segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Soneto intransitivo


Tanto amor nas fontes represado
Tanto amor doído e inconfesso
Tanto desejo de amar e ser amado
Tanto de ti no tanto que não peço.

Tanto amor no corpo intransitivo
Tanta memória na noite solitária
E esse silêncio prenhe de sentido
Na vida tão sozinha e entanto vária.

Tantas vozes remotas no deserto
Que hoje habito e estreita o seu aperto.
Tanto que fui no tanto que vivi

Tanto de ti nas sombras que a vagar
Confundem meu desejo de partir
Na dor de ainda e sempre te amar.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A duração do amor


Amor é sempre pra sempre
Embora sempre acabe.
Vai para a frente demente
Velando no seu alarme
No grão de cada memória
O amor que perdido arde.

Amor é sempre pra sempre
Por isso tem tanto medo
De dar o que nem pressente
Que moerá no degredo
Da perda onde de repente
Refaz seu sempre enredo

Fechado em seu próprio fim:
Perder-se no ser do outro
Que se exila de mim.
E assim amando pra sempre
O amor, ferida demente
Arde no inferno sem fim.

terça-feira, 26 de maio de 2015

No Mural do Facebook IV


A herança das utopias
Se é possível falar em debate público nas redes sociais, ele está restrito a questões políticas imediatas ou conjunturais. Há questões de fundamento que, sei, não podem ser razoavelmente discutidas nessas vitrines moventes. Se no entanto teimamos em ignorá-las, continuaremos repetindo nossos erros e brigando em torno dos efeitos alheios às causas. Um exemplo: a esquerda, da qual procedo e dentro da qual formei minha concepção da realidade histórica, continua cegamente presa a ideais utópicos e a projetos políticos que foram profundamente abalados pela história do século 20. As utopias de esquerda (comunismo) e direita (nazi-fascismo) resultaram em Estados totalitários e conflitos armados sem precedente histórico. O custo social disso tudo é inominável. Há pouco li um livro obrigatório para quem deseja conhecer líderes da esquerda como Stalin. Refiro-me a Stalin – the court of the red tsar, de Simon Montefiore. Também recomendo este de Orlando Figes: The Whisperers. Eduquei-me politicamente aprendendo que Stalin era o grande benfeitor da humanidade. Hoje sei que foi um dos maiores tiranos da história. Seus crimes e os horrores que praticou para converter um país feudal e autocrático em uma grande potência são simplesmente inomináveis. Não conheço um intelectual ou militante de esquerda do Brasil que tenha feito publicamente um exame dos nossos erros e ilusões, dos enganos e crimes que cometemos, como agentes ou cúmplices omissos, da história de horrores do século 20, que se estende para o presente. Não falo da direita porque todo mundo sabe, pelo menos via cinema e a mídia de massa em geral, dos horrores que praticou. Além disso, o ideário dela nunca enganou às pessoas inspiradas por autênticos ideais humanistas. É por isso que miro a esquerda neste comentário que ou será ignorado ou servirá para que alguns dogmáticos e cegos intransigentes atirem pedras no meu telhado de vidro. No entanto, é preciso enfrentar essa história, se de fato queremos saber o que significam a história da revolução cubana, nosso bolivarianismo novamente em ascensão e a degradação do PT. (Facebook, 6 de abril de 2015).

