sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Dia e noite



Outro é o espaço dos sentidos quando o mundo anoitece.
À luz do dia a realidade objetiva é agressivamente visível
e é dilacerante sua impositiva matéria.
O olhar tropeça nos objetos
esbarra em telhados avenidas outdoors.
E a luz, essa abusiva luz dos trópicos
tudo inundando vem como o mar.
Jornais nas bancas expostos
gritados pelo jornaleiro condicionalmente
entre a polícia e a Febem.

À luz do dia tudo no Brasil é condicional.
Este país me entedia e irrita.
Alterno tédio e revolta
com a regularidade do dia
que a cada noite se segue.
Impotente o ódio que nutro contra nossas elites
e contra a carneirada que com generoso cinismo
alguns chamam de povo politicamente organizado.
Se é dia, tudo isso me é intolerável.
O que porém mais me agride os sentidos
são certos ruídos cotidianos e inescapáveis
a involuntária visão de certas pessoas que conheço.
Meu Deus, não há como delas escapar.
Estão sempre atravessadas no caminho
sempre obstruindo minha passagem
sempre pisoteando minha consciência tão fatigada.

Ah, quero o escuro da noite
quero o silêncio da noite.
Na noite objetos e pessoas se neutralizam
e pelas ruas circula um ar incontaminado
pela sordidez dos bem-postos
pela barbárie equipada segundo a última
vaga do progresso tecnológico.
Na noite o crime é quase sempre privilégio
dos canalhas de má fama
dos assaltantes sem firma registrada e reconhecida.
Há ainda, para além disso, o sortilégio de um imaginário
composto no tom noir das fantasias mais liberadoras:
o vapor das ruas sombrias filmadas por Sergio Leone
a atmosfera dos romances de Hammett e David Goodis
Ingrid Bergman pairando sobre as sombras de um bar fechado
onde um pianista negro canta: “You must remember this...”
E em algum lugar alguém
sopra as notas dolorosas de Round Midnight.

E entanto...Ó obscuras razões
a noite tem saudade do dia.
Sonha um dia vestido em tons de luz
tingidos por esse olhar
fiel às velhas miragens.
A noite tem saudade do dia
talvez porque as sombras em que mergulha
sejam o mítico refúgio
das suas desolações.
Sofre a noite da nostalgia
de um dia enfim retecido
na teia de uma vigília de séculos
e séculos e séculos
amém.

Porto de Galinhas, agosto 1987.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Noite e dia



Um dia, certo fatigado
da luz absoluta que sobre a terra reinava
Deus mergulhou-a num poço de trevas.
Depois, partilhando-a numa e noutra mão
com a direita recolheu a fração de luz ainda pura
com a esquerda, a treva do poço.
A uma chamou-a dia, a outra chamou-a noite.
Ao dia, com o lento fazer-se do mundo
se conjugaram o trabalho, a safra dos campos lavrados
o exercício da infância acordada.
E ainda: a bicicleta, o futebol
a nudez da face entre cruel e pesarosa.
À noite ajuntaram-se o ruído das festas
e o silêncio das ruas
o trabalho dos garçons e dos vigias
do farol na barra, do furto meticuloso.

A brisa na noite é outra
(diferença acaso mais sensível àqueles
que se recolhem para as paisagens litorâneas do mundo).
Na noite outro é o amor
outro ainda mais do que outra
é a diferença da brisa.
Pois é no íntimo da sombra
que melhor revela sua nudez liberta
da constrangedora claridade do dia.

Na noite o amor viaja em ritmos de exaltação e repouso
e ao abrigo da sombra
sabe a delícia dos jogos mais perversos.
A noite vive de desejos e confidências
incogitáveis à luz.
À sua sombra os amantes instauram uma desordem
que equilibra a opressiva normalidade do mundo.
Ali, na opacidade da sombra
batem-se os seres mais ternos
em lutas de gozo e sangue.
E sonhos os mais furtivos
brotam do ventre da noite
sem pejo de se despir
despindo a nudez mais pura.
O mundo vão desmontando
sedentos de o refazer
com outra medida, outro erro
que assim sem cálculo pensado
até semelham um acerto.

