sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Céu Vazio


Vi no espaço estelar
O vulto de Heloísa
Na pele gotas do mar
No corpo sopro de brisa.

Raios de luz ancestrais
Ecos da voz de Abelardo
Amor assim não há mais
Fluindo no rio cardo.

Amor que ainda retardo
Na treva do céu vazio
Mas nesse fogo não ardo
O mundo é um deserto frio.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Domingo baiano


Se ora a vida transcende
A linha cotidiana
Ora na noite me acende
O vulto de Tatiana.

Se ora me acerca do tédio
Da solidão entre estranhos
Ora tem fugas, remédios
Prazeres e outros ganhos

Que brotam do mais comum
Da vida de todo dia
Fusão de Logos e Ogum
Senso comum e poesia.

Mas o meu verso intendia
Bem outra coisa dizer:
Soprar na noite a harmonia
Vinda do nada ou lazer

Que pouco almeja e anuncia.
Na forma mais pura e plana
Dizer que a luz da poesia
É o riso de Tatiana.

Salvador, 15 agosto 2004.

sábado, 8 de novembro de 2014

Na Noite Baiana


Cantor da noite deserta
Eis que antecipo meu dia
Enquanto a janela aberta
Respira o ar da Bahia.

Dentro da noite sem gente
A alma se interroga
E a vida rola rangente
Sem queixa, remédio ou droga

Que imprimam voz ou sentido
A tudo que dissipei
De bem largado, amor ido
No tempo que mal usei.

Cantor, a noite deserta
Abriga cantos de dança
De luz e reinvenção
De riso e de esperança
Nos braços de outra dança
Que gira em meu coração.

Salvador, 17 agosto 2004

sábado, 1 de novembro de 2014

Joyce e a Torre de Babel


Embora publicada em 1914, Dublinenses, obra composta de quinze narrativas curtas, foi escrita cerca de 10 anos antes. O intervalo de tempo aí assinalado sugere os obstáculos que sempre separaram James Joyce, ícone supremo do alto modernismo europeu, e o público. No caso, o problema maior foi com o editor e outros mediadores entre o autor e o público. A obra conteria, para os valores da época, passagens pornográficas e alusões ofensivas a dublinenses identificáveis nos personagens que foram de fato concebidos a partir de fontes biográficas do autor. Aliás, esta é uma característica que atravessa de forma nítida o conjunto da obra de Joyce. Sob as compactas camadas experimentais da forma lateja a realidade social de Dublin e da Irlanda. Não foi à toa que Joyce certa vez observou que, acaso Dublin fosse varrida do mapa, seria possível reconstituí-la integralmente com base na sua obra. A minudência obsessiva, o zelo detalhista mobilizado na composição textual, a revelação crua da realidade que de resto lhe valeu a acusação de ser um autor pornográfico, tudo isso deriva da linhagem naturalista a que Joyce se filia. Conviria precisar que o termo “naturalista” remete a influências procedentes de Flaubert e Ibsen, não Émile Zola, foco irradiador da estética naturalista que marcou a tradição literária brasileira em fins do século 19.
Quem acaso lê Joyce, sobretudo quem dele ouve falar, pois não há dúvida de que é um escritor antes louvado do que lido, prontamente o associa a Ulysses. Por isso, embora este artigo seja em princípio consagrado ao centenário de Dublinenses, anuncio desde já que é aquele que tenho em mente. Comparada a Ulysses, Dublinenses é uma obra que pouco se afasta da tradição realista acima salientada. Noutras palavras, não é propriamente fruto do alto modernismo europeu que nas primeiras décadas do século 20 abalou a tradição literária ocidental impondo às formas narrativas e poéticas um sentido de radicalidade estética sem precedente histórico. Sendo assim, o leitor atravessa os 15 contos prescindindo de guias e exegetas, ou explicadores, que no caso de Ulysses tornam-se imprescindíveis, ainda quando o leitor seja muito cultivado literariamente.
Joyce escreveu que Dublin era o centro da paralisia: the centre of paralysis. Essa paralisia de Dublin, cidade periférica oprimida pelo mais poderoso império do século 19, o império britânico, é perceptível em toda a obra de Joyce. Ele tinha profunda consciência desse fato. Formado dentro dos quadros da tradição jesuíta, rebelou-se contra o catolicismo irlandês, esteio da paralisia que o sufocava, e escolheu ser um auto-exilado. Migrou para o Continente, como dizem nas ilhas britânicas, antes mesmo de escrever Dublinenses. Foi viver em Trieste, onde compôs o livro, e onde, para proveito recíproco, conviveu com Italo Svevo, autor do mais importante romance italiano do século 20: A Consciência de Zeno. Em suma, viveu toda sua vida de escritor ausente de Dublin, vivendo entre Trieste, Paris e Zurich, onde morreu em 1941.
O modernismo europeu foi um movimento indissociável do exílio. Os dois maiores modernistas americanos viveram voluntariamente exilados na Europa: Eliot e Ezra Pound. Nos anos 1920, década suprema do modernismo, vários americanos fizeram de Paris o seu país de exílio: Gertrude Stein, Hemingway, Scott Fitzgerald. Na década seguinte o nazismo forçou o exílio de muitos outros modernistas banindo-os da Alemanha e da Áustria. Auden e Christopher Isherwood fizeram o percurso inverso ao de Eliot e Pound. Kafka viveu a vida inteira como um exilado dentro da própria cidade em que nasceu. Voltando a Joyce, Stephen Dedalus, seu alter ego, condensa numa célebre passagem de Retrato do artista quando jovem o sentido do seu exílio voluntário e as armas de que se serviria para sobreviver e dar sentido à sua vida: “Silence, exile and cunning”.
Se é fato que Joyce um dia partiu de Dublin para nunca mais voltar, Dublin impregnou-lhe a imaginação e a alma de forma definitiva. Como antes ressaltei, Dublin pulsa em cada linha de toda a obra de Joyce, que mesmo à distância lhe esquadrinhava as ruas, monumentos, casas, a tagarelice bêbada dos dublinenses, as vozes e baladas ecoando nas ruas e bares. Cada uma das suas obras constitui um testemunho, um vinco profundo e inapagável de memória e reinvenção mítica da cidade natal. Joyce escolheu o exílio e tornou-se em definitivo um escritor cosmopolita apenas para se fazer ainda mais dublinense.
Saltando de Dublinenses para Ulysses, publicada em 1922, Joyce afasta-se radicalmente dos seus modelos realistas, Flaubert e Ibsen, depois de fundi-los com o simbolismo fin de siècle, para inventar uma forma de romance cujo fim último é abolir o gênero gestado e desenvolvido rente à ascensão da classe burguesa. Segundo a narrativa bíblica, Deus criou a torre de babel com o propósito de introduzir o desentendimento linguístico entre os povos. Cada povo funda sua língua, ou cada cultura sua fala, e desde então ninguém mais se entende. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que Joyce, cujo egocentrismo genial competia com a invenção divina, fundou a literatura torre de babel. Ulysses é o monumento supremo desse feito.
Se é assim, se ele dinamitou todas as linhas de comunicação entre o leitor e a obra, como explicar que seja reconhecido como ícone supremo do modernismo? Se ele esgota um gênero narrativo, o romance, se leva ao limite último a literatura experimental, como conciliar esses fatos com a sua celebridade canônica? Como explicar que uma obra ilegível como Ulysses seja exaltada no Brasil, por exemplo, cujo público letrado constitui uma minoria insignificante comparada à população letrada compreendida em sentido amplo? Este é um enigma cuja explicação caberia antes ao sociólogo da literatura do que ao crítico ou historiador da literatura.
Afirmei acima que Ulysses é uma obra ilegível não apenas porque tenho a franqueza de declarar que tentei fazer sua leitura integral em inglês e em português, seguindo as pegadas da tradução de Antonio Houaiss, e fracassei. Tentei outras vezes amparado pela mão e iluminado pela razão de um exegeta como Stuart Gilbert, autor de um guia de leitura da obra escrito com a colaboração e aprovação integral do próprio Joyce. Outros críticos de inegável erudição e estilo transparente como Edmund Wilson, Otto Maria Carpeaux e Malcolm Bradbury, também me socorreram. Ainda assim, preciso confessar minha incapacidade de ler essa obra suprema do modernismo. Posso falar dela, dissertar sobre as linhas de correspondência entre ela e a Odisséia, iluminar muitos dos enigmas e sentidos que esses mediadores eruditos iluminam, mas preciso admitir que com minhas próprias pernas não consigo ir muito longe. Aliás, devolvendo a Joyce aqui de baixo da minha insignificância de leitor e crítico a arrogância impenetrável da sua obra-prima, há muito me libertei dessa prisão pedante que é lutar anos a fio para compreender ou fingir compreender uma obra inacessível. Ele, do alto do seu pedantismo genial e erudito, disse que o leitor precisaria gastar sua vida inteira para compreender o mundo desnorteante de sentidos e invenção formal que sustenta sua torre de babel. Quanto a mim, reconciliado com a minha medida falível de leitor, afasto de mim qualquer obra impermeável à minha compreensão.
À época em que suava para dar forma definitiva a Macunaíma, Mário de Andrade escreveu uma carta para Manuel Bandeira desabafando seu enfado diante de grandes poetas experimentais como Rimbaud e Mallarmé. Ele que foi o condutor de um modernismo cuja primeira dentição foi caracterizada pelos dentes cortantes e indomáveis do experimentalismo estético, tomou juízo ao sentir o pulso do país real em que vivia e assim reorientou o modernismo saltando dos trilhos da modernidade tecnológica corrente no mundo europeu da época para as trilhas ainda inexploradas de um país periférico. Essa mudança de rumo foi fundamental para imprimir funcionalidade estética e social ao nosso modernismo.
O parágrafo acima, aparentemente despropositado, decorreu de uma associação espontânea entre os supostos leitores de Joyce, dentro do Brasil e até mesmo no seu país de origem, e o beco sem saída para onde nos impelem os sentidos impenetráveis da obra de Joyce, assim como da vanguarda mais radical, que de resto esgotou seus ciclos sucessivos através do século passado. Joyce é sem dúvida um gênio, um dos gênios supremos da literatura, mas é um gênio impenetrável. Por que, no entanto, tantos leitores capengas celebram Ulysses, e mais recentemente o ilegível Finnegans Wake, enquanto ignoram nossa tradição literária média e portanto tão acessível? Como explicar o pedantismo subintelectual de tantos supostos leitores de Joyce sequer capazes de escrever o português culto corrente nos círculos efetivamente letrados do Brasil? Como acima sugeri, estas são questões pertinentes ao sociólogo da literatura, não ao crítico ou historiador.
Recife, 17 de julho de 2014
Nota: Este ensaio crítico foi originalmente publicado na Revista do Café Colombo, no.1.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A Valsa de Jobim


Quando em teus braços dançava
A valsa de Tom Jobim
A vida se iluminava
Na festa e dentro de mim.

Quando na noite te amava
Inconsciente do fim
Sempre em teus braços lembrava
A valsa de Tom Jobim.

Quando por fim te perdi
E a noite baixou em mim
Quanto mais triste sofri
Mais consolou-me Jobim.

