domingo, 29 de dezembro de 2013
A Ceia Imaginária
À família que podia ter sido.
Vi que o grão de tristeza
Rolou sobre a farta mesa
Onde ruidosos jantamos.
Era a mancha da impureza
Entristecendo a beleza
Que a vida mescla e acatamos
O mal traçado dos planos
A suja nudez dos anos
A ceia na festa impura.
Também da vida acolhemos
O triste sinal de menos
Que dura enquanto ela dura.
A vida na mesa posta
(com o que se gosta ou não gosta)
tempera os pratos da ceia:
São frutas, doces, salgados
Peixe, carnes, refogados
Peru, atum, pão, geléia.
Sopro do tempo, memória
Eis que convoca as histórias
Que à mesa querem sentar.
Um trem de gente que passa
Ri, desconversa, disfarça
A dor pulsando no ar.
Vibram os sons nos cristais
Deusas profanas, natais
Sobre a magia da mesa
Onde tem curso essa ceia
Que a fantasia incendeia
Ferindo a garganta presa.
E a ceia assim transcorre
Fundindo o que vive e morre
O mais remoto e o atual.
E tudo atravessa a porta
A vida reta e a torta
Ambas celebram Natal.
E assim se dissolve o dia.
Entre o mar e a serrania
Se eleva a luz sobre a mesa.
Todos à mesa se somam
Os que se odeiam, se amam
O caçador, sua presa.
Lá fora já amanhece
Já sobre o canto uma prece
Silenciosa se espraia.
E todos – que estranho bando!
Já se vão rindo e chorando
Contra o recorte da praia.
Resta na mesa o quinhão
Humano que ainda nos sobra.
Tanto ruído e paixão
Tempera tão parca obra
Contida numa só mão
Nada renova ou transborda.
À mão se dá outra mão
E o tempo por fim repousa.
Fernando da Mota Lima.
Recife, 24/25 dezembro, 2005.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
Desejos
“E se tudo isso acontecer
Não tenho mais nada para te desejar”.
(Do poema Desejos, atribuído a Victor Hugo)
Desejo que você ame
E seja feliz no amor.
Mas ame consciente de que o fim do amor
É a perda, o desenlace
No desamparo de uma noite escura.
Amamos sempre para perder
Para a solidão iluminada
Que vive além do amor já esvaído.
Desejo que você tenha amigos
Mas saiba desde já que a amizade
É um grão diluído na areia do deserto
Que é o vil comércio das relações.
A amizade é o mais alto privilégio da intimidade
E poucos os afortunados que a conquistam.
Desejo que você tenha amigos
Que a isentem da necessidade
Dos inimigos honestos
(Aqueles que dizem tudo
Que não gostamos de ouvir
Ou estilhaçam o cristal do espelho
Onde nossa autocomplacência se reflete).
Assim eles a pouparão da lisonja e da hipocrisia
Que lastreiam as falsas amizades.
Desejo que você seja inútil, livremente inútil
Dentro desse ubíquo bazar
Onde tudo se troca.
Seja livre como uma canção cantada na solidão da noite
Como uma criança antes do primeiro clipe publicitário
Como uma carícia no corpo da primeira virgem.
Desejo que você seja jovem, ainda quando já velha.
Mas não confunda a juventude do espírito
Liberto das opressões do corpo
Com a adolescência senil
Ou um produto chamado terceira idade.
Terceira idade é de fato a velhice
A caminho irreversível da morte
Nosso destino definitivo.
Desejo que você tenha a coragem da tristeza
Ainda mais a da solidão voluntária
Sobretudo a coragem da dor.
Desejo que você conquiste a coragem desilusória
De ser como a vida é
E assim realize a felicidade sem comércio
E a lúcida e serena alegria
Dos seres genuinamente livres.
Desejo que você tenha a coragem de me perder
Como preciso da coragem de perdê-la.
Assim nos reconciliaremos numa ordem de permanência
Onde na memória do amor falível
Os amantes afinal se eternizam.
Recife, 1 de janeiro de 2010.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
O Inferno na Tarde
A casa vazia.
A vida vazia.
Queimou todas as cartas de amor
As fotos, as roupas, tudo
que fosse matéria portadora de símbolo
Da sua presença que em vão tentou apagar
durante anos de perda e desolação.
A sombra severa e punitiva dos pais.
Nunca um gesto de amor
Um vinco de ternura
Dentro da casa sombria.
As paredes úmidas recobertas
Por imagens impenitentes.
Tudo negro e mórbido à sua volta.
Desde a infância mais remota
Impregnou-se de imagens e sons
Recortados pela Inquisição
O catolicismo sádico, a supressão
De tudo que acaso pudesse inspirar-lhe
Um sopro de graça, a luz
De uma divindade amorosa.
Na sua imaginação longe
De tudo a Espanha queimava
Como uma fogueira eterna.
Via sempre uma mulher de preto
Arrastada para o patíbulo
Ardendo nas chamas do inferno.
O rosto da mulher pregado
Na cruz do pesadelo era
O seu e o céu ausente
Fechava-lhe todas as portas.
O fantasma onipresente de Franco.
Uma vida inteira policiada
Pelo pecado, o pavor de pecar, arder
Na eternidade do inferno.
Queimou as cartas de amor que denunciavam
Seus desejos imperdoáveis.
Embora tanto se punisse, a culpa
Nada cedia, nada perdoava
Consumindo-lhe as forças vacilantes
Cada vez mais vulneráveis.
O quarto vazio.
A vida vazia.
Saltou no vazio
Numa tarde de sol inglesa.
Por que numa tarde assim
Numa iluminada paisagem inglesa?
Dizem os amigos presentes que agonizou
Durante cerca de uma hora.
O que mais me atormentou quando
À noite regressei de Londres
Foi a imaginação da sua agonia.
Dizem que seus olhos ardentes murmuravam:
Pilar é o inferno.
Recife, 12 de dezembro 2013.
sábado, 14 de dezembro de 2013
Ler
Para Ci, que ama os livros.
Ler por prazer
É como amar
O que se quer.
É ser e ter
O que se dá
Tal qual se é.
II
Quem ama ler
Nunca está só
Na solidão.
Livro é o amigo
Que escolho e abrigo
No coração.
III
Quem ama sabe
Que o céu se abre
Na escuridão.
Quem lê inventa
O ser que aumenta
O coração.
IV
Ler é viver
Um outro modo
De companhia.
É saber ser
Além do engodo
A poesia.
V
Quando eu morrer
Não farei falta
À luz do dia
Que é o que é
Antes e sempre
Passasseria.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Entrevista sobre Gilberto Freyre
Fellipe Torres - Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre traça um paralelo entre a arquitetura da Casa-grande e o patriarcalismo. Seria possível atualizar a comparação ao observar a arquitetura moderna de arranha-céus, de apartamentos minúsculos onde impera o individualismo? O quanto do patriarcalismo enxergado por Freyre permanece em vigor na sociedade? Com que outros elementos ele coexiste?
Resposta - A pergunta é muito pertinente e infelizmente apoiada por muitas evidências. A força da tradição em Pernambuco, diria que no Brasil em geral, é extraordinária. Isso quer dizer que muitos traços nocivos do patriarcalismo e do escravismo dentro do qual fomos formados continuam bem vivos no presente. Gilberto Freyre (também Joaquim Nabuco, que antecipou muitas das intuições críticas de Freyre) teve olhar agudo para discernir esses traços. Basta conferir a obra de ambos. Essa herança me parece tão negativa que não posso opinar sobre o processo de acelerada expansão urbana do Recife sem qualificá-lo como simplesmente predatório. Incorporamos a modernidade e o capitalismo globalizado retendo algumas das piores forças do passado opressivo que herdamos. As evidências estão nas ruas e na nossa relação com os espaços público e privado; na arquitetura e na expansão comandada por políticos e empresários de mentalidade ainda senhorial. No fundo, são ainda coronéis dissimulados sob a aparência da nossa modernidade perversa. O exercício da democracia nestes trópicos autoritários e festeiros é ainda um grande mal-entendido, não obstante os avanços inegáveis.
F. T. - Em uma época em que a eugenia ganhava força com o nazismo, Freyre surgiu defendendo a miscigenação como uma forma de enriquecimento cultural e racial. Quais as mais relevantes heranças (dos índios, negros e portugueses) que vivenciamos até hoje como parte da cultura nacional?
R- Penso que a herança mais relevante consiste na revalorização da nossa condição de povo racial e culturalmente miscigenado. Ninguém concorreu mais para a reconciliação do brasileiro com sua real condição sócio-antropológica do que Gilberto Freyre. Mas importa reconhecer que a interpretação proposta por Freyre, e adotada até oficialmente, exerce funções ambíguas. Se de um lado ela realça uma integração social efetiva, de outro também mascara o vinco cortante de autoritarismo, racismo e profunda desigualdade social inerentes às nossas relações sociais.