Mas Deus inventou o sono
para o repouso da noite.
Sabe ele quanto são complicadas as suas criaturas.
Sabe que o dia as consome
em afazeres inúteis.
As grandes razões, sempre obscuras,
silenciosas deslizam
nos mais secretos porões.
Assim, o mundo dorme e também sonha.
Essas humanas carências
Deus não esqueceu de as prover.
Certo nem todos adormecem
mas é a hora do sono.
Adultos os mais austeros
carrascos, os mais severos
todos ao sono se rendem.
E o sono milagrosamente pacifica
os mais duros agentes do dia.
A ele todos os cuidados se entregam
todas as futilidades se abandonam.

Mas eu, eu que não durmo
eu que padeço de insônia
eu que medi a espessura da vigília
e os muros da solidão
há muito transporto o sono para o dia seguinte.
Sou parte dos que não dormem
a inconsciência do sono.
Fico com as sobras da noite
que a tantos já saciou.

Há uma hora na noite
largo silêncio, deserto: a hora da solidão.
Mas salve o dia que tinge
o mais remoto horizonte.
Garçons vigias faróis piscando na barra
o próprio Deus fatigado da vigília
fatigado de espreitar sua insolúvel criatura
todos aliviados respiram ante a perspectiva do dia.
E o dia lento vem vindo
lento crescente se faz.
Nele a saudade da noite
que só a noite sacia.
E a noite, quando anoitece
sente saudade do dia.

Porto de Galinhas, agosto 1987.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Noite na praia



Eu vi o meu amor contando estrela
Na praia à luz fugaz do entardecer
E vi o quanto nela a vida é bela
O quanto em cada estrela há de morrer.

Vi o farol piscar, vi tanta luz
Dourando a linha tênue da janela
O que nenhuma língua em mim traduz
Vi a vida pousar no olhar de Bella.

Vi meu amor errante tomar rumo
Na noite em que por fim eis que resumo
A estrada que em Bella me tracei.

Já tudo no alto céu se configura
Mas quem dirá se é sonho ou desventura
A estrela que tão bela figurei?

Fernando da Mota Lima
Recife, 22 de julho de 2007.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Daniel Piza



Foi com surpresa e pesar que ontem tomei conhecimento da morte súbita de Daniel Piza. Vítima de um AVC (acidente vascular cerebral), Piza morreu jovem, sobretudo para os padrões de idade hoje correntes: 41 anos. Apesar disso, militou sem trégua no jornalismo cultural brasileiro, além de paralelamente escrever livros de biografia e ficção acrescidos de atividade de criação intelectual paralela. Sua morte constitui sem dúvida uma perda para a mídia inteligente deste país saturado de porcaria e trivialidade.

Confesso que há muito não lia Daniel Piza, sequer ocasionalmente acessava sua página na internet. Mas durante alguns anos fui leitor fiel dos seus artigos regularmente publicados no Estadão, também dos artigos escritos para a revista Continente Multicultural, atual Continente. Evitava porém seus artigos sobre futebol. Dirão que sou elitista, mas o fato é que não me interessa ler nada sobre futebol ou conversar sobre assunto tão recorrente e vulgar. Gostava de jogar futebol, meu vínculo maior com esse esporte objeto de culto e reverência universais. Meu descaso por esse assunto transposto para as páginas de um livro é tão completo que simplesmente ignorei o livro que José Miguel Wisnik escreveu sobre ele, embora esteja longe de ignorar o autor e a pessoa, com quem entretive conversa inesquecível durante um almoço no qual minha amiga Valéria Torres generosamente nos reuniu. Ocasionalmente vejo com prazer na televisão algum jogo de real qualidade. Como são cada vez mais raros, habituei-me a ligar a televisão para logo em seguida desligá-la.

Também concedi pouca atenção ao Daniel Piza que escrevia sobre política. Este é um assunto que contra minha vontade e temperamento ainda me interessa, embora tenha aprendido a me manter em guarda para lhe fechar as portas de minhas leituras e reflexões. A explicação é simples: a leitura da política é algo que quase sempre me inspira ódio, revolta e impotência. Logo, melhor evitá-la. Além disso, não sou e nunca fui militante político. Essa omissão consciente, e eticamente dolorosa, deriva de minha inabilidade para a ação, de minha incompetência ou recusa das negociações necessárias em toda ação política. Claro que reconheço e aprovo muitas delas, já que a política, para chover no molhado, é a arte do possível, não raro do possível mais vil e lucrativo. O moralista que há em mim, e não sei como refrear, menos ainda suprimir, impede-me de agir politicamente.

