terça-feira, 27 de maio de 2014
Questão de polícia?
A violência crescente no Brasil me fez recordar uma frase famosa atribuída a um presidente da República Velha: A questão social é uma questão de polícia. Vai sem aspas porque cito de memória. O autor da frase, Washington Luís, expressa assim, de forma chocantemente reveladora, a mentalidade profunda da nossa classe dirigente. Ela pensava assim nos idos da década de 1920 e continua pensando tal e qual: questão social no Brasil é questão de polícia. Quando o povo tratado como gado se organiza para reivindicar o direito de ingressar no espaço da cidadania efetiva, não esta de clipe publicitário e propaganda oficial que vemos todos os dias paga pelo dinheiro do contribuinte, a classe dirigente, fiel à sua tradição, solta a polícia nas ruas, favelas, onde houver povo lutando para ser politicamente reconhecido como povo.
Quanto maior a pressão na panela, maior a força de repressão policial. Noutros termos, o governo de hoje continua fiel ao espírito da frase de Washington Luís. O mais inquietante é que a pressão na panela é crescente. Depois de séculos usando o mesmo remédio para sufocar problemas que logicamente tendem a agravar-se, o risco de a pressão estourar a panela não é nada improvável. Não me refiro a nenhuma revolução social, alerto os extremistas à esquerda e à direita. Refiro-me a uma explosão de violência cujos sinais são cada vez mais manifestos. O noticiário banal, cada vez mais um caso de polícia, assim como o cotidiano violento dos formigueiros urbanos onde se concentram cerca de 80% da população brasileira, são indícios inegáveis de um país às bordas de uma guerra civil. Somos incapazes de perceber a gravidade dessas evidências por uma razão muito simples: nossa violência está entranhada na nossa formação e história. Seres humanos tendem a ser espontaneamente etnocêntricos, isto é, tendem a aceitar como padrão de normalidade a realidade que vivem. Se vivemos num clima de violência rotineira, como é fato, passamos a viver a violência, também a exercê-la, inconscientes dessa realidade, ou simplesmente vivendo-a e tolerando-a como padrão de normalidade.
Até Paulo Coelho, guru supremo da literatura de auto-ajuda globalizada, vaticinou há poucos dias, em entrevista difundida na internet, a violência que muitos temem sacudir a Copa do Mundo. Embora convidado oficial da Fifa, o escritor, que há muitos anos vive fora do Brasil, como tantos que podem dar-se a esse luxo, recusou o convite. Vem ao Brasil apenas quando necessário. Como o futebol da Copa do Mundo não lhe parece necessário, e nisso afinal concordo com ele, melhor guardar distância dessa festa planetária que, a julgar pela previsão do guru, vai ter mais violência do que futebol.
Já que entramos neste assunto, futebol, por que a violência se agrava nos estádios, chegando, como é agora o caso, a extremos de barbárie aberrante? Quem sou eu para explicar essas coisas, muito menos propor solução para elas. Se as autoridades e especialistas parecem impotentes para conter a maré montante, que dizer de mim? Digo apenas que o fenômeno me transporta de volta à frase de Washington Luís. Embora o problema seja de extrema gravidade, e crescentemente se agrave, a classe dirigente, fiel ao jeitinho brasileiro, continua empurrando o problema e a solução com a barriga. Dá-se um jeitinho aqui, outro acolá, e tudo continua como está. Quero dizer, piora. Agora essa evidência indesejável salta aos olhos. As medidas tomadas pelo governo são foguetório para inglês ver, como se dizia em remotos tempos coloniais.
Compreender o funcionamento social e cultural do Brasil é uma coisa tão complicada que até nos casos em que a questão é nitidamente de polícia o governo se comporta como se a questão fosse de campanha educativa, medidas paliativas, declaração pública de boas intenções (quase me escapa o desfecho das intenções com o lugar comum previsível) e exortação midiática contra a violência seguida de louvores à paz. Em suma, tudo continua como vinha. Quero dizer, continua pior. Muitos dos casos de violência corrente são típicos de uma cultura regida pelo excesso, que na sua aba negativa descamba para a anarquia social. Isso está entranhado na nossa história. Não vem de hoje, portanto, nem de circunstâncias excepcionais. Sérgio Buarque de Holanda põe o dedo agudo nessa ferida quando salienta nossa mentalidade de barão. Como nunca fomos capazes de constituir uma ordem verdadeiramente democrática, quem pode tende a se comportar como barão. Como há barão em demasia, por vezes a desordem se converte em anarquia social. É aí que a maioria, sem excluir muitos democratas e liberais empedernidos, convoca o primeiro tirano à mão, ou as forças armadas. Esse é outro filme que já vimos muitas vezes.
Apesar de todo o foguetório de quase 20 anos sob o governo daqueles que supostamente constituiriam a alternativa legal para a classe dirigente que governa questão social confundindo-a com questão policial, o Brasil melhorou topicamente, evidência irrecusável, mas nada fez para sequer encaminhar as soluções estruturais mais urgentes. Depois de tanto repor o atraso como condição do desenvolvimento restrito a objetivos economicistas, apenas variando em grau a modernização conservadora imposta a porrada pela ditadura militar, chegamos ao impasse presente: a desigualdade iníqua, expressão que já virou lugar comum, atrelada a todos os problemas crônicos que vemos e sofremos nas ruas e no noticiário do dia: formigueiros humanos empilhados em metrópoles e cidades que semelham acampamentos urbanos, imobilidade urbana crescente, violência idem. O resto do filme todo mundo está cansado de ver: educação, saúde, segurança, transporte etc. aos bandalhos.
Quem ainda lembra a imprevisível e desastrosa ascensão de Fernando Collor, um jovem bonito das Alagoas cuja história política era praticamente nula quando saltou do anonimato para a presidência da República? Quem ainda lembra os mecanismos da publicidade astuciosa com que foi de um extremo ao outro? Fernando Collor vendeu com sucesso a imagem do caçador de marajás (expressão anacrônica cujo sentido continua atualíssimo) revolvendo assim a impotência e a revolta recalcada de um povo tratado como gado em hospitais públicos, repartições públicas etc. 26 anos mais tarde, continuo vendo o mesmo filme na televisão e na mídia em geral. É o filme que mais conheço sobre o Brasil, pois comecei a vê-lo na minha infância. Por essas e outras, o Brasil me transmite ainda a sensação depressiva de uma descrença paralisante.
Parece que o povo – ou a ralé do andar de baixo, como reza a expressão pejorativa repisada por profissionais da mídia – está cansado de ser gado. Ou simplesmente já não suporta o stress (como dizemos nós, os privilegiados, e o próprio brasileiro do andar de baixo já repete) que é viver e trabalhar no ‘Brasil de todos”, diz o mote insultuoso do partido que veio de baixo para se tornar igualzinho aos que sempre estiveram em cima. Pipocando de stress, o povo se rebela desordenadamente e agora parte para o quebra-quebra: queima ônibus e vagões de trem, fecha ruas e rodovias queimando pneus e imobilizando contingentes de veículos e pessoas ao longo de quilômetros nas vias ferventes de tensão e conflito. Raramente cenas dessa natureza são provocadas por grupos politicamente organizados. Portanto, não se trata de mobilização política do povo. O fenômeno sugere antes o desatino de um povo no limite da exaustão decorrente de formas endêmicas de opressão social. O que fará a classe dirigente diante de pressões tão inquietantes e incontroláveis? Continuará seguindo a regra crua da frase procedente de Washington Luís?
