perda e engano
Ora manhã de verão.

Seu nome variante gráfica
De todo condicional
Paira no cimo da noite
Do meu presente eterno.

Recife, 22 março 2017.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

No Mural do Facebook XXVIII


A barbárie é nossa:
Em 2010 a universidade tornou-se já uma provação para mim. Provação intelectual, humanista, estética... Em suma, ela cotidianamente negava todos os valores que nortearam minha vida. Esses valores se foram compondo em plena ditadura. Fui trabalhar numa fábrica (não era, nunca fui comunista) e dentro das condições mais adversas nutria a convicção de realizar os ideais humanistas assimilados através da literatura e da melhor tradição cristã, iluminista e marxista. Que dizer do que é o Brasil hoje?
Meus ideais igualitários implicavam, por exemplo, a crença na aliança entre o melhor da tradição erudita e a popular. Como todos os grandes humanistas, de qualquer vertente, acreditava que lutar por um mundo melhor era realizar uma conciliação para o alto, não para baixo, democratizar o melhor, não o pior. Que dizer do Brasil de hoje? Hoje, e desde muito, sinto-me um completo estrangeiro no Brasil e em muito do mundo que consigo apreender.
Essa reflexão grosseira decorreu de um mero acaso: acabo de assistir a um show de Joyce no You Tube revivendo a música de Sidney Miller, que desde muito é apenas o nome de uma sala de show no Rio de Janeiro. Dentre todo mundo que conheço, João Rego é o único que conhece e canta Sidney Miller. Eu, que conheci a música de S. M. trabalhando numa fábrica, pensei que ela tinha acabado com o esquecimento dele na história da nossa música. Foi comovente ouvir músicas que nem sabia que ele havia composto depois que o mundo e o Brasil começaram a deslizar barbárie abaixo. Não faltará quem leia, se é que lerão, estas palavras como expressão de um humanista deprimente. Deprimente é a realidade que se tornou nossa. Tão nossa que se fez membro eleito pela família. Não tenho família. Aliás, tenho e sempre terei: os ideais humanistas que elegi e morrerão comigo. Ainda que nada mais me reste.
(Publicado no mural do Facebook, 27 de abril de 2017).

A barbárie é nossa - II
Alongo meu post precedente porque, entre outros mal-entendidos, incorri num lapso tão óbvio que me espanta o fato de tantos o lerem ao pé da letra e, pior, deduzirem coisas que o texto não autoriza. Não sou ainda imortal, mas também não tão velho para me desiludir com a universidade em 1910. Não bastasse tanto, houve quem concluísse que acredito em Idade de Ouro. Suponho que a minha teria então acabado em 1910.
Já que me leram com tanta imaginação, vou espichar a minha. A única coisa que poderia justificar o fim da minha suposta Idade de Ouro em 1910 seria a frase célebre de Virginia Woolf segundo a qual o caráter humano teria mudado neste ano. Como ela não apresenta nenhum argumento convincente, desmancho o que nem me passou pela cabeça.
Queria portanto deixar claro que meu humanismo é negativo, pessimista, como queiram chamá-lo os que continuam acreditando que somos uma espécie destinada a realizar algum ideal grandioso de humanidade reconciliada. Quando jovem, tolo como todo jovem, nutri esse tipo de humanismo. A experiência refletida levou-me a revisá-lo radicalmente. Nem sequer acredito em felicidade individual como um estado durável, muito menos permanente. Como então acreditaria ainda em Idade de Ouro?
Por fim, meu mal não é a pressa diante da história. Pelo contrário, se alguma coisa aprendi com ela foi precisamente a relevância da longue durée e a infinita inventividade do ser humano para tramar catástrofe e nada aprender com a história. Na minha adolescência me ensinaram uma das definições mais insanas da história: a mestra da vida. Ora, a história é feita por uma espécie antes de tudo insensata, doente de compulsão repetitiva e desmemoriada ou ignorante.
(Publicado no mural do Facebook em 27 de abril de 2017).