O Daniel Piza que verdadeiramente me interessa é o jornalista cultural. Aliás, esse foi o seu domínio preferencial, onde melhor expressou seu talento e seu valor como crítico. O melhor do que escreveu está associado às expressões características da cultura humanista. Sua formação, como ele próprio reconheceu, deve muito a escritores como Machado de Assis e Graciliano Ramos No âmbito da atividade jornalística, é também sabida sua dívida para com Paulo Francis. Sobre este, aliás, escreveu uma curta biografia – Paulo Francis, Brasil na cabeça. Além disso, organizou, segundo a fórmula dos verbetes temáticos, O Dicionário da Corte de Paulo Francis. Salvo a independência crítica com que investiu contra preconceitos políticos e culturais correntes no Brasil, país de cultura paroquial amplamente subordinada à corrupta ingerência do nosso Estado patrimonial, seu perfil intelectual está longe da singularidade ambivalente e truculenta de Francis. Quanto a Machado de Assis, seu modelo literário supremo, pelo menos no Brasil, confesso que achei decepcionante a biografia que escreveu – Machado de Assis, um gênio brasileiro. A julgar pela evidência disponível, a crítica especializada, assim como os estudiosos em geral, não lhe concedeu nenhuma atenção significativa. Jornalista muito conhecido e apreciado, não lhe faltou promoção suficiente para conferir excepcional visibilidade a seu livro sobre Machado. O que lhe faltou foi talento e maior senso de penetração crítica para competir com estudiosos do porte de Lúcia Miguel-Pereira, Jean-Michel Massa e críticos como Antonio Candido, Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, John Gledson e outros igualmente citáveis.
Diário - Recife, 1 de janeiro de 2012.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Revendo Daniel Lima



Visitando Daniel Lima
Ontem afinal, depois de muito me prometer, fiz uma visita a Daniel e Célia. Alguns amigos não compreendem meu distanciamento de Daniel. Tendo sido supostamente seu melhor amigo, o mais constante no curso de uma amizade que se estendeu por mais de 30 anos, deixei de procurá-lo quando a idade o forçou a morar no apto. de Célia. Minha visita precedente ocorreu há cerca de dois anos. Já então nitidamente notei sua perda de energia, seus apagões de memória e outros sintomas assinalando a impiedade do tempo e da natureza que afetam mesmo as inteligências mais agudas, os espíritos mais iluminados e passionais. Nessas circunstâncias, como renovar ou manter vivo um sentido de amizade lastreado no exercício da mais completa liberdade de convívio e pensamento que se possa imaginar?

Com Daniel pude realizar um sentido de amizade, de convívio intelectual isento das convenções que de ordinário constrangem mesmo as melhores expressões de vida compartilhada. Por isso amigos mais convencionais e mais respeitosos, mais atrelados a limites e reservas que conquistamos a liberdade de simplesmente ignorar, ora reagiam chocados diante do nosso galope desatado de convenções de qualquer tipo, ora admiravam nossa viagem imaginativa e fantasiosa, que entretanto não tinham como efetiva e espontaneamente acompanhar. De resto, o culto que muitos lhe devotam é por natureza inconciliável com o tipo de amizade que criamos. Se havia um princípio regente dessa nossa amizade, diria ser o da imaginação desatada de qualquer tipo de convenção. Nossas conversas mais espontâneas, não raro movidas a uísque, eram tão singulares e surreais que me parece simplesmente impossível transpô-las para a racionalidade discursiva do texto. Portanto, ninguém pode fazer ideia adequada do que eram nossos papos, nem sequer eu que os retive na memória definitivamente marcada por uma experiência de convívio irreversível e intraduzível.

O Daniel com quem convivi era antes de tudo um espírito anárquico e passional, investido de um senso de rebeldia e sensualidade indomável típicos de uma criança saudavelmente incivilizada. Por isso, dentro das fronteiras da nossa intimidade, era capaz de coisas que não poderia escrever sem trair nossa confiança recíproca, os modos de cumplicidade fruto de uma amizade tecida de fios e entrançamentos inefáveis. O que posso afirmar é que, no exercício da liberdade que inventamos, avessa a toda sorte de convenção e hipocrisia correntes nos nossos modos rotineiros de convívio, nada era sagrado.