Há muito tempo, entre 1896-97, milhares de sertanejos nordestinos escaldados pela miséria tentaram fundar uma cidade comunitária regida pelo messianismo de Antônio Conselheiro num fim de mundo do mapa da Bahia. A Guerra de Canudos, desencadeada pelo exército brasileiro contra os canudenses, foi sem exagero um acontecimento épico na história do Brasil. O desfecho ilustrou de forma brutal a frase que Washington Luís cunhou algumas décadas mais tarde. Os canudenses foram literalmente varridos do sertão depois de exterminados até o último combatente. Seus herdeiros, no mato sem cachorro, ou Fabianos sem Baleia, para evocar a obra de Graciliano Ramos, migraram para a cidade. Muitos, absorvidos pelos mecanismos produtivos do nosso capitalismo selvagem, construíram tudo isso que vemos e desfrutamos à nossa volta. Constroem durante o dia e à noite tentam repor a força de trabalho transportados de volta à periferia como gado em ônibus, trem e metrô. Outros, os mais desvalidos, moram provisoriamente nas obras que erguem tijolo sobre tijolo. Mas uma grande fração desse povo é inassimilável ao sistema produtivo. Por isso engrossa a corrente do que Marx chamava de lumpen proletariado. Hoje de manhã vi um deles (militante do Movimento dos sem Teto) ocupando um prédio no centro de São Paulo. Sua procedência, seu lugar social era inconfundível: o tradicional chapéu de couro do sertanejo nordestino banido da utopia sonhada por Antônio Conselheiro. A imagem na televisão piscava para quem sabe das origens. Parecia advertir: Canudos está em São Paulo e quer o que o beato Conselheiro e Padim Ciço prometeram aos desvalidos deste país. Qual será a resposta dos herdeiros de Washington Luís? Aguardem o próximo capítulo. O guru Paulo Coelho prefere sensatamente espiar à distância guarnecido pela civilização europeia. Mas nós estamos aqui, espremidos entre a questão social e a policial. Não haverá uma saída?
Recife, 07 de maio de 2014.
domingo, 25 de maio de 2014
Nos Murais da Internet IV
Paranóia Social
Antes que alguém me acuse de psicologizar questão social, alerto para o fato de que onde há fumaça, há fogo, lembrando o dito popular. Paranóia não é puro delírio ou alucinação patológica. A paranóia tem sempre um pé no contexto social, no espaço real onde o paranóico pisa. Acabo de dar uma volta de carro pelo bairro onde moro (Setúbal e algumas extensões). Não consegui nem comprar pão. Quase tudo fechado, até clínica de hidroterapia. Perto da praça de Boa Viagem vi um automóvel em chamas e gente fotografando a cena. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Há sem dúvida paranóia no ar, mas o fogo está queimando no solo onde ela pisa. Nenhum povo vive sem mitos, como nos ensinam os antropólogos. No entanto, triste de um país que vive de mitos, como é o caso do Brasil, a começar pelo mito do país da esperança. Aliás, este cabe como uma luva na nossa mão torta. Só se espera o que não se tem. É o caso dos brasileiros. Lembrem do contramito cantado por Chico Buarque: está provado, quem espera nunca alcança. Há só um remédio para a esperança: a vontade que gera ação transformadora. (15 de maio 2014).
Consumo versus civilização
Definindo civilização nos termos mais simples e neutros, o ser civilizado é aquele que respeita as normas de funcionamento da sociedade em que vive. Ninguém nasce civilizado. Internalizamos essas normas através de um longo e complexo processo de socialização que começa na família e passa para a escola, a religião e outras instituições socializadoras. No Brasil, nenhuma delas funciona efetivamente. A sociedade de consumo, na qual somos o que consumimos, ameaça ainda mais esses controles sociais. Os que têm vivem no shopping, templo desse novo mundo. Os que não têm sitiam o shopping e extensões da rede de consumo empilhados em favelas. Esses mundos antagônicos definem a paisagem potencialmente violenta da cidade brasileira. Quando a polícia cruza os braços, os que têm fecham as portas para proteger-se do saque desencadeado pelos que não têm e são de ordinário contidos apenas pelo medo da polícia e dos automatismos cotidianos da vida social. Os que têm fecham as portas e os que não têm começam a arrombar as que podem. Foi o que vimos e tememos nos dois dias de greve da polícia. (16 de maio 2014).
Volta à normalidade
No dia seguinte ao fim da greve dos policiais e bombeiros, repeti a volta de carro da véspera pelas redondezas. Que prazer respirar novamente esse ar de normalidade recifense! Na Av. Boa Viagem os motoristas, em pleno trânsito confuso, conversam ao celular, furam sinal vermelho, estacionam onde é proibido. A transgressão habitual. Na curva da Rua Baltazar Passos, por pouco não atropelei um ciclista pedalando na contra-mão. Ciclista no Recife acha que bicicleta (ou Bike, como colonizadamente dizemos) não é veículo. Diante da escola, o engarrafamento previsível provocado por pais que formam fila dupla e até tripla. É assim que nossas crianças são socializadas. Do parque Dona Lindu nem falo, pois num país civilizado seria caso de polícia. Por fim, almoçando no restaurante, ouço o dono e a cliente bela e elegante, almoçando com um casal de filhos pequenos, comentando os incidentes e saques da véspera:
Ela – Uma vergonha. Fecharam o mercadinho porque foi assaltado por dois bandidos. A polícia chegou a tempo e atirou neles. Matou um.
Dono do restaurante – que bom!
Em suma, que alívio voltar à normalidade. Espero que a gente continue sempre assim. Um povo que vive desse jeito não precisa de repressão policial. (18 maio 2014).
quinta-feira, 22 de maio de 2014
Nos Murais da Internet III
A ditadura e seu legado
Caro Carlos Orsi: Muito bom o seu artigo sobre a ditadura e seu legado. As distinções que você faz, tendo como eixo o valor suprimido da democracia, esclarecem de forma sumária, como seria inevitável dentro dos limites do artigo, algumas confusões frequentes nos debates sobre o assunto. Acrescentaria apenas que a ditadura foi mais do que militar-civil. Ela foi também amplamente apoiada pelo povo, sobretudo pela via da passividade ou indiferença. Acho que a explicação deste fato, no geral silenciado até pelos críticos mais lúcidos e isentos, deriva do autoritarismo constitutivo da nossa formação social. Vivi boa parte dos “anos de chumbo” trabalhando numa fábrica e convivendo intensamente com operários, gente da classe média baixa e habitantes da zona açucareira de Pernambuco, linha de ponta da revolução que não houve nem poderia haver, salvo nas avaliações fantasiosas da esquerda e da direita paranóica, que usou isso como instrumento para justificar o golpe. Vivi com o outro pé na universidade estudando direito. Afora os gatos pingados que opunham alguma resistência à ditadura, antes de tudo no plano da consciência, o apoio à ditadura era massivo. Cansei de ouvir elogios rasgados a Médici e aos militares. Seria engano supor que essa mentalidade autoritária mudou muito. A democracia que você ressalta, e inteiramente aprovo, é de fato muito restrita, pois o Brasil mantém fora dela a maioria que somente poderia exercê-la se nossa noção de democracia se estendesse efetivamente para o plano social. Noutras palavras, precisamos ainda da democracia que nunca tivemos: a social, a que removeria a maioria do povo do estado de tirania social e econômica a que continua submetido. Não preciso acrescentar que somente ele, o povo, pode conquistá-la. (Blog Amálgama,27 de março 2014)
Estatismo brasileiro
Acho que só existe uma solução para o problema das estatais bem desenhado no editorial desta semana: privatizá-las. Privatizá-las, acrescento, impondo ao capital privado regulações efetivas impostas pelo Estado. Propor isso, no entanto, seria propor uma revolução que não interessa a ninguém, nem ao povo espoliado pelo modelo estatizante que sempre prevaleceu na nossa economia. Esse modelo, sabem os economistas e historiadores bem melhor que eu, remonta a Getúlio Vargas e nunca foi substancialmente alterado. Hegemônico na esfera econômica e política, sustenta-se sobretudo na mentalidade geral, que encara qualquer proposta de modernização segundo modelos como o anglo-saxônico como neoliberalismo – noutros tempos foi entreguismo. O modelo estatizante inabalável no Brasil serve antes de tudo como instrumento poderoso de espoliação do povo. (Revista Será?, 28 março 2014).
