terça-feira, 28 de dezembro de 2010
A Onda
O filme A Onda é baseado num experimento pedagógico ocorrido na Califórnia em 1967. Transposto para a Alemanha contemporânea, berço do nazismo, resulta num precioso e inquietante documento psicossocial que desce às entranhas das potencialidades destrutivas do gênero humano. Compreendido enquanto cinema, esteticamente falando, A Onda é rasa, mas importa muitíssimo pela idéia recriada para iluminar questões do presente. É isso o que intento explorar um pouco na minha crítica.
Embora incapaz de ajustar-me a qualquer movimento ou disciplina partidária, acredito que ninguém pode, a rigor, ser indiferente à política. Como disse alguém, não importa que não nos importemos com ela; ela se importará conosco. Talvez um sintoma da minha descrença na ação política se expresse na preocupação de compreendê-la em termos puramente teóricos – compreender a mais terrível onda bárbara que foi o nazismo, por exemplo. Lendo Freud, Bertrand Russell e Erich Fromm, depois vieram outros, julgo haver compreendido melhor o papel que determinados componentes psicossociais exercem na ação política.
Vamos ao filme. Rainer é um professor anarquista que ironicamente se defronta com o desafio de dar um curso sobre autocracia e regimes políticos similares (ditadura, nazismo, fascismo) para uma turma de jovens estudantes. Os jovens têm muitos dos traços psicossociais comuns à juventude do mundo ocidental e suas derivações periféricas. Esses traços decorrem, em suma, da cultura narcisista e consumista cujo solo e circuitos de manifestação contínua bem conhecemos. Incerto sobre o que fazer diante do desafio pedagógico que tem pela frente, Rainer procede a um experimento nazi-fascista em plena sala de aula. As reações dos alunos e as transformações perturbadoras que neles se processam apontam para as fontes psíquicas e sociais geradoras dos regimes políticos de extrema direita.
À exceção de Karo e outra aluna que a segue, toda a turma adere entusiasmada à formação de um grupo inspirado pelos valores e práticas do nazismo. A motivação psicológica decisiva para a adesão reside no desejo obscuro de dissolver a individualidade e a liberdade individual, bem mais penosas do que supomos, numa unidade mística e grupal. Essa unidade supõe gestos, rituais e símbolos lastreados na disciplina cega e na força forjada pelo grupo. A figura do líder é a fonte de autoridade e poder com a qual os jovens seguidores cegamente se identificam. Essa identificação liberta os jovens de pensarem e decidirem por si próprios. Pouca gente se dá conta do quanto a liberdade assim compreendida (implicando autonomia, liberdade de escolha e conseqüente responsabilidade em face do que escolhemos) é difícil e mesmo penosa.
É desse peso que os jovens participantes do experimento fascista se liberam. O líder ordena e eles disciplinadamente agem. Não ser parte dessa unidade cega e intolerante é uma ameaça à unidade conquistada que precisa crescer na sua força expansiva. É aí que a jovem Karo se torna uma ameaça que precisa ser excluída do grupo. Ela representa os valores da liberdade individual aos quais todos renunciaram. O exemplo extremo dessa renúncia cega e radical é Tim, o jovem que no desfecho do filme se suicida. Quando o professor renuncia ao papel de líder, impondo ao grupo um retorno à situação inicial, ele se revela incapaz de reverter o jogo perigoso proposto pelo professor. Sua renúncia à liberdade individual tocou o extremo passível de o impelir para a destruição completa, que no caso resulta em autodestruição.
A Onda sugeriu-me um paralelo com Sociedade dos Poetas Mortos. Este filme, talvez já esquecido, poderia ser interpretado como o oposto simétrico daquele. Também aqui nos vemos diante de um professor, Mr. Keating, cuja personalidade magnética seduz um grupo de jovens estudantes da elite americana. A pedagogia que propõe a seus alunos, inspirado pela tradição romântica libertária, baseia-se em tudo que a ideologia nazista intenta suprimir: a educação compreendida como a realização da singularidade irredutível de cada indivíduo. Faça seu próprio caminho, cante sua própria canção, realize a vida extraordinária que lateja em cada indivíduo. O desfecho de Sociedade dos Poetas Mortos também envolve um suicídio. Neil, o jovem suicida, mata-se por não poder suportar um sentido de repressão imposto pela família e a escola que suprime sua individualidade. É portanto a contraface de Tim, que se mata porque renunciou completamente à possibilidade de se realizar como indivíduo.
Anotei no parágrafo acima um paralelo grosseiro entre dois filmes de sentido antagônico com o propósito de sugerir a complexidade da realidade cultural em que vivemos. Ambas as tendências conflitantes ou inconciliáveis se manifestam de muitos modos. Meu coração e minha mente estão totalmente identificados com os valores propostos por Sociedade dos Poetas Mortos. Mas nunca me esqueço, talvez precisamente por escolher o que escolhi, que as forças profundas geradoras do fascismo estão sempre entre nós. Seriam elas acaso passíveis de produzirem um fascismo à brasileira, como aliás tivemos disso um arremedo nos anos trinta com o movimento integralista? Acredito que não. Afinal, concordando com Luciano Oliveira, que tem escrito sobre esta e questões conexas observáveis na nossa sociedade, estamos longe do modelo de sociedade disciplinar proposto por Michel Foucault na sua obra. O nazismo foi um movimento baseado em formas de organização militarista somente concebíveis numa sociedade disciplinar. Nossas formas supremas de mobilização coletiva, o futebol e o carnaval, constituem a evidência de que tendemos mais para a anomia, como diria Durkheim, do que para a arregimentação disciplinar das massas. Eis um caso, talvez o único, em que nossa incurável bagunça é social e politicamente saudável.
Créditos:
Título: A Onda (Die Welle)
Direção: Dennis Gansel
Roteiro: Todd Strasser (romance), Dennis Gansel e Peter Thorwarth
Ano de produção: 2008 (Alemanha).
Elenco: Rainer Wenger - Jürgen Vogel
Tim - Frederick Lau
Marco – Max Riemelt
Karo - Jennifer Ulrich
Recife, 9 de dezembro de 2009
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Dois Poemas (Anti)Natalinos
Nonel
Um dia serei Natal
Liberto desse comércio
Sem shopping cheque cartão
Guichê no aperto de mão
Lucro na pele do abraço.
Um dia serei estrela
Ser sem comércio, poeira
Dust stardust compasso.
Raio no azul da piscina
Lição que a vida não ensina
Em si completa: nonada.
Sonho de Natal
Quem te sonhou assim outro Natal
Outro modo de amor, outro endereço
Um bem além do bem, além do mal
A luz que é força cega e não mereço?
Quem ousará dizer o que não digo
E entanto insone fala pelo avesso
As coisas que ao dizer que te não digo
Bem sabe que o Natal é troca e preço?
Quem sonha dentro em mim, a sós comigo
Outro modo de festa, ou sopro amigo
Velando o sol e o sono no teu berço ?
Quem brinca de Natal (um sonho antigo)
Alheio a tanta dor, tanto perigo?
Os sinos silenciam e adormeço...
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Deus Danado
Potiguar e Potiguares
Dentre as peculiaridades culturais do Recife, e extensivamente de Pernambuco, reponta o traço de persistente conservadorismo aferível no conjunto das suas expressões artísticas e mais nitidamente na ideologia que confere suporte a essas expressões. Tal conservadorismo, instância compensatória para a perda progressiva de peso político-econômico e cultural no cenário nacional e mesmo regional, é obra competentemente articulada por intelectuais herdeiros das tradições oligárquicas decadentes. Seu arquiteto supremo é Gilberto Freyre, figura intelectualmente complexa e portanto controversa. Por isso ressalto que esboço aqui sua figura de forma sumariamente negativa por considerá-la em termos estritamente ideológicos. É portanto prescindível ponderar o quanto noutros contextos ele se distingue pela obra fundamental que produziu. Voltando ao conservadorismo de que antes tratava, ele pontua o conjunto das expressões integrantes do sistema cultural pernambucano. No plano do teatro, acentua-se ao compasso de uma tradição ancorada no folclore e numa rica e resistente mitologia de extração rural e notadamente sertaneja.
É no cerne dessa atmosfera acima grosseiramente esboçada que emerge a peça Deus Danado, do dramaturgo potiguar João Denys, dissolvendo expectativas previsíveis, a estas incorporadas as do próprio autor deste prefácio, e alçando a temática sertaneja a planos de perturbadora universalidade. Quando tantos se acomodam ao culto de um regionalismo estético de metro fechado, passível de no limite reduzir a nossa expressão artística àquilo que Oswald de Andrade certeiramente chamava de macumba para turista, João Denys escreve e encena um espetáculo cujas credenciais o situam à margem e acima das duas pragas dominantes na cena pernambucana: o teatro digestivo, variando numa escala que se estende da comédia de costumes ao pornô brega, e nossa indefectível estética regional-naturalista.
Traduzindo as expectativas previsíveis em registro pessoal, confesso ter ido ao teatro com certa reserva. Previamente informado de que o texto da peça fincava raízes no árido sertão potiguar onde João Denys nasceu e viveu boa parte da sua vida, minha desconfortável expectativa era defrontar-me com mais uma variante da nossa estetização da miséria nordestina temperada por mitos surrados faiscando na moldura do pitoresco regionalista. Quais não foram, entretanto, minha surpresa e prazer quando me vi diante de um espetáculo capaz de exprimir de forma rusticamente bela e atormentada a tensão entre o particular concentrado no Nordeste rural e o universal oprimido pelo “silêncio de Deus”.
Intentando exprimi-la de um outro modo, essa tensão seria talvez traduzível na polaridade inscrita entre a sociologia, tendente a fixar o conflito dramático entre Teodoro e Luiz no cerne desse ossificado cenário de miséria que é o sertão nordestino, e a metafísica onde se aloja o nada último da nossa condição transcendente à matéria específica tematizada no texto de João Denys. Isso garantiria, me parece, o raro e tenso equilíbrio alcançado entre o fundo particular e universal do drama seco protagonizado por Teodoro e Luiz.
A concepção cenográfica, decisivamente enriquecida pelo inspirado trabalho de iluminação realizado por Eduardo Lemos de Santana, dissolve a fronteira física e cromática entre a degradação humana dos personagens e a do ambiente social em que interagem. Tão extremos são uma e outro, a degradação humana e o ambiente, que assistimos no espaço cênico a essa suspensão de barreiras como se uma e outro, indiferenciados, numa só cinzenta matéria se fundissem. O admirável é observar que tal rendimento cênico é alcançado sem sequer um apelo ao surrado museu estético do regionalismo naturalista.
Movendo-se na delicada linha de tensão entre o tudo e o nada, entre os elementos provenientes da nossa particularidade regional e a corrente do universal que a atravessa, João Denys assim caracteriza o projeto cênico de Deus Danado: “O mais importante em todo este projeto é concluir que o tudo e o nada estão aqui no Nordeste. Que a matéria prima das vanguardas artísticas contemporâneas está em nós, muito antes das tendências de última geração legitimadas pelos poderosos”.
Repelindo qualquer gesto de complacência com relação às formas correntes de exotismo estético, João Denys eleva a agonia e a solidão últimas dos seus personagens a um plano onde ressoam situações e atmosferas características do teatro de Samuel Beckett. Se ele próprio admite leituras concentradas na acentuação de afinidades e até equivalências estético-filosóficas entre Deus Danado e o teatro beckettiano, parece-me entretanto inexato reduzir a (não)significação da sua peça ao universo opressivamente niilista de Beckett. Pois se neste prevalece um supremo desprezo pela história (desprezo que é antes de tudo impotência), por qualquer forma de especificação do desespero terminal que devora seus personagens, em João Denys é inequívoca a tensão acima aludida entre sociologia e metafísica, entre a particularização histórica e a universalidade que a transcende. Se naquele o vazio da condição humana se espelha na própria articulação da linguagem murada numa espécie de grau zero semântico, em Deus Danado os personagens falam (e como falam!) falando algo para além do nada desesperante em que se congelam os conflitos expostos pelo teatro beckettiano.