Tudo passou e no entanto
A valsa ficou em mim
Como se a perda no canto
Salvasse você em mim.
22 de outubro 2014.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

No Mural do Facebook


A morte de Nicolau Sevcenko
Em meio à comoção nacional provocada pela morte chocante de Eduardo Campos, tomo conhecimento, graças uma postagem de Randal Johnson, da morte de Nicolau Sevcenko. Ambos morreram no mesmo dia. É compreensível que a repercussão da morte de Eduardo Campos praticamente reduza a de Sevcenko a uma reportagem de pé de página, se posso me valer desta metáfora grosseira. Ainda assim, ou sobretudo por isso, importa ressaltar aqui a importância da sua obra. Tive apenas dois encontros com Sevcenko: o primeiro na Universidade de Londres, quando ele fazia seu pós-doutorado dividindo sala com Eric Hobsbawm; o segundo, alguns anos mais tarde em São Paulo, quando o procurei na sua sala da USP. Embora mal o tenha conhecido, marcou-me a memória sua cultura exposta sem afetação numa conversa casual, assim como seu espírito acolhedor e amável. O Brasil perde um grande historiador, um dos mais notáveis no âmbito da história cultural. (14 de agosto 2014)

Racionalidade e paixão:
Penso ser muito difícil articular um discurso racional na tribuna livre que são as redes sociais. As pessoas se manifestam sobre tudo, opinam irrefletidamente sobre tudo, em particular sobre temas que provocam reações passionais imediatas: política, religião, família, sexo, preconceito etc. Não bastasse a natureza intrínseca dos temas, a irracionalidade e a intolerância das opiniões é agravada pela leviandade com que muitos opinam, leviandade que com freqüência desliza para o desrespeito grosseiro. Por isso reluto sempre em entrar nessas discussões. Ao invés de concorrerem para o entendimento e a opinião esclarecida e isenta, servem apenas para agravar nossa intolerância e os preconceitos que tantos supostamente combatem.
Observando melhor, quase tudo acaba em repetição de clichê. As pessoas ficam repisando a frase dita por Eduardo Campos: “Não vamos desistir do Brasil” com o mesmo automatismo mimético dos que repetiam a frase sem sentido de Galvão Bueno quando o Brasil foi desclassificado pela França: “Faltou atitude”. Um povo politicamente organizado, e é isso o que mais importa para mudar verdadeiramente o Brasil, é um povo que pensa e ao pensar conquista sua autonomia. Confesso pensar que estamos muito longe disso. A forma como reagimos à morte chocante e dolorosa de Eduardo Campos constitui, antes de tudo, uma evidência da nossa orfandade política, da nossa incapacidade de nos organizarmos para além das figuras míticas do Mártir, do Salvador, do Pai protetor. No avesso disto, como é próprio do discurso maniqueísta, elegemos as figuras do Tirano, do Conspirador, do Pai punitivo. Ousar pensar, como dizia Kant, não é uma palavra de ordem. Ninguém pensa obedecendo a palavras de ordem. Ousar pensar é exatamente o contrário disso. Ousar pensar é educar-se para a autonomia, a coragem de ser e viver de acordo com convicções próprias. Conheço raríssimas pessoas capazes disso. (19 de agosto 2014)

A cegueira da paixão
Há alguns dias postei um comentário geral considerando a relação entre razão e paixão. Os comentários que provocou ajudaram-me a esclarecer melhor meu pensamento, além de os próprios comentadores melhorarem ou explicitarem melhor o que intentei dizer. Debate que se desdobra nestes termos me parece necessário e educativo para nossos livres exercícios de discussão nas redes sociais. É movido ainda por essa intenção que retomo o assunto afirmando que há muito desisti de discutir opinião política que não passa de cegueira da paixão. Dando um exemplo concreto, e ainda em curso no Facebook, acompanhei as repercussões e interpretações da série de entrevistas realizadas pelo Jornal Nacional com os principais candidatos à presidência da República. É impressionante como as opiniões se contradizem. Dão até a impressão, quando salto de um partidário para outro, que falam de assuntos antagônicos ou de algo que simplesmente não vi. Em circunstâncias dessa natureza, acho que debater é pura perda de tempo, argumentar para ir a lugar nenhum. Se não obedecemos a um critério mínimo de consenso entre realidade objetiva e opinião, a discussão perde sentido e com freqüência serve apenas para agravar mal-entendido e intolerância.
Comentando meu post acima mencionado, Ester Aguiar observou que a política é feita de paixão. Concordo, mas faço uma ligeira correção: sem dúvida, a paixão prevalece na política, mas ela precisa ser sempre temperada pela razão, pelo exercício da argumentação crítica. Do contrário, tudo acabaria em divergência insolúvel. Se as partes envolvidas não convergem num consenso mínimo sobre a natureza do que se discute, tudo acaba em opiniões que se anulam, isto é, a minha opinião vale tanto quanto a que nega a minha. Infelizmente, não posso demonstrar melhor essas apreciações abstratas cotejando as entrevistas do Jornal Nacional com uma amostragem significativa das reações que suscitaram. Portanto, confio na reflexão que o leitor crítico poderá fazer a partir do meu ponto final. (21 de agosto 2014)

O voto da necessidade
Há quem se surpreenda, ou simplesmente não compreenda, o fato de Dilma Roussef continuar subindo nas pesquisas de intenção de voto. A julgar pelos dados dessas pesquisas, a reeleição de Dilma é praticamente certa. Isso ocorre num contexto de crise econômica evidente. Basta conferir os próprios dados oficiais, escândalos de corrupção, antes de tudo o saque colossal aos fundos da Petrobrás, e o agravamento dos nossos problemas crônicos: saúde, educação, transporte, mobilidade urbana, violência crescente e outras pragas. Por que no entanto Dilma continua subindo? Porque grande parte dos brasileiros vota ainda atada ao cabresto da necessidade. Trocando em miúdos, o Bolsa Família continuará sendo a fonte de legitimidade eleitoral do PT. É razoável que sob o arrocho da necessidade o povo seja e continue indiferente aos problemas que somente importam para a fração esclarecida e privilegiada da sociedade. Enquanto tivermos um povo excluído dos benefícios efetivos da modernidade, quem lhe garantir o pão e o circo da necessidade continuará empunhando as armas do poder. Quanto à civilização, talvez no século 21, se o Brasil e o mundo ainda existirem. (2 de outubro 2014)

O voto da necessidade II
Neste país do atraso
É sempre a necessidade
O que decide eleição.
Por isso o Bolsa Família
É o partido maravilha
Do povo de pé no chão.

O voto de consciência
Com sua fé ou ciência
Com seu motivo ou razão
É sempre minoritário.
Embora seja tão vário
Nunca ganhou eleição.

Portanto, a eleição real
Com o seu bem e o seu mal
Vai ser na urna o que é.
O sonho é a esperança
Que nunca na vida alcança
Os fatos dos quais dou fé.
(4 de outubro 2014)

Inocência ou autoengano?
Prometi-me não mais me meter nas disputas políticas dos facebuqueiros. Lembrando o verso de Dante: guarda e passa. Mas a inocência ou autoengano com que tantos discutem e brigam por candidatos e partidos é tão absorvente quanto foi a torcida durante a Copa do Mundo. Pois é, o espírito é o mesmo e por ser o mesmo minha comparação é intencional. Não sei se as pessoas estão falando do que não sabem ou preferem a consolação do autoengano. Hoje Anco Márcio Tenório Vieira postou no mural uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo que diz o que o eleitor informado, bem poucos, já sabe. Não importa o fato de Dilma Roussef ou Aécio Neves vencer. Os reais vencedores serão os de sempre: as grandes empresas financiadoras, notadamente as empreiteiras, que são de resto as grandes corruptoras do Brasil. Quantas vezes foram sequer investigadas? Bolsa Família é um paliativo que garante o voto dos milhões de necessitados. Quanto às grandes reformas, dívida histórica do Brasil, continuarão sendo objeto de lero-lero de campanha eleitoral. Já sei de cor todo esse discurso. Quem quer ver a realidade já sabe, pois desde a minha infância ouço os políticos prometendo investir no que de fato importa: saúde, educação, transporte, segurança, infraestrutura produtiva...
Quem fala em reforma do Estado? Quem tem ideia do que deveria ser? Quem fala em reforma fiscal e urbana quando vivemos em cidades que são verdadeiros acampamentos urbanos? Quem fala em reforma política num país cuja democracia representativa tem 32 partidos políticos? Isso não é democracia, é circo ideológico. Os governos continuam sendo prepostos das montadoras e empreiteiras que devastam o que antes conseguimos construir como cidade digna deste termo. Mas todo mundo aqui no Facebook continua torcendo e brigando como se Dilma e Aécio fossem dois times antagônicos. Os torcedores do futebol, pelo menos, não caem na ilusão de supor que a vitória do seu time vai mudar o Brasil. O que os move é a paixão pelo futebol. Nosso eleitor de Facebook, no entanto, repisa a cada eleição a ilusão de que o seu Fla ou o seu Flu vai mudar o Brasil. O Brasil vai continuar sendo o bananão que sempre foi, isto é, muda pontualmente aqui e ali, mas o enredo básico continua sendo o mesmo. Como não suportamos encarar essa realidade, nem lutar adequadamente para transformá-la, continuamos encenando esse grande circo carnavalesco a cada eleição. Prefiro o futebol, que pelo menos não finge ser algo além de circo. (9 de outubro 2014)

O Debate Político nas Redes Sociais
A qualidade do debate eleitoral que há meses envenena as redes sociais ratifica uma verdade que poucas pessoas se dispõem a admitir: nossos governantes têm a cara de quem os elege. Se eu ainda precisasse de uma razão para continuar fiel a meu ceticismo, veria cinco minutos de debate entre os candidatos ou leria a sério as promessas que fazem, tão velhas quanto nossas mazelas insolúveis. Lendo de passagem muitos dos ataques que partidários de Dilma lançam contra Aécio, e vice-versa, lembrei-me do que diziam de um velho corrupto: o político paulista Ademar de Barros. Maluf é seu herdeiro, assim como muitos de todas as partes e partidos do Brasil. Diziam que Ademar roubava, mas fazia. Uma variante inconfessada da nossa leniência ou cumplicidade com a corrupção é esta: o PT é corrupto, mas o PSDB é muito mais – e vice-versa, claro. Quando as pessoas debatem apoiando-se implicitamente neste argumento, que mais dizer? Diante disso, talvez convenha conferir legalidade à corrupção. Assim os corruptos seriam poupados dos linchamentos e mentiras de que tanto se queixam, ofensivos à respeitável imagem social que querem ostentar. Vamos organizar um movimento para legalizar a corrupção, gente. Assim todos nos entenderemos e ninguém precisará mentir tanto para fingir ser o que não é. (17 de outubro 2014)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Águas Atlânticas


I - O Vento

Amo o vento.
O rumor do vento nos coqueirais.
Amo a memória do vento
O retinir dos cristais.
O vento sopro de um tempo
Carne gemente no cais.
Amo o que o vento carrega
Nódoa do fim
Nunca mais.

II – O Vento

O vento não tem memória
Em mim é que ela se faz.
O vento é só o vento que sopra.
Sou eu quem nele projeta
Memória, desejo e o mais
Que o converte em natura humanizada.
O vento é o vento mais nada
O nada qual nada eu sou.
Tenho desejo, memória
Sou mente e imaginação.
Mas onde raia o sentido
No nada que é o ser do vento
No vento que é minha razão?


III

Amo ninguém.
A vida já me pesa.
Pesam-me os anos vividos.
Pesa-me o tempo acordado.

Amo a paisagem além da janela aberta:
O ocre dos telhados manchando a verde
majestade dos coqueirais.
Amo o mar invisível.
Amo sobretudo a brisa que dos longes o anuncia.
Amo ninguém: assim ficou minha vida.

Porto de Galinhas, 23 de junho 1998.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Ela e o Tempo


Ela que era tão bela
Agora mira a janela:
Não aparece ninguém.
Janela da internet
Da casa ou kitnet:
Vagões vazios de um trem.