Petrobrás e estatais
Existe solução para as estatais que se servem da sociedade (do dinheiro do contribuinte, melhor dizendo), quando deveria ser o contrário. Existe solução, mas é difícil e de resto ninguém quer sequer pensá-la. A solução seria privatizar as estatais. Mas antes seria preciso submeter o Estado brasileiro a uma reforma profunda, que seria na verdade uma revolução: converter suas estruturas patrimoniais em instituições democráticas modernas características de uma autêntica social-democracia. No Brasil tal como é, esta solução é inconcebível. Portanto, tudo vai continuar como sempre foi. Como observei algures, nunca subestimem o poder de inércia social do Brasil. Noutras palavras, a força das nossas tradições retrógadas. Somente a organização democrática do povo poderia forçar essas mudanças. Mas o povo nada sabe nem quer saber. O povo, domesticado por cinco séculos de tirania patrimonialista e catequese que afinal nos valeu um santo, continua achando que tudo deve vir do governo: o governo pai, atualmente mãe Roussef, e provedor. Com um Estado como o nosso, o Brasil continua sendo o paraíso do capitalismo sem risco, também das multinacionais e corporações que aqui fazem o que querem. (Revista Será?, 28 março 2014).
Radicalização e violência
Discordo da estranheza acentuada no Editorial da Revista Será?: Radicalização e Violência. A democracia que temos de fato é e sempre foi restrita. Ela exclui a maioria dos brasileiros. Liberdade de expressão, por exemplo, é um direito que importa apenas para a minoria que pensa e opina no Brasil. Não significa nada para a maioria que vive um cotidiano factualmente opressivo e violento. Nossa violência é endêmica e impregna nossos modos correntes de vida. É tão endêmica que nem a percebemos. O que me espanta é a persistência dessa percepção mítica de um país sempre representado como alegre, feliz e festeiro. Somos também isso, mas tudo isso convive com a violência. Portanto, nada de estranhável. Aliás, acho mesmo é que devemos nos inquietar não só com o que está acontecendo, mas também com o tom dos dois comentários dos leitores que precedem este meu, que diante deles é sinceramente banal e previsível, vindo de quem vem. Acho que o leitor de Será? deveria ler com muita reflexão o tom dos comentários acima. Eles são a faísca de uma violência social há muito reprimida neste país que me inquieta e transtorna minhas medidas de compreensão. (Revista Será?, 3 maio 2014).
Radicalização e violência II
Não resisto ao desejo de fazer uma adição ao meu comentário. O comentário de César Garcia parece o fragmento de um conto de Rubem Fonseca, escritor que ousaria dizer profético. Como sabemos, ele teve um livro de contos (Feliz Ano Novo) censurado pela ditadura. Se não soubesse um pouco de política, acharia irônica a censura a uma obra literária sobre a violência brutal no auge de uma ditadura. Acho sintomático o fato de o escritor que melhor traduziu literariamente a violência brasileira ter sido um delegado de polícia. Continuo achando que o conjunto da obra de Rubem Fonseca é o que melhor explica os formigueiros urbanos que habitamos. A classe dirigente brasileira, herdeira do colonialismo e do escravismo, continua governando a sétima economia do mundo com a mentalidade dos engenhos cujo fogo já se apagou há muito tempo. Essa é uma das contradições desconcertantes entre a história das mentalidades e a econômica. (Revista Será?, 3 maio 2014).
O despertar do gigante
Teresa Sales: Você tem razão ao assinalar distinções significativas entre dois tempos do Brasil “despedaçado”. No entanto, acho que sua apreciação é otimista demais ao traduzir as explosões sociais agora correntes com o despertar do gigante. Sem dúvida, ele está despertando em muitos sentidos. Mas o trote da carruagem, a julgar pelos fatos cotidianos, tende mais para a reação desordenada, para explosões sociais que, na falta de melhor expressão, designaria como movimentos pré-políticos. Um dos aspectos inquietantes dessas manifestações, como aliás ressalta o Editorial desta semana, é a violência, é a depredação anárquica do nosso frágil tecido social. Noto na revista uma concepção um tanto difusa de democracia que tende, salvo erro de avaliação minha, a confundir democracia com funcionamento das instituições políticas. Ora, isso é muito pouco para definir a estabilidade democrática de um país como o Brasil. Sustento a opinião de que a maioria, apesar do bolsa família e outras mudanças positivas, continua vivendo à margem de um Estado efetivamente democrático.
Enquanto não tivermos democracia social para valer, e estamos ainda muito longe disso, as forças de instabilidade, potencialmente anárquicas, são sempre uma ameaça possível. Minha perspectiva, como frisei discutindo com Sérgio Buarque, é a da longue durée, até porque não tenho competência como alguns da revista, para opinar com segurança sobre os processos vivos e conjunturais da política e da economia. Por observar o Brasil do ângulo acima acentuado, não consigo ser otimista. Uma análise mais adequada teria que incorporar as mudanças profundas do capitalismo global e o modo como ele funciona num país periférico como o Brasil, que nunca foi capaz de ajustar suas contas com a modernidade. Tentei sugerir algo disso no comentário que postei sob o título Consumo vs. Civilização. (Comentário sobre o artigo de Teresa Sales, O despertar do gigante, Revista Será?, 17 maio 2014).