Desfeitas assim minhas expectativas previsíveis, compartilhadas, quero crer, com o público investido da disposição de apreciar criticamente a nossa cena, o eixo dessa relação arte teatral e recepção crítica se refaz daí emergindo a convicção de que um sopro de renovação estética iluminou o palco do teatro pernambucano.
Nota: Prefácio escrito para a edição de Deus Danado, de João Denys, publicado na coleção Bastidores, Textos de Teatro. Natal, RN, s. d. A data de redação do prefácio foi provavelmente 1997, mas não tenho como comprová-la.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Pasárgada e o Espírito de Província
O leitor acaso atento à precária e desequilibrada produção cultural que flui à margem do eixo hegemônico Rio-São Paulo sem dúvida acolherá com entusiasmo o espírito polivalente que enforma a recém-lançada revista Pasárgada. Como foi já observado no editorial da revista, tem sido invariavelmente incerto o destino dos periódicos culturais no Brasil, sejam eles sustentados ou não por organismos oficiais. Este fato sugeriria aos mais pessimistas a necessidade de se encarar Pasárgada como raridade também no sentido quantitativo.
Mas o que aqui desejo enfatizar é a dimensão qualitativa da publicação. E tal dimensão poderia ser resumida no espírito polivalente acima indicado. Grosseiramente explicitado, esse espírito se traduz no modo como certos articulistas acentuam vínculos entre a cultura brasileira, a nordestina em particular, e o movimento intelectual europeu; entre a correção factual e a mais que discutível reivindicação de prioridades e excelências; entre a citação iluminadora, fundada no justo cotejo dos textos, e a referência pedante, ciosa de exibir provas de elevada ilustração; entre a celebração dos valores da província, tantos deles vazios, e a necessária revisão crítica tingida de irreverência e iconoclastia.
Apesar do que comportava de superficial, atitude da qual nunca se libertaram diluidores e propagandistas irrelevantes como Joaquim Inojosa, o espírito imediato do modernismo derivante da Semana de Arte Moderna foi eminentemente irreverente e iconoclasta. Esse espírito sobrevive, como sabemos, à evolução mais reflexiva e pesquisadora do movimento na investida primitivista dos antropófagos no fim da década de 1920. Não obstante sua curta vigência, ele foi e continua sendo objeto de grosseiras incompreensões. É grosseira incompreensão, por exemplo, identificá-lo como sendo o espírito predominante do modernismo paulista, como o fizeram José Lins do Rego e Gilberto Freyre no livro do último intitulado Região e Tradição.
Movidos pelo propósito de reacender velhas disputas bairristas, não resistem os celebrantes das excelências regionalistas à tentação de torcer e retorcer fatos da historiografia literária e cultural brasileiras movidos pelo vão, duplo senso, propósito de afirmar prioridades. É curioso como nisso se aproximam as atitudes dos vanguardistas em geral e dos provincianos idem. Movidos os primeiros pela busca obsessiva, mas sempre inalcançável, do marco zero e os segundos pelo ressentimento diante dos centros hegemônicos que justa ou injustamente os removem para o fundo da cena, persistem ambos nessa luta sem fim em torno de prioridades e excelências. Isso decerto explicaria, ainda que por alto, a recorrência de embates tantas vezes fúteis entre oswaldianos “marco zero” e mariandradinos “nacionalistas”, entre “vanguardistas” paulistas e “revolucionários-tradicionalistas” nordestinos a modos de casa-grande ou de senzala. Que assim sobrevivam eternamente desentendidos. Isso, confesso, é o que eu faria, se essa briga sem fim entre eles se esgotasse. Infelizmente, não é o caso. Como brigam na arena pública onde por definição se desenvolve a história cultural, parte do que torcem e retorcem, excluído o que se dissolve em anedotário e vaga contingência, corre o risco de converter-se em história.
Como não é minha intenção trocar em miúdos o que acima discutivelmente expus sem diretamente fundamentar minha apreciação num confronto direto com os textos que compõem o número inaugural de Pasárgada, decidi-me pela escolha de um artigo que me parece conter muitas das insuficiências que venho intentando criticar. Trata-se de “O Significado do Modernismo no Brasil”, de César Leal. Francamente inspirado pelo espírito de província que na figura intelectual de Gilberto Freyre concentrou suas melhores e piores características, o articulista, que dizem ser poeta e teórico respeitado no ambiente intelectual do Recife, reescreve a seu gosto e desgosto fatos e interpretações concernentes à história do modernismo. E nisso tanto se esmera que chega a produzir verdadeiros primores de leitura subjetivista, senão meramente grosseira desinformação.
Vamos portanto aos fatos. Dele e meus. Ou melhor, dele e da historiografia correntemente acessível ao estudioso movido por propósitos analíticos quanto possível isentos. Celebrando virtudes de Manuel Bandeira, como justa e injustamente o fazem outros articulistas, César Leal afirma que Manuel Bandeira orientou intelectualmente Mário de Andrade. Grande poeta, sim; grande estudioso da literatura também, mas não convém abusar do espírito de província. Sabe-se da grande amizade que os uniu desde o início dos anos vinte e do quanto mutuamente se respeitavam no plano da criação poética. Daí à afirmação de César Leal a passada é longa. Bastaria uma leitura atenta, descuidada de fúteis reivindicações provincianas, das cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para que se verificasse a inconsistência da afirmação. Se Mário não foi orientado por Bandeira nem mesmo em matéria de teoria e técnica poéticas, terreno no qual o último era inegavelmente notável, muito menos o foi em outros domínios de realização intelectual nos quais se distinguiu como artista e estudioso muitas vezes pioneiro.
Mas César Leal vai ainda mais longe ao afirmar que Mário e Oswald de Andrade eram portadores de verdadeira indigência intelectual. O juízo é de tal natureza subjetiva, para servir-me aqui de delicado eufemismo, que parece dispensar argumentação. Nem mesmo a Oswald de Andrade, que era reconhecidamente um improvisador, não obstante tantas vezes genial, movido mais pelo gosto das intuições desordenadas que pelo estudo consistente e metódico, nem mesmo a ele pode-se com justiça chamar de artista intelectualmente indigente.
Mais adiante, recorrendo ao velho artifício retórico do elogio contra o outro, César Leal declara que, comparado ao modernismo “o movimento concretista apresentou muito maior solidez”. O argumento é mais do que discutível, embora não me detenha aqui para discuti-lo. Por isso vou ao fim do mesmo parágrafo onde ele adiciona às virtudes dos concretistas o fato de não terem entrado em luta com os nordestinos e de elevarem João Cabral à categoria de “uma de suas divindades tutelares”. A expressão soa um tanto pomposa, mas talvez traduza algo do orfismo para o qual tenderam alguns oficiantes do “marco zero” da estética teológica. Se se pode deduzir um valor estético do fato de não se entrar em luta contra os nordestinos, César Leal deveria lembrar que Mário de Andrade, para ficar restrito ao exemplo que mais importa, nunca entrou em luta contra nossa nordestinidade, ou contra os nordestinos.
Limito-me à menção de dois exemplos. Embora tantas vezes injustamente considerado por José Lins do Rego, que neste campo polêmico conduziu-se sempre como um discípulo provincianamente deslumbrado de Gilberto Freyre, Mário criticou a obra do nordestino em tom de alto apreço e reconhecimento das suas melhores qualidades de romancista. Tanto isso é verdadeiro que chegou a afirmar, aí por volta de 1940, que Lins do Rego era o mais importante romancista brasileiro contemporâneo. Poucas vezes Mário de Andrade esteve tão errado. Talvez porque lhe faltasse um pouco mais de espírito de província.
Segundo exemplo: qualquer leitor corrente da nossa historiografia literária sabe do profundo amor que Mário de Andrade devotava à cultura nordestina. Isso é tão evidente, tanto matéria factual, que me parece desnecessário expor aqui provas do que afirmo.
Passemos a Blaise Cendrars. Acho duvidoso que Cendrars seja a fonte mais recomendável para uma apreciação crítica do modernismo, a não ser que o propósito do articulista seja o de depreciar o último. Se é este o caso, o Prof. César Leal não precisaria ir tão longe. Sem sair do ambiente intelectual do Recife, ele teria à mão apreciações assinadas por Gilberto Freyre e discípulos maiores e menores tão pouco isentas e tanto inspiradas por interesses estreitamente bairristas quanto os que informam o artigo de César Leal.
Sem pretender negar a influência de Blaise Cendrars sobre os modernistas, e vice-versa, que foi considerável, parece-me evidente que ele não é um observador significante do modernismo brasileiro, menos ainda da nossa realidade cultural mais ampla. Como César Leal se declara familiarizado com a grande poesia ocidental de Baudelaire, senão de Dante, a João Cabral, ele decerto não ignora que a experiência brasileira de Cendrars, limitada demais, não pode ser tomada como referência para uma apreciação consistente do modernismo.
Embora fosse um homem de vivência cosmopolita e fascinante vagabundo das estradas, Cendrars observou o Brasil, como o fizeram e ainda o fazem intelectuais europeus em geral, fixado no que este lhe sugeria de pitoresco e exótico. Sua ignorância da nossa cultura chegava ao ponto de sequer grafar corretamente nomes de intelectuais paulistas com os quais conviveu e aos quais dedicou um dos seus livros mais celebrados.
Como intento provar o que afirmo, e talvez impressionar o leitor que louva articulistas familiarizados com a grande tradição poética ocidental em cinco ou seis línguas de alta cultura, cito aqui uma edição bilíngue (francês-inglês) cuja tradução para o inglês se deve a Monique Chefdor: Complete Postcards from the Americas. O volume reúne Documentaires, Feiulles de Route e Sud-Américaines. O segundo, Feiulles de Route, foi dedicado aos amigos paulistas de Cendrars cujos nomes estão assim grafados: Mário Andrade, Serge Millet, Jasto de Almeida, Conto de Barros, Rubens de Mosaes, Luiz Aranhas, Graza Aranha, Guillermo de Almeida, Américo Faco. A dedicatória é extensiva a outros intelectuais, mas limito-me a reproduzir apenas os nomes erradamente grafados. Talvez convenha frisar para o leitor mais cético que reproduzo a própria dedicatória manuscrita de Cendrars cujo fac-simile a
obra acima citada estampa na página 116.
Outra prova da grosseira ignorância de Cendrars é fornecida pelo próprio César Leal quando assim o cita: “Mário de Andrade morreu em 1938, eu acho”. Se o propósito do articulista era desmerecer Mário de Andrade, provando com isso o quanto este era irrelevante para o poeta suíço-francês que hesitantemente o mata no ano de 1938, o que ele de fato prova é o quanto Cendrars estava pouco qualificado para ajuizar acerca do modernismo e seu desdobramento histórico.
A propósito de estudiosos e comentaristas estrangeiros da literatura brasileira, o artigo assinado por Mário Hélio, “Enganos e Omissões”, fornece exemplo ainda mais convincente do que tudo que venho observando acerca de Blaise Cendrars. Mencionando o historiador Harri Meier, a quem atribui a autoria de um resumo sobre a história da literatura brasileira incorporado à obra História das Literaturas Universais, o articulista denuncia erros grosseiros de informação cometidos pelo autor.
Gostaria apenas de sugerir que tipo de tratamento intelectuais e acadêmicos provenientes dos centros hegemônicos de cultura dariam a um estudioso brasileiro que incorresse em erros de natureza semelhante com relação às literaturas de que eles são parte. Aliás, nem precisariam disso tomar conhecimento. Antes que se dessem a tal trabalho, não faltariam intelectuais brasileiros ávidos por dar lições ao ignorante que a tais vexames se expusesse.