Gilberto Freyre foi uma pessoa singularmente contraditória. Ele próprio tinha consciência disso. Aliás, ninguém explicou melhor Gilberto Freyre do que ele próprio nos muitos textos em que se debruçou sobre si próprio com uma obsessão narcisista sem precedente na nossa cultura. A deleitação narcisista com que falava de si próprio não anulava o olhar aguçado com que tantas vezes iluminou sua própria obra e personalidade. Na obra tardia, no entanto, o vinco do olhar autocomplacente prevalece e daí a tensão crítica e autocrítica baixa drasticamente. Mas o que queria acentuar ao derivar para essa linha de consideração era o fato de que ele foi um conservador otimista. Isso é raro e diria até contraditório. Sua interpretação otimista do Brasil tem sido infelizmente desmentida pelo próprio desdobramento de muitas das nossas características culturais tão louvadas na sua obra. Nossa expansão urbana, por exemplo, acima brevemente considerada, tende a criar zonas crescentes de segregação, fato que contraria sua visão integradora da nossa cultura. Basta observar a fronteira que isola o shopping Center da rua e das moradias tingidas de pobreza e miséria; o automóvel versus o transporte coletivo; os condomínios isolados da rua por altos muros, segurança privada e até cerca elétrica versus as favelas e mocambos onde os pobres se espremem entre o mangue e o esgoto a céu aberto. Enfim, depois de 125 anos de abolição formal da escravidão, uma paisagem urbana bem longe do otimismo pintado pela tradição mais otimista do nacionalismo cultural cujo representante mais ilustre é precisamente Gilberto Freyre.
F. T. - Gilberto Freyre exerceu forte influência na literatura, em autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Filho, Osman Lins... Na cultura contemporânea de modo geral (incluindo-se a literatura), ainda enxergamos traços de influência de Casa Grande & Senzala? Filmes como O som ao redor atualizam a temática?
R - Com certeza. A visão dominante de nacionalismo cultural, manifesta nas expressões artísticas e noutras formas de discurso sobre o Brasil, e aqui incluo ainda o discurso oficial e publicitário, é muito poderosa e portanto permeia o conjunto da nossa sociedade. Muitos dos nossos intelectuais e artistas contribuíram para a consolidação desse imaginário, desde modernistas como Mário de Andrade até o regionalista Ariano Suassuna. Mas não há dúvida de que o articulador supremo desse nacionalismo cultural foi Gilberto Freyre. Seu correspondente na literatura é Jorge Amado, cuja penetração no mercado literário internacional generalizou uma visão mítica e até folclórica do Brasil. Nesse sentido, Jorge Amado é mais uma criação de Gilberto Freyre do que o próprio José Lins do Rego. Quanto ao filme O som ao redor, confirma o que acabo de observar. Um dos grandes méritos do filme é precisamente atualizar na expressão fílmica a interpretação de Gilberto Freyre.
P - O universo acadêmico sempre foi bastante crítico em relação à produção freyriana, chegando a rejeitá-la em vários momentos. Como Casa Grande & Senzala é vista hoje pela academia? É uma obra estudada? Quais são as principais contribuições para a formação de novos profissionais e pesquisadores das ciências humanas?
R – A obra de Gilberto Freyre foi praticamente silenciada na academia durante a vigência da ditadura militar. Atenuado e diria hoje dissolvido o clima de antagonismo ideológico marcado pela intolerância mútua, a obra de Freyre passou por um processo de revalorização crescente. Hoje voltou a ser quase uma unanimidade. A obra dele está com certeza acima desses embates ideológicos e dos traços negativos da sua biografia, de resto bastante deploráveis e conhecidos. A crítica esclarecida e isenta sabe que é preciso distinguir obra e autor, obra e biografia. Duvido porém que ela esteja sendo estudada tanto quanto aparenta. Voltamos a falar muito elogiosamente da obra de Gilberto Freyre, mas muitos que se pronunciam sobre ela na academia baseiam-se nos comentadores e em apreciações muito parciais. O mais grave é observar que muitos dos que radicalmente o negavam sem o lerem passaram a louvá-lo com a mesma leviandade corrente nos círculos acadêmicos brasileiros.
Talvez a contribuição maior de Gilberto Freyre consista na forma como assimilou com muito discernimento crítico e criativo as teorias e métodos estrangeiros, a articulação complexa entre o nacional e o universal, a tradição e a modernidade. Foi explorando de forma genial essas vias complexas que Gilberto Freyre se tornou provavelmente o maior inventor do Brasil. O melhor livro já publicado sobre a formação intelectual de Freyre, refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallhares-Burke, demonstra com rigor crítico e documental impecáveis isso que sumariamente assinalo.
Nota: Concedi a entrevista acima a Fellipe Torres, do Diário de Pernambuco. Tudo se processou através de e-mail. Fiz apenas uma exigência: que ele me enviasse o texto editado antes da publicação no jornal. Ele concordou. Para minha surpresa, descobri por acaso que publicou uma reportagem na edição de hoje, 2 de dezembro, sobre os 80 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala e a realidade presente da expansão urbana do Recife. Cita algumas frases recortadas da entrevista que lhe concedi. Aparentemente, o jornal publicará no decorrer desta semana outras reportagens baseadas num paralelo entre a obra de Gilberto Freyre e outros aspectos da nossa realidade sócio-cultural. Em suma, Fellipe Torres não cumpriu os termos do nossos acordo informal. Mais uma razão, portanto, para que me sinta à vontade para postar a íntegra da entrevista no meu blog. Em tempo: tomei a liberdade de acrescentar um parágrafo ao texto antes enviado para ele.
domingo, 1 de dezembro de 2013
A Rebeldia da Juventude
A doença infantil da juventude é a rebeldia. O jovem rebela-se, antes de tudo, por causa da sua insegurança e da necessidade de afirmar sua individualidade. Esta supõe a negação dos pais ou de quem simbólica ou literalmente representa os papéis que assim os definem. Chovendo no molhado, os pais são nossos modelos primários. Mais do que isso, portamos no nosso corpo e no nosso psiquismo, na nossa condição genética, as marcas indeléveis que nos transmitem. Por isso precisamos viver nessa fase da nossa vida essa relação negativa contra eles. Precisamos negá-los como meio necessário para afirmar nossa diferença, nossa singularidade diante deles e da vida. Além disso, o jovem também se rebela contra a vida, contra a realidade que o oprime. Quem já não ouviu ou disse este lugar comum: apagamos na maturidade os incêndios que ateamos na juventude? Sei que os termos do lugar comum não são estes, apenas limito-me a traduzi-los sem lhes comprometer o sentido substancial.
Na minha juventude, a fração mais consciente da minha geração rebelou-se contra a ditadura militar. Considerada a totalidade dos jovens da época, éramos uma minoria insignificante. Mais reduzida ainda era a fração dos radicais que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura. O exemplo genérico sugere a imprecisão do conceito de geração, tão correntemente usado nos estudos historiográficos. Como a oposição ativa e institucionalmente organizada foi suprimida (daí a ditadura), opositores do meu tipo negavam o poder político migrando para dentro de si próprios. Era uma forma de oposição de raiz subjetiva, à margem da esfera pública, que provavelmente punia apenas o opositor. Pelo menos na instância imediata ou empiricamente apreensível. Afinal, o opositor se tornava um desajustado vivendo na contracorrente dos valores dominantes.
Foi por me tornar um opositor da ditadura que passei a me identificar como um crítico e inimigo intransigente dos valores dominantes. Essa oposição se estendia à esfera da família (daí detestar na minha família o que identificava como valores típicos da pequena burguesia), da religião (que não passava de ópio do povo), do capitalismo compreendido como sistema regulador da nossa existência material. Para além da mera contestação política, os anos 1960 e 1970 acabaram ultrapassando em muito o marco da política para se transformarem numa era de autêntica revolução dos costumes. De fato, a contestação que então irrompeu transbordou dos marcos da política compreendida no seu sentido convencional espraiando-se para os costumes gerais da sociedade. A própria disseminação de regimes ditatoriais em praticamente toda a América do Sul acabou concorrendo para deslocar a rebeldia da juventude para o âmbito dos costumes. Isso grosseiramente explica a explosão das formas de comportamento e das modas que na prática representaram uma força de erosão da família tradicional, dos papéis pertinentes aos gêneros, à sexualidade, ao conjunto das normas de regulação ética da sociedade.