terça-feira, 20 de maio de 2014
Nos Murais da Internet II
Brasil Insolúvel
Depois de tanto arriscar a própria vida em busca de uma solução para o Brasil, até para a humanidade, pois todo utópico é no fundo um delirante, Ferreira Gullar curvou-se à força dos fatos: a vida não tem solução. O verso é da letra que escreveu para um belo samba de Paulinho da Viola. O problema do Brasil, no entanto, é que ele é insolúvel além de qualquer medida razoável. Problemas básicos que outros países solucionaram, no Brasil persistem, quando não se agravam. Ao invés de lutar por soluções viáveis, algumas bem simples, preferimos nos refugiar na festa, na piada, em mitos consoladores como Brasil, país do futuro. O futuro está sempre além, aquém ou em nenhum lugar. Por isso nunca o alcançamos. Além do mais, o melhor dele é fruto de projetos do presente, que é o único tempo real. Mas nos resignamos a ser um país pequeno, cuja grandeza está apenas no carnaval e no futebol. Também nos consolamos com a esperança, sintoma de desamparo no presente. Só quem está muito mal é que vive de nutrir esperança. A esperança, como o futuro, está sempre além do nosso poder e vontade. Quando faremos do presente um presente que confirme nossa grandeza imaginária? (11 de março 2014)
Mobilidade carnavalesca
Tentei chegar à prévia do Piano, troça carnavalesca na qual cantei muitas vezes e vivi carnavais memoráveis. No Pina o trânsito deu um nó tão apertado que acabei perdendo a paciência e descendo do ônibus (opcional, friso). Precisei andar cerca de 7 km para afinal encontrar um táxi (na praça de Boa Viagem) e voltar para casa frustrado e cansado. Liguei a TV e então vi o povo nas ruas alegre e feliz. Fico imaginando o que sofreu para chegar aos pólos da folia e penso o que muitas vezes já pensei ao ver a resignação e tolerância com que nosso povo suporta tantas opressões cotidianas que logo se dissolvem em riso, batuque e festa. O que penso é isto: como o povo brasileiro se contenta com tão pouco! De onde vem tanta alegria e prazer de viver mesclados a um estado cotidiano de coisas tão opressivas e revoltantes? Confesso que não entendo nem louvo esse modo de ser brasileiro. Talvez ele explique o fato de sermos um país tão pequeno, tão pequeno que se consola com sua grandeza geográfica. Esse povo, transportado nas nossas cidades como gado, humilhado de todas as formas, se desmancha em festa delirante e inconsciente ao ouvir o bater de um tambor. Merecemos ser o que somos. (27 de fevereiro 2014)
Beijo gay na TV Globo:
Acabo de ler uma postagem de Renato Janine Ribeiro sobre o beijo gay que fecha com final feliz (ou infeliz?) uma telenovela da Globo. O impressionante é o fato de a emissora divulgar uma nota para a mídia justificando a cena. O Brasil definitivamente foge à minha estreiteza mental. Como é que, a essa altura da história, o país que se vangloria de sua sensualidade, de suas virtudes integradoras, capaz de juntar na mesma mesa e cama todas as raças, classes e ideologias, pelo menos de acordo com os mitos correntes, precisa apresentar uma justificativa moral e estética para uma cena de beijo entre dois gays? Países de tradição puritana, como a Inglaterra e os EUA, já banalizaram esse tema e a liberdade a ele associada, que é matéria de direitos humanos sancionada em lei. Lei lá não é como aqui, que discutimos ao infinito se pega ou não pega. Tenho que concluir repisando um inevitável lugar comum: o Brasil não existe. Ou é uma ficção inventada pela Globo. Tudo isso por causa de um beijo entre dois gays? (3 de fevereiro 2014)
Tesouros de João Pessoa
Para Fatima, Paulo, Juliana, Rosa, António, Eduardo, Taciana, Salete, Nino, Marcelle, Junior e João Batista:
Amigo é coisa tão rara
Em meio a tanto comércio
Que há quem confunda a cara
Com a coroa do preço.
Em João Pessoa me deram
O que mais quero e careço
Sendo o que são, o que eram
Eu tão-somente agradeço
O tudo que não tem paga
O tudo que em trigo teço
O que a maré apaga
E entanto sempre amanheço
Como a aurora na linha
Entre o arco-íris e o mar.
Tudo converge e se aninha
No que já foi e será.
(João Pessoa, 14 de janeiro de 2014).
A destruição da nossa memória social:
No fim dos anos 1970 fui morar em São Paulo. Lembro-me ainda do impacto que sofri diluído dentro daquela floresta de concreto. Lembro-me ainda de sentir a alienação dolorosa de quem vive numa cidade que demoliu os suportes materiais da memória social de quem a habita: prédios, praças, jardins, cinemas e todo o complexo arquitetônico cujo sentido humano consiste no fato de simbolizar a memória que vivemos no espaço da cidade. Meu estranhamento foi tão doloroso que senti a urgência de conhecer a história de São Paulo com seu passado submerso na paisagem de concreto e ruas de trânsito congelado. Foi quando descobri e li comovido o livro de Ecléa Bosi: Memória e Sociedade - lembranças de velhos. É uma das mais belas expressões do que significa memória social.
Acreditem que hoje sinto, morando no Recife, sensação de estranhamento semelhante: não mais me reconheço na cidade da minha infância, adolescência, juventude... O caso é bem mais grave. Em São Paulo eu era já o estranho que chegava; aqui estou me tornando estranho porque o poder da política corrupta e do capital desalmado estão demolindo a cidade onde vivi a maior parte da minha vida. Algo de mim, algo de cada recifense portador de memória ruiu com as paredes e a história sem texto do Edifício Caiçara. (28 de setembro 2013)
Medicina no Brasil:
Tenho evitado me meter nesta controvérsia relativa à importação de médicos estrangeiros, em particular os cubanos. Minha justificativa é muito simples: contrariamente a tantos que opinam à vontade sobre tudo, sobretudo acerca do que nada entendem, procuro opinar apenas quando tenho razões fundamentadas para fazê-lo. Este caso, porém, chegou a extremos intoleráveis. Refiro-me, em particular, às vaias dos médicos de Fortaleza, que constituem insulto inqualificável. Sem entrar nos detalhes da controvérsia, lembro pelo menos um argumento definitivo para que eu aprove a importação de qualquer médico qualificado e portador dos meios culturais e linguísticos necessários ao exercício de sua profissão no Brasil: eles vão para onde ninguém quer ir. Essa campanha implacável movida pelas instituições médicas, aparentemente em defesa da saúde dos pacientes, serve antes de tudo para encobrir e justificar a mentalidade corporativa dominante neste país cruel. O que defendem de forma inconfessável é antes de tudo interesses mercantis. Além disso, os médicos estrangeiros estão indo trabalhar aonde ninguém quer ir, repito. Acredito que levarão algum socorro a uma grande parcela dos brasileiros desamparados e expostos ao puro e simples abandono.
Quanto aos nossos médicos de todas as faixas, excluo as exceções de praxe, todos os dias abusam dos nossos direitos. Refiro-me precisamente a pacientes do meu tipo, relativamente privilegiados. Ainda não temos, pelo menos no Recife, sequer o direito elementar de ser atendidos mediante hora marcada. Ontem mesmo fui a um hospital de referência, o Memorial São José, e esperei 2 horas para ser atendido por um cirurgião que me despachou depois de 5 minutos. E esperei numa sala cheia, televisão ligada, como a teletela de 1984 (George Orwell), sentado numa cadeira apertada e desconfortável. Quando mudaremos o Brasil Profundo, o que harmoniza tecnologia de ponta e outros luxos do capitalismo globalizado com a mentalidade escravocrata que envenena ainda hoje nossas relações sociais? (27 de agosto 2013)
Médicos cubanos
Depois de ver reportagens do Jornal Nacional (ontem e anteontem) sobre a contratação de médicos cubanos, retifico o apoio, embora condicional, que emprestei a essa medida do governo. Além disso, peço desculpas a meu amigo José Carlos Cordeiro Freire, um dos mais intransigentes críticos do governo, por ter discordado dele. Lembrando um samba de Paulo Vanzoloni, curvo-me à força dos fatos. Aliás, acho que este princípio deveria reger todo tipo de discussão que travamos no Facebook. Se os fatos prevalecessem sobre o discurso ideológico, sempre deformado por nossas paixões e interesses não raro inconscientes, seríamos melhor formados pelo debate público no qual nos empenhamos. Mas quem está interessado nisso e em tudo mais, salvo o carnaval? O Brasil realizou o milagre de reduzir pão e circo a circo.