Não resisto à tentação de encerrar estas notas ligeiras sobre nosso deplorável estado de subserviência mental aludindo a uma prática de uso generalizado que a experiência fora do Brasil me permitiu mais amplamente observar. Qualquer brasileiro, não importa de que categoria intelectual, que fale um inglês ou francês razoável, a troco de tudo, ou de nada, espinafra o compatriota que nisso lhe seja inferior. O nome dessa prática corrente entre brasileiros é colonialismo mental. Observem, porém, que não é meu propósito extrair dos exemplos acima nenhuma justificação da ignorância baseado no princípio, que irrestritamente louvo, da independência mental.
Como o leitor pode deduzir, quando convém reivindicar valores e interesses de fundo nacionalista ou regionalista, ou ainda mesquinhamente local, acusamos como alienados os intelectuais que se inspiram em fontes norte-americanas ou europeias. Se é porém o caso de desmerecer um movimento brasileiro em favor de reivindicações provincianas ou grupais, toma-se como justificado recorrer a uma fonte europeia desprovida de efetiva familiaridade com nosso ambiente cultural.
César Leal conclui afirmando que a literatura brasileira pouco deve ao modernismo, embora tenha antes reconhecido que Carlos Drummond de Andrade, “o mais completo poeta da língua portuguesa no século”, é um produto espiritual do movimento que procurou do início ao fim desmerecer movido pelo espírito de província contra o qual venho argumentando. Na própria revista Pasárgada o leitor pode verificar que outro grande poeta, para muitos maior ainda que Drummond, confessou dever muitíssimo ao modernismo. Refiro-me, claro, a Manuel Bandeira. Embora os atos de modéstia por ele praticados, sobretudo o cansativo “sou poeta menor, perdoai”, fossem com frequência mero artifício retórico, aqui ele alcança uma medida de isenção e humildade diante do movimento estético coletivo que lastimavelmente não mereceu no artigo de César Leal tratamento semelhante. No mais, encarar a literatura brasileira como produto direto do intercâmbio internacional, como o faz o articulista, é desprezar o que foi precisamente uma das grandes conquistas do modernismo: o movimento de atualização intelectual e artística do Brasil. Noutras palavras, a causa assinalada por César Leal com o objetivo de depreciar o sentido de renovação e atualização do modernismo é nada mais que um efeito deste mesmo movimento.
Poderia também aqui alinhar provas em defesa da minha tese. É porém bem mais recomendável relembrar ao leitor a justamente celebrada conferência de Mário de Andrade, “O movimento modernista”. Embora apresentada no distante ano de 1942, prova factual de que Mário sobreviveu à ignorância hesitante com que Cendrars o matou em 1938, é ainda o mais importante documento de interpretação deste movimento que inspira ainda, setenta anos mais tarde, celebrações e ataques, preconceitos e reverências, que são de resto formas de preconceito. Pessoalmente, prefiro a atitude crítica na revista proposta, ou praticada, por Roberto Martins, Marcelo Coelho e Mário Hélio. Não obstante as atitudes que aqui declaradamente combato, servem ao menos para sugerir o quanto o legado do modernismo inscreveu-se na memória coletiva de um país tantas vezes justamente criticado por sua falta de memória coletiva. Não será isso uma prova de permanência e vitalidade do melhor espírito de um movimento que tantas vezes tropeçou no mito bandeirantista do “marco zero” nisso confundindo-se com o suposto antagonismo do “espírito de província”?
Colchester, Inglaterra, junho de 1992.
Nota: este artigo de corte polêmico foi publicado na revista Pasárgada, Ano II, nos. 2 e 3, setembro de 1993, pp. 4-6.
Marcadores:
Blaise Cendrars,
Drummond,
Gilberto Freyre,
José Lins do Rego,
Manuel Bandeira,
Mário de Andrade,
Modernismo,
Oswald de Andrade,
Regionalismo
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Cultura e Conceitos Conexos
O estudo da cultura é um dos aspectos fundamentais da sociologia e da antropologia. Seu desenvolvimento nas sociedades modernas, associado à aceleração dos contatos culturais num mundo globalizado, tem concorrido para a intensificação de pesquisas e estudos tanto gerais quanto específicos. Sendo assim, é praticamente impossível proceder a um mapeamento criterioso da produção disponível, ainda mais numa disciplina restrita a uma introdução geral à sociologia.
Conceito – Sentido corrente (senso comum) – O sentido corrente do termo cultura está antes de tudo associado à aprendizagem intelectual. No geral, quando dizemos que uma pessoa é culta queremos noutras palavras dizer que é uma pessoa educada, especialmente no âmbito da cultura humanística: artes, literatura, filosofia... Este sentido do termo envolve, no geral, atitudes preconceituosas.
Sentido sócio-antropológico – Este é evidentemente o sentido que mais nos interessa. Ele é bem mais amplo e complexo. A influência crescente destas disciplinas, sociologia e antropologia, no mundo contemporâneo é evidente na adoção crescente do conceito sócio-antropológico da cultura pela mídia em geral e pela linguagem da política e da publicidade. Basta pensar na ênfase e freqüência com que se fala em cultura pernambucana, cultura global, cultura jovem, identidade cultural etc. Abaixo esclarecerei melhor o sentido destes e outros qualificativos da cultura.
Visando esclarecer didaticamente a amplitude e complexidade do conceito sócio-antropológico de cultura, desenvolvo na sala de aula um argumento baseado na distinção geral entre biologia e cultura. Partindo de fatores que nos ligam diretamente à nossa natureza biológica (sexo, comida, linguagem, moradia, vestuário, agressividade...) procuro ressaltar, em cada caso, de que modo a espécie humana se diferencia do mundo da natureza. Noutras palavras, quando consideramos cada um dos fatores acima mencionados, fica evidente como nossas práticas e funções relacionadas à sexualidade, comida etc, são investidas de sentidos simbólicos, são transmissíveis, modificáveis e portanto não biológicas. Diferentemente das outras espécies, cujas práticas e funções são estritamente biológicas ou fixas, portanto instintivas, a espécie humana é dotada de extraordinário poder de transformação e variedade. Claude Lévi-Strauss expressa bem melhor a distinção entre natureza e cultura quando observa:
“A natureza é tudo o que está em nós por hereditariedade biológica; a cultura é, ao contrário, tudo o que mantemos da tradição externa e, para retomar a distinção clássica de Tylor – cito de memória e sem dúvida com falhas – enfim, a cultura ou civilização é o conjunto de costumes, crenças, instituições como a arte, o direito, a religião, as técnicas da vida material, resumindo, todos os hábitos ou aptidões aprendidas pelo homem enquanto membro de uma sociedade. Existem aí, portanto, duas grandes ordens de fatos, uma graças à qual dizemos respeito à animalidade por tudo que somos, desde nosso nascimento e características legadas por nossos pais e nossos ancestrais, a qual liga-se à biologia e algumas vezes à psicologia; e, de outra parte, todo o universo artificial que é este em que vivemos enquanto membros de uma sociedade.”Concluindo, o conceito sócio-antropológico da cultura compreende todos os aspectos simbólicos, aprendidos e não biológicos da sociedade humana. Neste sentido, não cabe falar de culturas superiores e inferiores.
Aprendizagem e aquisição da cultura – É graças à transmissão da cultura, processo que se renova perpetuamente de uma geração para outra, que nos tornamos seres humanos. A transmissão da cultura se realiza através da socialização (consultar este verbete nos dicionários especializados contidos na bibliografia da disciplina), que pode ser sumariamente compreendida como o processo através do qual internalizamos a sociedade: seus valores, práticas, conhecimentos, crenças, costumes etc. Importaria ressaltar, neste ponto, a polêmica insolúvel que divide os cientistas sociais e determinados grupos religiosos que baseiam sua concepção do ser humano na crença em nossa origem divina, isto é, somos criados por Deus e dele recebemos os atributos fundamentais da nossa humanidade. A evidência sócio-antropológica, no entanto, baseia-se no saber científico para refutar esta crença. Sendo assim, procura demonstrar que nossa humanidade é adquirida no universo da cultura através da socialização.
Cultura e conceitos afins – Como acima assinalei, é crescente a adoção do conceito sócio-antropológico da cultura pela mídia e pela linguagem da política e da publicidade. Alguns dos conceitos de uso mais corrente são os seguintes:
Cultura local – relativa a valores e práticas culturais associadas ao meio social imediato (comunidade, vila, cidade; exemplo: cultura recifense, caruaruense...)
Cultura regional – remete aos valores e práticas culturais dominantes em uma determinada região (exemplo: cultura nordestina, cultura gaúcha...)
Cultura nacional – é a cultura dominante de um determinado país.
Cultura global – é a que no mundo atual circula em escala global. É fruto da integração dos mercados e da revolução tecnológica e comunicacional.
Cultura tradicional – baseada na tradição e nos contatos culturais diretos (face a face). Predomina nas sociedades rurais. O desenvolvimento acelerado e irreversível do modo precedente (a cultura global) ameaça e reduz progressivamente a importância deste tipo de cultura.
Cultura moderna – baseada na mudança, é típica das sociedades urbano-industriais onde prevalecem os contatos indiretos e normas que privilegiam a autonomia do indivíduo.
Cultura de massa – relativa à cultura produzida e difundida pelos meios de massa (jornal, rádio, revistas, televisão, internet...)
Cultura popular – é a cultura tradicional produzida por grupos pobres e geralmente analfabetos (cultura folclórica).
Subcultura – compreende valores, comportamentos ou estilos de vida de um grupo distinto da cultura dominante em uma sociedade, mas sempre a esta relacionada (exemplo: cultura jovem, cultura gay, cultura alternativa...).
Identidade cultural – este é um tema muito complexo considerado não raro em termos polêmicos nos estudos e debates relativos à cultura. É muito difícil determinar a identidade cultural de um grupo ou nação, especialmente no mundo contemporâneo, onde os contatos e empréstimos culturais ocorrem com intensidade sem precedente histórico. Para os conservadores culturais, a identidade é algo inquestionável e precisa ser sempre defendida. Em decorrência, são no geral intolerantes com relação à diversidade cultural ou aos contatos e empréstimos entre culturas. No outro extremo poderíamos qualificar como cosmopolitas aqueles que defendem o livre comércio entre as culturas, a irrestrita circulação de contatos e empréstimos culturais.
Bibliografia:
Coelho, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997.
Lévi-Strauss, Claude. Arte, Linguagem, Etnologia. São Paulo: Papirus, 1989.
Andrew Edgar e Sedgwick, Peter (orgs.). Teoria Cultural de A a Z. São Paulo: Contexto, 2003.
Williams, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
Mundialização e Cultura
Rios de tinta têm jorrado no leito da produção acadêmica e jornalística ambicionando esclarecer, ainda que frequentemente turvando, as implicações mais abrangentes das profundas transformações econômico-culturais operadas no mundo deste fin de siècle. Nesse difuso e também confuso contexto sobressaem os debates e análises em torno de questões tais como modernidade e pós-modernidade, internacionalização, globalização e mundialização.
O volume de publicações referente às temáticas acima sumariamente indicadas é de tal monta que transborda dos limites desta resenha demarcá-lo ainda que em linhas muito gerais. Assim, é em termos puramente indicativos que aqui sublinho, no âmbito da produção teórica estrangeira, o periódico inglês Theory Culture and Society e o catálogo de publicações da editora Routledge referente ao ano de 1994 sob o título Media and Cultural Studies. O mero fato de uma editora de renome dispor de um catálogo exclusivamente consagrado à produção na qual se insere o livro de Renato Ortiz sugere o quanto se aceleraram na esfera acadêmica os estudos e pesquisas dessa natureza.