O fato é que, bem ou mal, minha geração, compreendida no sentido acima sugerido, orientava sua rebeldia contra alvos bem definidos. Provavelmente bem poucos sabiam o que precisamente queriam, mas quase todos sabiam o que não queriam. Tínhamos um objeto de ódio contra o qual podíamos em graus variáveis desfechar nossa energia agressiva, nossa rebeldia carente de válvulas de escape e vias de afirmação da nossa individualidade. Um dia, porém, dei-me conta chocado de que me imaginava mudando o mundo, um sistema de poder que me reduzia à insignificância de um grão de areia na imensidão da orla marítima, quando não tinha autonomia nem para viver por conta e risco próprio. Filho de um pai cuja privação de autoridade e comando tornava-o um autêntico pai permissivo avant la lettre, típico da cultura em que hoje vivemos, tinha medo do mundo e estava com certeza totalmente despreparado para enfrentá-lo. Foi aí que, com muito medo, decidi sair de casa para aprender a viver por conta própria. Apreciando retrospectivamente minha vida, não tenho dúvida de que esta foi a decisão mais importante que ousei tomar sem então ter noção clara do seu alcance. Se não a tomasse e seguisse, apesar do medo e de todas as tribulações que daí advieram, teria provavelmente fracassado de forma absoluta.
Para além das motivações negativas - negar a família de que era parte e na qual fui progressivamente deixando de me reconhecer; negar valores morais relativos à sexualidade, à religião, às ambições de futuro e de vida bem sucedida etc – sentia-me também impelido por motivações positivas. Por exemplo: conquistar a liberdade de dormir com minha namorada; viver uma vida regida por valores sexuais e afetivos mais livres; contribuir dentro dos meus limites individuais para a fundação de uma sociedade mais livre e portanto menos repressiva. Assim, saí pelo mundo decidido a não repetir a história do meu pai, fortalecido pela crença de que viveria uma vida muito melhor do que aquela possível nos marcos do mundo em que me formei - e sobretudo deformei, assim ponderava ao cotejar o real com o desejável, o mundo que herdei contra minha vontade com o que me acreditava capaz de conquistar. Não preciso dizer que apanhei muito da vida, que fiquei muito aquém do que ingenuamente me supunha capaz de alcançar. De qualquer forma, continuo acreditando que minha rebeldia, a coragem relutante com que larguei a família para fazer de mim um indivíduo no sentido moderno do termo, tudo isso valeu a pena e me franqueou uma forma de vida melhor do que antes vivi.
Anos mais tarde, já acomodado na fase em que deixamos de ser incendiários para apagar o fogo das paixões juvenis, muitas vezes repassei perplexo na memória coisas que fiz e simplesmente não me podia mais imaginar fazendo. Lembro-me com mais nitidez que essas rememorações perplexas se amiudaram nas minhas noites de solidão inglesa. Cheguei à Inglaterra no dia preciso em que completei 40 anos. Se há uma idade da razão, comigo muito duvido, diria que a minha inaugurou-se no mundo inglês. Se fosse o caso de indicar uma data precisa, escolheria a data da minha chegada, quando pus as pernas trêmulas (uma delas aliás literalmente enferma devido a uma cirurgia para curar uma ruptura de menisco interno) num solo e mundo absolutamente estrangeiros. Ali, naquele exato momento, iniciei um estágio completamente novo na minha vida. Algum tempo depois, curtindo uma solidão prolongada e indizível, no entanto também estranhamente sólida e serena, surpreendi-me no silêncio e no frio repassando na memória os incêndios ateados no Brasil durante minha juventude. Pensava então, completamente perplexo, por vezes entre risadas de espanto e incredulidade, como fui capaz de fazer aquelas coisas nas quais já não me reconhecia, coisas que com certeza não mais sequer cogitaria fazer novamente. Isso traduz, de forma um tanto simplista, minha passagem da juventude para a maturidade.
O que hoje move a rebeldia da juventude? Uma coisa me parece certa: ela não tem um alvo de negação definido. Nisso diria que é radicalmente diferente da minha geração. Na medida em que precariamente o percebo, o jovem de hoje, o típico jovem de família classe média brasileira, não tem contra o que se rebelar. A despolitização do espaço publico privou-o da capacidade de contestar, por exemplo, os valores do capitalismo globalizado. O que Marx designava como fetiche da mercadoria tornou-se uma força tão onipresente no mundo em que hoje vivemos que precisamos de algo que negue nossa humanidade mais elementar para nos compenetrarmos de nossa diferença do reino da mercadoria. Narro um exemplo preciso que acabo de ver no Jornal Nacional da rede Globo. Uma reportagem sobre o tratamento reificante (quem ainda usa este termo que tanto se entranhou na minha consciência antiburguesa?) imposto pelos planos de saúde aos usuários ou pacientes (estes termos de resto suprimem nossa humanidade individual) mostra o que acontece a muitos cujo tratamento urgente e inadiável é suspenso por irresponsabilidade criminosa da operadora do plano. Um pai, cuja filha foi vítima desse crime corrente e impune neste Brasil de códigos legais de ordinário reduzidos a letra morta, declarou ao repórter: “Minha filha não é um carro que levamos de uma oficina para outra”.
Com ou sem juventude, ninguém se rebela contra essas afrontas a nossos direitos humanos que são todos os dias espezinhados pelo tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Precisamos de exemplos da natureza do que acima descrevi para nos dar conta de que há um fator humano diferenciador da nossa condição. Noutras palavras, nossa humanidade falível não deve ser tratada como tratamos um carro avariado. Abstraída essa circunstância excepcional, no entanto, qual é nossa percepção ética e existencial do carro dentro da natureza técnica e instrumental que rege nossa chamada civilização? Vivemos em cidades desumanas cujo funcionamento está dirigido para a supremacia do automóvel. O ideal de todo indivíduo típico, dentro dessa civilização, é comprar um carro para em seguida mergulhar nos labirintos congelados do nosso trânsito que não mais transita. A máquina publicitária, expressão dos valores que movem a ação e a consciência alienada do presente, satura nossas fantasias de consumo com automóveis e uma rede de símbolos de aquisição que, no limite, reduzem nossa humanidade àquilo que os planos de saúde executam e ocasionalmente se revela numa reportagem de noticiário televisivo: somos apenas máquinas degradáveis e descartáveis. Por isso os planos de saúde tratam-nos como os carros avariados são tratados: atiram-nos em qualquer oficina, quando não nos reduzem pura e simplesmente a ferro velho.
quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Imaginação, falsa demente
O que você faria:
1- Se fosse rico, não soubesse preencher sua declaração de imposto de renda e não confiasse em ninguém para fazê-lo?
2- Se lhe pagassem por seu amor com ódio e ainda lhe cobrassem juros e ICM (para quem não sabe, Imposto de Circulação de Mercadorias)?
3- Se descobrisse que na fidelidade de toda mulher casada habita uma Madame Bovary?
4- Se caísse do 20º andar e acordasse?
5- Se mergulhasse no canal do Derby e não estivesse sonhando?
6- Se seu professor de filosofia confundisse Hobbes com hobbies?
7- Se soubesse que Deus não endossa os créditos de quem dá aos pobres?
8- Se tivesse um vizinho de fachada, isto é, aquele que reforma e ostenta seus bens, não o bem que poderia e até deveria praticar?
9- Se confundissem sua impotência cívica com impotência sexual?
10- Se sua moeda baixasse na hora de subir?
11- Se além do túmulo você descobrisse que o inferno existe e é bem melhor que isso aqui?
12- Se tarde, irreparavelmente tarde, você descobrisse que o céu é apenas o amor humano falível e possível?
domingo, 24 de novembro de 2013
Nomes próprios e impróprios II
Postei no meu blog uma crônica sob o título acima e alguns amigos tiveram a generosidade não apenas de a ler, mas também de a comentar no Facebook. Minha reação imediata foi responder também na forma de um breve comentário. É parte do meu código de ética intelectual considerar sempre a opinião do leitor. Afinal, é para ele que escrevo. Não importa o fato de ser ou não um escritor profissional. Aliás, esclareço que sou apenas um amador. Uso o termo no seu sentido original, infelizmente corrompido pelo mau uso, como ocorre com tantos outros. Bastaria pensar em cínico, anarquista, amante... Os cultores da etimologia poderiam citar uma infinidade. É um dos capítulos apaixonantes da história de qualquer língua. Infelizmente, falta-me erudição para escrever sobre o assunto.
Peço perdão pela digressão impertinente e retomo o veio do artigo. Como dizia, é parte do meu código de ética intelectual conceder a devida atenção ao que o leitor me escreve, notadamente quando me critica. Elogio importa muito, claro, mas ninguém discute elogio. O autor agradece, pois é o que busca recolher das leituras, mas não vai além disso. Os mais discretos simplesmente silenciam. Como sabe o bom leitor, o silêncio, no caso, é sintoma de discrição, de agradecimento sem palavras, não desapreço. A crítica, contrariamente, merece maior consideração. Se o autor não busca apenas assentimento irrestrito ou aplauso, é graças à crítica que ele dialoga explicitamente com o leitor. É o que cuidarei de fazer neste artigo. Em suma, tentarei esclarecer melhor meu ponto de vista com relação ao uso e abuso dos nomes próprios que os brasileiros adotam.