(1 de março 2014)
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Nos Murais da Internet
Transcrevo abaixo alguns textos curtos que escrevi e postei no mural do Facebook e no espaço de comentário de blogs e revistas eletrônicas dos quais sou ou fui colaborador. São textos obrigatoriamente sumários: ora uma nota crítica sobre assunto corrente, ora a apreciação sumária de alguma questão excepcional ou ainda banal, quando não evidência momentânea de impasses sociais ou existenciais. Sendo de tal natureza, é duvidoso que resistam à leitura isenta da circunstância que os animou. Ainda assim, arrisco-me a postá-los no meu blog. Receio que não interessem a quase ninguém, mas aí ficam como registro fugaz de um sopro do tempo e da história que de algum modo se imprime na minha vida e na do leitor improvável.
Biografia autorizada
Noto com prazer que o último editorial da revista Será?(que me desculpem os editores, mas insisto em designar a opinião semanal do periódico como editorial) está provocando muito debate. Sou um leitor apaixonado de biografias, que costumo incluir numa categoria mais ampla: a literatura íntima. Portanto, modéstia à parte, conheço razoavelmente não apenas a produção nacional, mas sobretudo a anglo-saxônica. Fiquei profundamente decepcionado ao constatar que artistas e intelectuais que admiro associaram-se para promover de forma pública e ativa um ato de violação fundamental à liberdade de expressão. Sei que a questão é complexa. Os comentários que andei lendo na mídia sugerem o quanto é controvertida. Por isso vou ressaltar alguns pontos que me parecem mais importantes.
O biografado é por definição uma figura pública. Quem já ouviu falar em biografia de algum anônimo? Sendo público, ele perde o direito à sua privacidade. Tanto isso é verdade que produz uma obra precisamente com o objetivo de sair do anonimato. Outra prova: todos querem que escrevam as biografias que aprovariam, a biografia que convém à sua vontade e narcisismo. Chico Buarque, por exemplo, aprovou e colaborou ativamente para que Regina Zappa (nem sei se escrevo o nome preciso, tão irrelevante é o perfil que escreveu sobre ele) publicasse um livro sobre a sua vida e obra que não agüentei ler a metade. A razão? Não passa de obra de celebração, livro de fã para exaltar o ídolo. Ora, não é este o objetivo nem a função principal da biografia. A biografia, no seu melhor sentido, é um subgênero da historiografia compreendida em sentido amplo. Portanto, obedece a critérios de pesquisa e interpretação que a tornam expressão relevante de toda grande tradição letrada.
O Brasil ainda produz muita biografia ruim, ou puramente jornalística, compreendido o termo no seu sentido meramente factual ou rasteiramente crítico, porque não firmou ainda uma tradição como a que se observa, por exemplo, no ambiente intelectual anglo-saxônico. A imposição da biografia autorizada é antes de tudo uma violação da liberdade de expressão, mas é também um obstáculo à lenta sedimentação de uma tradição de literatura íntima digna das grandes tradições intelectuais. É portanto desolador constatar que estamos ameaçados por esse retrocesso no âmbito da produção intelectual e artística. Mais grave ainda, e profundamente decepcionante, é constatar que esse movimento obscurantista é ativamente endossado por artistas e intelectuais que foram vítimas do arbítrio autoritário, que produziram uma obra admirável em condições adversas e por isso inspiraram tanta admiração e respeito aos extratos mais democráticos da nossa sociedade. (21 de outubro 2013).
Biografia autorizada – comentário II
Caro João Rego:
Grato pelo comentário que alonga o meu e o enriquece com algumas achegas psicanalíticas. Você cita apropriadamente um ensaio de Freud ao qual poderíamos acrescentar “Psicologia de grupo e análise do ego”. Acrescentaria que o público leitor de biografia, assim como o grupo que a produz, é muito diferenciado. Há o leitor, também o biógrafo, que reduz a biografia a voyeurismo barato, ou olha pela brecha da fechadura movido por pulsões sado-masoquistas, inveja e outras motivações espúrias. Essa impureza está em tudo que é humano. Quando for o caso, que o ofendido ou caluniado recorra à justiça.
Minha preocupação, que procurei sugerir no comentário precedente, está orientada para a biografia como exercício de liberdade crítica, como expressão de cultura capaz de articular de forma crítica e iluminadora o autor, ou o biografado, e a obra que produz. Grande parte da melhor crítica filosófica e literária inglesa, por exemplo, é obra de biógrafos. Citando um exemplo brasileiro, ainda que em escala bem inferior, um biógrafo como Ruy Castro concorreu de forma decisiva para repor Nelson Rodrigues e a Bossa Nova de forma renovada no cenário intelectual e artístico brasileiro.
Como você, admiro profundamente Chico Buarque e Caetano Veloso, expressões definitivas da nossa cultura. Além disso, sabemos que a importância deles transcende a esfera musical. Por isso precisam ser estudados e criticados de forma livre. Pelo visto, estão decididos a fazer o que possam para que sobre eles se publique apenas o que querem que seja publicado. Se isso não é censura prévia e atentado contra a liberdade de expressão, então, citando versos do censurado de outrora, “chame o ladrão, chame o ladrão”. (21 de outubro 2013).
Che, o filme
Ontem assisti num dos cinemas do Shopping Guararapes à segunda parte de Che, dirigido por Steven Soderbergh. Há uma evidente ruptura temporal entre a primeira e esta. A primeira acaba quando os revolucionários liderados por Fidel Castro e Guevara estão a caminho de Havana com a revolução já triunfante; a segunda concentra-se na Bolívia depois que Guevara renuncia à função dirigente que exercia no governo revolucionário para consagrar-se integralmente à ação guerrilheira nos campos e montanhas bolivianas.
Vi o filme numa sala quase entregue às moscas. Havia apenas uns três gatos pingados, todos ainda mais velhos que eu. Como explicar que o mito Guevara, estampado em camisetas, bandeiras e posters difundidos pela cultura de massa não atraia um jovem sequer à sala do cinema? Longe de mim propor qualquer explicação. Acho apenas que a sociedade de consumo devora tudo, até sua negação radical. Como admitir isso sem ser picado pela sensação de impotência ou até de niilismo em face dos poderes sociais vigentes? A política radical identificada como foquismo nos anos 1960 é puro delírio revolucionário, tão inviável quanto o radicalismo anarquista do grupo Baader Meinhof, também convertido recentemente em filme. Aliás, parece-me bem melhor do que os dois de Soderbergh dedicados ao mito Guevara. (04 de novembro 2009).