Se na esfera da produção estrangeira a produção é ampla, embora não raro repetitiva, na brasileira é ainda modesta, em número quanto em qualidade, a contribuição teórica. Dentre os poucos que entre nós têm ousado explorar essas novas sendas abertas à investigação das ciências sociais importa destacar, como o faz esta resenha, o sociólogo-antropólogo Renato Ortiz. Considerando, bem por alto, a linha temático-interpretativa seguida a partir do seu Cultura Brasileira e Identidade Nacional, é possível observar um claro movimento de continuidade entre este e seu livro mais recente. Consagrando-se à investigação do nosso processo cultural em estreita conexão interativa com as condições histórico-sociais em que se realiza, distingue-se Ortiz como um dos poucos estudiosos brasileiros de valor empenhados nesta especialidade tão pouco ainda entre nós considerada: a sociologia da cultura.
Renato Ortiz abre seu livro afirmando em tom explícito a premissa que orientará o desdobramento da sua investigação. Eis em que consiste: “a existência de processos globais que transcendem os grupos, as classes sociais e as nações” (p.7). Esclarecendo mais adiante o sentido que empresta a alguns termos chave, cuida o autor de distinguir internacionalização de globalização, globalização de mundialização, mundialização de nação. Trata ainda de esclarecer, como acertadamente presumiria o leitor mais atento, o sentido e a função exercidos por outros termos e conceitos fundamentais para a compreensão geral do seu objeto. Considerados entretanto os limites convencionais de uma resenha, restrinjo minha atenção às distinções acima explicitadas.
Lidando com a relação internacionalização e globalização em termos fundamentalmente econômicos, vale-se de P. Dicken, que em Global Shift salienta uma diferença decisiva entre estes termos com frequência tratados como intercambiáveis. Consiste a diferença no fato de que enquanto internacionalização seria uma mera extensão das operações econômicas de uma empresa para além das fronteiras nacionais, globalização seria um fenômeno de natureza qualitativamente nova. Como acrescenta Ortiz: “O conceito se aplica, portanto, à produção, distribuição e consumo de bens e serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial, e voltada para um mercado mundial. Ele corresponde a um nível e a uma complexidade da história econômica no qual as partes, antes internacionais se fundem agora numa mesma síntese: o mercado mundial” (p.16).
Clarificando mais adiante a distinção que propõe entre globalização e mundialização, afirma que emprega o primeiro termo visando referir-se aos processos de natureza econômica e tecnológica, enquanto o segundo se aplica à esfera dos processos culturais (cf. p. 29). Integrando essas duas formas de processos, os econômico-tecnológicos e os culturais, a categoria “mundo” (aspas do autor) comporta tanto esse fenômeno peculiar ao nosso tempo, que é a sociedade global, quanto do outro lado implica uma “visão de mundo” (aspas do autor) “um universo simbólico específico à civilização atual” (p. 29).
Associando o desenvolvimento histórico da nação ao da modernidade, entende Renato Ortiz que o primeiro fenômeno se realiza através do segundo. Concebendo a nação e a modernidade como etapas do processo de desenraizamento e desterritorialização contemporaneamente desembocando na realidade qualitativamente nova contida nas noções de sociedade global e de mundialização da cultura, intenta, assim me parece, dissolver a dicotomia correntemente introduzida no debate entre globalização versus nação, mundialização versus diferença cultural. Argumentando de modo consistente com a premissa inscrita no pórtico da sua obra, e já acima citada, busca o autor articular um cenário e um ângulo de apreensão e análise do objeto por definição transcendente aos limites particulares da nação e da diferença entendidas como realidades opostas a e até mesmo incompatíveis com a ordem de realidade encarnada nos conceitos de globalização e mundialização.
Implicando essa tomada de posição um modo necessariamente diferente de “localização” epistemológica do indivíduo investigador, eis como Ortiz bem esclarece o ângulo em que procura situar-se no processo de factura do seu livro:
“Falar da totalidade mundial, de seu movimento interno, é também escolher um outro ponto de vista. Mas deixo claro para o leitor que se trata de uma opção consciente, que permitiu-me construir um objeto de estudo de forma inteiramente distinta. Não foram perguntas do tipo, “como o local se relaciona com o global”, “como a problemática cultural brasileira se manifesta diante do processo de globalização” , que me orientaram. Procurei situar-me no âmago do processo, na sua inteireza. Fiz todo um esforço para desterritorializar-me, inclusive, minha escrita. Neste sentido, não falo como brasileiro, ou latino-americano, embora saiba que no fundo é impossível, e indesejável, liberar-me totalmente desta condição. Mas como cidadão mundial” (p. 9).
Explorando uma bibliografia pouco considerada por sociólogos e antropólogos, a do marketing e administração global, assinala como o desenvolvimento e a consolidação de um mercado global tendem a tornar obsoleta a própria concepção de empresa multinacional. Suplantada pela corporação transnacional, que converte o planeta num mercado unificado, um não-lugar articulado acima de toda a sorte de fronteira e particularidade, a multinacional seria ainda uma expressão do predomínio da particularidade na rede do mercado internacional. Embora operando em escala internacional, a multinacional manteria ainda, segundo Ortiz, “laços estreitos com o território nacional” (p. 150).
A corporação transnacional, em contrapartida, opera em consonância com os ditames da competição global. Daí derivam implicações que o autor passa a considerar. A primeira consiste na desterritorialização dos produtos. Uma outra seria a da localização física das transnacionais. Assinala ainda uma implicação que concerne ao papel desempenhado pelos executivos das corporações transnacionais. Dado que no entender de Ortiz a identidade desses executivos se define a partir dos vínculos de fidelidade que estabelecem com a empresa, não mais com os laços contingentes que os prendem às culturas particulares, justifica-se a inserção, entre outras igualmente ilustrativas, da citação por ele feita à p. 153:
“Antes da identidade nacional, antes da filiação local, do ego alemão ou do ego italiano, ou do ego japonês, antes de tudo isso vem o comprometimento com uma missão global, única e unificada: os clientes que interessam são pessoas que apreciam seus produtos em todos os lugares do mundo”. (K. Ohmae, Mundo sem Fronteiras, p. 94).
À característica acima liga-se, talvez como fator determinado, a revisão dos critérios de recrutamento de pessoal adotados pela corporação transnacional. Dado que a corporação se define pela negação de qualquer atributo nacional - para ela a nacionalidade é uma irrelevância, frisa Ortiz – característica igualmente suprimida do produto por ela gerado, a isso logicamente se soma uma política de pessoal assinalada por traços afins. Tal política objetiva realizar valores e fins de fundo racionalista primando pela adoção de princípios universais, por critérios de eficiência mercadológica que são os que em definitivo importam para a corporação transnacional. Nesse passo se destaca, por exemplo, o emprego obrigatório do inglês como língua padrão. Alçando-se à categoria de língua universal, instrumento compulsório de mediação simbólica entre as pessoas, “o inglês dilui a barreira das nacionalidades selando o destino ‘cosmopolita’ dos produtos e das corporações” (p. 155).
Se de um lado Renato Ortiz descreve esses processos globalizadores engendrados pela corporação transnacional isento dos preconceitos ideológicos que afetam ainda de modo profundo as análises da inteligência de corte nacionalista, e consequentemente anti-imperialista, de outro alerta para as formulações pseudoigualitárias contidas na ideologia que aspira a estabelecer um elo de equivalência entre a hegemonia mercadológica das corporações e a garantia de democracia e igualdade no reino da mundialização. Pois se a ideologia da mundialização opera no mercado global dos bens e serviços no sentido de promover a descentralização de decisões e a liberdade de escolha do indivíduo-consumidor, na dimensão econômica observa-se uma concentração ainda maior da riqueza. Em suma, em todos os setores do mercado se tem fortalecido o poder dos oligopólios transnacionais.
Se esta resenha alcança sugerir com certa margem de fidelidade o tom geral do livro de Renato Ortiz, talvez não seja injusto concluir que ele privilegia em excesso a ordem dos processos e fatores econômicos em detrimento dos especificamente culturais. E no entanto o próprio título da obra aparenta sinalizar a direção oposta. Embora critique em certa passagem da obra o viés economicista das análises propostas segundo o paradigma do world-system, me parece que sua própria análise tende a incorrer no mesmo erro de enfoque. Daí, fiel ao espírito da própria distinção por ele proposta entre globalização e mundialização, talvez fosse mais apropriado dar ao livro o título de Globalização e Cultura.
Nota – esta resenha sobre o livro Mundialização e Cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, foi originalmente publicada no periódico Estudos de Sociologia, revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Vol. 1 (1) pp. 95-98, 1995.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Tchecov - As Três Irmãs
As três irmãs Prozorov que conferem título à peça de Tchecov – Olga, Masha e Irina - sofrem o tédio e a infelicidade da vida provinciana num país atrasado de organização política autocrática ainda baseada no trabalho servil. Essa realidade, a do servo doméstico privado de autonomia e portanto dependente de senhores no geral despóticos, transparece em Anfisa, serva da família Prozorov, e em Ferapont, outra personagem de condição servil. Já idosa e desamparada de recursos, Anfisa vive exposta à tirania de Natasha, mulher de Andrei Prozorov. É certo que Olga (Rosalie Crutchley) a ama e protege, assim como suas irmãs. Afinal, foram provavelmente amamentadas e criadas por Anfisa que delas cuidou a vida inteira, realidade social também corrente no patriarcalismo escravocrata nordestino tão singularmente examinado por Gilberto Freyre. Embora a ação da peça seja posterior à abolição da servidão, importa lembrar que a abolição teve efeito antes formal do que real. A lei que aboliu a escravidão no Brasil em 1888 encerra uma realidade histórica muito similar à da servidão russa.
Além das afinidades culturais acima indicadas, seria possível fixar muitos outros paralelos culturais pertinentes e iluminadores entre a Rússia e o Brasil, esta Rússia dos trópicos. Gilberto Freyre, nosso mais refinado historiador social, chamou nossa atenção para esse veio comparativo. Mas ao salientá-lo tenho em mente antes de tudo Natasha´s Dance, de Orlando Figes. Figes foi minha grande descoberta no campo da história cultural. Lendo essa obra extraordinária, admirável painel da história cultural russa que se estende da época de Pedro O Grande ao século 20, aprendi muito sobre a Rússia e através dela sobre o Brasil. Na sua obra, assim como na de Gilberto Freyre, a história social torna-se uma leitura tão apaixonante quanto um romance das proporções de Guerra e Paz.
Orlando Figes é especialista em história cultural russa. Além de Natasha´s Dance, escreveu A People´s Tragedy – The Russian Revolution, 1891-1924 e The Whisperers, uma história da vida privada na Rússia durante a era estalinista. Além de escrever com admirável clareza e precisão, Figes dá provas de uma erudição impressionante ao recompor cerca de três séculos da história cultural russa. Também ele ressalta em Natasha´s Dance o tédio e a infelicidade que oprimem as vidas das três irmãs, assim como das demais personagens. O fato de Tchecov não expor razões precisas para a atmosfera abafante da peça induziu alguns críticos a proporem explicações simplistas do tipo: mudem-se para Moscou e isso será o bastante para que suas vidas infelizes também mudem. Propor esse tipo de explicação é confundir a doença espiritual das personagens, como acentua Figes, com um simples estado de desenraizamento geográfico.
As três irmãs sonham com Moscou, onde nasceram e viveram os primeiros anos de suas vidas. Na imaginação exacerbada pelo tédio do horizonte provinciano que as sufoca, Moscou é antes um símbolo, um lugar de nostalgia e sonho pairando no avesso do presente real. Irina, a que mais padece da nostalgia de Moscou, é interpretada por Lynn Redgrave. Como a peça foi produzida pela Rádio BBC e transmitida pela primeira vez em 1965, tinha então 22 ou 23 anos de idade. É impressionante como sua voz soa irreconhecível, aparentando ser a voz de uma mulher muito mais jovem. Não a identificaria de modo algum, não fossem as informações fornecidas pela BBC. No entanto, identifiquei perfeitamente as vozes de Paul Scofield e Ian McKellen, que interpretam respectivamente o tenente-coronel Vershinin e o barão Tuzenbach.