Ela que tanto reinou
Nas casas festas salões
Não viu que o tempo passou
Pulverizando ilusões.

Agora o espelho revela
A idade que borra e apaga
A chama da linda vela
Caída ao chão da sacada.
Tempo, sufocas Narciso
Com um travo cruel de riso.

Ela que era tão bela
Fecha em silêncio a janela
Que antes a iluminava.
E eu choro por mim e ela
Pois vi morrer a estrela
Que sobre a noite pairava.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mioca e Nino


Iam a caminho da praia, já noite fechada, quando ouviram um sopro débil vindo do beco escuro. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco. Ouviram outro sopro, este bem nítido: miau... Apuraram a vista e logo divisaram, no canto da parede, a gatinha encolhida e assustada. Depois de alguma hesitação, Marilena, tocada pela visão da gata encolhida e abandonada no beco, estendeu as mãos trazendo-a para perto de si.
“Minhoca. Agora você se chama Minhoca”. Batizou-a assim sem refletir.
Logo Cláudio, que a tudo assistia silenciosamente, corrigiu-a: “Não é Minhoca. Ela tem cara de Mioca. Não acha?”. Marilena assentiu e logo trocaram a caminhada na praia pelo socorro a Mioca. Voltaram para casa sentindo os pelos úmidos e sujos da gatinha cujos olhos assustados seguiam fixos e tensos os movimentos dos pais adotivos. Sim, sem que nada discutissem ou acordassem, desde já Marilena e Cláudio sabiam que iriam doravante cuidar de Mioca.
Mal chegaram em casa, cuidaram de lavá-la. Mioca trazia nos pelos e em todo o corpo as marcas sujas das ruas, dos buracos onde por certo se refugiou de longos dias de abandono. Marilena sentira o tremor do seu corpo magro, o arrepio dos pelos ao contato com seu próprio corpo. Imaginaram, ela e Cláudio, que sobrevivera a muitas privações. Depois do longo e cuidadoso banho, enxugaram-na com carinho e por fim lhe serviram leite e carne moída. Apesar da fome, Mioca começou comendo ainda desconfiada, olhos fixos em Marilena e Cláudio. Depois de se afastarem discretamente, temendo ainda assustá-la, deixaram-na comendo na cozinha e foram cuidar das medidas práticas para alojá-la na casa. No fundo do armário embutido, que era quentinho e recolhido dentro do quarto que compartilhavam, arrumaram o cantinho onde Mioca passaria a viver. E assim Mioca ganhou um lar e pais.
Na manhã seguinte, tão logo acordou, Marilena acercou-se do quartinho de Mioca, já de olhos abertos, sempre fixados nela com um misto de desconfiança e temor. Depois de tomá-la nos braços para levá-la à cozinha, notou-lhe o corpinho quente, como se estivesse febril. No decorrer do dia, apesar dos cuidados que lhe dispensaram, Marilena e Cláudio notaram que a temperatura do corpo indicava o estado febril que desde cedo lhes inspirara desconfiança. Resolveram então ligar para Rosa, a veterinária do bairro que uma amiga, protetora de gatos e animais de estimação, lhes indicara.
“Ela está realmente muito febril”, observou Rosa visivelmente preocupada. Depois de examiná-la demoradamente, enquanto Marilena e Cláudio aguardavam inquietos, Rosa decidiu que o mais seguro seria ficar com ela durante o dia na clínica para proceder a um diagnóstico mais preciso. Quando voltaram à tarde, Rosa lhes disse que o estado febril de Mioca era indício de uma enfermidade mais grave do que de início supusera. Em suma, não haveria como curá-la sem submetê-la a uma cirurgia.
Mioca foi operada no dia seguinte. Voltou para casa nos braços de Marilena com o corpinho magro protegido por uma roupa cirúrgica. Marilena e Cláudio acomodaram-na no seu cantinho e desde então passaram a cuidar dela com amor inquieto e sempre vigilante. O pior é que continuava doente e a cirurgia não cicatrizava. Todos os dias precisavam remover com paciência e zelo a roupa cirúrgica para renovar a aplicação de medicamentos e ataduras. Mioca miava temerosa e encolhia-se desconfiada, o que dificultava os curativos obrigatórios feitos por Marilena com a ajuda de Cláudio.
O tempo passou e nada de Mioca ficar curada. Diante disso, Marilena e Cláudio precisaram recorrer a outros veterinários indicados por Rosa, que se confessou incapaz de prover a cura necessária. Por isso numa certa manhã Marilena e Cláudio acomodaram Mioca numa cestinha confortável e bem aquecida e levaram-na de carro para ser examinada por Carmen, professora-veterinária da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Notando a expectativa apreensiva com que aguardavam a conclusão do exame, Carmen disse sorridente para Marilena e Cláudio:
“Pois é, amor dá trabalho. Qualquer amor, inclusive de bicho”.
“É o que vivo dizendo a Marilena, que aliás me dá muito mais trabalho do que Mioca”, respondeu Cláudio com laivos estudados de rabugice que sempre provocavam risos em Marilena e nos amigos já afeitos a seu humor travosamente divertido.
Ao fim dos exames, apesar do clima descontraído desatado pela conversa errática e carregada de simpatia recíproca, Carmen não lhes deu solução nem sossego. Seria preciso submeter Mioca a mais uma cirurgia. Depois desta vieram outras, assim como novas idas e vindas à Rural. Em casa, Mioca continuava submetida aos curativos diários. Apesar do cuidado amoroso com que lhe ministravam medicamentos e medidas de assepsia preventivas de agravamento da infecção, Mioca sempre se contraía temerosa.
Não obstante a constância e o amor de Marilena e Cláudio, bastante para desatar-lhe o olhar antes fixo e assustado, Mioca parecia viver assombrada por temores insondáveis. Se acaso recebiam uma visita, ela se entocava no seu cantinho. Como viviam rotineiramente reservados, as visitas eram raras. A mais freqüente era a de Gastão Fortuna, cuja notória avareza inspirava recorrentes piadas à língua cortante de Cláudio. Marilena ria com ambos. À medida que a amizade entre ela e Gastão se estreitava, apesar de ela aprender a defender-se da avareza dele escondendo algumas garrafas de vinho para forçá-lo à contrariedade de trazer alguma, Marilena foi gradualmente substituindo a reserva inicial pelo tom brincalhão e zombeteiro de Cláudio. Assim, a presença ocasional de Gastão somou-se ao ambiente da casa. Até Mioca, que sempre corria para a sua toca tão logo via Gastão entrando, até ela foi se resignando ao convívio com Gastão como se dissesse: entre tantas desgraças, que mal me pode fazer mais uma que de resto não me fere o corpo? Numa noite extraordinária, com a sala cheia de convidados alegremente bebendo e tagarelando, Mioca entrou na sala, para espanto risonho dos pais, e saltou sobre o corpo de Gastão. Como o feito inusitado não lhe custou nenhum dinheiro, Gastão riu com gosto enquanto alisava os pelos do corpinho magro e castigado de Mioca. Foi uma cena memorável na crônica daquela família minúscula cujo centro expectante era a possibilidade da cura de Mioca.
Econômico até no gasto dos afetos, Gastão Fortuna contava meticuloso os investimentos que fazia no convívio dos amigos. Talvez por isso fosse observador atilado dos comportamentos. Assim, passou a perceber o quanto a presença de Mioca curiosamente humanizara Cláudio. Pois este nunca fora de gastar muito afeto, nunca dele repontavam os desmandos carentes e efusivos do brasileiro movido pela indisciplina e o excesso. Suas motivações, distintas das de Gastão, emanavam de fontes improváveis, talvez de certa disposição cética que não raro deslizava para modos de cinismo pouco condizentes com as naturezas mais amorosas. Esse grão de amor e desvelo entrou-lhe na casa depois que passou a viver com Marilena. À percepção de Gastão, todavia, o vinco de ternura, de vulnerabilidade afetiva, isso proveio de Mioca arrastando pelos cantos da casa o seu martírio miado, sua dor renovada a cada cirurgia, a cada curativo, a cada infecção renitente e renovada. O certo é que passou a sofrer no cotidiano, Marilena ainda mais, a doença incurável de Mioca. Embora tanto dela cuidassem, tanto fizessem para curá-la, os fracassos das cirurgias sucessivas findou por abatê-los em certos momentos. Uma noite, enquanto bebiam vinho conversando sobre a sorte infeliz de Mioca, Cláudio acabou desabafando:
“Se Mioca não ficar curada, ou infelizmente um dia morrer dessa doença, não mais cederei à tentação de trazer outro gato para a nossa casa”.
Marilena assentiu, embora no fundo sentisse que aquela onda quieta e secreta de amor materno circulante no seu ser não seria abafada pelos desastres provenientes do seu amor por Mioca. Resignaram-se a sofrer por Mioca, a continuar lutando para curá-la, mas ficou ajustado que depois dela nenhum outro gato entraria no seu mundo privado.
9h da noite. O interfone toca. Cláudio e Marilena olham-se intrigados. “Quem será, Leninha?”
A voz do porteiro: “Professor, seu Gastão e uma amiga dele perguntam se podem subir”.
“Agora essa, Leninha. Basta a gente se esquecer de passar a chave na porta e logo Gastão vem se enfiando casa adentro. Filho da puta!”
Cláudio lembrou-se a tempo de pedir a Marilena para esconder as garrafas de Bordeaux e os dois litros de Jack Daniel`s comprados naquela manhã no Carrefour. Tinham feito a feira etílica precisamente naquele dia. Quando Marilena levantou-se para remover as garrafas da mesa, Gastão e a amiga entraram.
“Ora viva! Temos bebida fina na mesa. Isso quer dizer que chegamos na hora exata”. Abraçou Cláudio, que remoia o desejo de estrangular o sovina impertinente, e disse para Marilena: “Marilena, esta é Miss Haig, minha amiga de aventuras literárias e sobretudo de copo”.
Marilena trocou dois beijos convencionais com Miss Haig e foi logo perguntando:
“Seu nome é mesmo Miss Haig?”
“Não. Na verdade me chamo Maísa. Fui rebatizada por um amigo de Gastão cujas garrafas de Haig bebi com tanta avidez que ele, por vingança ou troça, passou a me chamar assim. Eu e Gastão gostamos tanto da brincadeira que prontamente adotamos minha nova identidade. Como acho que a nossa identidade é uma ficção ou mera convenção social, troquei de nome tão à vontade que passei a me reconhecer como Miss Haig. Portanto, querida, fique à vontade para me chamar Miss Haig. Aliás, já que temos Jack Daniel`s na mesa, não faço nenhuma discriminação. Sou pluralista em matéria de uísque.”.
Depois do primeiro gole, Gastão desviou o rumo da conversa para justificar a inconveniência da visita: “Cláudio, você sabe que sou um humanista, talvez o último. Preocupa-me ver você e Marilena fechados nessa devoção anti-humanista à doença de Mioca. Quero resgatar vocês para o convívio humano, para os inefáveis prazeres do convívio humano”.
Mais uma vez Cláudio ficou com os inefáveis de Gastão atravessados na garganta. Se havia um adjetivo que Gastão usava com reiteração perdulária, era por certo inefável. Na voz de Gastão, os poetas pernambucanos eram inefáveis, fossem quem fossem. O que parecia importar para seu gosto poético era o timbre do registro de nascimento. Se era poeta pernambucano, era com certeza autor de poemas inefáveis. Inefável era também o futebol de Gérson e, no presente, de Toni Kroos, o cérebro da seleção alemã. Inefável era a música de Roberto Carlos. Inefáveis eram os vinhos franceses, que por alguma razão insondável bebia sempre nas adegas alheias.
Depois de muita bebedeira e tagarelice, Mioca entrou na sala cosendo o corpinho frágil pelos cantos da parede. Para surpresa de Marilena e Cláudio, voltou a saltar sobre a barriga de Gastão cujo humanismo estava bêbado demais para afagar-lhe os pelos. Mioca recolheu sua ousadia, escorregou do sofá para o chão e se foi de volta para o seu refúgio novamente cosendo o corpo aos cantos da parede. Cláudio observou a cena acabrunhado e por fim cuspiu entredentes: “Monstro sovina!”
Gastão e Miss Haig saíram tarde da noite, ambos visivelmente embriagados. Cláudio e Marilena, exaustos e também bêbados, foram dormir desejando que a blitz da tolerância zero no trânsito obrigasse o casal de salteadores a engolir o bafômetro.
No dia seguinte, ainda remoendo as agruras da véspera e a ressaca, tiveram que pegar a estrada, pois Mioca precisava submeter-se a uma nova cirurgia na Rural. O trânsito estava mais infernal do que o previsível. Assim, a viagem foi longa e lentíssima, exigindo de ambos uma paciência excepcional. Na verdade, Cláudio logo esgotou a que lhe restava e danou-se a maldizer a imobilidade progressiva do trânsito recifense. Não fosse o amor que devotavam a Mioca, jamais atravessariam quilômetros esburacados e intransitáveis para alcançar um destino tão distante. Mas Mioca precisava daquele sacrifício e o amor custa caro, lembrou Cláudio rosnando contra o ruído das buzinas impacientes.
Voltaram já no início da noite. Mioca, acomodada na sua cestinha confortável, miava miúdo, por certo sentindo dores provocadas pela nova cirurgia à medida que o efeito do anestésico regredia. O desejo de Marilena e Cláudio era dar conta das necessidades imediatas, tomar um banho e depois cair na cama. Mas estavam tão exaustos, tão estressados pelos rigores do dia e da véspera que decidiram caminhar um pouco no calçadão da praia. Assim talvez relaxassem e pudessem voltar para afundar no sono restaurador de que tanto precisavam.
Iam a caminho da praia, próximos ao beco escuro de onde há meses recolheram Mioca, quando de repente ouviram um sopro nítido provindo do mesmo lugar: miau. Detiveram-se, deram alguns passos em direção ao beco escuro e logo divisaram um gato lindo de pelos negros e abundantes. Miau, miau, repetiu o gato olhando-os com a confiança dos deserdados aventureiros e saudáveis. Cláudio não se conteve:
“Nino. O nome dele é Nino, Leninha. O nome desse moleque safado é Nino”.
Marilena assentiu: “Que gato lindo, Cláudio. Vamos levá-lo para casa”.
E assim Nino entrou afinal nesta história que começa com quatro patas de gato e acaba com oito. O resto não conto. Adianto apenas que o final não foi feliz, pois Mioca continua vivendo seu martírio sempre amorosamente assistida por Marilena e Cláudio. Em compensação, Nino tem beleza e saúde para humilhar Mioca e de resto provar que no reino da natureza, assim como no dos humanos, a justiça é um acidente e assim as desgraças e fortunas estão sempre desigualmente distribuídas. Aliás, já que falei em fortuna, Cláudio e Marilena mandaram Gastão Fortuna e Miss Haig ir beber noutra bodega. Já que até o amor custa caro, preferiram sensatamente gastar o que têm e podem com a doença incurável de Mioca. Nino compensa as perdas.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sus! é o SUS