Os dez melhores livros
Já que tantos estão brincando de listar os dez melhores livros e até escalando seleção de livros, como é o caso de Cristiano Ramos, intrometo-me na brincadeira e posto a minha lista. Adianto que sigo o critério proposto por Elizabeth Hazin, isto é, livros que nos marcaram nas circunstâncias singulares em que os lemos. Daí pode-se logicamente deduzir que pelos menos alguns dos livros que incluo na minha lista poderiam ser excluídos se acaso os submetesse a uma releitura. Esclareço, por fim, que a lista é composta pelos dez primeiros livros que me vieram à memória. Se me detivesse rememorando leituras, por certo a lista seria outra.
1 – Hamlet – Shakespeare
2 – King Lear – Shakespeare
3 – Ensaios – Montaigne
4 – Dom Quixote – Cervantes
5 – Judas, o Obscuro – Thomas Hardy
6 – A Consciência de Zeno – Italo Svevo
7 – O Processo Maurizius – Jakob Wassermann
8 – Moon Tiger – Penelope Lively
9 – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
10 – Macunaíma – Mário de Andrade.
P. S. – Mal concluí a lista, lembrei-me de Crime e Castigo e Guerra e Paz, que com certeza entrariam na minha lista definitiva. (31 de janeiro 2014)
quinta-feira, 15 de maio de 2014
Política e Psicanálise
Comento tardiamente o artigo de João Rego: O político, o homem e a razão cética, publicado na revista eletrônica Será? João Rego tem com freqüência citado Freud, notadamente O mal-estar na civilização (este termo, aliás, mereceria um artigo esclarecedor), para definir sua compreensão da política e questões de fundo social discutidas nessa revista. Sua perspectiva me parece decorrer, antes de tudo, da sua qualificação como analista e portanto leitor da obra de Freud. A representação corrente da psicanálise é muito deformadora dos seus fundamentos, já que tende a restringir sua validade e exercício à relação clínica entre o analista e o paciente. Há portanto quem ignore, inclusive muitos praticantes da psicanálise, suas ambições explicativas mais amplas. Se perdemos de vista essa dimensão, não podemos sequer imaginar o impacto exercido pela psicanálise no movimento intelectual do século 20. Um verso de Auden, um dos que foram profundamente influenciados por ela, condensa em poucas palavras o que estou aqui sugerindo: Freud tornou-se um clima de opinião. Traduzo assim livremente, e sem aspas, o que ele expressa num poema em memória de Freud pouco depois de este morrer.
É certo que a formação de Freud prende-se de imediato às ciências naturais (generalizo para simplificar a exposição) num estágio de desenvolvimento dessas ciências tão acelerado que do seu bojo brotou a ideologia do cientificismo. Explicando-a grosseiramente, reduzia tudo à ciência. De acordo com essa perspectiva ideológica, a ciência era o fundamento do progresso humano e, no limite, tendia a explicar tudo. Na periferia da cultura européia, é o caso do Brasil, intelectuais como Euclides da Cunha validaram a inviabilidade racial do povo brasileiro baseados nessa ideologia espúria. Sabemos que retificou esse erro, mas não ao ponto de suprimir graves ambivalências e contradições observáveis na sua inquestionável obra-prima. Também Freud pagou tributo ao cientificismo, como é patente nos textos em que interpreta obras artísticas. Diria que o que salva Freud dos erros dessa ideologia é sua formação humanística e sua intuição profunda da natureza indomesticável das pulsões humanas. É graças a essa concepção que, sobretudo na sua obra tardia, retoma de forma explícita questões sócio-culturais como as que João Rego ressalta no seu artigo.
Acho que uma apreciação psicológica da política é fundamental. Freud é uma das matrizes modernas dessa abordagem, embora nunca tenha escrito estritamente sobre o assunto. Visando sugerir a fecundidade dessa perspectiva interpretativa, lembraria os muitos analistas e comentadores da psicanálise que a exploraram de forma explícita. Evito citar nomes, pois há uma infinidade deles. Uma das limitações sérias de muitos dos nossos estudos sobre a política, em particular a brasileira, deriva dessa omissão de uma concepção psicológica do ser humano. João Rego tem esboçado com pertinência essa dimensão interpretativa no que escreve para a revista Será?
Retomando um pouco seu argumento, ele se baseia antes de tudo em O mal-estar na civilização para expor argumentos que o leitor apressado pode simplesmente interpretar como pessimistas ou até niilistas. Um argumento que me parece central na obra de Freud acima citada consiste na ideia de que há no ser humano um cerne biológico indomesticável pela civilização. É isso o que explica o título da obra. Também explica a recusa de Freud a uma noção otimista do progresso humano, apesar de ocasionais ambivalências contidas no conjunto da sua obra. Explica por fim sua recusa a qualquer utopia. Convenhamos: se acreditava na natureza indomável do egoísmo e da agressividade humana, como validar ou propor qualquer projeto utópico?
Freud procede no livro a uma breve crítica do comunismo. Observa que este supõe a crença na propriedade como fundamento dos males humanos. Suprimida a propriedade, instituída a igualdade social na espécie, realizaríamos afinal a utópica reconciliação da humanidade. Para mim, isso não passa de substituto secular da religião. Baseado na psicanálise, Freud desqualificou esse experimento histórico em 1930, ano em que publicou O mal-estar na civilização. Bertrand Russell o precedeu nessa objeção certeira. Em 1921 foi à Rússia conhecer de perto a revolução em processo. Conheceu Lênin pessoalmente. Depois do que observou, escreveu um livro contra o comunismo que mesmo na liberal Inglaterra o deixou política e intelectualmente quase isolado. A prova de que ambos estavam certos, Freud e Russell, depois da catástrofe que foi a experiência comunista ao longo do século 20, não é mais questão de teoria, mas sim de ideologia. Os fatos históricos estão aí para quem queira avaliar os fundamentos utópicos do comunismo.
A conclusão acima que, embutida na obra de Freud, também serve para validar a razão cética contida no título do artigo de João Rego, suprime o solo de onde brotam nossas ilusões mais tenazes. Ousaria acrescentar que pode ir além validando uma concepção niilista, se como tal entendemos a insolubilidade da condição humana. Na visão de Freud, Deus está morto, como antes, com implicações distintas, também afirmaram Dostoiévski e Nietzsche. Até no âmbito terapêutico Freud assinalou que tudo que a psicanálise poderia fazer seria substituir nossa miséria psíquica por uma neurose suportável. Friso traduzir livremente de memória o que ele escreveu. Acrescentou ainda que “civilização é repressão”. Embora tenha pioneiramente lutado para promover condições culturais passíveis de aliviar o peso insuportável da repressão sexual numa época profundamente diferente da permissividade hoje reinante, nunca relutou na defesa da civilização. Nesse sentido e em muitos outros que omito num breve artigo, a substância da sua obra e de sua orientação ética são incompatíveis com o espírito do presente. Isso explica em parte a compreensão deformadora da sua obra.