Além do tédio que repassa essas vidas frustradas - e ressalto não aludir apenas às irmãs Olga, Masha (Jill Bennett) e Irina – são muitas as vias de fuga a que recorrem como um antídoto para a realidade que as aprisiona. Esses estados psíquicos e morais tão frequentes nas personagens malogradas da dramaturgia de Tchecov não expressam apenas uma condição metafísica, tédio e malogro próprios à condição humana abstratamente considerada. Como bem observa Elisaveta Fen esboçando um paralelo entre a atmosfera psicossocial da Rússia e a da Inglaterra – aquela caracterizada na realidade russa durante o vintênio em que Tchecov produziu sua obra, esta durante o vintênio correspondente ao entreguerras mundiais – é fácil nelas apreender um estado de espírito assinalado pelo desencantamento em face da vida, o desânimo espiritual, a opressiva sensação de descrença em si próprias e no futuro.
Uma das vias de fuga ou consolação para essas vidas malogradas é bem desenhada no comportamento do tenente-coronel Vershinin. Suas divagações filosóficas – ele sempre acentua em certo tom irônico estar “filosofando” – não passam de fato de puro devaneio, figuração imaginária de um futuro inapreensível tendente ao puro delírio. Das dobras do seu discurso reponta sempre um futuro radiante que será usufruído pelas gerações futuras, enquanto os vivos estão condenados a vidas fracassadas que logo afundarão no esquecimento dos pósteros. Também o barão Tuzenbach compõe variações à volta da mesma rota de fuga. Embora nunca tenha trabalhado na vida, fato que denota sua condição social privilegiada, já que é um nobre montado sobre um vasto exército de trabalhadores servis, vive divagando sobre a excelência do trabalho, sobre o trabalho como necessidade e fundamento da vida ideal que transpira de suas falas.
Masha, casada com o professor Kulighin, padece das mesmas frustrações de suas irmãs. Infeliz com Kulighin, infeliz no ambiente provinciano que tende a acentuar sua nostalgia de Moscou, apaixona-se por Vershinin, tão volúvel nos sentimentos com que a seduz quanto nos devaneios que confunde com projeções filosóficas da realidade. Assim, desmente seus supostos sentimentos de paixão por Masha com a mesma leviandade com que de início os soprara nos ouvidos da sua presa carente. Ele se despede dela e em seguida parte apagando com uma mão o que com a outra antes compusera no avesso das linhas em que os sentimentos se anulam. Quero dizer, onde antes supostamente palpitava a paixão, agora resta apenas a despedida sem pesar real e a inconsciência da dor sofrida por Masha.
No prefácio que escreveu para As Três Irmãs, incluído no volume Prefaces to the Experience of Literature, Lionel Trilling começa por observar que é uma das obras mais tristes da literatura, também uma das mais entristecedoras. Acrescenta, em defesa do seu ponto de vista, que vários membros do Teatro de Arte de Moscou, a companhia dirigida por Constantin Stanislavsky, choraram quando da primeira leitura da peça. O intrigante no episódio, que de resto ilustra o argumento geral de Trilling, consiste no fato de que para Tchecov a peça era uma comédia, quase uma farsa. E o mais intrigante consiste na admissão de que sua apreciação era sincera, não uma contradição provocativa formulada com a intenção de confundir ou contrariar interpretações infundadas ou pelo menos discutíveis. Tanto é verdade que, a julgar pelo testemunho de amigos íntimos, a começar pelo próprio Stanislavsky, manteve até o fim sua convicção.
Trilling empenha-se em desatar esse nó insolúvel. Ao fazê-lo acentua a ambiguidade da obra, assim como seu contexto de recepção. Compreendida no registro ambíguo que caracteriza toda grande obra literária, a peça de Tchecov contém inegáveis traços de comédia. Encaradas num registro irônico, personagens como Vershinin, com suas filosofices devaneantes, assim como sua complicada vida conjugal, o barão Tuzenbach, o Dr. Chebutykin e o capitão Soliony, que mata o barão num duelo estúpido, aniquilando assim o noivado do barão com Irina, são sem dúvida também figuras cômicas. Resta, portanto, a leitura ambígua da peça aqui sugerida e antes sublinhada por Lionel Trilling no seu prefácio. Essa perspectiva amplia a gama de sentidos e possibilidades da obra, o que constitui um modo sumário de reconhecimento da sua excelência estética.
As palavras finais de Sônia em Tio Vânia e as de Olga em As Três Irmãs expressam um doloroso murmúrio de resignação estoica, uma pungente incerteza diante do sofrimento e da vida. Salvo variantes acidentais, o sentido substancial do que dizem nas duas peças é o mesmo. Nada podemos fazer, a não ser continuar vivendo. Precisamos continuar vivendo, não obstante a inevitável sucessão de dias e noites tediosas. E assim continuaremos trabalhando sem pausa, sofrendo as adversidades que o destino nos impõe. E assim viveremos até o dia da nossa morte, quando afinal Deus terá alguma piedade de nós. E então Sônia, que acredita numa vida transcendente, prefigura o repouso que neste mundo nunca conheceremos. O que acabo de escrever é uma paráfrase ou tradução livre das passagens mencionadas neste parágrafo, notadamente a fala de Sônia que encerra Tio Vânia.
Recife, 25 de novembro de 2010.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
A Idade através das Idades
Há poucos dias Paul McCartney estrelou um show monumental no Brasil. Dentro de um estádio de futebol, ocupado por uma massa composta por 60 mil pessoas, o ex-Beatle deslumbrou o público com a vitalidade e o talento que confirmam sua posição mítica na história da cultura de massas universal no decorrer dos últimos cinquenta anos. O fato de estar com 68 anos não aparenta afetar sua condição de ídolo cuja atuação no cenário pop se mantém inabalável, quer consideremos o caráter da sua performance, quer a receptividade delirante do público. Esse fenômeno tornou-se tão rotineiro na história da arte de massas contemporânea que ninguém mais estranha a permanência do sucesso e da atuação pública de ídolos como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros, todos bem acima dos 60 anos.
Notem que citei apenas homens. Embora a mulher também espelhe na posição social que ocupa essa extraordinária mudança atinente à noção atual de idade ou valor etário, o grande beneficiário dessa mudança é sem dúvida o homem. Pois o fenômeno que até aqui considerei em termos restritos aos ídolos da música de massas é de extensão suficiente para que o caracterize como uma modificação profunda observável na concepção da idade e dos papéis sociais a ela referentes. Basta que se pense na frequência com que homens de meia idade, para não dizer idosos, hoje se separam e logo se envolvem com mulheres jovens e bonitas, quando já não é esse próprio envolvimento a causa de muitas separações. Nesse sentido, como em tantos outros, o privilégio é antes de tudo masculino, pois bem poucas são as mulheres maduras, separadas ou não, que desfrutam das oportunidades amorosas franqueáveis ao homem.
Lembrando um exemplo de caráter contrastivo que poderia ampliar ao infinito, por volta de 1920 o escritor inglês Lytton Strachey reagiu perturbado quando a pintora Dora Carrington declarou-se apaixonada por ele. O leitor maledicente ou preconceituoso que acaso tenha alguma noção de quem foi Strachey poderia alegar que a perturbação seria apenas fruto de sua homossexualidade. Isso também importava no contexto do meu exemplo, mas o motivo que mais perturbava Strachey decorria do fato de ter 34 anos, enquanto Carrington teria por volta de 18. Em suma, declarou-se um velho e isso não era decerto um exagero para os padrões etários e culturais da época.
Bem antes, no decorrer do século 19, os padrões etários e culturais seriam ainda mais inconcebíveis se fossem cotejados com os contemporâneos. Quem leu Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, sabe como ele caracterizava o lugar da criança naquela época. Condensando este outro exemplo contrastivo, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Por isso, a cultura do tempo lhe impunha um papel que era como que uma antevisão da velhice prematura já indicada nas roupas fechadas e austeras, num comportamento em tudo inconcebível não apenas para a criança do presente, mas para o próprio adulto, para não dizer o próprio velho, se me atrevo a pensar em gente como Paul McCartney e outros ídolos da sua geração como velhos.
Se o amor muda através das idades, como leio num poema de Drummond, também a idade muda através das idades. Hoje chegamos aos 60, ultrapassamos os 60 e todavia já não somos velhos. A noção de idade mudou tão radicalmente que seria hoje ofensivo identificar alguém maior de 60, seja ou não ídolo das massas, como velho. Parece-me muito positiva essa distensão da vida ativa e mesmo hedonista para além dos limites que convencionalmente separavam a velhice e mesmo a maturidade da juventude. Se esta era vivida e concebida como a estação própria à participação ampla no mundo, sobretudo o mundo do prazer, da festa e da experiência amorosa, a maturidade e a velhice tendiam a isolar o homem e sobretudo a mulher numa esfera da vida onde não mais conviria “entregar-se aos prazeres da vida” cedendo a tentações apenas concebíveis e aceitáveis na juventude.
Se numa ponta o adolescente ingressou no território “adulto” que garante acesso à vida desatada de limites e repressões consagrados pela tradição, na outra o ser maduro ou já idoso conquistou a liberdade de continuar no mercado, como agora se diz, traduzido este termo num sentido muito amplo. Dizendo de um outro modo: o mercado do consumo novamente compreendido num sentido muito amplo. Mesclando as idades no mesmo balaio, ou no mesmo show da vida, para repisar o lugar comum difundido por um célebre e já longevo programa de televisão, as fronteiras etárias convencionais foram diluídas no reino da permissividade desencadeada pela cultura do narcisismo consumista.
Frisei acima que esse fenômeno geral é positivo, mas importa também ressaltar o que na outra dobra encerra de negativo. Apelando para um outro lugar comum, não há afinal bem que não contenha mal, assim como não há solução que não gere outro problema. O problema do adultescente - valendo-me aqui de um neologismo que já empreguei no artigo Elogio da Inutilidade, também postado neste blog - é que agora todos tem horror à velhice e por extensão à morte. Envelhecer tornou-se um processo tão degradante, tão incompatível com nossa ilusão narcisista embalada pelo mito da juventude eterna que o discurso publicitário logo cuidou de suprimir estas palavras repulsivas: velhice, idoso e todos os similares que remetem à imagem crua e iniludível do corpo castigado pela idade e o tempo. Se o discurso publicitário se encarrega de refazer a linguagem e as imagens que remetem a essa dobra detestável da realidade, nosso narcisismo soprado por mil velas incandescentes cuida do resto. É certo que, se é impensável quebrarmos todos os espelhos que nos refletem como somos, todos hoje fazemos o possível para suprimir o insuprimível: até segunda ordem da ciência, a verdadeira religião do nosso tempo, somos ainda seres mortais.
Portanto, estamos condenados a um ciclo biológico que foi sem dúvida estendido e profundamente modificado, como acima indiquei, mas continuamos envelhecendo e morrendo. Paul McCartney e nossos ídolos da sua geração expressam um inusitado sentido de vitalidade e desafio às convenções do tempo e da cultura, mas eles próprios, condenados à contingência da espécie, envelhecem e morrem. No caso deles sobrevive a obra, símbolo de uma imortalidade inexistente na vida de quem a cria. É nisso e apenas nisso que transcendem nossa humanidade comum. No mais, continuamos todos sendo mortais. Portanto, seria prudente, talvez algo sábio, encararmos na linha do espelho mais real e imperativo a sombra do nada que lá no fundo da imagem nos espreita e espera. Como sussurra a voz arrepiante da Indesejada das Gentes: busca um sentido para tua mortalidade, pois um dia não haverá mais dia...