O político ou publicitário que rebatizou o sistema de saúde brasileiro é por certo um erudito. O que não sei é se tramou a sigla sombria movido pela ironia sádica ou a compaixão cristã, uma das virtudes brasileiras que Gilberto Freyre louvava num dos seus surtos líricos. Como não sou erudito (tendo bem mais para o erro dito), vou logo desmanchando o mistério diante do leitor intrigado ao ler o título desta crônica. Descobri há muitos anos, quando era leitor apaixonado da poesia de Manuel Bandeira, esta interjeição intrigante: sus! Ele a enfiou num dos seus poemas, cujo título já não lembro. Fui do poema ao dicionário e assim fiquei sabendo que sus quer dizer eia, ânimo, coragem!
Os azares da vida e da idade tangeram-me ontem e hoje para o posto médico do bairro. Parado diante da fachada aterrorizante - recoberta por sujeira, buracos e ferrugem – li num arrepio a sigla do Sistema Médico de Saúde: SUS. A interjeição há tanto esquecida, eco do poema de Manuel Bandeira, repicou na minha memória. Armando-me de coragem, sobretudo resignação, subi lentamente a escada que conduz ao primeiro andar. Sus!, segui subindo os degraus toscos enquanto suava escada acima. Do térreo vazavam, através de uma porta, o ruído e a poeira de uma reforma. Onde quer que eu ande constato esta verdade dolorosa: vivemos arruinando a civilização que fomos incapazes de construir. Chego afinal à sala de espera e deparo o quadro previsível: gente pobre e feia, gente resignada e sofrida, gente vergada ao peso da opressão social que a castiga do berço ao túmulo. Enquanto uns tagarelam na sala quente e desconfortável, outros quedam desanimados, como que imersos num pesado torpor. A única coisa que me surpreendeu foi o fato de não divisar um aparelho de TV pendurado na parede ou preso a um cabo suspenso do teto. Sus!
Minha reação habitual é murar-me no meu egoísmo humilhado. Mas logo me lembrei de que o remédio mais eficaz para nossa dor egoísta é a dor alheia. Assim, virei-me para as pacientes mais próximas e comecei a entabular conversa. Logo fiquei sabendo que a Dra. Vera falta com freqüência. Como é de praxe nos consultórios, públicos ou privados, ninguém dá satisfação ao paciente, que no Brasil justifica o substantivo. Paciente no Brasil, notadamente do SUS, existe para isso mesmo: para ser paciente, apanhar calado, esperar sentado ou de pé exposto à vontade e aos caprichos médicos com a resignação fatalista de boi de matadouro. A Dra. Vera falta há três semanas e há três semanas dona Maria vem, espera e depois faz o caminho de volta resignada a voltar na próxima semana amparada pela esperança de que na próxima vez a Dra. Vera virá aliviá-la das suas dores. Sus!
Se eu fosse psiquiatra do SUS, prescreveria para meus pacientes este remédio milagroso: se quer esquecer sua desgraça, abra os ouvidos para ouvir a desgraça alheia. Não digo que se compadeça dela, já que nosso egoísmo é cada vez mais espesso e rugoso; basta ouvi-la com atenção suficiente para esquecer a própria. É um santo remédio e não custa nada. De quebra, o paciente infeliz que verte sua dor no nosso ouvido atento fala de si comovido com a nossa atenção. Quem não quer e precisa ser ouvido, ainda mais na adversidade? Abra os ouvidos para a dor do paciente ao lado e logo você esquecerá a sua. Foi o que fiz e assim perdi noção do tempo escoado naquele ambiente desolador.
Quando dei por mim, sentindo dor na minha coluna egoísta, foi porque gritaram meu nome do corredor. A Dra. Virgínia atendeu-me muito atenciosamente. Nada fez por mim, nem o SUS permitiria que fizesse, mas me atendeu com atenção e respeito. Preencheu um formulário informando-me de que estava me encaminhando a um oftalmologista, pois nada poderia fazer para desembaraçar os trâmites do meu processo. É claro que antes do oftalmologista virá uma nova fila cedo da manhã para obter uma ficha, se evidentemente muitos outros pacientes não se anteciparem ao meu relógio. Depois disso, outras horas de espera, outros transtornos previstos e imprevistos. Encurtando a consulta, como felizmente tenho o privilégio de trocar a burocracia fria e sórdida do SUS pelo dinheiro que gastarei comprando tudo no mercado, despedi-me da Dra. Virgínia com um buraco no bolso, mas muitas horas de vida e indignação poupadas. Sus! é preciso ser muito pobre ou demasiado avarento para obter remédio caro no SUS, ou qualquer outro serviço. Sus!
Quem diz que o Brasil é uma democracia social, ou que Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Roussef (arengas ideológicas à parte) elevaram-no a esta invejável condição, é inconsciente, iludido ou beneficiário irresponsável do sistema de dominação há séculos instaurado neste cativeiro tropical. Quem louva nossa suposta democracia social é quem nunca precisa mourejar dependendo de transporte coletivo, depositar sua segurança nas nossas instituições públicas, educar-se nas nossas escolas públicas, adoecer assistido pelo SUS. Sus! pois a servidão social continua viva e poderosa neste país formado sob os tacões do Estado patrimonial, do colonialismo e da escravidão.
Recife, 2 de setembro de 2014

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Máximas e Mínimas XII


Os sonhadores sonham com a inconsciência de que há sonhos que produzem pesadelos.
Cheguei enfim à idade em que as mulheres amáveis me vêem fotografado à beira mar e dizem: “Que bela foto! Que bela paisagem marítima!”
A vaidade é uma doença incurável que se agrava com o passar dos anos.
Somente um materialista grosseiro acha que pão é necessidade e circo é apenas diversão e alienação política.
A única contribuição da Inglaterra à história do futebol foi o pontapé inicial.
Cheguei afinal à idade em que entro na fila dos idosos sem que ninguém proteste chamando-me de fura-fila.
Se os ingleses pecam por excesso de civilização, os brasileiros pecam por excesso de esculhambação.
Intercâmbio cultural:
Os melhores daqui vão para lá
Os piores de lá fogem pr`aqui.
O que caracteriza o cético autêntico é o estado de dúvida permanente inspirada pela busca da verdade decorrente da argumentação racional. Por isso seus principais inimigos são o dogmático, o crédulo e o cínico.
A saudade é uma traição da memória.
Uma das poucas virtudes da democracia é provar que não há diferença significativa entre Fernando Collor e Luís Inácio Lula da Silva. Basta elegê-los para a presidência e ver o que fazem no exercício do poder.
Não é por não acreditarem em belas abstrações como “a grandeza do futuro do Brasil” que não levo a sério os políticos brasileiros. Queria apenas que acreditassem e lutassem por um futuro melhor para os seus filhos. Essa forma salutar de egoísmo traria benefícios enormes para o país. Infelizmente, até o egoísmo deles é cego.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O Ouvido


Um ouvido vaga pela cidade
Em busca de uma voz musical.
Na longa jornada do dia
Vai de um ao outro extremo
Através de uma compacta massa de veículos
Aspirando fumaça tóxica num mar congelado.
Ouve o ruído incessante
Impropérios e buzinas
Sangue no asfalto, corpos
Abatidos como aves mecânicas.

Um ouvido vaga pela cidade
Em busca de voz humana.
O estampido de assaltos
Armas de fogo abatendo
Ratos errantes nas ruas.
O mar poluído recolhe
Suas ondas e sobre a areia recoberta de lixo
O ruído das gentes se alastra
E a festa, o batuque se sucedem
Ressaca sobre ressaca.

Um ouvido luta no deserto, na noite
No escuro da sala captando em meio às balas e o fogo
A música suprimida da cidade.
As janelas, invadidas do dia à noite,
Estremecem com o ruído da construção civil.
Nos andaimes suspensos sobre o vazio
Os escravos martelam sua servidão.
Um corpo cai, outro é soterrado e segue
Indiferente o imperturbável ruído do século.

Um dia o silêncio reinará sobre o Brasil
Talvez apenas quando tudo seja já extinto
E reste apenas o vento soprando
No deserto de tudo o deserto que regamos
E empilhamos sobre a terra devastada.
Mas então já não haverá ouvido.