A militância é tendenciosa
Há muito aprendi que a consciência militante ou partidária é no geral tendenciosa. Por isso renunciei a me pronunciar ou opinar em qualquer sentido em nome de um partido ou um poder constituído. Longe de mim a presunção de que sou imparcial ou neutro. Sei que as ações e juízos humanos são por natureza parciais. O que acredito é que é possível encurtar a distância ou desacordo entre a consciência e a verdade objetivamente verificável. Seguindo esse princípio, já fui acusado por amigos de ser omisso. Quando assim me acusavam, pressionavam-me significativamente para tomar partido... aderindo ao partido deles.
A verdade humana é sempre limitada. Isso não justifica o partidarismo e sectarismo que todos os dias leio no mural do Facebook. Lamento constatar que pessoas que me inspiram afeto e admiração (algumas não mais) compartilham e endossam posts, pesquisas e qualquer tipo de suposta evidência que supostamente denuncia X ou Y como o partido mais corrupto do Brasil, X ou Y como o presidente mais corrupto do Brasil e coisas desse tipo. As pessoas que assim procedem estão implicitamente justificando a corrupção e os crimes do seu partido. O subtexto é o seguinte: defendo a corrupção e os crimes do meu partido porque o partido X ou o presidente Y foram ou são muito mais corruptos. Essas pessoas se veem, no entanto, como portadoras de boa consciência cívica. Se o fossem de fato denunciariam e se oporiam a toda e qualquer corrupção, todo e qualquer crime, não importando de onde ou de quem procedessem. Não consigo ser otimista com relação ao Brasil porque, no auge de uma crise crescente, em meio à corrupção de todo tipo, pessoas supostamente éticas combatem-se nas redes sociais para justificar os crimes dos seus partidos. Só falta aparecer alguém para ter a canalhice de defender a inocência do partido, político ou presidente que roubou menos. Seria uma variação deste dito famoso que muito traduz a mentalidade corrente do Brasil: rouba, mas faz. Ou ainda: rouba, mas ajuda os pobres.
(Postado no Facebook, 15 de abril 2015)

Direitos Urbanos e Estelita
Posto este comentário para declarar meu apoio ao movimento Direitos Urbanos, notadamente à sua luta em defesa de uma cidade mais humana, portanto voltada para os interesses coletivos. Recife é um dos piores, senão o mais desastroso exemplo de uma forma de crescimento urbano tutelado pelo poder das empreiteiras associadas a uma tradição política oligárquica e autoritária. Isso explica o estado de calamidade a que chegamos. Vivemos numa cidade onde não há espaço efetivo para as pessoas, sequer para se locomoverem livremente exercendo seus direitos mais elementares. Nesse contexto, o movimento Direitos Urbanos tornou-se um símbolo de admirável resistência à depredação do espaço público. Ocasionalmente, no passado, houve esboços de reação contra a sanha predatória dos que estão levando nossa cidade à ruína. Mas essas reações momentâneas nunca lograram organizar-se como movimento efetivo de resistência continuada. O movimento Direitos Urbanos é, por isso mesmo, um fato novo na política local, espero que também inspirador de práticas semelhantes e urgentes em todas as cidades brasileiras onde a cidade é do povo apenas na enganação publicitária promovida por uma classe dirigente cínica, corrupta e indiferente ao próprio futuro dos seus filhos, pois a cidade que estes irão herdar é isso que vemos e cotidianamente sofremos à nossa volta.
(Postado no Facebook, 14 maio 2015).

O tédio militante
Borges: a política é uma das formas do tédio. Cito a frase antes de tudo por espírito de provocação, embora acredite que contém muito de verdade. Cito-a porque me entedia correr os olhos pelo mural do Facebook e ver, não ler, as mesmas e previsíveis postagens. Não me limito a vê-las por ser indiferente, mas simplesmente por já sabê-las de cor. Por isso dou razão a Borges, o grande reacionário argentino, o gênio literário que foi aviltado durante décadas pela esquerda latino-americana. Cito também Glauber Rocha, embora noutro contexto: Chico Buarque é o Tom Mix da esquerda. A frase é do tempo em que Chico, escudado pela sua fama e pela sua admirável integridade, resistia quando todos nós silenciávamos temendo os castigos da ditadura. Hoje, quando se diz tudo, sobretudo a futilidade e a mentira, qualquer um é Tom Mix: diz o que quer no mural do Facebook, sempre o previsível, e vai dormir em paz com a sua consciência. Preferiria ler um reacionário consciente, responsável pelo que diz.
(Postado no mural do Facebook, 9 de maio 2015)