Não sei de nenhum escrito de alguma importância que não contenha algum grão intencional de ambigüidade e ironia. Esclarecendo melhor, aludo precisamente à produção intelectual inscrita no âmbito do que designamos como ciências humanas ou ainda humanidades, aí incluída a produção artística. Justificando o que acabo de escrever, é da natureza desse campo, o das humanidades e das artes, certo grau ontológico de indeterminação. Isso decorre da própria natureza do objeto considerado, que é noutras palavras a natureza humana investigada no convívio social (que é da competência da sociologia, da antropologia etc) e noutros modos de ser humano. Por mais que o estudioso ambicione compor um discurso unívoco, não importando o quanto seja genial, esbarrará sempre no que há de insondável, ambíguo, ambivalente ou simplesmente indeterminável na natureza humana.
Devido às razões grosseiramente esboçadas no parágrafo precedente, há sempre algo de ambíguo e irônico no tipo de discurso a que me refiro, mesmo quando o autor dá o melhor de si visando alcançar o máximo de precisão e transparência. Além disso, o autor consciente e inventivo recorre intencionalmente à ambigüidade e à ironia como dispositivos retóricos passíveis de distender as camadas de significação do texto. Autores como Shakespeare, Machado de Assis, Auden, Drummond e todos os grandes são por definição ambíguos e irônicos. Quanto maior a densidade e força de sobrevivência no tempo atestadas na obra, maior a sua carga de ambigüidade e ironia. Disso decorre ainda que a obra dilata seu poder de permanente atualização e recontextualização semântica graças também à colaboração do leitor inteligente, aquele que projeta luz nas camadas de sentido atual ou potencial da obra.
Mas que diabos tudo isso tem a ver com uma mera crônica de um autor amador postada num blog quase anônimo? Reconheço que muito pouco. Se me perdi através de digressões tão tortuosas, foi apenas para sugerir como mesmo uma mera crônica pode suscitar leituras parciais ou ambíguas. E é graças a esse tipo de leitura que me sinto motivado a retomar o assunto, espichá-lo, melhor esclarecê-lo, ou pelo menos melhor esclarecer o leitor acerca do que penso.
Elizabeth Carneiro, por exemplo, afirma que a leitura da minha crônica acordou na sua memória a leitura de dois livros que qualifica como muito bons: um de José Ramos Tinhorão e outro de Mário Souto Maior. Embora não vá além disso, ponderei se acaso teria associado minha crônica a estes autores supondo que endosso a perspectiva radicalmente nacionalista do primeiro e a concepção de pesquisa folclórica do segundo.
Já frisei que ela não afirma nada disso. Sou eu que, leitor inconveniente, aproveito o comentário para alongá-lo em considerações que me interessaria fazer com o propósito de esclarecer melhor meu ponto de vista sobre a questão dos nomes próprios. Ressalto portanto que nada tenho em comum com o nacionalismo radical e até intolerante de Tinhorão. Li alguns dos seus livros sobre música e admiro sua dedicação de pesquisador apaixonado pela história da nossa música popular ainda tão pobremente estudada e documentada. Sua perspectiva, porém, é o avesso da minha. Se acaso alguém me leu supondo que minha crítica à adoção colonizada de nomes estrangeiros é feita em defesa do nosso renitente nacionalismo cultural, retruco que me leu erradamente. Há de resto na crônica algumas breves alusões ao nacionalismo cultural que bastam para bom entendedor.
Tinhorão nunca foi capaz de compreender ou simplesmente suportar a bossa nova, sem dúvida a mais refinada e fecunda ruptura modernizante da nossa música popular, devido a seu nacionalismo de viseiras, à intolerância da sua concepção redutoramente nacionalista. Parafraseando o velho ditado popular, o cão ladra e a caravana passa. O cão, explicito, é o crítico de viseiras, incapaz de ver além do muro compacto com que fecha as fronteiras e linhas de comunicação entre as culturas; a caravana é a bossa nova, que passa no sentido de ir além, de continuar viva na história da nossa cultura e portanto sempre se renovar a cada retomada, a cada atualização feita pelas gerações sucessivas de artistas e ouvintes.
É verdade que alguns artistas mais americanizados ou colonizados daquele momento, Elizabeth cita nominalmente Dick Farney e Johnny Alf, adotaram nomes artísticos inspirados na cultura dos Estados Unidos. Mas a analogia com o fenômeno relativo à adoção dos nomes próprios que critico é infeliz, ou inapropriada. Por quê? Porque o exemplo que ela menciona é um mero detalhe dentro do processo complexo de relacionamento da bossa nova com a música americana. Ele serve para desqualificar a bossa nova apenas na apreciação de críticos estreitamente nacionalistas como Tinhorão, que ouve o galo cantar e no entanto não tem ouvido afinado para traduzir o real sentido da música.
A bossa nova foi impiedosamente atacada por críticos do tipo de Tinhorão. Tom Jobim, nosso compositor supremo, foi também impiedosamente desqualificado por Tinhorão e Cia. A crítica é de uma cegueira ideológica tão absurda que cabe perguntar se críticos desse tipo têm pura e simplesmente sensibilidade musical. Notem que não me refiro a conhecimento de técnica e teoria musical, a cultura refinadamente musical. Fico num limite bem mais modesto. Como é que alguém que de fato conhece o conjunto da obra musical de Tom Jobim pode acusá-lo de ser americanizado (ou vendido aos dólares americanos, como afirmou Ariano Suassuna, nacionalista talvez ainda mais intolerante do que Tinhorão)?
Se queremos pregar origens e influências na música de Tom Jobim, é claro que ele bebeu nas fontes do jazz e da grande tradição musical americana. Também bebeu nas fontes do impressionismo musical francês e noutras fontes. Isso tudo é de uma tolice e de uma intolerância intragáveis. Como todo grande artista, Tom tinha antenas muito sensíveis e livres. Portanto, captava sons de todas as procedências. Foi isso o que fizeram gênios musicais ainda maiores, como Bach e Mozart. Se na época destes as formas de intercâmbio musical e estética eram já correntes, o que dizer de um compositor do século 20? Não importa quem ouviram, mas o que fizeram do que ouviram, a forma como recriaram influências e sugestões musicais. De resto, se é para falar em influência, há muito mais Villa-Lobos e muito mais tradição musical brasileira em Tom Jobim (modinha, samba, choro etc) do que música americana.
Concluindo, não argumentei contra a macaqueação dos nomes de procedência estrangeira baseado em nenhuma ideologia nacionalista. Noutras palavras, sou internacionalista em cultura. Mas é evidente que sou antes de tudo brasileiro. Por isso me chamo Fernando e falo a língua portuguesa e dela me valho para escrever e melhor me traduzir e comunicar. Por melhor que falasse inglês ou qualquer outra língua, é óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, que minha língua é minha pátria, minha frátria... Bem, aqui o leitor nota que já estou citando Caetano Veloso. Por isso ainda, se tivesse um filho daria a ele um nome extraído da minha língua. É certo que me sentiria ridículo, me sentiria um colonizado se acaso batizasse um filho meu como William ou Giselle, Peter ou Kate, Hulk ou Isabeli (sic). Acrescentaria ainda que em muitos casos é compreensível e mesmo justificável a adoção de nome próprio estrangeiro. Por exemplo: no caso dos casais compostos por membros de nacionalidades diferentes.
Recife, 22 de novembro de 2013.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Nomes próprios e impróprios
A questão da grafia e adoção dos nomes próprios estrangeiros é um capítulo curioso da nossa ideologia nacionalista. Já a questão da identidade cultural é por certo o capítulo crucial desta ideologia. Refleti um pouco sobre essas questões que sumariamente assinalo na abertura deste artigo porque me ocorreu lembrar os nomes extravagantes de muitos dos alunos que tive em anos mais recentes. É curioso observar como tendemos cada vez mais a adotar nomes estrangeiros. Mais que isso, mais estrangeiros que os modelos adotados, dobramos consoantes inexistentes nos nomes que nos servem de inspiração. Assim, há agora brasileiros batizados como Petter ou Rychaddson. Como professor, na hora da chamada por pouco não mordi a língua várias vezes para pronunciar ou tentar pronunciar corretamente os nomes extravagantes de alunos brasileiros que todavia têm nomes mais que estrangeiros, mais extravagantes que os estrangeiros.
O fenômeno parece acentuar-se (adianto que não procedi a nenhum levantamento empírico, como é de hábito no ofício dos sociólogos) nas classes mais pobres. Quero dizer, quanto mais descemos na composição econômico-social dos alunos, mais encontramos a adoção de nomes estrangeiros saturados de consoantes dobradas e outras extravagâncias gráficas inexistentes nos modelos estrangeiros adotados. Sendo mais preciso, é nos cursos de secretariado e serviço social, pedagogia e turismo que se observa a maior frequência do fenômeno que aqui considero. Neles passei a esbarrar em singularidades como Walleska, Weruska, Nattaly, Wylliam... Lamento agora não haver anotado todos para melhor aproveitá-los neste artigo.