Mas tudo passou. Quero dizer, o melhor dessa amizade iluminada, libertária e libertina, tornou-se luxo do passado, pois meu velho amigo já não tem energia física nem mental para acompanhar-me pelas estradas venturosas que durante anos imaginamos, refizemos e fruímos. Embora ainda me solicite a reatar certos tons de conversa, sinto que já não me acompanha ou reage perplexo diante de expressões de inteligência antes banais no nosso convívio. A memória lhe falha com tanto desconcerto e frequência que é difícil sustentarmos uma conversa coerente. Assim, entristece-me observar a força insidiosa do tempo corroendo um espírito antes tão ágil e agudo, tão irreverente e espirituoso. Revê-lo no estado em que ontem o medi com certa dor íntima e inconfessada é de algum modo nele antecipar a ruína que um dia também serei.

As breves observações acima explicam meu distanciamento de Daniel. O que constituía o sentido e o caráter absolutamente singular da nossa amizade é hoje impraticável. Daniel precisa agora, precisa já há alguns anos, dos amigos qualificados para socorrê-lo nas instâncias práticas que pouco afetam minha habilidade ou competência. Nesse sentido, ele é um velho afortunado, pois teve sempre uma rede de amigos fiéis generosamente devotados ao exercício da amizade feita de assistência e cuidado. Célia, antes de todos, é a mulher sempre a postos para servi-lo nas instâncias domésticas que hoje já não pode dispensar, embora isso constranja seu indomável espírito de independência.

Enquanto pôde, enquanto teve energia física e mental, Daniel isolou-se na sua ilha que era na verdade uma casa suja e mal cuidada em todos os sentidos, pois nunca deu a menor importância a esses cuidados rotineiros que eu, por exemplo, também habitante solitário, zelosamente administro. Até a descarga do vaso sanitário, avariada por excesso de uso, ficou inutilizada durante todos os anos em que ocupou a casa onde o visitava no bairro da Torre. Trocou-a por um balde de plástico e não mais se amolou com medidas de higiene. Sua geladeira era outro caso de calamidade doméstica. Ele pouco ligava, para não dizer que simplesmente cruzava os braços, arriava sobre sua cadeira desdobrável de leitura e afundava os olhos e a imaginação delirante nos livros. O mundo prático lhe era de ordinário indiferente. Nesse sentido, aproximava-se um pouco do cinismo praticado por um filósofo como o lendário Diógenes.

No que se refere à saúde, teve e tem amigos médicos sempre solidários e devotados nos momentos em que precisou da medicina e práticas conexas. Vital Lira, acima de todos, o tem assistido desde a juventude, quando era ainda estudante de medicina. Sempre que Daniel dele precisou, com ele irrestritamente contou. Além dele, há Zildo e Zeferino Rocha e outros amigos devotados que sempre o visitam e zelam para que nada de necessário lhe falte. Além da sedução única que exerceu sobre toda essa inumerável rede de pessoas, sabia astutamente empregá-la visando fins calculadamente pragmáticos. Como fui sempre incapaz de exercitar esses dons, muitas vezes me advertiu para a necessidade de saber cercar-me de amigos úteis, empregáveis nas circunstâncias em que precisamos de ajuda e solidariedade.

Por fim, até assistência editorial lhe foi recentemente oferecida por amigos e admiradores como Luzilá Gonçalves, Leda Alves, Lourival Holanda e outros atuantes na cultura e na burocracia cultural do Estado. Graças a esses e outros amigos, teve uma coletânea de poemas publicada pela Cepe, editora do governo do Estado. Além disso, alguns desses amigos, treinados nas artimanhas da política cultural, logo cuidaram de inscrever o livro como um dos concorrentes ao prêmio de poesia da Biblioteca Nacional. O resultado é que Daniel obteve por unanimidade o primeiro lugar derrotando concorrentes de peso como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant´Anna.

E assim, já aos 95 anos, o velho corre agora o risco de se tornar célebre quando antes era apenas um mito astutamente costurado por um rol de anedotas e casos pitorescos bem típicos da nossa tradição cultural. Bicho desenraizado, cronicamente desajustado e delirantemente imaginoso, Daniel soube fazer disso tudo e de si próprio um mito que durante décadas se difundiu em certos círculos sociais do Recife. Agora, pesa-me dizê-lo, é um corpo velho e um espírito turvo que vão gradualmente definhando. Mas há o mito desde muito cultuado por uma devotada rede de amigos e admiradores; há agora o poeta publicado, o poeta ilustrado por fotógrafos, o poeta inspirador de um primoroso calendário editado pela Cepe.