Recife, 24 de novembro de 2010.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Budapeste
Sándor Márai viajou para o sertão baiano guiado pela mão do jagunço Euclides da Cunha. Desse encontro resultou um belo romance: Veredicto em Canudos, publicado pela Companhia das Letras em 2002. Chico Buarque viajou para Budapeste guiado talvez pela mão do escritor desconhecido cuja pena mítica repousa num parque da cidade. Ambos, Márai e Chico, viajaram puramente através da imaginação literária, como é de resto a norma, ainda quando a narrativa seja de cunho realista.
Chico Buarque já foi nossa “única unanimidade nacional”, como há muito afirmou Millôr Fernandes. Como seria de prever, Millôr foi dos primeiros a desmentir essa discutível evidência. Embora a unanimidade seja uma ficção, antes como agora, é todavia indiscutível o extraordinário prestígio de Chico Buarque, fato que entre outras coisas o torna figura altamente rentável no mercado. Sem negar mérito à sua literatura, fração considerável de sua repercussão, acrescida de muitas adaptações cinematográficas, deriva da mitologia que cerca sua persona de ídolo da música popular brasileira.
Budapeste tem méritos próprios, que portanto independem dos trunfos externos associados ao romance e ao filme. Antes de tudo, ressaltaria a singularidade do enredo dentro de uma tradição literária e cinematográfica tão subordinada ao cabresto do nacionalismo cultural, que não raro desliza para o provinciano e o exótico. Chico destoa da clave previsível ao compor uma obra que vincula o Brasil à Hungria e com certeza custou-lhe árduo trabalho de pesquisa e elaboração imaginativa.
O filme dirigido por Walter Carvalho, apoiado no roteiro de Rita Buzzar, logra transpor o romance para a tela de modo competente e isento de qualquer maneirismo exótico ou show de imagens para adular o espectador de olhar turístico, como me parece ser o grave erro de Woody Allen ao filmar Vicky Cristina Barcelona. A beleza de Budapeste, cortada pelas águas do Danúbio e por pontes imponentes é assimilada à narrativa como espaço cenográfico funcional e expressivo.
José Costa (Leonardo Medeiros) é um ghost-writer que vai acidentalmente a Budapeste. Lá se apaixona pela língua, por uma húngara chamada Kriska (Gabriella Hámori) e se embrenha num fascinante enredo fundado nas linhas confusas entre identidade e autoria ficcional. O que vive em Budapeste, desse ponto de vista crucial para o desdobramento do filme, é apenas uma extensão do que já vivia no Rio de Janeiro, onde se ocupava profissionalmente em escrever anonimamente, e mediante pagamento, discursos, cartas de amor, monografias. Quando escreve O Ginógrafo, isto é, alguém que escreve literalmente sobre o corpo de uma mulher, ele acaba envolvido numa grande encrenca amorosa.
O personagem do romance e suposto autor do livro escrito por Costa é o alemão Kaspar Krabbe. Krabbe apaixona-se por uma carioca chamada Teresa. Ele converte o corpo de Teresa num livro, já que o recobre de palavras. Quero dizer, não ele, mas Costa, o ghost-writer. Quando ela o abandona a meio da obra, ele mergulha num estado catatônico do qual somente emerge depois que desanda a procurar putas sobre cujos corpos volta a escrever. Daí passa ao corpo de colegiais deslumbradas por seus dotes literários. Assim seu livro singular disseminou-se pela vida, errante numa infinidade de corpos, peles moventes e voláteis. Por fim encontra a mulher que o ensina a escrever as palavras na ordem inversa. À noite, porém, ela apagava tudo que ele no seu corpo escrevia. Ao escrevê-la do princípio a cada dia, fez disso um ritual sempre renovado e incessante. Por fim, ela engravida do livro cujo título é O Ginógrafo.
Quando o livro é lançado, Krabbe logo se converte numa celebridade literária e seduz até Vanda (Giovanna Antonelli), mulher de Costa e famosa apresentadora de telejornal. Incapaz de suportar a paixão que Krabbe desperta em Vanda, Costa arma um escândalo em plena festa de lançamento do livro. O desfecho desastroso culmina na separação do casal.
O enredo se desdobra entre o Rio e Budapeste. Logo que chega a Budapeste Costa transita ao longo das ruas erguidas à borda do Danúbio. Atraído por uma das imagens mais fortes que o afetam em trânsito pela cidade, desce do táxi para observar esta cena insólita: a estátua gigantesca de Lênin desmembrada e transportada sobre um barco que corta as águas do Danúbio. O ângulo da câmera invertido no plano final da cena sugere a imagem do líder supremo da Revolução Russa precipitando-se para o fundo das águas. Eis o epitáfio lacônico e impiedoso do socialismo húngaro.
Outra cena marcante do filme envolve a estátua do escritor desconhecido, autor da Gesta Húngara. Segundo o relato de um guia de turistas, ele quis preservar seu anonimato indiferente à glória e à fortuna. A similaridade com a condição de Costa, escritor anônimo, é demasiado evidente, ressaltada a variante de que este não se contenta em ser instrumento anônimo e remunerado da glória alheia. Se o escritor desconhecido contentava-se em humildemente servir a humanidade através de suas palavras, Costa emerge do seu anonimato quando o falso autor se apropria da sua obra e seduz sua mulher.
Costa tanto refina seu conhecimento do húngaro que acaba compondo um livro de poemas, ele que no Brasil nunca escrevera um verso na sua língua nativa. Evidentemente a glória vai novamente para um outro, o falso poeta que compra a autoria da obra. E eis que Costa, novamente mordido pelo amor ciumento por Kriska arma um novo escândalo ao denunciar a autêntica autoria da obra.
Expulso da Hungria, Costa retorna para o Rio de Janeiro. Mas logo recebe um telefonema do consulado húngaro, que lhe fornece passagem de volta para Budapeste e visto permanente. Mal chega ao aeroporto onde Kriska o espera, desta vez é recepcionado como um gênio da literatura. Até Chico Buarque lhe pede autógrafo, uma cena absolutamente imprevisível e de grande efeito irônico no contexto da trama.
Um livro é uma expressão de amor, ou pelo menos uma experiência de profunda intimidade entre dois seres, o autor e o leitor, mais preciosa e profunda do que a maior parte das formas correntes de interação humana. O livro de Chico Buarque, mais do que um ato de amor, traduzido na relação de Costa com Vanda e Kriska, é um ato de amor passional e erótico compreendido este no seu sentido mais estrito e perturbador.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Kinsey
Bill Condon, diretor e roteirista do filme Kinsey, usa imagens e manchetes de época para explicitar o impacto extraordinário de O Relatório Kinsey (The Kinsey Report) na sociedade americana quando foi lançado em 1948. À parte o exagero inevitável das manchetes de jornal, o efeito do relatório foi semelhante a uma bomba atômica lançada sobre a mentalidade puritana da época. É preciso um considerável exercício de imaginação para que adequadamente se aprecie a repercussão de obras que irrompem na cena cultural abalando ideias feitas, preconceitos e toda sorte de convenção social. Foi o que aconteceu com a obra de Alfred Kinsey (Liam Neeson).
Conviria no entanto ressaltar que o exercício de imaginação aqui proposto, necessário de resto em toda apreciação de épocas históricas distintas do presente, não supõe a superação das barreiras e repressões acima sugeridas e bem ativas quando Kinsey publicou seu relatório. Bastaria lembrar que o filme, antes mesmo de ser lançado, provocou fortes reações típicas da época de Kinsey. A mãe de Liam Neeson, por exemplo, recebeu cartas ameaçadoras simplesmente porque este aceitou interpretar o papel de Kinsey. Lançado durante o governo ultraconservador de Bush, o filme provocou muitas outras reações que evidenciam o quanto a mentalidade puritana continua viva nos EUA. De fato, a história cultural americana é assinalada desde sua origem por duas tradições que continuamente se chocam: a puritana e a liberal. Kinsey e sua obra constituem expressão ímpar da segunda. Embora o Brasil se caracterize de modo bem diferente, não faltaria quem o dissesse oposto, também aqui se chocam não bem o puritanismo e o liberalismo, mas digamos a permissividade e o preconceito. Prefiro usar esta polaridade discutível por supor que nossa repressão sexual é mais difusa e portanto privada das âncoras institucionais mais definíveis no contexto cultural americano.
Embora a narrativa obedeça a um princípio nitidamente biográfico, convém por isso mesmo ressaltar que o roteiro é baseado no romance The Inner Circle, de T. C. Boyle. Bill Condon escreveu e dirigiu o roteiro. Outro grande filme que também dirigiu e escreveu, novamente adaptado de um romance, é Gods and Monsters, com soberbas interpretações de Ian McKellen e Lynn Redgrave, que aliás desempenha um curto e marcante papel em Kinsey. Além do artifício biográfico que estrutura a narrativa, esta se desdobra mimetizando a relação entre um pesquisador, os próprios assistentes de Kinsey, e Kinsey, que responde as questões propostas no questionário.
O Relatório Kinsey é baseado numa exaustiva e criteriosa pesquisa restrita à sexualidade masculina. Obsecado pelo assunto, cuja repercussão aguçou ainda mais sua obsessão, Kinsey logo se atirou apaixonadamente à elaboração do relatório relativo à sexualidade feminina, publicado cinco anos depois do primeiro. Sem dúvida, ambos concorreram de forma decisiva para modificar o comportamento sexual dos americanos numa época em que os costumes eram de uma rigidez puritana inconcebível para aqueles que hoje desfrutam de modo inconsciente da liberdade rotinizada pelas conquistas liberais emergentes nas últimas décadas.
Quem quer que tenha sofrido traumas decorrentes da repressão imposta à sexualidade, e acredito que todos direta ou indiretamente sofremos esse tipo de experiência, poderá melhor compreender diante desse filme impressionante o quanto devemos à ação iluminista desempenhada por Kinsey e todos que colaboraram para transformar seu projeto em realidade. Quem não viveu (na família, na escola, no seu círculo de relações íntimas) traumas associados a alguma história envolvendo práticas sexuais visadas e reprimidas pelos costumes dominantes no meio em que se formou e definiu uma biografia? Enquanto indivíduo, Kinsey é apenas uma variação singular das infinitas variações compreendidas no conjunto das nossas biografias. Seu conflito nuclear está bem caracterizado na relação com o pai (interpretado por John Lithgow), um professor puritano ao extremo da caricatura. Um analista de botequim poderia razoavelmente argumentar que seu combate obsessivo em favor da liberação sexual seria sintoma do ódio desfechado contra o pai e sua sufocante mentalidade repressiva.
Parece-me relevante chamar atenção para o fato de que Kinsey, o inventor da sexologia americana, não foi um psicólogo ou psicanalista, mas sim um zoólogo de formação. Isso importa de forma decisiva, suponho, para melhor compreendermos a forma como caracteriza o comportamento sexual na sua obra. Bill Condon traduz de forma adequada no contexto do filme a concepção comportamental de Kinsey. Ela fica evidente em algumas cenas fundamentais do filme. Por exemplo: quando se envolve numa relação homossexual com Clyde Martin (Peter Sarsgaard), seu principal assistente. Ao desvelar o caso para sua mulher (Clara McMillen, interpretada por Laura Linney), esta fica compreensivelmente chocada. Tentando justificar sua traição, ele alega que a sexualidade humana é fruto de pura convenção social. Ela então retruca, em termos diferentes dos que emprego, que sofremos quando alguém que amamos transgride as convenções que regulam nossas práticas sexuais, nossas formas de relação amorosa.