Recife, 19 de julho de 2014

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Condicional


E se a gente chorasse
Chorasse como quem risse
Como quem lembra e esquece?

E se a gente partisse
Partisse como quem fica
Como um ateu reza a prece?

E se a gente amasse
Amasse como quem perde
E ganha? E então recomece

O incerto jogo da vida
Que até cansada e falida
Já quase desfalecida

Dá outra volta, outro giro
E morre com o suspiro
De quem da morte adormece?

E se a gente morresse
Morresse como quem vive
Como a manhã que anoitece?

E se enfim no meu nada
No fim dessa longa estrada
Deus tudo fosse e pudesse?

Recife, 02 julho 2014.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O botequim de João Ubaldo


Esta crônica, com algumas velas de obituário, é culpa de João Rego. Logo, já começo solicitando ao leitor certa compaixão crítica que não precisa ser estendida a João, xará do que morreu, pois as besteiras que aqui vou verter decorrem do seu encorajamento. Pondo ordem no defunto, pois a morte é definitiva e portanto não se faz com emendas, João Rego me reprovou com razão o fato de escrever com espírito de demasiada responsabilidade. Já nos bastam a seriedade da vida e do trabalho, acrescenta ele astutamente. Desse modo, façamos a revista Será? mesclando alguns grãos de galhofa e cachaça às tolices que escrevemos. E assim, seduzido pelo Vadinho que malandramente salta das cordas do violão de João Rego, vou me aboletando sem nenhuma responsabilidade no botequim de João Ubaldo.
João Ubaldo viveu de modo perigoso para a autonomia da sua obra literária. Quero dizer, fazendo de si próprio um personagem tão sedutor e exposto à corrente mitológica gerada pela mídia, acabou sendo talvez mais importante do que a obra que escreveu, mais personagem do que aqueles tramados por sua imaginação literária. Há por certo nesse velório festivo que seguimos, transportando para o túmulo nosso defunto de botequim, muita gente que conhece o defunto sem todavia conhecer a obra que legou à nossa tradição literária. Muitos que ignoram sua obra e seus muitos personagens sabem muito bem de um outro personagem, o autor, que transportou a ilha de Itaparica para o mapa da nossa literatura.
Como nosso amigo Luciano Oliveira, que infelizmente não cedeu à insistência dos meus telefonemas para escrever esta crônica, João Ubaldo batia o ponto infalivelmente no seu “escritório” onde se misturava “ao povo brasileiro”. Embora as expressões aspeadas suponham a agregação sem fronteiras de gente procedente de todas as origens sociais, o que nelas reponta é antes de tudo o povo narrado e celebrado nas páginas de João Ubaldo e do seu padrinho literário e amigo Jorge Amado, que também já regrediu ao útero da mãe natura a quem abençoo e culpo por estar neste mundo.
João Ubaldo tanto concorria com a sua obra que foi ontem celebrado no Jornal Nacional. Do botequim de Itaparica ao fardão da Academia Brasileira de Letras, cujo patrono supremo jamais abriria a porta daquela instituição vetusta para sentir o bafo de cachaça desse baiano irreverente e despachado, não se ouviu choro nem vela, mas a consagração do ser vivo, do homem João Ubaldo louvado por famosos e anônimos de muitos extratos sociais da nossa cultura. Ora, isso é justo, antes de tudo comovente, mas o leitor espera que aqui exponha alguns fiapos de razão passíveis de justificar a fama do defunto. Afinal, não foi por beber cachaça com o povo e celebrar a vida nas galhofas e estripulias dos botequins que João Ubaldo se tornou um substantivo singular ou um João indivíduo, não o João substantivo comum do Brasil.
E assim me apercebo da encrenca em que João Rego me meteu. Acenou-me um convite para induzir-me a escrever uma crônica de botequim, vertendo no texto antes cachaça do que algumas páginas suadas de cultura literária, e lá fui eu para a folia de João Ubaldo com o violão debaixo do braço e a cabeça vazia. Eis que agora me perco no labirinto que eu próprio construí com o barro da facilidade enganosa e preciso, antes que o defunto deite na vala, cavar uma vereda que de algum modo me transporte para a literatura e a estrada da vida.
Cavo então minha vereda lembrando o óbvio: ninguém, salvo Batata do celebrado Bacalhau do Batata, faz fama deitando na cama dos botequins. João Ubaldo viveu nos botequins misturado à folia cotidiana do povo brasileiro, mas suou muito decifrando os labirintos da cultura letrada. Além de nascer e se formar numa família onde essa modalidade da cultura ocupava papel central, desde cedo ligou-se por amizade e muitos modos de afinidade a gente como Glauber Rocha, prefaciador do seu primeiro romance, Jorge Amado, seu já citado padrinho literário e amigo, e foi ainda jovem reconhecido como escritor de primeira categoria ao publicar Sargento Getúlio. Além da carreira literária, consolidada pela composição de dois romances que se somam ao já citado para elevar o reconhecimento da sua obra (refiro-me literalmente entre parêntesis a Viva o povo brasileiro e O sorriso do lagarto), foi jornalista, roteirista, cronista prestigiado de importantes periódicos nacionais e internacionais. Por fim, já que nenhum escritor vive somente de botequim e cachaça, tanto se excedeu nestes prazeres, os do botequim e da cachaça, que muita gente se enganou supondo bastarem para a consagração literária. Como reza a frase famosa, embora talvez já esquecida, ledo e cego engano que esta crônica irresponsável é a primeira a empurrar para as trevas do dolce far niente dos botequins.
Concluindo, apesar de todos os despropósitos que aqui deito e enrolo, João Ubaldo suou muito o suor de todo artista merecedor de acolhida nos reinos da arte imaginativa que ele soube honrar. Por isso sua morte desperta tantos louvores, inclusive do povo que nunca o pôde ler, mas celebrou seu mais importante romance, O povo brasileiro, convertendo-o em samba-enredo num carnaval já remoto cujo ano esqueci. Mas continuaremos lembrando João Ubaldo. Quero dizer, lembrando e lendo sua obra, pois esta é tudo que fica.
Recife, 19 de julho de 2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A Arrogância do Futebol Brasileiro


Alguém teve acaso a curiosidade de ler as frases escritas na fachada dos ônibus das seleções participantes da Copa do Mundo? O que atraiu minha curiosidade foi ver hoje numa reportagem do Jornal Nacional, ainda sobre a humilhante derrota do Brasil para a Alemanha, a que escolheram para o ônibus da seleção brasileira: “Preparem-se! O hexa está chegando!” Cotejei-a com as das demais seleções. Quase todas invocam o espírito de orgulho nacional, unidade nacional, exaltação mítica da nação, espírito competitivo e guerreiro, valores enfim previsíveis em um contexto de competição esportiva entre nações.
Embora grande parte dos atletas participantes de fato já não representem seleções nacionais, diluídas pela expansão do capitalismo global (basta pensar na seleção brasileira, integrada por muitos jogadores desconhecidos da nossa torcida), o fato é que a Copa desperta um sentido de orgulho nacional que sobrevive antes de tudo como ideologia. Quero dizer, os valores nacionais que celebramos, ou nossas projeções míticas, não mais correspondem aos fatos que regem o futebol global. Dizendo melhor, grande parte dos jogadores não representa de fato suas nações de origem. São uma legião estrangeira. Se quiserem uma expressão mais forte, são como um exército mercenário, ávido de vestir a camisa do clube que paga melhor. Acabada a Copa, com ou sem título, cada um volta para o seu clube, que no geral nada tem a ver com a nação de origem dos jogadores. E convenhamos: o sonho de todo Neymar, de todo craque brasileiro, é jogar na Europa para conquistar fama e fortuna. Defender a seleção brasileira é apenas a cristalização desse sonho.
Voltando ao assunto inicial, a frase adotada pelo Brasil é muito significativa pelo que contém de previsão arrogante. É a única que dá como favas contadas o grande vencedor, o campeão supremo. O hexa foi anunciado antes mesmo de a Copa começar. Isso diz muito da arrogância que sempre regeu a cadeia emotiva do povo brasileiro, um espírito sempre marcado pela arrogância de ser o melhor. É por isso que mergulhamos sempre no apagão e afundamos na perplexidade quando sobrevém alguma derrota decisiva. Não bastasse tanto, a mídia, de forma praticamente absoluta, despreza a mais elementar noção de critério ético, isto é, de isenção informativa. Por mais discutível que seja a ética regente da ação da mídia, investida de força persuasiva e manipulativa num mundo unificado pela revolução comunicativa, ela precisa atender a um ponto mínimo de consenso irrefutável: a isenção informativa.
É claro que os profissionais do esporte, em qualquer lugar do mundo, cultivam suas paixões individuais irredutíveis, sobretudo as que envolvem competições internacionais. No entanto, o fato de torcer não anula a possibilidade, diria mesmo o dever ético, de preservar na medida do possível o caráter isento da informação. Galvão Bueno, locutor simbólico de todas as participações da seleção brasileira em competições internacionais, desmente de forma deslavada o critério de ética midiática elementar que aqui invoco. Este fato está tão entranhado na nossa mentalidade futebolística que nunca ouvi ninguém, nem o mais isento e consciente dos torcedores, dizer uma palavra sobre essa aberração nacionalista, com freqüência levada ao extremo da incitação à arrogância e desapreço pelos adversários.
No fundo, desde pelo menos o tri-campeonato de 1970, trocamos nosso espírito de vira-lata, como disse Nelson Rodrigues, pelo do “melhor futebol do mundo”. Um pouco de humildade, ou pelo menos realismo, não faz mal nem ao maior dos vencedores. Nesse sentido, a seleção alemã e várias outras nos dão uma lição que não sei se somos efetivamente capazes de aprender, ou sequer perceber. Eis o que diz a frase adotada pela Alemanha: “Uma nação, uma equipe, um sonho!” Talvez eles, os alemães, tenham ainda memória do que lhes custou, também ao mundo, sua utopia racista de cujas entranhas irrompeu a maior catástrofe da história da humanidade. Sei que a analogia é um tanto descabida, mas nos dois casos ela tem a ver com o que o nacionalismo agressivo e arrogante tem de pior, seja no futebol, seja na política. Felizmente nossa arrogância, nosso orgulho nacional, tantas vezes acintoso, fica confinado à esfera do esporte. Mas só um fanático ou um inconsciente encara o futebol, e o esporte em geral, como mera expressão gratuita e louvável do prazer lúdico inscrito na natureza humana. Embora o futebol esteja longe de ser uma guerra, nem por isso deixa de ser uma guerra domesticada pela civilização.
Queria por fim ressaltar duas coisas: 1-Minha convicção, reiterada durante toda essa histeria das massas orquestrada por uma mídia privada de qualquer critério de ética informativa, de que o irracionalismo do rebanho está entranhado no psiquismo humano; 2-O caldeirão do inconformismo popular vai voltar a ferver, infelizmente de forma anárquica, no geral como expressão de revolta sem nenhuma organicidade política. A desintegração humilhante do sonho do título, num país cujas carências são cotidianas e extremas, vai concorrer para agravar a rebelião reativa. Prevejo tais desdobramentos baseado apenas na minha percepção da realidade. Gostaria sinceramente de estar errado, tanto que espero ser desmentido pelo que virá. Mas é isso sinceramente o que prevejo isento de qualquer presunção de adivinho ou derrotado ressentido. Aliás, como ser um derrotado ressentido, se sempre vi e vivi o futebol como ele é para mim: apenas futebol? Minha convicção foi sempre e é a busca das reformas democráticas, que nunca interessaram aos que governam um país cujo povo nunca foi qualificado para adotá-las e defendê-las.
Recife, 9 de julho de 2014

domingo, 29 de junho de 2014

Tarde de Maio


Anoitece e a minha sombra
Tomba na tarde de maio.
O cão ladra e me assombra
O desejo de morte enquanto caio
Em mim e logo de mim saio
E fora, no mundo estou perdido.
No fundo o exaspero e esse latido
Fere-me os tímpanos e exausto
Tropeço indo de um a outro ouvido.