sexta-feira, 20 de março de 2015

No Mural do Facebook III


O Capital Moral do PT
Penso que a mais nefasta conseqüência moral da corrupção que corroeu e destruiu a identidade ideológica do PT, não obstante a cegueira tenaz dos sectários, consiste na degradação do capital moral que ele infundiu na política brasileira. O PT representou, sem dúvida, a maior renovação democrática e partidária do Brasil. Foi o primeiro e único partido formado a partir das bases mais conscientes e organizadas da classe trabalhadora associada aos movimentos mais avançados da sociedade: as comunidades eclesiais da Igreja católica e os melhores setores da esquerda saída da ditadura. Mesmo gente como eu, que nunca foi petista, reconheceu esse sopro de renovação política trazido pelo PT. Durante anos, apesar dos erros inevitáveis e do radicalismo muitas vezes desastrado, o PT simbolizou para os melhores setores da sociedade uma alternativa progressista e uma fonte de inspiração ética.
Confesso que comecei a duvidar dele e do seu discurso quando Marilena Chauí se impôs nos anos 1980 como a articuladora da ética da transparência. Quem lembra ainda o que dizia bradando e fazendo coro indignado com Lula, sempre raivosamente moralista, contra os demais partidos? Quem lembra o tom arrogante desse discurso banhado pela pureza redentora de uma tradição utópica investida da missão autodelegada de salvar o mundo? Encurtando o enredo, vejam onde o PT acabou. Por mais que queiram apagar a luz do sol que ilumina a realidade no calor do meio-dia, não há como negar que o PT seguiu e até radicalizou a trilha das nossas tradições corruptas. O maior estrago, como comecei dizendo, foi a dissolução do capital moral que simbolizava para os melhores setores da nossa sociedade, para aqueles que acreditavam em alternativas políticas progressistas e realmente transformadoras. Agora, queiram ou não os sectários, o PT é apenas um partido igual a tudo que combateu desde a sua origem promissora. Isso concorreu não apenas para dissolver promessas e esperanças de mudança qualitativa, mas também para promover o vale-tudo que observamos disseminar-se por toda a sociedade. Esse é o mal mais maligno que o PT promoveu na política e na sociedade brasileira.
(Postado no mural do Facebook, 18 de março 2015).

A Irracionalidade dos Petistas
Sérgio Ferraz mencionou Stanislaw Ponte Preta aqui no mural do Facebook. Isso me fez lembrar um samba muito inventino, de fino humor, como tudo que Stanislaw escrevia e criava, intitulado Samba do Crioulo Doido. A letra, para quem não conhece o samba, é uma condensação delirante da história do Brasil, uma paródia maluca de samba-enredo das escolas de samba. Lembrei o samba porque tenho lido o que muitos partidários do PT escrevem sobre os últimos acontecimentos. É uma mistura maluca de ignorância e sectarismo movida a paranóia e desprezo cego pela realidade. Não sei sinceramente o que dizer a essas pessoas. Há muito procuro compreender a irracionalidade humana, sobretudo no plano das relações amorosas, religiosas e políticas. Cheguei à conclusão de que o ser humano é em princípio, dependendo das circunstâncias, capaz de acreditar em qualquer coisa. O mais grave é que nossas crenças mais primitivas, impermeáveis à prova dos fatos e da razão, têm sido e continuam sendo uma fonte de horrores na história humana. Lembrando outro samba, este de Paulo Vanzolini, confesso que me rendo à força dos fatos. É inútil argumentar racionalmente com quem está enceguecido pela ideologia. Como também estou farto de enganação e desconversa delirante, vou cair fora deste mural.
(Postado no mural do Facebook, 17 de março 2015).

Crise política e golpismo
Faz vários dias que alguns vizinhos golpistas bradam nas varandas contra Dilma e o PT entre sopros de apito e vuvuzela. Os otimistas ou crédulos acham que nossa democracia é sólida simplesmente porque, depois da ditadura, foi promulgada uma “constituição cidadã” e algumas instituições básicas funcionam. Antes isso do que o pior, friso. Daí a acreditar que vivemos numa autêntica democracia, o erro me parece provável. Uma verdadeira democracia supõe conquistas que estamos ainda muito longe de alcançar. Ficando no miúdo, faltam-nos de fato direitos que todo Estado democrático assegura ao cidadão (que nunca fomos), sobretudo quando a sociedade é sangrada por impostos extorsivos. Que direitos são esses? Moradia, saúde, educação, segurança, transporte... em suma, uma vida social verdadeiramente digna e cidadã. Os anos de governo do PSDB e do PT promoveram avanços significativos em várias áreas, mas no essencial nada mudaram. Volta-se a falar em reforma política e reforma social como falavam antes do golpe que instaurou a última ditadura. O enredo essencial é ainda o mesmo, insisto. Enquanto não houver uma reforma social profunda no Brasil, o risco da regressão golpista, das soluções de intolerância e força, que nada solucionam, continuará rondando este país de muita esperança e pouca mudança.
(Postado no mural do Facebook, 15 de março 2015).