Ora, pensei com minha rota gramática dos nomes próprios brasileiros, aí tem coisa, isto é, isso é sintoma de sentidos submersos no solo da grafia, ou na pele da escrita. Por que tanto agora nos entregamos a esses caprichos que certamente infernizam o trabalho dos funcionários de cartório e os professores, obrigados a morder a língua pronunciando essas consoantes esdrúxulas? O fenômeno, ou pelo menos sua exacerbação, é novo, talvez sintoma do processo de globalização que estreitou as fronteiras entre as nações e os nomes. É porém raro encontrar nomes brasileiros entre os americanos e ingleses, franceses e alemães, embora com certeza tenha aumentado assustadoramente a presença de imigrantes legais e ilegais nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha. Esta relação desigual sugere a reiteração, neste registro, da nossa dependência cultural, fenômeno típico em países de forte tradição colonial. Noutras palavras, a inflação de nomes estrangeiros na nossa cultura seria apenas mais uma evidência da nossa macaqueação do estranja, como dizia Mário de Andrade com suas expressões peculiares.
Aliás, lembro Mário de Andrade bem a propósito, já que foi provavelmente o maior apóstolo da nacionalização da nossa cultura. Seu pragmatismo militante, tantas vezes confessado e justificado, levou-o a adotar processo inverso ao que acima anotei quando escreveu sua pioneira Pequena História da Música. Visando afirmar os valores nacionais postulados pelo modernismo, nesta obra ele decidiu grafar os nomes de grandes músicos europeus aportuguesando-os. Assim, escreve João Sebastião Bach, Cláudio Debussy, Ricardo Straus etc. Ninguém embarcou na sua canoa furada, que de resto vazou água na própria obra que cito, pois ele foi de uma inconsistência flagrante: ora aportuguesa os nomes, ora preserva a grafia original.
Há pouco escrevia para uma amiga lembrando mais uma vez uma frase primorosa de Tom Jobim que não me canso de citar: “O Brasil não é para principiantes”. Cito-a além da desmedida, reconheço, porque nossa realidade desconcertante está sempre me dando razões de a lembrar e novamente constatar sua precisão. Falamos por ombros e cotovelos o quanto nos orgulhamos da nossa identidade. Os brasileiros mais bairristas, é o caso dos pernambucanos, redobram a dose acrescentando ao nacionalismo provinciano, com perdão do truísmo, as glórias da nossa pernambucanidade, o orgulho de ser pernambucano e nordestino. Convém de resto lembrar que o “orgulho de ser nordestino” é produto publicitário pago e apropriado pela rede Bompreço, que por sua vez vendeu o mote publicitário sem tirar nem pôr ao capital globalizado. Portanto, para bom entendedor meia publicidade já denuncia o comércio inteiro.
Mas lembrava nosso orgulho confesso da nossa identidade cultural que espalhamos aos quatro ventos. Ora, antes de constituir uma evidência de efetiva identidade consolidada, o fato é antes sintoma da persistência de nossa mentalidade colonizada, do servilismo com que, a partir da própria adoção dos nomes próprios, macaqueamos as culturas que são objeto da nossa inveja e ressentimento. Povos ou países cuja identidade está de fato assimilada, integrada às camadas profundas das expressões inconscientes da nacionalidade e da cultura, prescindem desse tipo de comportamento que entre nós se manifesta em tudo através de mecanismos induzidos pelo Estado e toda a rede de instituições cuja função é produzir e sedimentar padrões de comportamento e valor cultural.
Também nossos modos de morar transpiram sintoma de colonialismo mental. Eu por exemplo, o recifense mais colonizado do Brasil, moro num condomínio cujo nome é Castelo de Luxemburgo. O Recife pulula de condomínios identificados não apenas como castelos, mas como castelos que traem nossas fantasias de nobreza de matriz francesa, inglesa, italiana, espanhola... Já pensei em sair pelas ruas do bairro onde moro anotando os nomes tão peculiares e sintomáticos dos condomínios habitados pela classe média. Os intelectuais que odeiam a classe media, também sintomaticamente pertencentes a ela, costumam denunciar do alto dos tribunais nacionalistas e bairristas a mentalidade colonizada da classe media, notadamente a classe média intelectualizada. O galo canta e logo confundem o poleiro. Não é só a classe média que é colonizada. Os porteiros e zeladores do condomínio onde moro falam okei e se chamam Jameson ou Wallace. Quanto a mim, colonizado incurável, já pensei em procurar o cartório do registro civil mais próximo para trocar de nome. Gostaria de me chamar Príncipe William Windsor.
Recife, 20 de novembro de 2013.
segunda-feira, 18 de novembro de 2013
Sarau para Vinícius
Para Betania e Sandra
Vinícius, teus tantos vícios
São nossos, também são meus.
Se o amor é também suplícios
A lua ilumina os céus.
Por isso na lua cheia
Que paira sobre o Recife
Tuas canções ensaiamos.
E entre o passo e a meia
Não falta quem retifique
O frevo que não cantamos.
Hoje a noite é imensa
E dentro dela invocamos
Teus tantos modos de amor.
No peito que chora e pensa
Na voz que mal afinamos
Brota a beleza da flor.
Além, muito além dos vícios
Da lua, vasta candeia
Hoje cantamos Vinícius
Na noite de lua cheia.
Recife, 16 de novembro de 2013.
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
A esperança
Esperança, paixão triste
expressa sempre temor
sobrepondo ao que existe
sua tenaz impotência.
Expressa ainda fraqueza
ante a desordem do mundo
que com alheia crueza
esmaga os sonhos no fundo
do humano mais desejante.
Esperança é correnteza
que raro flui pr´adiante
levando as águas pro porto
onde se agita a espera
Esperança é o desejo
que raramente prospera.
O seu avesso é a vontade
o estoico senso do ser
que acolhe a realidade
tal como é, como o que
nega a esperança, o desejo
que é de ordinário o sonho
traído pelo real.
Potência que inspira medo
o real é o que é
não o que sonho e desejo.
Mas que potência humana
pode anular a ilusão
que nosso engano sustenta?
O que do real promana
é nada além do que é.
A esperança engana
mas é refúgio da fé.
Recife, maio de 2013.
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Bach no céu
Quando Bach entrou no céu
Num incerto dia de 1750
Deus teve uma crise de identidade.
Descobriu por fim que a música
É a única invenção da divindade
Concebida pelo ser humano.
Desde então toca e canta com Bach
A harmonia inefável dos sons
(que nossa tola teologia confunde com o céu)
E humildemente me ajoelho.
Recife, maio de 2013.
sexta-feira, 1 de novembro de 2013
Daniel Lima em Londres
Daniel I
O meu amigo
intransparente
é todo verbo
mas reticente.
O meu amigo
rindo de mágoas
que lá no fundo
no mais que fundo
sei que ele sente.
Daniel II
O meu amigo que sabia javanês
(não) ensinava latim.
Ensinou-me outras coisas
não-clássicas, sem tempo
além da história.
O meu amigo maior que amigo
um modo de espelho
um modo de ver-me
não sendo o que sou.
O meu amigo que dava lições
sem tom de docência
sem nunca vesti-las
num código de ensino.
O meu amigo meu eu, meu não-eu
Luar que se esconde
Na Londres de véus
Paisagem sombria
Meu céu sem teus céus.
Museu Britânico, Londres 07 julho 1989.
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Rua Imperial
Imperial Imperial...
O longo e vago som na tarde reverbera
fundindo-se ao andante da Quinta de Beethoven.
Como num sonho há tanto repelido
ou pesadelo sacudindo meus desertos geológicos
um cortejo de imagens se perfaz
turvando a luz cristal sobre a janela.
As tardes de tédio e fuligem
deslizam sobre o asfalto
enquanto o menino arquiteta aritméticas automotivas
alheio ao inferno doméstico que lhe atormenta a infância.
Absorta na contabilidade de ônibus e carros
transposta para colunas
riscadas sobre o caderno escolar
sua imaginação liberta-se da vida suja e palpável
do exílio urbano sem pontes
para a ilha e o campo.
A iniciação nos bancos da escola pública.
Tímido e precoce, vindo de ignotos canaviais,
logo foi vítima da troça de alunos citadinos.
Eram moleques boçais, em tudo menores
mas eram da cidade.
Por isso principiaram infernizando-lhe a vida.
Um dia, maior que o medo,
peitou o mais valente
mudou as regras do jogo dando provas
relutantes de uma bravura
roubada talvez à memória do avô
único ascendente lendário
em quem venerava os traços agrestes do heroísmo.
Imperial Imperial...