A tarde de maio que era clara já escurece
E a sombra antes tão quieta se esvanece
E voa e aos quatro ventos se dispersa.
Os cães ladram (agora tantos) e me abate
Em vão lutar com a arte, ingrato ofício
Em tempos que lhe são tão adversos.

Na noite já mergulho e o desamparo
Fura-me os olhos e prende-me a garganta.
Os cães ladram, as serras fendem o ar
E o desejo feroz quase me espanta
Fremir nesse desejo de matar.
Recife, maio 2014.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Medo de Amar


O meu amor que temia
De tanto amor se perder
Quedou na vida vazia
Doente de se doer
De tudo que não se deu
De tudo que é vão emprego
De ausência de amor morreu
Amante só de seu medo.

Recife, 23/07/06


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Natureza


No ruído da tarde um livro transporta-me
Para um mundo há muito perdido.
As imagens fluem na minha solidão
Como uma luz, uma forma de beleza
Que já não há dentro ou fora de mim.
Pontos luminosos no céu
E um mar remoto
Refúgio da minha solidão
Dentro da natureza sem gente.
Isento de consciência verbal
Vivia então um sentido de epifania
Inacessível à realidade presente.
Tornei-me natureza cindida da natureza.
Recife, maio 2014.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Mutações


Selene é nome de deusa
Forma vestindo outra forma
Sopro de sons perfazendo
Modos secretos de ser.

Ci é do ser variante
Redução da estranha deusa
Que arcanas mitologias
Derramam sobre o presente.

Quantos mistérios segregam
As línguas e suas formas!
Os nomes são mais que nomes
Mais que matéria impressa
Pelo humano destino.

No tempo que os transporta
Novas figuras moldando
A deusa se faz mulher
Que fica, embora passando.
O amor sopra a memória aonde quer.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Máximas e Mínimas XI


Muita gente ama a vida porque não suporta a realidade. Raros os que amam a vida real.
Amo você como você é. Não se ouve frase mais banal e inconsciente na linguagem dos amantes. Por isso os amantes mentem tanto. Se eu pudesse realizar meu ideal de felicidade no amor, diria que esse ideal consiste no seguinte: amar dentro da verdade, ser feliz tendo a verdade como princípio. Infelizmente, me confesso incapaz disso e nunca conheci ninguém capaz de converter esse ideal em realidade. Portanto, convém amar nossa imperfeição tantas vezes mentirosa ou consolar-se amando gato e cachorro.
Uma relação de ódio pode consumar-se no flash de um gesto ou palavra. O amor, entretanto, precisa sempre e sempre dar provas de si: do quanto é generoso, atencioso, desprendido, quente, protetor, fiel, luz acima das meias tintas cotidianas dentro das quais movem-se nossas existências insignificantes. Ai dele se não transpirar no calor e espirrar encolhido dentro do frio. Ai dele se, depois de dez anos de estrita fidelidade, chover no verão ou menstruar em pleno desfile de moda. Ai dele se entoar uma marcha fúnebre na madrugada do segundo dia de carnaval ou dançar um frevo no velório da sogra assassinada. O ódio, por outro lado, não requer qualquer talento ou virtude. É tão fácil quanto ferver água ou dormir de olhos fechados. Por isso às vezes não resisto à recorrência do fracasso e assim me rendo desolado: "Caramba, estou cansado de amar!" (agosto de 1993).
O Brasil passou de colonial a subdesenvolvido, em seguida a país em desenvolvimento, daí a país emergente. Subimos tanto e todavia continuamos atolados no mesmo buraco.
A política denuncia como uma fratura exposta o pior da nossa natureza. É por isso que corro dela. Não é que me suponha apolítico, já que ninguém o é. Simplesmente admito ter o nariz delicado demais para suportar a cru meu próprio cheiro.
Ideologia é a fé secular de quem é incapaz de andar sem a muleta de uma religião.
O otimista é um pessimista mal informado.
Otimista é quem despreza os fatos que desmentem sua expectativa.
O pessimista não é quem vê e espera o pior da realidade; é simplesmente quem aceita a realidade como ela é.
Tanto buscamos o amor, por certo o sentimento e a experiência suprema da nossa vida, e todavia como tão mal e erradamente o vivemos. Juramos amar aceitando o outro como ele é. No entanto, contradizemos essa promessa generosa, pois somos incapazes de transcender o egoísmo que rege nossa natureza. Se amar é um ato de doação, sair de si para se dar ao outro, por que tantos amantes não saem de si próprios?
Se houvesse no ser humano um grão de sabedoria, ele adotaria como princípio ser fiel à sua natureza. Somos, contudo, tão inconscientes do que somos que confundimos a função do papel higiênico com a do guardanapo.
Os céticos antigos diziam que a vida não era para ser levada a sério. Mas no Brasil, convenhamos, a gente exagera.
Inconsciência, teu nome é Brasil!
A vaidade é uma variação ruidosa da estupidez.
As pessoas não suportam o silêncio porque temem ouvir a sua voz irredutível.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Questão de polícia?


A violência crescente no Brasil me fez recordar uma frase famosa atribuída a um presidente da República Velha: A questão social é uma questão de polícia. Vai sem aspas porque cito de memória. O autor da frase, Washington Luís, expressa assim, de forma chocantemente reveladora, a mentalidade profunda da nossa classe dirigente. Ela pensava assim nos idos da década de 1920 e continua pensando tal e qual: questão social no Brasil é questão de polícia. Quando o povo tratado como gado se organiza para reivindicar o direito de ingressar no espaço da cidadania efetiva, não esta de clipe publicitário e propaganda oficial que vemos todos os dias paga pelo dinheiro do contribuinte, a classe dirigente, fiel à sua tradição, solta a polícia nas ruas, favelas, onde houver povo lutando para ser politicamente reconhecido como povo.
Quanto maior a pressão na panela, maior a força de repressão policial. Noutros termos, o governo de hoje continua fiel ao espírito da frase de Washington Luís. O mais inquietante é que a pressão na panela é crescente. Depois de séculos usando o mesmo remédio para sufocar problemas que logicamente tendem a agravar-se, o risco de a pressão estourar a panela não é nada improvável. Não me refiro a nenhuma revolução social, alerto os extremistas à esquerda e à direita. Refiro-me a uma explosão de violência cujos sinais são cada vez mais manifestos. O noticiário banal, cada vez mais um caso de polícia, assim como o cotidiano violento dos formigueiros urbanos onde se concentram cerca de 80% da população brasileira, são indícios inegáveis de um país às bordas de uma guerra civil. Somos incapazes de perceber a gravidade dessas evidências por uma razão muito simples: nossa violência está entranhada na nossa formação e história. Seres humanos tendem a ser espontaneamente etnocêntricos, isto é, tendem a aceitar como padrão de normalidade a realidade que vivem. Se vivemos num clima de violência rotineira, como é fato, passamos a viver a violência, também a exercê-la, inconscientes dessa realidade, ou simplesmente vivendo-a e tolerando-a como padrão de normalidade.
Até Paulo Coelho, guru supremo da literatura de auto-ajuda globalizada, vaticinou há poucos dias, em entrevista difundida na internet, a violência que muitos temem sacudir a Copa do Mundo. Embora convidado oficial da Fifa, o escritor, que há muitos anos vive fora do Brasil, como tantos que podem dar-se a esse luxo, recusou o convite. Vem ao Brasil apenas quando necessário. Como o futebol da Copa do Mundo não lhe parece necessário, e nisso afinal concordo com ele, melhor guardar distância dessa festa planetária que, a julgar pela previsão do guru, vai ter mais violência do que futebol.
Já que entramos neste assunto, futebol, por que a violência se agrava nos estádios, chegando, como é agora o caso, a extremos de barbárie aberrante? Quem sou eu para explicar essas coisas, muito menos propor solução para elas. Se as autoridades e especialistas parecem impotentes para conter a maré montante, que dizer de mim? Digo apenas que o fenômeno me transporta de volta à frase de Washington Luís. Embora o problema seja de extrema gravidade, e crescentemente se agrave, a classe dirigente, fiel ao jeitinho brasileiro, continua empurrando o problema e a solução com a barriga. Dá-se um jeitinho aqui, outro acolá, e tudo continua como está. Quero dizer, piora. Agora essa evidência indesejável salta aos olhos. As medidas tomadas pelo governo são foguetório para inglês ver, como se dizia em remotos tempos coloniais.
Compreender o funcionamento social e cultural do Brasil é uma coisa tão complicada que até nos casos em que a questão é nitidamente de polícia o governo se comporta como se a questão fosse de campanha educativa, medidas paliativas, declaração pública de boas intenções (quase me escapa o desfecho das intenções com o lugar comum previsível) e exortação midiática contra a violência seguida de louvores à paz. Em suma, tudo continua como vinha. Quero dizer, continua pior. Muitos dos casos de violência corrente são típicos de uma cultura regida pelo excesso, que na sua aba negativa descamba para a anarquia social. Isso está entranhado na nossa história. Não vem de hoje, portanto, nem de circunstâncias excepcionais. Sérgio Buarque de Holanda põe o dedo agudo nessa ferida quando salienta nossa mentalidade de barão. Como nunca fomos capazes de constituir uma ordem verdadeiramente democrática, quem pode tende a se comportar como barão. Como há barão em demasia, por vezes a desordem se converte em anarquia social. É aí que a maioria, sem excluir muitos democratas e liberais empedernidos, convoca o primeiro tirano à mão, ou as forças armadas. Esse é outro filme que já vimos muitas vezes.
Apesar de todo o foguetório de quase 20 anos sob o governo daqueles que supostamente constituiriam a alternativa legal para a classe dirigente que governa questão social confundindo-a com questão policial, o Brasil melhorou topicamente, evidência irrecusável, mas nada fez para sequer encaminhar as soluções estruturais mais urgentes. Depois de tanto repor o atraso como condição do desenvolvimento restrito a objetivos economicistas, apenas variando em grau a modernização conservadora imposta a porrada pela ditadura militar, chegamos ao impasse presente: a desigualdade iníqua, expressão que já virou lugar comum, atrelada a todos os problemas crônicos que vemos e sofremos nas ruas e no noticiário do dia: formigueiros humanos empilhados em metrópoles e cidades que semelham acampamentos urbanos, imobilidade urbana crescente, violência idem. O resto do filme todo mundo está cansado de ver: educação, saúde, segurança, transporte etc. aos bandalhos.
Quem ainda lembra a imprevisível e desastrosa ascensão de Fernando Collor, um jovem bonito das Alagoas cuja história política era praticamente nula quando saltou do anonimato para a presidência da República? Quem ainda lembra os mecanismos da publicidade astuciosa com que foi de um extremo ao outro? Fernando Collor vendeu com sucesso a imagem do caçador de marajás (expressão anacrônica cujo sentido continua atualíssimo) revolvendo assim a impotência e a revolta recalcada de um povo tratado como gado em hospitais públicos, repartições públicas etc. 26 anos mais tarde, continuo vendo o mesmo filme na televisão e na mídia em geral. É o filme que mais conheço sobre o Brasil, pois comecei a vê-lo na minha infância. Por essas e outras, o Brasil me transmite ainda a sensação depressiva de uma descrença paralisante.
Parece que o povo – ou a ralé do andar de baixo, como reza a expressão pejorativa repisada por profissionais da mídia – está cansado de ser gado. Ou simplesmente já não suporta o stress (como dizemos nós, os privilegiados, e o próprio brasileiro do andar de baixo já repete) que é viver e trabalhar no ‘Brasil de todos”, diz o mote insultuoso do partido que veio de baixo para se tornar igualzinho aos que sempre estiveram em cima. Pipocando de stress, o povo se rebela desordenadamente e agora parte para o quebra-quebra: queima ônibus e vagões de trem, fecha ruas e rodovias queimando pneus e imobilizando contingentes de veículos e pessoas ao longo de quilômetros nas vias ferventes de tensão e conflito. Raramente cenas dessa natureza são provocadas por grupos politicamente organizados. Portanto, não se trata de mobilização política do povo. O fenômeno sugere antes o desatino de um povo no limite da exaustão decorrente de formas endêmicas de opressão social. O que fará a classe dirigente diante de pressões tão inquietantes e incontroláveis? Continuará seguindo a regra crua da frase procedente de Washington Luís?
Há muito tempo, entre 1896-97, milhares de sertanejos nordestinos escaldados pela miséria tentaram fundar uma cidade comunitária regida pelo messianismo de Antônio Conselheiro num fim de mundo do mapa da Bahia. A Guerra de Canudos, desencadeada pelo exército brasileiro contra os canudenses, foi sem exagero um acontecimento épico na história do Brasil. O desfecho ilustrou de forma brutal a frase que Washington Luís cunhou algumas décadas mais tarde. Os canudenses foram literalmente varridos do sertão depois de exterminados até o último combatente. Seus herdeiros, no mato sem cachorro, ou Fabianos sem Baleia, para evocar a obra de Graciliano Ramos, migraram para a cidade. Muitos, absorvidos pelos mecanismos produtivos do nosso capitalismo selvagem, construíram tudo isso que vemos e desfrutamos à nossa volta. Constroem durante o dia e à noite tentam repor a força de trabalho transportados de volta à periferia como gado em ônibus, trem e metrô. Outros, os mais desvalidos, moram provisoriamente nas obras que erguem tijolo sobre tijolo. Mas uma grande fração desse povo é inassimilável ao sistema produtivo. Por isso engrossa a corrente do que Marx chamava de lumpen proletariado. Hoje de manhã vi um deles (militante do Movimento dos sem Teto) ocupando um prédio no centro de São Paulo. Sua procedência, seu lugar social era inconfundível: o tradicional chapéu de couro do sertanejo nordestino banido da utopia sonhada por Antônio Conselheiro. A imagem na televisão piscava para quem sabe das origens. Parecia advertir: Canudos está em São Paulo e quer o que o beato Conselheiro e Padim Ciço prometeram aos desvalidos deste país. Qual será a resposta dos herdeiros de Washington Luís? Aguardem o próximo capítulo. O guru Paulo Coelho prefere sensatamente espiar à distância guarnecido pela civilização europeia. Mas nós estamos aqui, espremidos entre a questão social e a policial. Não haverá uma saída?
Recife, 07 de maio de 2014.