Em suma, Freud foi um gênio, um conquistador (termo de sua eleição) de territórios insondáveis do nosso psiquismo. Por isso a substância da sua obra é tão indigesta para o mundo regido pelo hedonismo e a permissividade em que vivemos. É também indigesta para os que não suportam viver privados do consolo de ilusões salvadoras ou o peso da existência humana sem a consolação de uma utopia passível de dissolver a tensão insolúvel entre desejo e realidade. Também por isso o veio aberto por João Rego pode fecundar leituras mais agudas da política e da nossa retorcida natureza.
segunda-feira, 12 de maio de 2014
A Sabedoria de Montaigne III
Pena que a mera leitura não seja transmissora de sabedoria, como de resto observei já na entrada deste ensaio improvisado num fim de semana que me privou voluntariamente de gente para me propiciar mais uma vez horas de serena acomodação do meu eu insolúvel com minha natureza desencontrada dos mais altos ideais a que aspiro. Mas sei que escolher a companhia de Montaigne e costurar palavras confusas num ensaio inspirado pela sua leitura é marchar na contracorrente do tempo, colidir com a realidade que cegamente flui para além da paisagem da minha janela. Há um abismo tão grande entre este ensaio e o que ele demanda da minha vida para o compor que encerro me interrogando inquieto sobre o lugar que Montaigne e sua sabedoria podem ainda ocupar nesse insensato mundo em que vivemos.
Homem da biblioteca e da estrada, insulado na sua torre e ator político num tempo de turbulências inusitadas, cultor da sabedoria dos antigos e prefeito mediando com sua sabedoria cética e prática facções contaminadas pelo fanatismo religioso, Montaigne foi e se sabia um tecido esgarçado de contradições. Por isso o gênero que criou, o ensaio, parece amoldar-se na sua forma como uma luva à mão cuja natureza é mover-se e contradizer-se a cada movimento da vida. Já assinalei a sabedoria com que foi capaz de converter a dúvida em virtude tolerante e sempre receptiva à fluidez da vida que a tantos transtorna. Por isso o comum da nossa humanidade, já antes também ressaltei, se refugia em certezas isentas de exame e não raro de fundamento aferível na ordem da verdade assimilável pela experiência refletida.
Montaigne viajou como um homem de espírito livre. Num tempo em que ninguém sonhava com a antropologia, comportou-se com curiosidade insaciável e tolerante em meio a uma realidade regida por valores opostos aos seus. Mesmo em tempos banais, quero dizer, isentos de conflitos e guerras provocadas pela intolerância religiosa e política, viajamos no geral com olhos cegos, olhos impermeáveis à desconcertante diversidade e até franca oposição entre culturas e modos humanos de ser. A diversidade humana é tão inesgotável, como bem sabia ele, que demanda uma renúncia consciente e esclarecida ao etnocentrismo, se acaso queremos efetivamente nos compreender melhor, fundar num mundo globalizado modos renovados e mais universalistas de convívio entre culturas tão divergentes.
Saltando francamente do tempo em que Montaigne viveu para o presente, acredito que ele poderia servir de fonte inspiradora para uma humanidade que hoje introduz na nossa experiência condições históricas sem precedente. A revolução digital, a globalização irreversível do capitalismo, a redução drástica das fronteiras nacionais e culturais, tudo isso criou condições absolutamente originais de relação entre nações e povos, entre culturas e formas políticas de reordenamento do mundo. Nunca como no presente o mundo se tornou tão pequeno e palpável no sentido em que agora todas as nações e povos afetam uns aos outros graças à revolução sem precedente desencadeada pela tecnologia e à globalização do capitalismo cuja soberania, queiramos ou não, é inquestionável.
Diante da realidade acima esquematicamente esboçada, me pergunto que respostas culturais e mentais temos dado a esse mundo novo? No meu entender, continuamos tão prisioneiros da nossa natureza pequena, aquém das conquistas espantosas que a inteligência humana produziu no plano da invenção científica e material, que me sinto incapaz de antever o futuro com olhar otimista. Se de um lado o mundo encolheu a realidade, no sentido acima sugerido, de outro seguimos confinados nos limites da nossa percepção etnocêntrica da realidade.
O turista é um tipo que ilustra muito bem o que intento sugerir nestas linhas. Hoje milhões de pessoas cruzam fronteiras nacionais e mergulham como cegos de muleta em países e culturas cuja diversidade poderia induzir-nos a refletir melhor sobre a natureza das relações que estabelecemos dentro de uma espécie que, não obstante sua estonteante pluralidade, habita o mesmo planeta e compartilha um substrato humano comum. No entanto, a evidência disponível, apreendida nos relatos mais comezinhos dos turistas que cruzam fronteiras a toda hora, parece indicar que nada aprendemos. À diferença de Montaigne, cuja sabedoria partia de sua singularidade subjetiva para compreender e conviver com a humanidade compreendida na sua dimensão universal, vivemos como prisioneiros da caverna regida pela nossa nação, nossa cidade, nosso bairro e, no limite, nossa subjetividade tacanha, enclausurada no nosso egoísmo ferrenho, na nossa incapacidade de abrirmos as fronteiras do nosso ego narcísico para modos mais tolerantes e altruístas de convívio. Esse cerne psíquico aqui sugerido, que é antes de tudo biológico, está na raiz da nossa infelicidade, na nossa incapacidade de convívio mais harmonioso que nos aprisiona na nossa solidão ou desloca nossa carência de convívio e amor para espécies como as do gato e do cachorro. Estas nos propiciam pelo menos um tipo de segurança e certeza: amam privadas de liberdade.
Nossa espécie não é geneticamente determinada. Isso me parece distingui-la ou afirmar sua singularidade no reino da natureza que Montaigne teve a sabedoria de identificar como o fundamento último da nossa condição. A liberdade da espécie que nos diferencia e separa do reino da natureza é a mesma que ameaça a nossa sobrevivência enquanto espécie. O que faremos dessa liberdade? Que mundo imprevisível brotará dessa interrogação angustiante e sem resposta? É claro que a obra de Montaigne não tem resposta para a pergunta nem nunca se propôs respondê-la. Não obstante, ela continua piscando na escuridão da nossa natureza insolúvel vias céticas que iluminam nosso caminho cujo fim se desdobra em direção a uma única certeza: a da nossa morte. Seu ceticismo, a dúvida com que interroga a realidade com disposição acolhedora, já que o sábio é aquele que diz sim ao real, libertou-o de todas as certezas que nos fecham as fronteiras do mundo e nos transformam em dogmáticos possuídos pela intolerância e o medo destrutivos.
Um dia, num castelo remoto, um homem de 37 ou 38 anos recolheu-se à solidão da sua torre depois de perdas dolorosas: a do seu pai, que tanto amava e lhe concedeu uma educação excepcionalmente refinada, a de um irmão e sobretudo a do seu amigo Étienne de La Boétie. Este suportou uma morte lenta e dolorosa assistido até o fim pelo amigo que mais tarde lhe dedicou um ensaio comovente: Da amizade. Na biblioteca da sua torre, cercado pelos livros de filosofia e história dos antigos sábios gregos e romanos, Montaigne um dia começou a escrever os seus ensaios. De início não passavam de peças curtas vazadas em estilo convencional e versando temas que se acumulavam e com freqüência traíam nos títulos enganadores as expectativas do leitor. A composição dos ensaios, compreendida a totalidade da qual resultou a obra definitiva, estendeu-se por certa de 20 anos. O homem que os compôs voltou ao mundo, do qual nunca verdadeiramente se isolou, mais livre para viver e ensinar a viver, embora nunca se propusesse isso como diretriz. Se de início acreditava que filosofar é aprender a morrer, título que conferiu a um dos ensaios, a experiência refletida findou por persuadi-lo de que é vivendo que se aprende a morrer, se é que de fato aprendemos. Tudo indica que aprendeu. Quanto à obra que legou à posteridade, ela prossegue iluminando a busca tateante de leitores que, como eu, reconhecem nas suas páginas a voz singular de um amigo inspirador. Seu nome, repito, é Montaigne.