Além dos vários livros de poemas, fonte da coletânea organizada por Luzilá Gonçalves, há ainda o autor de um extenso diário, artigos e ensaios versando uma grande variedade de temas. Acho que Daniel é superestimado por muitos que de resto não têm real conhecimento de sua obra nem credenciais intelectuais e críticas para melhor ajuizarem acerca do muito que erraticamente escreveu. Não tenho a presunção de conhecer tudo que produziu, mas li muitos dos volumes fielmente datilografados e encadernados por Célia. Além de os ler, discuti-os com ele dentro da medida de franqueza e paixão discursiva típicas das nossas conversas. Procedendo a uma apreciação sumária e grosseira, diria que muito pouco do que escreveu tem força para sobreviver. Seus ensaios filosóficos e literários traem muito da sua formação erraticamente autodidática e revelam um senso de gosto e apreciação crítica provincianos vincados por falhas clamorosas típicas de um intelectual preso a horizontes muito estreitos. Seu talento é inegável, sua cultura insaciável, mas desordenada e carente de critérios intelectuais consistentes.

Embora tenha lido uma enormidade, é com certeza o leitor mais onívoro que conheci, espantava-me a volubilidade, o hedonismo errático com que saltava de uma obra de nítido valor estético e intelectual para o best-seller mais descartável, ou capítulo de telenovela mais lacrimoso. Tudo isso traía no grande leitor que foi um autodidatismo de efeitos desastrosos do ponto de vista de uma formação intelectual mais consistente e equilibrada. Essas falhas flagrantes de formação são de resto comuns em intelectuais autodidatas como ele e eu, no geral presos a um ambiente mental bastante limitado.

Em suma, penso que o melhor do que nos deixa é sua poesia, embora ache muito discutível a seleção feita por Luzilá Gonçalves para o volume que foi lançado no ano passado,distinguido, como já ressaltei,com o prêmio da Biblioteca Nacional. O velhinho merece essas honras e o reconhecimento tardio decorrentes da sua rebeldia não raro dissimulada em extravagância e trapalhadas, não poucas astutamente maquinadas, que o converteram em figura folclórica. Antes isso do que a reclusão em que ele e sua obra viveram durante a maior parte de sua vida já bem longa e singularmente vivida.

Concluindo, Daniel soube fazer de si um personagem mítico e talvez aí resida seu inigualável poder de sedução. Para os que o supõem sábio, talvez sua sabedoria consista na crença delirante com que viveu a vida em estado de felicidade infantil nutrida e defendida por uma força de egocentrismo única. Daniel numa frase? Um narciso feliz em estado de embriaguês inocente.

Recife, 09 de janeiro de 2012.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Tempo e Filosofia Antiga


Viviane Campos lê meu poema “O tempo presente”, postado no meu blog, e me pergunta no Facebook: “Por que o tempo presente?” Ora, porque é o único real. Concordando com os filósofos estoicos, penso que o passado já foi e o futuro não é ainda. Aliás, sequer sabemos se será. Será que estarei vivo amanhã ou mesmo alguns minutos mais tarde? Esse pensamento, que pode ser angustioso para tantos, constitui a condição filosófica necessária para que sejamos capazes de viver integralmente dentro do presente, viver o agora como momento absoluto. O que foi, o passado, é irreversível. Pior que isso, pode ser fonte de infelicidade e sofrimento se dele não nos libertamos efetivamente. Diante dele, podemos adotar dois tipos básicos de sentimento: a nostalgia ou o ressentimento. O primeiro expressa, de forma idealizada, pois a nostalgia deforma o passado evocando-o com tintas idealizadoras, nossa dor diante da memória de algo valioso que perdemos e radica no passado; o segundo, o ressentimento, é uma paixão amarga voltada contra um passado que foi fonte de sofrimento e frustração. Ao relembrá-lo, renovamos a dor antes sofrida.