Corrupção
Li as várias tentativas de explicação da leniência ou cumplicidade generalizadas de brasileiros de diferentes perfis em face da corrupção. Suponho que nenhuma parece suficiente, tanto que continuamos propondo razões de variável consistência. Longe de mim propor uma que satisfaça a mim próprio. Não obstante, acrescento alguns palpites. Antes de tudo, a corrupção está entranhada em toda a nossa formação social. Portanto, mais do que nos casos de incidência rotineira em outras sociedades, no Brasil a força explicativa do etnocentrismo é muito mais poderosa. O etnocentrismo é uma verdade consensual na antropologia e na psicologia social, isto é, tendemos inconscientemente a aceitar os valores e práticas dominantes na sociedade em que vivemos. Por isso há muito passei a dar importância muito maior a quem diz não, a quem nada na contracorrente. Ademais, o racionalismo ensinou-me paradoxalmente a perceber o quanto o ser humano é movido pelas paixões. Esta é a força talvez mais poderosa das ideologias, um complexo abstrato de interesses e desejos passível de cegar as inteligências mais agudas. Quando penso nas sandices em que gênios como Rousseau, Marx, Engels, Trotsky e Rosa Luxemburgo acreditaram (para citar apenas alguns exemplos de utópicos de esquerda), concluo que o ser humano pode em princípio acreditar em qualquer coisa. Em suma, entre todas as crenças mais delirantes talvez a mais sustentável seja acreditar em Deus. Pelo menos não há como demonstrar racional e empiricamente sua inexistência. Talvez no fundo o católico Chesterton tenha razão: quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Se alguma coisa aprendi, foi a contentar-me com meu racionalismo que muito pouco explica e por isso se acautela contra qualquer tipo de presunção dogmática.
(Postado na Revista Será? em 22 fevereiro 2015)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Espelho Cru


Quem no espelho reflete
As linhas cruéis da vida
Fato que em todos repete
Do tempo a sua ferida?

Quem no espelho quer ver
Os fatos que a vida inscreve
Se a dor de a si se doer
Converte a ilusão na breve

Aparição de uma sombra
Que errante vaga no mundo?
Quem que ousa ser não se assombra
No cru espelho em que afundo?

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Eduarda no Piano


O carnaval sempre tarda
E logo além se dissipa
Mas algo vem, algo fica
Na aparição de Eduarda.

Talvez a lembrança arda
Ou seja como se fosse
Algo tão lindo, tão doce
Como a visão de Eduarda.

Talvez apenas trapaça
Pois tudo na vida passa
Passa Eduarda também.

Um sopro porém repica
Dizendo que algo fica
Além de tudo, algo além...

Fernando da Mota Lima
Recife, 06 de março 2009.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Islamismo no Ocidente