Também no final do filme Clyde pergunta a Kinsey por que ele nunca se referiu ao amor na sua obra. Porque o amor não pode ser medido, quantificado, e assim convertido em matéria de ciência. É aí que está o cerne da questão. Isso explica, noutras palavras, porque Kinsey sempre reduziu o comportamento sexual do ser humano a uma dimensão restritamente fisiológica. Como zoólogo, ele tendeu a sistematizar um método de pesquisa no qual a sexualidade humana é reduzida à dimensão animal ou biológica. Ignorou assim uma distinção elementar nos domínios da sociologia e da antropologia. Ela consiste no reconhecimento de que a espécie humana se distingue por pertencer a dois reinos que se relacionam de modo complexo: o da natureza, ou da biologia, e o da cultura. É isso o que nos singulariza enquanto espécie imprimindo à nossa condição um caráter único que pulsa na raiz da nossa natureza insolúvel. Quero dizer, não há nem acredito que um dia encontremos explicação pacificadora para nossa complexa constituição.
Retendo minha argumentação na esfera restrita que importa para a compreensão do filme, a sexualidade, parece-me evidente que nossas práticas sexuais não encontram paralelo em nenhuma outra espécie. Enquanto a sexualidade das demais é regida por disposições biológicas fixas, que poderíamos designar como instinto, a humana se distingue por sua espantosa diversidade, cada uma delas obedecendo a códigos morais igualmente diversos. Isso é uma evidência meridiana do quanto contrariamos os códigos da natureza. Kinsey parece incapaz de compreender essa distinção fundamental. Daí a facilidade, melhor diria a inconsciência, com que compara a sexualidade humana à de outras espécies com uma ignorância sócio-antropológica somente concebível num zoólogo isento da mais elementar iniciação antropológica.
Os resultados dessa sua inconsciência são previsíveis e de resto conferem grande força dramática ao filme. Eles se manifestam inicialmente no já aludido affair homossexual de Kinsey com Clyde; depois no envolvimento sexual de Clyde com Clara; depois entre os casais diretamente associados à pesquisa dirigida por Kinsey. Por essas e outras, sobretudo por força da obra explosiva que deu a público numa atmosfera moral incomparavelmente mais repressiva do que a do presente, Kinsey foi e é ainda vítima de muitas acusações chocantes, algumas comprovadamente caluniosas. Embora não o conheça o suficiente para tomar posição contra ou a favor das muitas acusações que pesam sobre sua obra e biografia, posso com certeza concluir que a calúnia sempre cercou e cercará aqueles que ousam desafiar os preconceitos e convenções dominantes no seu tempo, notadamente quando a matéria em questão é nossa sexualidade.
Apesar das restrições aqui expostas, reitero por fim em tom de franca admiração o quanto Kinsey contribuiu para reduzir o obscurantismo tacanho que envenenou nossa experiência sexual e infelizmente se mantém ainda vivo na nossa sociedade. Basta que se considere o tom obscurantista da polêmica que cerca o aborto no Brasil. Se o obscurantismo soa absurdo na atmosfera permissiva em que vivemos, chega às raias do incompreensível quando corremos a vista pela paisagem moral que desregula os costumes sexuais observáveis no Brasil, tantas vezes castigado por humoristas e críticos sociais como Brasil bordel, tantas vezes no estrangeiro reduzido a estereótipos sexuais grosseiros. Se há um terreno no qual prática e consciência drasticamente se desentendem, não há dúvida de que é o da sexualidade.
Ficha técnica:
Kinsey (EUA, 2004)
Direção e roteiro: Bill Condon
Alfred Kinsey (Liam Neeson)
Clara McMillan (Laura Linney)
Clyde Martin (Peter Sarsgaard)
Alfred Kinsey, pai (John Lithgow)
Wardell Pomeroy (Chris O´Donnell)
Paul Gebhard (Timothy Hutton)
Alan Gregg (Dylan Baker)
Lynn Redgrave.
Recife, 7 de novembro de 2010.
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
Impacto e Permanência de CG&S
Impacto e Permanência de Casa Grande & Senzala
Resumo: Objetivo, neste artigo, caracterizar, de um lado, o impacto causado por Casa-Grande & Senzala (doravante assim abreviada: CG&S) nos quadros da produção intelectual dos anos trinta desde o momento de sua publicação; de outro lado, acentuar a permanência desta que é, segundo o insuspeito juízo de Darcy Ribeiro, “a obra mais importante da cultura brasileira”. No que se refere ao impacto anotado no título do artigo, intento acentuar que os nomes e setores mais significativos da inteligência brasileira de imediato identificaram na obra de Gilberto Freyre sua força e originalidade. A incompreensão de que ele próprio mais tarde tantas vezes veio a se queixar derivou seja de críticos menores, seja de fatores ideológicos que serão explicitados no corpo deste artigo. Quanto à permanência de CG&S, nenhum fato contemporâneo talvez melhor a comprove do que o progressivo ressurgimento de estudos e interpretações inspirados pela ambição de acentuar a posição tanto seminal quanto clássica da obra que, compreendida na sua autonomia epistemológica e estética, transcende os rumos e posições contingentes do seu autor.
Nota: este artigo foi antes publicado na revista Estudos de Sociologia, da pós-graduação em Sociologia da UFPE, Ano 1, No. 1, Recife, janeiro/junho de 1995. Tomei a liberdade de suprimir algumas notas bibliográficas, além do parágrafo final. As notas que me pareceram necessárias à clareza do artigo foram incorporadas ao texto.
O lançamento do último livro de Harold Bloom nos Estados Unidos, The Western Canon, teve entre nós, aparentemente, uma repercussão de alcance puramente jornalístico. Inspirada na lista canônica proposta por Harold Bloom, a revista Veja convocou quinze intelectuais solicitando-lhes que compusessem listas individuais das vinte obras mais representativas da cultura brasileira (Ver Veja, 23 de novembro de 1994, pp. 108-112). Feitas as listas, delas Veja extraiu um conjunto canônico “definitivo” composto de vinte e duas obras. Embora valha aqui destacar que os intelectuais convocados a propor um cânon (note-se que não escrevo “o” cânon) da cultura brasileira figuram, salvo um ou outro nome discutível, entre os maiores da nossa inteligência, não interessa aos fins visados por este artigo discutir a consistência e legitimidade dos critérios adotados para a seleção canônica.
Se é verdade que iniciativas dessa natureza estão sempre a um passo do consumismo mais banalizador, já que é corriqueiro votarem dentro desse objetivo geral tanto os dez livros que um intelectual levaria para uma ilha deserta quanto as dez mais gostosas penduradas nas sórdidas paredes de uma oficina de automóveis, muita coisa útil pode ser discutida para além do blablablá consumista que pulveriza nosso cotidiano cultural. Se se considera, por exemplo, o contexto cultural anglo-saxão, do qual deriva o livro de Harold Bloom, há que se admitir que a polêmica em torno da definição de um cânon literário, ou mais abrangentemente cultural, encerra implicações da mais alta relevância para a redefinição e realinhamento dos quadros culturais contemporâneos. Pois o que aí está em questão não é meramente a legitimidade estético-cultural de uma obra tida como canônica, mas também, senão sobretudo, os fatores de ordem ideológica que recortam a identidade do cânon nos quadros da cultura. E se hoje tantos ventos polêmicos varrem o Olimpo onde antes mais solidamente se firmara o perfil canônico da cultura anglo-saxônica, ou mais amplamente ocidental, tal fato resulta fundamentalmente da redefinição do lugar ocupado por grupos até recentemente submetidos a uma posição de inferioridade sócio-cultural. Na medida em que agentes intelectuais procedentes desses grupos passam a intervir num espaço antes praticamente monopolizado pela cultura que, em tom francamente depreciativo, se tem caracterizado como WASP (White Anglo-Saxon Protestant), a solidez do cânon passa a ser questionada com veemência suficiente para inquietar as correntes mais elitistas e conservadoras empenhadas no debate cultural contemporâneo.
Mas meu assunto é cultura brasileira e mais especificamente o lugar ocupado por CG&S nos seus quadros gerais. Pareceu-me oportuno principiar pela menção ao livro de Harold Bloom e ao cânon da cultura brasileira precisamente porque a obra-prima de Freyre ocupa no cânon da Veja uma posição privilegiada, ficando abaixo apenas, e imediatamente, de Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Seria porém efetivamente necessário recorrer à enquete da Veja para se reconhecer a magnitude da obra de Gilberto Freyre? Estou certo de que não. Desde 1933, ano em que pela primeira vez foi submetida ao escrutínio do leitor brasileiro, CG&S se impôs como uma obra-prima. E deriva essa qualidade inequívoca não da circunstância, própria de certas obras-primas, de integrar-se a uma categoria de grandes obras cujos méritos e valores predominantes estão já estabelecidos nos quadros clássicos da tradição cultural. Se parte dos seus méritos deriva dessa corrente, ou a ela se associa, outra parte, talvez a mais significativa, intervém nos quadros da cultura brasileira distinguida pela força estilística impressa à empresa de reinterpretação do passado patriarcal brasileiro. Deriva ainda dessa combinação inédita entre o tom ensaístico firmado na sólida formação sócio-antropológica do autor e o raro domínio dos instrumentos expressivos hauridos na intimidade que Freyre desde cedo sedimentara no estudo apaixonado das artes e da filosofia, das línguas e da literatura.
Uma apreciação genérica da fortuna crítica de CG&S de pronto revela que a recepção da obra tem sido quase unanimemente favorável. Se digo quase unanimemente é porque tenho em mente duas ordens de restrição que merecem ser explicitadas e discutidas. A primeira remete ao tom reprovador proveniente da crítica de feição mais conservadora. Um exemplo frisante seria o artigo publicado por Afonso Arinos de Melo Franco em 1934. Embora tenha a lucidez de identificar na obra de Freyre a marca do grande livro, repele no livro a linguagem nele adotada, que lhe soa de pouca dignidade. Nas suas palavras,
“... sua língua deve ser simples e nossa, não julgo indispensável que seja chula, impura e anedótica, tal como aparece em tantas das suas páginas. É pouco técnico esse linguajar. Pouco científico. Dá ao livro um aspecto literário que o seu assunto e as suas graves proporções não comportam”. (“Uma obra rabelaisiana”, in Edson Nery da Fonseça, ed., Casa-Grande e Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944).Caberia ainda agregar a este item a crítica praticada por intelectuais de peso menor, quando não simplesmente nulo. Quem hoje sabe dos críticos de formação católica mais conservadora que acolheram com indignação o tratamento conferido por Gilberto Freyre ao papel desempenhado pelos jesuítas no processo da formação colonial brasileira de par com o relacionamento entre vida religiosa e sexualidade no âmbito da família patriarcal?
A segunda ordem de restrição deriva da crítica que, demasiado aderente às circunstâncias em que é produzida, tende a reduzir a obra à ideologia, tanto a ideologia nela própria identificável quanto a que exprime seu autor enquanto cidadão e indivíduo atuante no debate político e cultural. A melhor ilustração seria, neste ponto, a crítica vigorosa, lastreada em grande força argumentativa, desfechada por Dante Moreira Leite no seu admirável O Caráter Nacional Brasileiro e a de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira. Sintomaticamente, ambas as críticas, entre as mais duras e ressoantes já lançadas contra a obra de Gilberto Freyre, foram publicadas nos anos 1960 e 1970, momento em que mais se patentearam, contra o pano de fundo do regime militar, as posições mais reacionárias do autor de CG&S.
Embora consciente de que, no trato dessa matéria, já se vai banalizando a referência ao prefácio assinado por Antonio Candido em 1967 e agregado à 5ª. edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, parece-me impossível aqui omitir trechos do seu ensaio-depoimento, já que ninguém melhor que ele soube sintetizar o significado profundo que CG&S, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo, este de autoria de Caio Prado Jr., tiveram para a sua geração e para as que a sucederam.