Quanto ao futuro, este não é ainda, como já frisei. Portanto, infelicitamos nosso presente quando nos preocupamos com o que ainda não veio nem de resto sabemos se virá. Também aqui podemos adotar uma dupla atitude: uma expectativa ou sonho de futuro radioso e feliz ou uma expectativa sombria orientada para o temor de que o futuro será ainda pior que o presente. Num caso ou noutro, perturbamos negativamente nossa relação com o presente, com o tempo real. Quantas vezes não deixamos de viver melhor , de fruir melhor o momento atormentados seja pelo fantasma luminoso ou sombrio do passado irreversível, seja pela expectativa positiva ou negativa de um tempo que não é ainda e provavelmente nunca será como o figuramos ou desejamos? E quantas vezes não nos preocupamos, isto é, não ocupamos antecipadamente o que não teve ainda lugar e realidade sofrendo pelo que não veio ainda e talvez nunca se converta em vida consumada? E quantas vezes, refluindo imaginariamente no tempo não moemos dores e frustrações irreversíveis na memória envenenando ou anulando possibilidades factíveis do presente?

Embora continue sendo um leitor dispersivo, incapaz de fixar-me em qualquer saber restrito ou domínio especializado, leio agora cada vez mais filosofia. Faço-o movido por muitas razões de ordem pessoal, incluída a questão do tempo acima considerada. Faço-o ainda por acreditar e precisar aprender alguns grãos de vida examinada e melhor fruída. Mas meu interesse não é a filosofia técnica, muito menos a filosofia técnica produzida pela cultura acadêmica. Além de nada importar para meus fins existenciais ou inquietações humanas, trata-se de uma filosofia dissociada da vida, da ordem prática da vida que sempre constituiu o alvo prioritário da filosofia antiga. Durante algum tempo convivi com amigos academicamente treinados em filosofia. Para além das inconsistências teóricas que captava nas suas conversas, no saber filosófico que me expunham, impressionava-me o fato de não identificar qualquer vínculo entre o que liam e ensinavam e a vida que viviam.

Esses professores de filosofia estudam, ensinam e escrevem filosofia para obedecer às normas institucionais reguladoras do desempenho intelectual e acadêmico que confere títulos e reconhecimento social, renda e poder. Para muitos, pensar e ensinar filosofia, ou produzir conhecimento de segunda ou terceira mão, é apenas cumprir metas burocráticas de desempenho acadêmico. Quero dizer, em nada traduzem o espírito da filosofia antiga. Esta, antes de ser um discurso sobre a realidade, era um modo de vida. Por isso filósofos como Sócrates e Epicteto nada escreveram. Foi graças a discípulos devotados que a filosofia de ambos foi transmitida à posteridade. Para eles, aprender a filosofar era aprender a morrer através do exercício de uma vida examinada; dizendo o mesmo de um outro modo, aprender a viver.

Marco Aurélio escreveu suas Meditações, mas escreveu-as para si próprio, não para um leitor hipotético. Epicuro constitui um caso à parte. Embora também fiel ao exercício da filosofia como uma prática de vida, escreveu muito, ainda que apenas uma fração mínima da sua obra tenha sobrevivido. No geral, o saber que esses filósofos viveram e comunicaram a seus discípulos sobrevive e ainda hoje nos ilumina graças a discípulos e compiladores que registraram parte do saber transmitido através da vida prática, da sabedoria convertida em ação. Por isso ainda esses filósofos nunca se preocuparam em sistematizar uma filosofia unitária e coerente. Tampouco sábios modernos como Montaigne e Pascal perderam tempo e sono elaborando uma filosofia sistemática. Spinoza foi o único que logrou viver como um sábio e ao mesmo tempo conceber uma filosofia sistemática.

Dentro do espírito com que muitos dos antigos reduziram a filosofia a uma prática de vida sábia, não foram poucos os que chegaram ao extremo de desprezar a ciência. Epicuro ilustra muito bem essa questão. Insistindo em que a filosofia se realiza na ação, na vida vivida, não na teoria, não dissimulava seu desprezo pela ciência. Assim se explicam estas palavras endereçadas a Pítocles: “Meu caro, foge a todo pano da ciência”. Seu desprezo pelo saber puramente teórico ou especulativo, que a seu ver nada importava para a realização da filosofia como norma ética de aprimoramento da vida vivida pelo filósofo, levou-o ao extremo de também desprezar o cultivo da arte, da poesia e da história. Negando à arte função utilitária, assim como importância à história por tratar do passado, não lhes concedeu nenhum lugar na sua concepção filosófica da realidade. Foi devido a perspectivas dessa natureza que Bertrand Russell apreciou as escolas filosóficas pós-aristotélicas com muito rigor crítico na sua A History of Western Philosophy.