As casas da Imperial.
Por ironia ou sarcasmo
chamavam-na Rua Azul.
Azuis acaso seriam os sonhos do adolescente
espremido entre o asfalto e o trem de ferro.
Rua Azul e seus caminhos de terra batida e estreita
alongando-se entre a Rua Imperial
e a estrada de ferro.
Na casa escura e pequena acotovelavam-se
pai avó tios primos irmãos
gastando os dias e a vida
entre a insegurança e o medo.
Mais que um grupo sem guia
a família semelhava um acampamento
sempre às bordas da guerra civil.
Imperial Imperial...
Meninas da Imperial.
Catarina Catarina
Quando na rua passava
o mar no cais se calava
corria até à esquina
dobrava o mar das tormentas
quando na rua passava.
Era tão linda, tão loura
na porta do tintureiro
(seu pai, o italiano).
Todo o meu ser se redoura
a praça, o Recife inteiro
na vaga napolitana.
Tantas, como eram tantas
e tontas de adolescência
maliciosa e escaldante
as meninas da Imperial.
As safadezas com a prima
no muro além do quintal.
Também às vezes no quarto
mãos sob a mesa, desejos
entre paredes retidos.
Mas iam além das paredes
além da casa e da rua
desejos sem pausa ou fuga.
Enroscando-se no vão das portas
transpunham frestas e fechaduras
aqui colando-se às roupas íntimas
da tia sonsa e provocativa
ali brechando as pernas inacessíveis das vizinhas
e em tudo seguindo o balanço
da mini-saia das colegiais.
Ah, como medir cogitar a que torturas
a simples presença da mulher
condena a carne indefesa.
Faze de mim teus haveres
de mim o que bem quiseres
gozando ela gemia
e eu cego na luz do dia
sobre o sofá possuía
o quente corpo de Ceres.
Era enfermeira da tia
que um câncer já remordia
por longo tempo sofrido.
Ceres em mim se esquecia
das surras que lhe batia
em casa o bruto marido.
Minha Ceres de turvas eras
com quem ouvi Primavera
na voz de Claudete Soares.
Ela chorando deserta
pra rua de porta aberta
e os desenredos nos ares.
Mas há um grande trem de vida
que o poema omite
talvez já ressabiado do estirão.
Um dia, anos e anos mais tarde,
conheci-a numa festa em Boa Viagem.
Nem Deus nem os cronistas da terra
atinam com o que houve.
O que sei é que um grande incêndio
alastrou-se pela praia
ressecou os canais e drenou
as águas do Atlântico.
A ponte do Pina desabou
e a cidade sobressaltada delirava na avenida
confusa entre um carnaval extemporâneo
e um hiato de amor universal amordaçando
duas almas atormentadas
na orgia da carne errante.
Recife 28 e 29 de novembro 2001.
quinta-feira, 24 de outubro de 2013
Chuva
Quem se apaixona por mim
Que sou pequeno e qualquer
Se a poesia por fim
Sopra sua carne onde quer?
Quem sabe a dor que hoje em mim
Chove sua chuva onde quer
Depois inunda o jardim
E o sopro dessa mulher?
Quem sabe da vida o fim
O fim do que nada é
Se nada resta e enfim
Nada é a medida de ser?
Recife, 9 de abril de 2011.
domingo, 20 de outubro de 2013
Vinícius II
O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.
Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música. Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.
Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.
Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.
O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.
Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.
Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.
Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.
Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.
Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?
Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.
Recife, 16 de outubro de 2010.
Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.
Vinícius
Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.
Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.
Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
Vinícius
Vinícius é um documentário que encanta, diverte e sobretudo comove o espectador. Esses efeitos decorrem antes de tudo do personagem que se move no centro da trama. Se a tradição romântica, datemo-la a partir de Rousseau e Herder, elevou o artista à condição de polo da realização estética, tão ou até mais importante do que a própria obra de arte, Vinícius cedo se destacou como um poeta cuja força narcisista converteu a obra que produziu numa derivação ou projeção da sua personalidade. Mário de Andrade, valendo-se de outras palavras, acentua esta verdade ao criticar em 1939 a poesia de Vinícius num artigo mais tarde enfeixado no volume O Empalhador de Passarinho. E logo comprova seu argumento citando estes versos exemplares:
“Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas”.
Os versos acima são extraídos do “Poema para todas as mulheres”. Não bastasse o tom afoito, ou até arrogante, ele demonstra, como romântico impenitente que sempre foi, o quanto a obra é antes de tudo uma expressão da sua individualidade soberana. E o fato é que isso é ainda bem pouco, se consideramos, no desdobramento da sua vida e obra, o quanto espraiou esse tom afoito em tudo que viveu e poeticamente realizou, uma coisa sendo na verdade indissociável da outra. O documentário que doravante acompanho constitui prova cabal do que acabo de afirmar.
O documentário começa nos bastidores do teatro que serve de palco para a encenação da vida e da obra de Vinícius. Os atores que o interpretam, Camila Morgado e Ricardo Blat, mesclam ao longo da obra a leitura de fragmentos de poemas de Vinícius, infelizmente vários carecem de identificação, e matéria de cunho biográfico e histórico alternada com a interpretação de canções compostas pelo próprio Vinícius e seus parceiros mais frequentes: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho.
Não bastasse a excelência dessa amostra da história recente da música brasileira, comparecem ainda, como depoentes e comentadores, nomes definitivos da nossa cultura como Antonio Candido, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Maria Bethânia e vários outros. Dentre os poemas cujos fragmentos são declamados sem a devida identificação, menciono três que de resto figuram entre os melhores que escreveu: “Poema de Natal”, “O haver” e o também longo e comovente “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”. Aproveito a deixa para aqui enfiar uma nota de espanto e protesto diante do fato de que o segundo poema citado, “O haver”, não consta da minha edição da Poesia Completa & Prosa de Vinícius de Moraes, editora Aguilar. Friso que minha edição é de 1986, lançada portanto 6 anos depois da morte do poeta.
Da infância à idade tardia, apesar das muitas ausências impostas pela vida de diplomata e outras circunstâncias, Vinícius acompanhou as transformações do século que profundamente alteraram a paisagem urbana do Rio de Janeiro, além de ser personagem de muitas delas. Nascido ainda quando as luzes da belle époque já se apagavam no horizonte de modo catastrófico, cedo impregnou-se da cultura francesa que tão nitidamente desenhou o perfil de várias gerações da elite carioca. Mas esse processo de impregnação foi sempre impuro, notadamente no seu caso. Quero noutros termos ressaltar o caráter da mestiçagem que no conjunto da nossa história cultural sempre entreteceu a tradição cultural de corte europeu, antes de tudo francês, com os ingredientes africanos e indígenas que tão singularmente nos diferenciam da Europa e do conjunto da tradição ocidental.
O pai de Vinícius, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, a quem dedicou o poema acima mencionado, foi poeta anônimo de extração erudita, enquanto a família da mãe era muito achegada à boêmia e à música popular de tão viva presença no universo social do Rio de Janeiro. Já aí se nota como o ambiente que enquadrou a sua infância livremente conciliou na origem dos seus próprios ancestrais traços culturais divergentes. A isso importaria acrescentar seus estudos, desde pequeno, no Santo Inácio, colégio jesuíta intimamente associado à formação da elite carioca.
Sua poesia da primeira fase, de nítido viés metafísico, transpira a atmosfera mística assimilada no contexto católico que vincou a maior parte da sua juventude. A isso se soma a poderosa influência que sofreu de Octávio de Faria, notável romancista católico politicamente reacionário, o que quase soava como truísmo no clima ideológico e cultural do Brasil da década de 1930. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, aproximou-se do integralismo, a ideologia de corte direitista hegemônica à época. Evidentemente sua íntima ligação com Octávio de Faria tinha muito a ver com esses traços ideológicos dos quais mais tarde se dissociará.
Ferreira Gullar observa com irreprimível humor que Vinícius traçou na vida uma trajetória singular. Poeta de marcada aprendizagem erudita e francesa na juventude - mais tarde acrescida da literatura inglesa, antes de tudo romântica, assimilada durante seus estudos em Oxford - à medida que amadurece vai progressivamente se despojando de toda essa herança pesada e asfixiante. O peso maior, em termos de tradição opressiva e conservadorismo político, procede de sua já referida formação católica. Entretanto, mesmo quando católico confesso e praticante já vivia uma vida dupla, aliás comum à religiosidade tingida de tradição patriarcal, que tendia a isolar e comprimir a mulher no recesso da casa enquanto tecia com rédea frouxa, para não dizer desatada, uma ética masculina no geral pontuada pelo desmando e a duplicidade hipócrita. Como era de conveniência corrente para os homens, Vinícius pagou farto tributo a essa divisão injusta atribuível aos gêneros bem característica das culturas de raiz patriarcal.