É difícil para um brasileiro alheio à realidade concreta das relações culturais em países como a França e a Inglaterra opinar adequadamente sobre os atos de terrorismo ocorridos há poucos dias em Paris. Além de detentor de um vasto território, o Brasil goza do privilégio de ter uma cultura nacional integrada e nunca sofreu pressões imigratórias semelhantes às que ocorrem na Europa e nos EUA. Nossas pressões imigratórias são internas, basicamente no sentido campo-cidade e Nordeste-Sudeste. Apesar de se processarem entre compatriotas, sabemos os problemas que geraram e ainda geram. Tomo a liberdade de mencionar brevemente minha própria experiência como estudante brasileiro vivendo na Inglaterra. Assim poupo o leitor de abstrações teóricas mais complicadas.
O célebre affair Salman Rushdie eclodiu pouco depois que cheguei à Inglaterra. Para quem tem memória curta, Rushdie é um paquistanês de nacionalidade inglesa. Quando publicou Os Versos Satânicos, seu explosivo romance abordando o islamismo através de mecanismos literários correntes no Ocidente, desencadeou um clima de revolta e intolerância que me deixou simplesmente chocado. Quando vi na BBC multidões de imigrantes muçulmanos manifestando-se agressivamente nas ruas, sobretudo em Bradford, no Norte da Inglaterra, onde o livro foi queimado publicamente, logo me vieram à memória imagens do nazismo e uma amostra do humor mordente de Freud. Quando estudantes nazistas queimaram obras de escritores judeus e antinazistas, Freud fez a seguinte observação ao saber que livros seus foram também para a fogueira: Como estamos progredindo... Na Idade Média eles me queimariam; hoje contentam-se em queimar meus livros (omito as aspas, já que cito de memória).
Convivendo durante mais de quatro anos numa universidade inglesa com gente de todos os credos e procedências, pude constatar que mesmo o país fundador do liberalismo e das mais civilizadas formas de tolerância entre culturas lida com problemas inconcebíveis em países como o Brasil para acomodar sem conflitos extremos a sua população muçulmana. A julgar, no entanto, por quase tudo que ouço e leio entre nós, parece que nossa inconsciência etnocêntrica e o clima relativista e até niilista da nossa cultura acadêmica é incapaz de apreender a complexidade das tensões crescentes entre religiões e culturas inconciliáveis. Antes que me acusem de pregar o choque das civilizações, alinhando-me com o conservadorismo ocidental, adianto que o choque, se efetivamente ocorresse, teria consequências inimagináveis. Lembrando apenas um fato banal, a população de muçulmanos da Inglaterra, França e EUA é tão grande que não haveria como fixar fronteiras culturais e religiosas entre os grupos conflitantes. Noutras palavras, qualquer solução possível forçosamente traduzirá uma acomodação de forças dentro da realidade gerada pelo mundo globalizado que habitamos.
Aludi acima ao relativismo e ao niilismo correntes na nossa cultura acadêmica, que é de resto, como de praxe, reflexo do radicalismo intelectual servilmente adotado por nossa inteligência colonizada, porque daí procedem as críticas mais veementes contra o Ocidente e tudo que de pior este produziu na história moderna: colonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, genocídio, espoliação das massas periféricas e outros males que o leitor informado poderá acrescentar melhor do que eu. O que me incomoda é o fato de essa casta privilegiada de radicais simplesmente silenciar sobre os melhores valores da tradição ocidental que prezo com a convicção de que estão entre as defesas precárias de que dispomos para realizar um ideal mais civilizado e integrador de convívio. Lembrando Walter Benjamin, não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (novamente sem aspas).
Tenho em mente, noutras palavras, conquistas como a democracia moderna, a liberdade de opinião e credo, os direitos humanos e o reconhecimento do outro. Os radicais do Ocidente que não medem esforços para minar esses valores vêem apenas o que lhes convém denunciar. Parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam, além da sucessão de modas teóricas gestadas e diluídas na academia (estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo etc) são inconcebíveis fora do Ocidente. A evidência é simples assim: tentem imaginar um Nietzsche, um Foucault, um Edward Said, qualquer dos gurus do relativismo e do niilismo pregando suas ideias no Oriente Médio ou em qualquer país muçulmano. Tentem imaginar qualquer teórico ou adepto das minorias (aqui incluídas maiorias, pelo menos estatísticas, como o feminismo) pregando e sobretudo vivendo em ato e fato a diferença e o multiculturalismo que são moeda corrente e com freqüência falsa no vale tudo cultural do Ocidente.
Encurto o artigo sugerindo ao leitor um breve exercício de imaginação sociológica. Um terço da população de Marselha, berço do hino nacional francês, é constituído de muçulmanos. Espremendo o caldo, todos que não foram assimilados – ou aculturados, como bem ou mal dizem os antropólogos – nada têm a ver com os valores dominantes na França fundados pela tradição iluminista depois de séculos de conflitos internos e externos. Fatos extremos e inqualificáveis como os atos de terror recentes concorrem apenas para agravar tensões já por si muito complexas. Ademais, o terror não serve a ninguém, salvo àqueles que querem resolver os impasses humanos através da força e da destruição. Até nós, que gozamos do privilégio de não abrigar em território nacional esses conflitos entre culturas e religiões, até nós perdemos parte da liberdade e da segurança já precárias de que desfrutamos. No mais, é fácil para um relativista ou ressentido cultural brasileiro esbravejar contra a xenofobia francesa agravada por esses atos de terror. Queria ver como nos comportaríamos se Paris fosse a capital do Brasil.
Recife, 12 de janeiro de 2015