É sintomático que esse ideal de filosofia se renove no mundo em que vivemos. Embora as analogias históricas sejam sempre discutíveis, ainda mais quando propostas por um amador como eu, vale a pena indicar alguns pontos de afinidade entre o declínio da cidade-Estado, fundamento político e social da Grécia clássica, e a realidade espiritual do presente abalada por processos de vertiginosa mudança cultural. Os filósofos que acima mencionei, representantes do estoicismo e do epicurismo, viveram entre o processo de desintegração da hegemonia política e cultural da Grécia e o império romano. A filosofia que declina a partir da morte de Aristóteles transita da ágora, da polis que regulava a participação do filósofo na vida pública, para a constituição de uma ética privada, em certo grau já prefigurada nos ensinamentos de Sócrates, fato que decerto explica sua adoção pelos filósofos estoicos.Vivendo durante o processo de desintegração da ordem grega, cuja hegemonia foi sucedida pela dos macedônios e depois pela dos romanos, os filósofos sucessores de Aristóteles deslocam-se da esfera política para a privada. Esse deslocamento se traduz na preeminência de uma ética baseada na virtude privada, na busca da sabedoria de viver dissociada da ação política, embora um estoico como Marco Aurélio, como sabemos, tenha sido imperador.

Que fatores do presente acaso nos religariam a esse ideal filosófico baseado numa ética privada? Penso que a desaparição da utopia no horizonte da política, seguida da despolitização hoje corrente, ou da política pragmática restrita a resultados calculáveis em termos de acumulação e riqueza material, deixaram-nos reduzidos ao hiperindividualismo árido palpável na cena cultura contemporânea. Como pensar ainda na política movida pelo ideal utópico, ou pela religião num mundo secularizado que converteu o reencantamento religioso em variante de consumo espiritual? Penso que é dentro desse quadro ideológico grosseiramente esboçado que ressurgem as filosofias epicurista e estoica, assim como o interesse pelo budismo. Privados de ideais coletivos inspiradores de autêntica significação espiritual, voltamos ao ideal ético da sabedoria contido na obra desses filósofos e neles nos inspiramos para modelar nossas subjetividades desertadas de qualquer horizonte de realização coletiva.

Ainda que demasiado grosseira, minha analogia indica algo da crise espiritual e ideológica em que vivemos. E. Joyau cita estudiosos da antiguidade grega (Droysen, J. Denys, Curtius) visando caracterizar a decadência provocada pela dissolução da cidade-Estado. Citando Curtius, Joyau anota num texto introdutório à filosofia epicurista: “Todos os nobres sentimentos que tinham florescido na Grécia tinham a sua razão de ser na ideia de Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que viu que não tinha pátria e que a própria vida municipal estava decaindo, perdeu todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto da vida de pequena cidade, eis o que a multidão se pôs a procurar. Todos os nobres instintos se foram enfraquecendo de dia para dia”.

Tenho consciência de que esboço minha analogia implicando realidades histórico-culturais profundamente distintas. Mas como fechar os olhos para as afinidades observáveis no plano moral, na crise de valores assinalável lá e aqui, na antiguidade e no presente? Por isso sugiro certa comunidade de solo moral para justificar o interesse que o epicurismo, o estoicismo e o budismo inspiram na atualidade a filósofos como André Comte-Sponville, Luc Ferry, Pierre Hadot e muitos outros. Evidência ainda mais forte radica na recepção que suas obras têm merecido por parte de um vasto público.
Recife, 04 de janeiro de 2012

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Momento


Salvar no poema o momento
Transcrito na poesia japonesa.
O mar imóvel espremido entre colunas de concreto
A luz infinita recobrindo as águas.
O infinito num momento
Para sempre captado no poema.
Mas tudo que posso fixar é o momento
Que é apenas um momento.

Recife, 12 de dezembro de 2009.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Tempo presente


Como eu queria viver
A plenitude do tempo
O ser fundido ao não-ser
Pleno o presente suspenso
Na linha do absoluto.

O absoluto é o presente
Nada antes ou depois.
O tempo em sua unidade
Não é desejo do além
Nem falta expressa em saudade.

Sábio seria viver
Inteiro, ser do presente
Tudo no agora verter
Pois o real é somente
A vida una e fluente.

Recife, 25 de dezembro de 2011.