Depois dos livros ancorados na metafísica de intensa impregnação católica, reponta na poesia de Vinícius a influência de Manuel Bandeira. Também da sua primeira mulher, Tati, de ideias políticas e estéticas avançadas. Ele próprio reconhecia o quanto foi transformado pela intimidade amorosa com Tati. Sua amizade com o socialista americano Waldo Frank, lavada na água suja da miséria nordestina que vieram conhecer de perto, também decisivamente concorreu para mudar sua visão da realidade. Isso se traduzirá na sua poesia que, sobretudo a partir de A Saudade do Cotidiano e O Encontro do Cotidiano, ata as matrizes eruditas à matéria impura e até sórdida da vida tal como já expressa nos títulos que acabo de indicar. É a partir daí que dominam na sua poesia a matéria carnal do cotidiano, os bordéis sórdidos da Lapa, a paixão erótica elevada a expressões de lirismo saturadas pela realidade sem máscaras e isentas de transfigurações religiosamente idealizadas. Assim grosseiramente descrevo o processo através do qual Vinícius se desprende das amarras conservadoras do catolicismo e dos vínculos tradicionais que lhe abafaram a infância e a juventude.
Antonio Candido, sempre agudo e preciso, projeta mais alguma luz sobre as linhas incertas desse quadro quando ressalta que Vinícius soube, mais que qualquer outro poeta modernista, harmonizar sua fidelidade às formas poéticas da tradição com o mergulho no cotidiano, a imersão na corrente da vida isenta dos artificialismos que tanto recobrem a tradição erudita. Vinícius consolidou, em suma, a ponte entre a tradição erudita e a matéria do cotidiano postulada e também largamente praticada desde os primeiros ecos do modernismo por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e nossos poetas mais sólidos e renovadores. Mas ninguém avançou tanto nessa linha quanto Vinícius, notadamente a partir do momento em que definitivamente se desgarra da poesia canônica e impressa e todo se entrega à poesia posta a serviço da música popular num momento de extraordinária inflexão qualitativa no veio fecundo e democratizante da cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960.
Drummond confessou com tocante franqueza e generosidade a inveja que a vida de Vinícius lhe inspirava. Segundo ele, Vinícius foi o único poeta que viveu integralmente como poeta, aquele que teve a coragem de converter a paixão antes em matéria de vida do que de poesia. Sem dúvida, um personagem desse porte constitui um prato cheio, ou já feito, para um bom documentário ou uma boa biografia, como é a que José Castello escreveu.
A vida passionalmente vivida se traduz antes de tudo na sua fome infrene de amor, na sua determinação de viver desgovernado pelo princípio da paixão. Daí resultaram nove casamentos, reviravoltas mirabolantes e loucuras que raros ousariam cometer em nome da paixão carnal e do amor incendiado por uma intensidade romântica que requeima de inveja os românticos frustrados e inspira estranheza ou reserva ao racionalista regulado por seu senso de conveniência e medida. Vinícius casou tanto quanto Oswald de Andrade, outra figura lendária que, como tal, também sobrepôs a vida vivida à obra realizada, que, também como é de praxe, resultou muito imperfeita.
No que se refere a esse ponto, há quem tenda a depreciar essa verdade na obra de Vinícius. É um fato marcante no documentário. Todos que se pronunciam sobre a obra, antes de tudo sobre o autor, silenciam ou são incapazes de reconhecer o quanto há de imperfeição e fragilidade no romantismo exaltado que sustenta e move a poesia de Vinícius. O erro de apreciação é parcialmente compreensível, se se considera que o documentário objetiva antes de tudo realçar em tom de encantamento e paixão a grandeza singularmente humana do personagem. Mas cabe ao crítico consistente e isento também assinalar o quanto a obra de Vinícius está complacentemente saturada de lugares comuns típicos do romantismo desregrado, que privilegia antes a expressão da subjetividade criadora do que a realização formal da ideia ou daquilo que Mário de Andrade, também contaminado pelo fascínio das forças líricas inconscientes, louvava enquanto impulso desgovernado da criação poética.
Vinícius era passional demais para se contentar em reter a vida ardentemente consumida nos limites convencionais do amor conjugal e da família. Viveu sempre possuído por uma sede de presença, de vida passionalmente movente que o impelia a abrir literalmente as portas de sua casa para a festa e a música e a farra sem hora ou medida. Daí o cortejo de amigos que foi arrebanhando ao longo da vida. Daí a paixão pelo cinema e pelo jazz, em especial durante os anos em que viveu em Los Angeles como diplomata. Daí as viagens que se repetiam e renovavam devido à profissão de diplomata, mas também à margem dela. A vida em trânsito contínuo levou-o do Rio a Oxford, de Paris a Los Angeles, de algum lugar a Montevidéu, daí aos candomblés da Bahia, da Itália à Argentina, de São Paulo ao deus dará... Toda essa viagem trepidante dentro da vida era acelerada pelo álcool, do qual se tornou dependente e ao qual foi fiel até a morte. Se foi fiel a alguma coisa, digamos que o foi ao uísque. Como disse numa de suas definições definitivas, o uísque é o cachorro engarrafado, isto é, o verdadeiro amigo do homem. Sem deixar de acrescentar que nunca viu amizade nenhuma germinar em leiteria.
Tudo isso visto e sorvido num documentário é belo, sedutor e estonteante. Os amigos celebram Vinícius, sua vida de desgoverno e paixão, e se rendem deliciados a seu narcisismo generoso e absorvente. As mulheres imagino, e o invejo, o quanto não se entregaram enlouquecidas à sua fome de carne e amor, carícias, gozo e outros inefáveis da intimidade amorosa. E o que dizer das incontáveis que antes e ainda no presente e por tempos improváveis se abandonaram, ouvindo seus poemas musicados, às fantasias mais indizíveis e extremas? Evocando os versos modelares de Chico Buarque: “O que não tem governo / nem nunca terá / o que não tem vergonha / nem nunca terá / o que não tem juízo”.
Mas o documentário abafa os danos decorrentes da paixão infrene, silencia ainda sobre o que meu amigo Luciano Oliveira chama de os anexos do amor ou ainda as agruras do amor casado e atado a filhos que, como escreveu o próprio Vinícius, é bem melhor não tê-los. E complementa: sem tê-los, como sabê-los? Ora, não é preciso ir a tanto para avaliar o quanto nos custam e o quanto lhes custamos. O que intento melhor salientar é que o filme compõe um retrato puramente sedutor e deslumbrante de Vinícius, um retrato que nos faz espontaneamente cair de riso enlevados diante da própria loucura inconsequente, diante da porra louquice que com certeza muito vincou a vida aventurosa e passional de Vinícius. Noutras palavras, ao silenciar sobre os danos e anexos da vida passionalmente desgovernada, o documentário suprime a dimensão ética da nossa experiência amorosa. Essa dimensão poderia ser menos vagamente sugerida se formulasse a seguinte questão: até onde posso ir na minha fome de amor e sexo, de desejo e realização do desejo?
Todos sabemos, salvo os ingênuos e omissos diante da vida, que é impossível amar sem causar algum dano ao outro. Mas isso não nos isenta desta interrogação angustiante: até onde posso em nome do meu desejo e do meu amor causar dano ao outro que me ama e sobretudo amo? Ninguém pode em sã consciência legislar sobre isso, determinar a priori o limite arbitrário entre a busca do amor e as consequências dessa busca. Mas a questão de fundo ético é real, ainda quando, por pura cegueira egoísta ou compreensível prevalência do princípio do prazer, convenha empurrá-la para debaixo do tapete e entregar-se ao impulso do gozo imediato da vida. Como afirmei, esse problema ético é central na vida aventurosa de um homem como Vinícius e não penso que propô-lo consista em incorrer em simples interpelação moralista.
Como todo grande sedutor, como todo romântico que escolheu viver a vida para além das convenções que nem sempre podem ser descartadas como artificialismos atravancadores da liberdade humana, do empenho em realizar uma vida autêntica, como tanto prezavam sustentar os existencialistas sartreanos, Vinícius aparentemente nunca perdeu o sono atormentado por esses obstáculos éticos inscritos na esfera da intimidade amorosa. Que me lembre, nenhum grande sedutor relutou entre a mulher desejada, não importa a que preço, e os limites éticos da realização do desejo. Tônia Carrero, que foi grande amiga de Vinícius desde o primeiro casamento deste, afirma sem nenhuma reprovação moral aparente que ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher.