Referindo-se aos três livros acima, cuja integridade canônica não foi ainda refutada por nenhum estudioso de mérito, assim se exprime Antonio Candido:
“São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”. (“O Significado de Raízes do Brasil, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. 8ª. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975, pp.XI-XII)
Logo em seguida, referindo-se especificamente ao impacto causado por CG&S junto à geração de que fazia parte, externa o crítico um juízo que, deliberadamente expresso no plural, traduz não só um ponto de vista pessoal, mas um modo de leitura e apreciação compartilhado por toda uma corrente geracional:
“Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa-Grande & Senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso modo de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro”. (Idem, pp. XI-XII).Há nesta citação um ingrediente de fundo ideológico que interessa explorar no contexto dos propósitos norteadores deste artigo. Receoso de que o leitor contemporâneo não alcançasse apreender a real importância “daquele” Gilberto, o Gilberto Freyre que no entender de Antonio Candido passara a adotar atitudes francamente identificadas com as forças mais conservadoras da sociedade brasileira, enfatiza o crítico o caráter revolucionário e impactante contidos em CG&S. Como tantos que têm intentado caracterizar ideologicamente Gilberto Freyre, me parece que aqui confunde ele as posições momentâneas tomadas por Gilberto Freyre com o que muito inapropriadamente chamarei de “caráter ideológico” do autor. Ora, parece-me um equívoco distinguir ideologicamente “este” “daquele” Gilberto. Pois se o leitor põe entre parênteses as posições políticas momentâneas do autor e lê a “ideologia” que lhe percorre de ponta a ponta o conjunto da obra produzida, sem muita dificuldade se vai dando conta de que o Gilberto mais profundo é entranhadamente um conservador. Desde os escritos da juventude até os da velhice, aqui incluídos os escritos do Gilberto que ostensivamente emprestou apoio intelectual e moral ao regime militar, nitidamente se desenha o perfil de um intelectual ostensivamente imantado ao culto da tradição, sempre resistente às forças socioculturais passíveis de transpor o Brasil para um mais avançado padrão de modernidade cultural. A questão que neste ponto me parece mais relevante, diria a questão verdadeiramente decisiva, foi proposta, embora não resolvida, por Darcy Ribeiro.
Quando Gilberto Freyre era abertamente execrado pela nossa inteligência de esquerda, atitude que de resto me pareceria acertada se restrita às contingências ideológicas que a inspiravam, generalizou-se em torno à sua obra uma situação similar àquela que na Argentina afetou a obra de Borges. Foi então que se tornou moeda corrente combatê-lo e negá-lo não a partir de uma análise efetiva da sua obra, mas sim a partir de uma atitude de negação fundada na ignorância pura e simples. Em suma, intelectuais e estudantes, estes frequentemente por aqueles inspirados no que me parece ser um dos mais deploráveis modos de intolerância, tratavam a pontapés uma obra e um autor dos quais tudo ignoravam.
Foi dentro dessa atmosfera de hostilidade iletrada movida contra Gilberto Freyre que Darcy Ribeiro escreveu um ensaio de apreciação geral incorporado, em forma de prefácio, à edição venezuelana de CG&S. (Ver “Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala”, in Darcy Ribeiro, Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979).
Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo insaciável de Freyre, cita o antropólogo alguns elogios, merecidos, a ele feitos no Brasil e no estrangeiro por figuras intelectuais de renome. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvores, não reluta entretanto em enunciar o elogio máximo: CG&S é “...a obra mais importante da cultura brasileira”.
Esboçada a apresentação desse ensaio que importa aqui comentar, retomo afinal o que acima referi como sendo a questão verdadeiramente decisiva proposta, se bem que não integralmente resolvida, por Darcy Ribeiro. Formulando-a em termos de franca perplexidade, assim a enuncia:
“Sempre me intrigou e me intriga ainda que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político – em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo – tenha podido escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo”. (Idem, p. 64)A questão decisiva consistiria, pois, em explicar o relacionamento contraditório entre o autor e a obra. Somente a crítica primariamente ciosa de deduzir explicações positivistas simplificadoras das complexas mediações inscritas no relacionamento entre esses dois termos, o autor e a obra, ousaria presumir que a obra não passaria, no final das contas, de uma expressão necessária da ideologia abraçada pelo homem que a escreveu. Tanto a história das artes e da literatura quanto a própria história do pensamento social encerram notórios exemplos de obras revolucionárias assinadas por autores conservadores, assim como, contrariamente, obras irrelevantes inspiradas por belos e generosos propósitos de natureza político-ideológica.
Intentando decifrar o enigma imposto pela obra, algo muito além da distinção feita por Antonio Candido entre “aquele” e “este” Gilberto, reitera Darcy Ribeiro no corpo do seu ensaio a questão que confessadamente o intriga. A decifração resultante das reiterações e argumentos que desenvolve residiria num artifício metodológico peculiar à legítima investigação de base antropológica: a divisão epistemologicamente fecunda entre o familiar e o estranho, entre o movimento de empatia confundindo o investigador com o seu objeto e o movimento de estranhamento desdobrando-se na direção contrária. Melhor dar a palavra ao próprio ensaísta:
“Voltemos, porém, à nossa indagação original: o que teria permitido a GF escrever CG&S? A razão preponderante é ser ele um ambíguo. Por um lado, o senhorito fidalgo evocativo de um mundo familiar, de um mundo seu. Por outro lado, o moço formado no estrangeiro, que trazia de lá um olhar perquiridor, um olho de estranho, de estrangeiro, de inglês. Olho para quem o familiar, o trivial, o cotidiano – e como tal desprovido de graça, de interesse, de novidade – ganhava cores de coisa rara e bizarra, observável, referível. Combinando as duas perspectivas nele interiorizadas, sem fundi-las jamais, GF viveu sempre o drama, a comédia – a novela, na verdade – de ser dois: o pernambucano e o inglês”. (p. 73)A ênfase com que Darcy Ribeiro revisa Gilberto Freyre para o pensamento de esquerda, depois de assentadas as apreciações vigorosamente negativas contidas em obras como O Caráter Nacional Brasileiro e Ideologia da Cultura Brasileira e o tom de alto louvor que imprime à sua celebração do sociólogo pernambucano aparentam haver deslocado para um plano de irrelevância as muitas e severas restrições que lança contra interpretações contidas em CG&S. Assinala, por exemplo, como o emprego de instrumentos analíticos cedidos pela psicologia à obra de Freyre presta-se, em alguns momentos, a exercer papel puramente psicologizante no plano da interpretação efetiva de fenômenos socioculturais brasileiros. Seria o caso da função explicativa atribuída ao sadomasoquismo. No entender de Darcy Ribeiro, que me parece acertado, para Gilberto Freyre o despotismo das nossas classes dominantes “não seria mais que um atavismo social”, uma evidência do masoquismo característico do brasileiro comum (conferir pp. 70 e 86). Tiradas desse tipo, apressa-se Darcy Ribeiro em o demonstrar, iluminam com inequívoca nitidez no corpo de certas interpretações de CG&S “uma tara direitista gilbertiana”.
Os guardiães provincianos da glória de Gilberto Freyre, que hoje interferem entre o leitor e a obra de modo tão negativo quanto antes interferia a identidade ideológica viva e atuante do autor, tanto aparentam deleitar-se com o tom predominantemente celebratório do ensaio de Darcy Ribeiro que as restrições nele contidas, tal como a exposta no parágrafo acima, lhes passam despercebidas, como que rebaixadas a um nível de improcedente irrelevância, repousando diluídas sob o verniz dos justos louvores firmados pela letra apaixonada do autor de Maíra.
Retomando porém a recepção crítica dos anos trinta, foi enorme o impacto causado de imediato por CG&S no ambiente intelectual brasileiro. Baseado nas evidências fornecidas pela fontes documentais que reúne e comenta em Casa-Grande & Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944, assinala Edson Nery da Fonseca a repercussão alcançada pela obra-prima de Gilberto Freyre nos círculos da crítica nacional durante esse período. A leitura dos documentos por ele reunidos comprova, sem dúvida, a consagração conferida a CG&S pelos nomes mais eminentes da inteligência brasileira. Entre as duas datas acima referidas assistiu-se à publicação de artigos e ensaios nos quais se manifesta a recepção entusiasmada da melhor crítica militante. Embora bastante diferenciados do ponto de vista da formação intelectual e ideológica, escritores como Manuel Bandeira, João Ribeiro, Roquette-Pinto, Miguel Reale, Agrippino Grieco, Nelson Werneck Sodré, Edison Carneiro, Sérgio Milliet, Álvaro Lins, Wilson Martins, entre tantos outros, convergem no tom elogioso com que aprovam a obra de Gilberto Freyre. Observa-se aqui, entretanto, uma omissão intrigante: Mário de Andrade.
Personagem central do Modernismo proveniente da Semana de Arte Moderna, estudioso e pesquisador insaciável, ávido de tudo ler, divulgar e criticar, não deixa ele, contudo, nenhum trabalho dedicado à apreciação de CG&S ou às duas outras obras de Gilberto Freyre publicadas nos anos trinta: Sobrados e Mucambos e Nordeste. Dada a centralidade do papel que desempenhou no processo cultural brasileiro entre 1922 e 1945, ano em que morreu, acrescida da excepcional amplitude de sua formação de intelectual militante, seria absurdo supor que Mário de Andrade não leu CG&S. Tanto é isso verdade que a mais notável estudiosa de sua obra, Telê Porto Ancona Lopez, anota esta observação no livro em que trata precisamente de rastrear o processo de formação intelectual e ideológico de Mário de Andrade:
“Na bibliografia, no Prefácio e nas notas para a Introdução de Na Pancada do Ganzá, cita principalmente Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Foram esses autores os que formaram a base dos conhecimentos antropológicos e sociológicos que aplicou no Brasil”. (Mário de Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1972, pp. 86-7).Logo, fica aí comprovado que o silêncio de Mário de Andrade de modo algum se explica pelo desconhecimento da obra. É sem dúvida intrigante esse silêncio interposto entre os dois escritores que foram provavelmente os mais importantes e influentes intelectuais brasileiros nos anos trinta. Haveria aí algo mais que a discreta, sobretudo de parte de Mário, rivalidade entre dois intelectuais disputando posições de liderança? Como me confesso incapaz de satisfatoriamente responder à questão por mim próprio introduzida, deixo-a suspensa no ar ou na mente do leitor curioso.
Considerando todas as evidências disponíveis, este artigo registra apenas algumas entre as mais notórias e notáveis, me parece desnecessário insistir ainda sobre o impacto provocado por CG&S desde sua publicação em 1933 e sua intocada permanência na linha do presente. Intentei considerar, ainda que muito genericamente, dois fatores negativos interpostos entre a obra e o leitor: a tacanhice reacionária de Freyre, para valer-me aqui de uma expressão empregada por Darcy Ribeiro, e, mais recentemente, o controle intolerante da sua glória exercido por guardiães provincianos capazes da proeza de serem ainda mais gilbertianos do que o próprio Gilberto. Se contra o primeiro fator, dominante nas décadas de 1960 e 1970, investiu certa corrente crítica de esquerda fixada mais no ajuste de contas ideológico do que na apreciação isenta da obra, daí resultando erros de enfoque e atitudes de intolerância neste artigo anotados, contra o segundo se batem em especial estudiosos independentes atuantes no Recife tanto louvado e amado por Gilberto Freyre.
Mas o balanço geral que se poderia fazer, e aqui não faço, seria indiscutivelmente animador. Combatido e negado notadamente durante os anos 1960 e 1970, em larga medida devido ao deplorável apoio que ostensivamente emprestou ao regime militar, já agora se nota a emergência de estudos orientados para o objetivo de reavaliar, à margem de implicações ideológicas momentâneas, o significado mais permanente da obra de Gilberto Freyre.
Assinar:
Postagens (Atom)