domingo, 25 de maio de 2014

Nos Murais da Internet IV


Paranóia Social
Antes que alguém me acuse de psicologizar questão social, alerto para o fato de que onde há fumaça, há fogo, lembrando o dito popular. Paranóia não é puro delírio ou alucinação patológica. A paranóia tem sempre um pé no contexto social, no espaço real onde o paranóico pisa. Acabo de dar uma volta de carro pelo bairro onde moro (Setúbal e algumas extensões). Não consegui nem comprar pão. Quase tudo fechado, até clínica de hidroterapia. Perto da praça de Boa Viagem vi um automóvel em chamas e gente fotografando a cena. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Há sem dúvida paranóia no ar, mas o fogo está queimando no solo onde ela pisa. Nenhum povo vive sem mitos, como nos ensinam os antropólogos. No entanto, triste de um país que vive de mitos, como é o caso do Brasil, a começar pelo mito do país da esperança. Aliás, este cabe como uma luva na nossa mão torta. Só se espera o que não se tem. É o caso dos brasileiros. Lembrem do contramito cantado por Chico Buarque: está provado, quem espera nunca alcança. Há só um remédio para a esperança: a vontade que gera ação transformadora. (15 de maio 2014).
Consumo versus civilização
Definindo civilização nos termos mais simples e neutros, o ser civilizado é aquele que respeita as normas de funcionamento da sociedade em que vive. Ninguém nasce civilizado. Internalizamos essas normas através de um longo e complexo processo de socialização que começa na família e passa para a escola, a religião e outras instituições socializadoras. No Brasil, nenhuma delas funciona efetivamente. A sociedade de consumo, na qual somos o que consumimos, ameaça ainda mais esses controles sociais. Os que têm vivem no shopping, templo desse novo mundo. Os que não têm sitiam o shopping e extensões da rede de consumo empilhados em favelas. Esses mundos antagônicos definem a paisagem potencialmente violenta da cidade brasileira. Quando a polícia cruza os braços, os que têm fecham as portas para proteger-se do saque desencadeado pelos que não têm e são de ordinário contidos apenas pelo medo da polícia e dos automatismos cotidianos da vida social. Os que têm fecham as portas e os que não têm começam a arrombar as que podem. Foi o que vimos e tememos nos dois dias de greve da polícia. (16 de maio 2014).
Volta à normalidade
No dia seguinte ao fim da greve dos policiais e bombeiros, repeti a volta de carro da véspera pelas redondezas. Que prazer respirar novamente esse ar de normalidade recifense! Na Av. Boa Viagem os motoristas, em pleno trânsito confuso, conversam ao celular, furam sinal vermelho, estacionam onde é proibido. A transgressão habitual. Na curva da Rua Baltazar Passos, por pouco não atropelei um ciclista pedalando na contra-mão. Ciclista no Recife acha que bicicleta (ou Bike, como colonizadamente dizemos) não é veículo. Diante da escola, o engarrafamento previsível provocado por pais que formam fila dupla e até tripla. É assim que nossas crianças são socializadas. Do parque Dona Lindu nem falo, pois num país civilizado seria caso de polícia. Por fim, almoçando no restaurante, ouço o dono e a cliente bela e elegante, almoçando com um casal de filhos pequenos, comentando os incidentes e saques da véspera:
Ela – Uma vergonha. Fecharam o mercadinho porque foi assaltado por dois bandidos. A polícia chegou a tempo e atirou neles. Matou um.
Dono do restaurante – que bom!
Em suma, que alívio voltar à normalidade. Espero que a gente continue sempre assim. Um povo que vive desse jeito não precisa de repressão policial. (18 maio 2014).

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Nos Murais da Internet III


A ditadura e seu legado
Caro Carlos Orsi: Muito bom o seu artigo sobre a ditadura e seu legado. As distinções que você faz, tendo como eixo o valor suprimido da democracia, esclarecem de forma sumária, como seria inevitável dentro dos limites do artigo, algumas confusões frequentes nos debates sobre o assunto. Acrescentaria apenas que a ditadura foi mais do que militar-civil. Ela foi também amplamente apoiada pelo povo, sobretudo pela via da passividade ou indiferença. Acho que a explicação deste fato, no geral silenciado até pelos críticos mais lúcidos e isentos, deriva do autoritarismo constitutivo da nossa formação social. Vivi boa parte dos “anos de chumbo” trabalhando numa fábrica e convivendo intensamente com operários, gente da classe média baixa e habitantes da zona açucareira de Pernambuco, linha de ponta da revolução que não houve nem poderia haver, salvo nas avaliações fantasiosas da esquerda e da direita paranóica, que usou isso como instrumento para justificar o golpe. Vivi com o outro pé na universidade estudando direito. Afora os gatos pingados que opunham alguma resistência à ditadura, antes de tudo no plano da consciência, o apoio à ditadura era massivo. Cansei de ouvir elogios rasgados a Médici e aos militares. Seria engano supor que essa mentalidade autoritária mudou muito. A democracia que você ressalta, e inteiramente aprovo, é de fato muito restrita, pois o Brasil mantém fora dela a maioria que somente poderia exercê-la se nossa noção de democracia se estendesse efetivamente para o plano social. Noutras palavras, precisamos ainda da democracia que nunca tivemos: a social, a que removeria a maioria do povo do estado de tirania social e econômica a que continua submetido. Não preciso acrescentar que somente ele, o povo, pode conquistá-la. (Blog Amálgama,27 de março 2014)

Estatismo brasileiro
Acho que só existe uma solução para o problema das estatais bem desenhado no editorial desta semana: privatizá-las. Privatizá-las, acrescento, impondo ao capital privado regulações efetivas impostas pelo Estado. Propor isso, no entanto, seria propor uma revolução que não interessa a ninguém, nem ao povo espoliado pelo modelo estatizante que sempre prevaleceu na nossa economia. Esse modelo, sabem os economistas e historiadores bem melhor que eu, remonta a Getúlio Vargas e nunca foi substancialmente alterado. Hegemônico na esfera econômica e política, sustenta-se sobretudo na mentalidade geral, que encara qualquer proposta de modernização segundo modelos como o anglo-saxônico como neoliberalismo – noutros tempos foi entreguismo. O modelo estatizante inabalável no Brasil serve antes de tudo como instrumento poderoso de espoliação do povo. (Revista Será?, 28 março 2014).

Petrobrás e estatais
Existe solução para as estatais que se servem da sociedade (do dinheiro do contribuinte, melhor dizendo), quando deveria ser o contrário. Existe solução, mas é difícil e de resto ninguém quer sequer pensá-la. A solução seria privatizar as estatais. Mas antes seria preciso submeter o Estado brasileiro a uma reforma profunda, que seria na verdade uma revolução: converter suas estruturas patrimoniais em instituições democráticas modernas características de uma autêntica social-democracia. No Brasil tal como é, esta solução é inconcebível. Portanto, tudo vai continuar como sempre foi. Como observei algures, nunca subestimem o poder de inércia social do Brasil. Noutras palavras, a força das nossas tradições retrógadas. Somente a organização democrática do povo poderia forçar essas mudanças. Mas o povo nada sabe nem quer saber. O povo, domesticado por cinco séculos de tirania patrimonialista e catequese que afinal nos valeu um santo, continua achando que tudo deve vir do governo: o governo pai, atualmente mãe Roussef, e provedor. Com um Estado como o nosso, o Brasil continua sendo o paraíso do capitalismo sem risco, também das multinacionais e corporações que aqui fazem o que querem. (Revista Será?, 28 março 2014).

Radicalização e violência
Discordo da estranheza acentuada no Editorial da Revista Será?: Radicalização e Violência. A democracia que temos de fato é e sempre foi restrita. Ela exclui a maioria dos brasileiros. Liberdade de expressão, por exemplo, é um direito que importa apenas para a minoria que pensa e opina no Brasil. Não significa nada para a maioria que vive um cotidiano factualmente opressivo e violento. Nossa violência é endêmica e impregna nossos modos correntes de vida. É tão endêmica que nem a percebemos. O que me espanta é a persistência dessa percepção mítica de um país sempre representado como alegre, feliz e festeiro. Somos também isso, mas tudo isso convive com a violência. Portanto, nada de estranhável. Aliás, acho mesmo é que devemos nos inquietar não só com o que está acontecendo, mas também com o tom dos dois comentários dos leitores que precedem este meu, que diante deles é sinceramente banal e previsível, vindo de quem vem. Acho que o leitor de Será? deveria ler com muita reflexão o tom dos comentários acima. Eles são a faísca de uma violência social há muito reprimida neste país que me inquieta e transtorna minhas medidas de compreensão. (Revista Será?, 3 maio 2014).