De Casanova a Vinícius, traçando um limite temporal arbitrário, não sei de nenhum grande sedutor que tenha refreado sua sede de conquista cerceado pela questão ética que aqui proponho. Portanto, fechando ou abrindo as pernas, a alternativa fica a critério ético de quem me leia, é fato que a sedução colide com a ética, quando não simplesmente a ignora. Esticando ainda mais a corda, para que essa digressão não se exceda em ponderações morais que de ordinário descambam para o leito apertado do moralismo, convenhamos que o desapreço pelo limite ético convém tanto ao sedutor quanto ao seduzido, tanto a quem vive e realiza a vida na linha do excesso descrito pela biografia de Vinícius quanto ao sedutor comprimido malgré-lui que foi, por exemplo, Drummond. O fato é que a ética, em assuntos dessa natureza, constitui sempre um constrangimento ou impedimento que agride nossa natureza indomavelmente egoísta. É por isso que tantas vezes adoecemos quando renunciamos a desejos e tentações demasiado desejáveis. Ninguém precisaria ler Freud ou deitar num divã para ter consciência dessa banalidade recorrente na nossa economia erótica e moral.
O fato é que, reitero e amplio, caímos no laço da sedução que pontua a trajetória biográfica de Vinícius. É isso o que pulsa no cerne da recepção encantatória e deleitosa com que viajamos deslumbrados no bojo dessa cadeia de imagens e sons, de fantasias e pulsões que compõem a tessitura do documentário. O receptor generoso, na linha de Drummond, admira ou inveja Vinícius no melhor sentido da inveja ao reconhecer que ele foi o único poeta investido do desejo e da coragem de fazer de sua vida um largo e absorvente poema passional. O invejoso, pelo contrário, vê o filme roendo a corda de suas frustrações e na inveja ressentida com que abarca a vida e a obra do poeta projeta no que ele viveu tudo o que gostaria de ter vivido. É uma prova variável, convenhamos, do desejo de ser Vinícius.
Saindo um pouco das ponderações éticas insolúveis que acima esbocei, salvo em alguma medida a ética e Vinícius ao introduzir neste ponto um outro comentário de Ferreira Gullar. Rememorando Vinícius, afirma não conseguir lembrá-lo senão rindo, senão entregue ao prazer do riso, da atitude afirmativa e gozosa diante da vida. O próprio Gullar se ilumina na moldura de um riso espontâneo ao exprimir o sentimento com que evoca o amigo morto. Vislumbra-o sempre no avesso do desespero, sempre na faixa iluminada da vida. Indo adiante, afirma que esta é uma invenção, isto é, depende da atitude positiva ou negativa com que a encaramos e vivemos. Por conseguinte, é inútil e mesmo indesejável procurar no fundo da nossa experiência o sentido de uma verdade objetiva e universal relativa à vida. Isso é coisa de chatos como Beckett, citado literalmente por Gullar, ou intelectuais sombrios que se enredam e se atormentam – pior ainda, nos atormentam – buscando ou mesmo traçando na obra que criam um hipotético e de resto improvável sentido para a vida. Somos nós que a cavaleiro de nossa subjetividade arbitrária propomos um sentido para a vida e vivemos movidos pela determinação de realizá-lo. Vinícius teria feito isso ao decidir-se pela vida que viveu comunicando aos amigos e a todos tocados por sua vida um sentido de vida alegre e prazerosa.
Não que tenha sido feliz, como Chico Buarque certeiramente observa. Afinal, reiterando o óbvio, Vinícius foi romântico por temperamento, convicção e diria até determinação. Ora, um dos traços definitivos do romântico radica precisamente na busca intransigente do ideal: a mulher ideal, o amor ideal e outros ideais que são por definição inalcançáveis na vida. É isso, em suma, o que me assegura na convicção de que Vinícius não foi nunca feliz. De resto, felicidade é sempre um estado provisório, nunca uma fortuna confundível com a duração que seria permanência. A propósito, ele inventa a quadratura do círculo ao conciliar a duração provisória e o infinito nos dois versos que são talvez os melhores que escreveu e fecham seu mais belo e mais citado soneto: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.
Ficha técnica:
Direção: Miguel Faria Jr.
Elenco: Camila Morgado e Ricardo Blat.
Roteiro: Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcelos
Colaboração de Eucanaã Ferraz.
Texto final: Eric Nepomuceno.
Fotografia: Lauro Escorel.
Direção musical: Luiz Cláudio Ramos
Direção de arte: Marcos Flaksman
Montagem: Diana Vasconcelos.
Recife, 14 de outubro de 2010.
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
Carpeaux e Merquior
Começo por esclarecer ao leitor que este artigo foi escrito há algum tempo. Na ocasião em que meu amigo César Melo o leu, prontamente sugeriu-me propor a Daniel Lopes, nosso editor do blog Amálgama, que o publicasse quando do intervalo entre as datas da morte de Carpeaux e Merquior. Lembro ao leitor desmemoriado, como é o meu caso, que Merquior morreu em 07 de janeiro de 1991; Carpeaux, 03 de fevereiro de 1978. Minha intenção, portanto, era encaminhar o artigo para Daniel em meados de janeiro passado. A data passou, também o mês e somente agora, meio envergonhado de minha memória, proponho afinal a Daniel que publique o artigo. Encerro esta nota introdutória acrescentando uma razão pessoal e outra pública visando justificar a publicação tardia. A pessoal prende-se ao fato de que César, Daniel e eu admiramos a obra de Carpeaux e Merquior, além de nos identificarmos com a tradição do humanismo liberal a que se filiam; a segunda deriva do silêncio, salvo desatenção compreensível num leitor pouco regular da mídia, que cercou as datas acima assinaladas.
Tenho ainda uma outra razão, esta bem recente, para justificar a repostagem deste artigo. Embora pouco informado sobre a produção crítica corrente, até por não ser e nunca ter sido crítico militante, tenho lido dois críticos da nova geração de escritores pernambucanos: Cristiano Ramos e Eduardo César Maia. Além de intervirem com freqüência nas redes sociais e em eventos relacionados à literatura, têm ambos explicitado o quadro ideológico ao qual vinculam sua atividade crítica. Adeptos confessos e combativos do liberalismo humanista, escrevem e debatem publicamente as obras e as idéias correntes salientando a importância que os críticos considerados neste artigo têm na sua formação. A eles acrescentam Octavio Paz, Mario Vargas Llosa, Ortega y Gasset e Álvaro Lins. Dado que a tradição liberal dentro da qual nos alinhamos é ainda tão incompreendida no Brasil e na América Latina, quando não deliberadamente deformada, acolho com vivo entusiasmo estes jovens decididos a intervir no nosso ambiente intelectual tão pobre de obras e idéias, sobretudo neutralizado no seu potencial crítico pela prática longeva da cordialidade literária. Friso conferir ao termo cordialidade o sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda. Como foi tão incompreendido, e ainda o é, esforcei-me por esclarecê-lo no artigo Raízes do Brasil, que o leitor interessado pode conferir no meu blog. E assim fecho a nota explicativa antes que ela se torne mais extensa que o artigo original.
Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.
Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.
Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.
Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, enquanto sua visibilidade decai no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.
Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.
Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.
Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzida em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias.Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.
domingo, 13 de outubro de 2013
Ser
Sou o que sou
não onde estou.
Mas o espaço
afeta o ser
e entanto passo
sem me perder.
Sou eu e outro
eu e você
misto de dor
busca e prazer.
Sou e me indago
sobre meu ser.
O tempo vago
e o espaço hostil
são o meu nada
que já partiu.
Sou e não sou
áporo sempre
catando a via
às vezes luz
meu céu e cruz
minha poesia.
Curitiba, 18 de abril 2013.
sábado, 5 de outubro de 2013
Melancolia
Melancolia, me diz
O nome da cicatriz
Riscada no coração.
O amor não passa, não cura?
Por que tão dura e escura
É a crua punição?
Que dor castiga o amante
Que supondo ir adiante
Rasteja sempre pra trás?
Que jaz na insana memória
Que se repete uma história
Sem uma trégua de paz?
Alguma régua que meça
A dor em que o amor tropeça
Caindo sempre prá trás?
Por que caindo de dor
Constante ama o amor
Que até na dor se compraz?
Melancolia, me explica
De tanto amor o que fica
E a todo mal sobrevive.
Ou tão voraz é o veneno
Que o torna um sinal de menos
E o mata do mal que vive?
Porto de Galinhas, agosto 1987.
quinta-feira, 3 de outubro de 2013
Irreparável
Frailty, thy name is woman!
Shakespeare: Hamlet
Porque mente o amor
Ele diz amor
Com rancor calado.
E o que ele abraça
É sombra que enlaça
Um abajur quebrado.
Mente, o amor mente
Tão completamente
Com meias verdades.
E se a gente entende
Se algo dele aprende
É tarde, bem tarde.
Mente se se escusa
Mente na recusa
Da maior mentira.
Essa dor insana
No âmago se inflama
E outra dor transpira.
Mas se tanto mente
Se tão fundo sente
Mentir tanto assim
Por que o levamos
Até se o negamos
Ao fundo do fim?
Se o amor engana
Se ama o que não ama
Tão irreparável
Que doença é essa
Que louca se apressa
Para o inevitável?
Porto de Galinhas, agosto 1987.
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