Radicalização e violência II
Não resisto ao desejo de fazer uma adição ao meu comentário. O comentário de César Garcia parece o fragmento de um conto de Rubem Fonseca, escritor que ousaria dizer profético. Como sabemos, ele teve um livro de contos (Feliz Ano Novo) censurado pela ditadura. Se não soubesse um pouco de política, acharia irônica a censura a uma obra literária sobre a violência brutal no auge de uma ditadura. Acho sintomático o fato de o escritor que melhor traduziu literariamente a violência brasileira ter sido um delegado de polícia. Continuo achando que o conjunto da obra de Rubem Fonseca é o que melhor explica os formigueiros urbanos que habitamos. A classe dirigente brasileira, herdeira do colonialismo e do escravismo, continua governando a sétima economia do mundo com a mentalidade dos engenhos cujo fogo já se apagou há muito tempo. Essa é uma das contradições desconcertantes entre a história das mentalidades e a econômica. (Revista Será?, 3 maio 2014).

O despertar do gigante
Teresa Sales: Você tem razão ao assinalar distinções significativas entre dois tempos do Brasil “despedaçado”. No entanto, acho que sua apreciação é otimista demais ao traduzir as explosões sociais agora correntes com o despertar do gigante. Sem dúvida, ele está despertando em muitos sentidos. Mas o trote da carruagem, a julgar pelos fatos cotidianos, tende mais para a reação desordenada, para explosões sociais que, na falta de melhor expressão, designaria como movimentos pré-políticos. Um dos aspectos inquietantes dessas manifestações, como aliás ressalta o Editorial desta semana, é a violência, é a depredação anárquica do nosso frágil tecido social. Noto na revista uma concepção um tanto difusa de democracia que tende, salvo erro de avaliação minha, a confundir democracia com funcionamento das instituições políticas. Ora, isso é muito pouco para definir a estabilidade democrática de um país como o Brasil. Sustento a opinião de que a maioria, apesar do bolsa família e outras mudanças positivas, continua vivendo à margem de um Estado efetivamente democrático.
Enquanto não tivermos democracia social para valer, e estamos ainda muito longe disso, as forças de instabilidade, potencialmente anárquicas, são sempre uma ameaça possível. Minha perspectiva, como frisei discutindo com Sérgio Buarque, é a da longue durée, até porque não tenho competência como alguns da revista, para opinar com segurança sobre os processos vivos e conjunturais da política e da economia. Por observar o Brasil do ângulo acima acentuado, não consigo ser otimista. Uma análise mais adequada teria que incorporar as mudanças profundas do capitalismo global e o modo como ele funciona num país periférico como o Brasil, que nunca foi capaz de ajustar suas contas com a modernidade. Tentei sugerir algo disso no comentário que postei sob o título Consumo vs. Civilização. (Comentário sobre o artigo de Teresa Sales, O despertar do gigante, Revista Será?, 17 maio 2014).





terça-feira, 20 de maio de 2014

Nos Murais da Internet II


Brasil Insolúvel
Depois de tanto arriscar a própria vida em busca de uma solução para o Brasil, até para a humanidade, pois todo utópico é no fundo um delirante, Ferreira Gullar curvou-se à força dos fatos: a vida não tem solução. O verso é da letra que escreveu para um belo samba de Paulinho da Viola. O problema do Brasil, no entanto, é que ele é insolúvel além de qualquer medida razoável. Problemas básicos que outros países solucionaram, no Brasil persistem, quando não se agravam. Ao invés de lutar por soluções viáveis, algumas bem simples, preferimos nos refugiar na festa, na piada, em mitos consoladores como Brasil, país do futuro. O futuro está sempre além, aquém ou em nenhum lugar. Por isso nunca o alcançamos. Além do mais, o melhor dele é fruto de projetos do presente, que é o único tempo real. Mas nos resignamos a ser um país pequeno, cuja grandeza está apenas no carnaval e no futebol. Também nos consolamos com a esperança, sintoma de desamparo no presente. Só quem está muito mal é que vive de nutrir esperança. A esperança, como o futuro, está sempre além do nosso poder e vontade. Quando faremos do presente um presente que confirme nossa grandeza imaginária? (11 de março 2014)

Mobilidade carnavalesca
Tentei chegar à prévia do Piano, troça carnavalesca na qual cantei muitas vezes e vivi carnavais memoráveis. No Pina o trânsito deu um nó tão apertado que acabei perdendo a paciência e descendo do ônibus (opcional, friso). Precisei andar cerca de 7 km para afinal encontrar um táxi (na praça de Boa Viagem) e voltar para casa frustrado e cansado. Liguei a TV e então vi o povo nas ruas alegre e feliz. Fico imaginando o que sofreu para chegar aos pólos da folia e penso o que muitas vezes já pensei ao ver a resignação e tolerância com que nosso povo suporta tantas opressões cotidianas que logo se dissolvem em riso, batuque e festa. O que penso é isto: como o povo brasileiro se contenta com tão pouco! De onde vem tanta alegria e prazer de viver mesclados a um estado cotidiano de coisas tão opressivas e revoltantes? Confesso que não entendo nem louvo esse modo de ser brasileiro. Talvez ele explique o fato de sermos um país tão pequeno, tão pequeno que se consola com sua grandeza geográfica. Esse povo, transportado nas nossas cidades como gado, humilhado de todas as formas, se desmancha em festa delirante e inconsciente ao ouvir o bater de um tambor. Merecemos ser o que somos. (27 de fevereiro 2014)

Beijo gay na TV Globo:
Acabo de ler uma postagem de Renato Janine Ribeiro sobre o beijo gay que fecha com final feliz (ou infeliz?) uma telenovela da Globo. O impressionante é o fato de a emissora divulgar uma nota para a mídia justificando a cena. O Brasil definitivamente foge à minha estreiteza mental. Como é que, a essa altura da história, o país que se vangloria de sua sensualidade, de suas virtudes integradoras, capaz de juntar na mesma mesa e cama todas as raças, classes e ideologias, pelo menos de acordo com os mitos correntes, precisa apresentar uma justificativa moral e estética para uma cena de beijo entre dois gays? Países de tradição puritana, como a Inglaterra e os EUA, já banalizaram esse tema e a liberdade a ele associada, que é matéria de direitos humanos sancionada em lei. Lei lá não é como aqui, que discutimos ao infinito se pega ou não pega. Tenho que concluir repisando um inevitável lugar comum: o Brasil não existe. Ou é uma ficção inventada pela Globo. Tudo isso por causa de um beijo entre dois gays? (3 de fevereiro 2014)

Tesouros de João Pessoa
Para Fatima, Paulo, Juliana, Rosa, António, Eduardo, Taciana, Salete, Nino, Marcelle, Junior e João Batista:

Amigo é coisa tão rara
Em meio a tanto comércio
Que há quem confunda a cara
Com a coroa do preço.

Em João Pessoa me deram
O que mais quero e careço
Sendo o que são, o que eram
Eu tão-somente agradeço

O tudo que não tem paga
O tudo que em trigo teço
O que a maré apaga
E entanto sempre amanheço

Como a aurora na linha
Entre o arco-íris e o mar.
Tudo converge e se aninha
No que já foi e será.
(João Pessoa, 14 de janeiro de 2014).

A destruição da nossa memória social:
No fim dos anos 1970 fui morar em São Paulo. Lembro-me ainda do impacto que sofri diluído dentro daquela floresta de concreto. Lembro-me ainda de sentir a alienação dolorosa de quem vive numa cidade que demoliu os suportes materiais da memória social de quem a habita: prédios, praças, jardins, cinemas e todo o complexo arquitetônico cujo sentido humano consiste no fato de simbolizar a memória que vivemos no espaço da cidade. Meu estranhamento foi tão doloroso que senti a urgência de conhecer a história de São Paulo com seu passado submerso na paisagem de concreto e ruas de trânsito congelado. Foi quando descobri e li comovido o livro de Ecléa Bosi: Memória e Sociedade - lembranças de velhos. É uma das mais belas expressões do que significa memória social.
Acreditem que hoje sinto, morando no Recife, sensação de estranhamento semelhante: não mais me reconheço na cidade da minha infância, adolescência, juventude... O caso é bem mais grave. Em São Paulo eu era já o estranho que chegava; aqui estou me tornando estranho porque o poder da política corrupta e do capital desalmado estão demolindo a cidade onde vivi a maior parte da minha vida. Algo de mim, algo de cada recifense portador de memória ruiu com as paredes e a história sem texto do Edifício Caiçara. (28 de setembro 2013)

Medicina no Brasil:
Tenho evitado me meter nesta controvérsia relativa à importação de médicos estrangeiros, em particular os cubanos. Minha justificativa é muito simples: contrariamente a tantos que opinam à vontade sobre tudo, sobretudo acerca do que nada entendem, procuro opinar apenas quando tenho razões fundamentadas para fazê-lo. Este caso, porém, chegou a extremos intoleráveis. Refiro-me, em particular, às vaias dos médicos de Fortaleza, que constituem insulto inqualificável. Sem entrar nos detalhes da controvérsia, lembro pelo menos um argumento definitivo para que eu aprove a importação de qualquer médico qualificado e portador dos meios culturais e linguísticos necessários ao exercício de sua profissão no Brasil: eles vão para onde ninguém quer ir. Essa campanha implacável movida pelas instituições médicas, aparentemente em defesa da saúde dos pacientes, serve antes de tudo para encobrir e justificar a mentalidade corporativa dominante neste país cruel. O que defendem de forma inconfessável é antes de tudo interesses mercantis. Além disso, os médicos estrangeiros estão indo trabalhar aonde ninguém quer ir, repito. Acredito que levarão algum socorro a uma grande parcela dos brasileiros desamparados e expostos ao puro e simples abandono.
Quanto aos nossos médicos de todas as faixas, excluo as exceções de praxe, todos os dias abusam dos nossos direitos. Refiro-me precisamente a pacientes do meu tipo, relativamente privilegiados. Ainda não temos, pelo menos no Recife, sequer o direito elementar de ser atendidos mediante hora marcada. Ontem mesmo fui a um hospital de referência, o Memorial São José, e esperei 2 horas para ser atendido por um cirurgião que me despachou depois de 5 minutos. E esperei numa sala cheia, televisão ligada, como a teletela de 1984 (George Orwell), sentado numa cadeira apertada e desconfortável. Quando mudaremos o Brasil Profundo, o que harmoniza tecnologia de ponta e outros luxos do capitalismo globalizado com a mentalidade escravocrata que envenena ainda hoje nossas relações sociais? (27 de agosto 2013)

Médicos cubanos
Depois de ver reportagens do Jornal Nacional (ontem e anteontem) sobre a contratação de médicos cubanos, retifico o apoio, embora condicional, que emprestei a essa medida do governo. Além disso, peço desculpas a meu amigo José Carlos Cordeiro Freire, um dos mais intransigentes críticos do governo, por ter discordado dele. Lembrando um samba de Paulo Vanzoloni, curvo-me à força dos fatos. Aliás, acho que este princípio deveria reger todo tipo de discussão que travamos no Facebook. Se os fatos prevalecessem sobre o discurso ideológico, sempre deformado por nossas paixões e interesses não raro inconscientes, seríamos melhor formados pelo debate público no qual nos empenhamos. Mas quem está interessado nisso e em tudo mais, salvo o carnaval? O Brasil realizou o milagre de reduzir pão e circo a circo.
(1 de março 2014)