E por aí, falam as más línguas, vai Montaigne trotando estrada a fora. Passam os séculos, nós com eles, e todavia ele nos comunica ainda e sempre o sopro de uma voz cuja humanidade poucos alcançam articular. Ele pega a estrada em tempos de turbulência arriscando perder o que não perdem os que ficam sensatamente em casa, mas recolhendo no trânsito da viagem bens e prazeres somente concebíveis em quem corre os riscos de viver. Se na estrada os salteadores o tomam de assalto, ameaçando sua própria vida, ele é capaz de desarmá-los não com as armas mortíferas dos assaltantes e outros inimigos da vida, mas com a energia serena do seu caráter impressivo, o caráter daqueles cuja natureza superior se revela na fisionomia e nos atos banais da vida. Assim desarma os que contra ele se armam sem disparar um tiro; assim por vezes nos persuade da força desarmada dos sábios e justos.
Como não sou Montaigne, viajo na sua companhia puxado pela sedução dos seus ensaios que me empurram pelas estradas sem que eu precise mover um pé. Viajo ao trote seguro do seu livro como noutros tempos e circunstâncias viajei gargalhando com Dom Quixote e Sancho através dos caminhos delirantes que aquele me descortinava afrouxando a andadura à sombra de pousadas de beira de estrada, sonhando moinhos de vento que nunca vi nesse mundão de Brasil que já percorri de carro com meu sempre presente amigo Daniel Lima, um Quixote de província tão real quanto eu. Esses amigos, imaginários e reais, deixaram na estrada vivida, assim como na memória com que hoje os atualizo, uma inefável sensação de vida belamente fruída. Essa sensação é da ordem da gratuidade das coisas humanas que somente os seres dotados de generoso acolhimento da vida conhecem. Esses raros que acabo de rememorar existem na vida imaginária da literatura e também na realidade sensível. É por vivê-los que, para além do meu ceticismo por vezes desolado, posso dizer que vale a pena. Viver. Nós que tanto medimos o tempo vivido, até o que nem sabemos ainda se o viveremos; nós que trocamos o tempo por dinheiro, o gosto de viver pelo abuso perdulário dos que simplesmente se gastam e gastam a vida, nós pouco sabemos dessa gente e temos o coração aleijado demais pelas práticas perversas da utilidade, do cálculo, do interesse frio que rege o movimento de nossas vidas.
Montaigne é um mundo sem preço. Ele nos atrai para os caminhos através dos quais viaja e quando nos damos conta do tempo a cidade é já outra, outro o mundo viajado. Ele nos engana matreiro sugerindo nos títulos dos ensaios que lemos trilhas equívocas, roteiros que nos confundem. Mas o encanto da viagem é tanto, tão singular o fio de sabedoria que nos puxa pelas curvas do caminho que nos deixamos docilmente levar através das digressões infinitas que ele vai abrindo à direita e à esquerda. Ele nos promete falar dos coxos, das fisionomias, de uma ilha remota, promete mundos e fundos, mas ao cabo o que nos comunica é algo muito além de tudo que acaso tenhamos previsto ou desejado: ele nos comunica a experiência de um homem que nos descreve a sabedoria cuja substância podemos extrair da nossa humana e pequena condição. Ele nos lembra simplesmente isto:
“Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer. Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo” (Obra citada, Vol. II, Da Experiência, p. 397).
Trocando o citado em miúdos, tudo que precisamos é dizer sim ao real, outro sim humilde à nossa condição, cuja natureza falível está expressa no traseiro sobre o qual sempre nos sentamos, sejamos reis ou plebeus, poderosos ou humildes lavradores como os que lavravam as terras do nobre Montaigne. No mais, o que nos resta é viver e isso é muito, ou tudo que podemos. Viver simplesmente. Mas quem sabe fazê-lo com a sabedoria deste que dissolve toda a poeira transcendental da experiência humana ao nos lembrar de que isso é muito, senão tudo?
quarta-feira, 7 de maio de 2014
A Sabedoria de Montaigne II
Montaigne afirma e reitera sem meias medidas que é a si próprio que toma como medida da natureza inapreensível do sujeito. Até às bordas do Renascimento, assinalado no conjunto das mudanças que desencadeou como um verdadeiro abalo sísmico na história da humanidade, o mundo era ainda concebido como um cosmos, um todo ordenado em cujo centro pairava soberana a ordem teológica instituída pelo catolicismo. Quando a ciência se desprende da teologia e a Europa dilata os horizontes geográficos do mapa estendendo-os até à América, uma realidade absolutamente nova irrompe na realidade pensada pelos filósofos e governada pela nobreza e o clero. Esse abalo tremendo, apesar das temíveis forças de reação desencadeadas pela religião católica e por todas as instituições conservadoras do velho mundo, repercutiu inevitavelmente no âmbito da filosofia e demais campos de saber. Os ensaios de Montaigne são um sintoma e uma evidência dessas turbulências que na esfera religiosa se traduzem numa prolongada e devastadora guerra civil. Por pouco esta não provocou a desintegração da unidade nacional da França.
Montaigne viveu e pensou no centro desse furacão. Depois dele, um outro francês, Descartes, revisou radicalmente todos os fundamentos da filosofia que o precedeu para enfim propor um sistema de explicação racionalista do mundo fundado na evidência inabalável do eu pensante. Assaltado por tantas forças destrutivas da velha ordem, o edifício precário da filosofia por pouco não desmoronou escorado por crenças dogmáticas que a própria tentativa de reforma liderada por Lutero, Calvino e outros radicais concorreu para periclitar ainda mais. É dentro desse contexto de profunda crise histórica que Descartes postula o eu pensante como fundamento primário de certeza para daí deduzir todo um sistema de reconstrução da filosofia. Mas Montaigne veio antes, quando a crise, pelo menos no terreno religioso, era bem mais aguda. Além disso, como também antes observei, Montaigne nunca teve a pretensão de elaborar um sistema filosófico passível de reordenar o mundo sacudido pelas mudanças desencadeadas ao longo de dois séculos de mudanças observáveis no desenvolvimento da ciência, da religião e da arte. A irrupção devastadora da Reforma Protestante, instituindo a liberdade de interpretação dos textos sagrados, representou, entre outros conflitos, a pulverização de qualquer unidade de sentido no âmbito da hermenêutica filosófica e religiosa. Essas disputas logo transbordaram das abstrações semânticas e interpretativas para o solo cruento da história onde distintas seitas religiosas se entredevoraram em nome de Deus e de verdades absolutas que céticos como Montaigne reconhecem como relativas.
Foi dentro desse contexto turbulento acima esboçado que Montaigne viveu ao longo de quase toda a segunda metade do século 16. Uma das evidências de sua sabedoria consiste na liberdade subjetiva que preservou vivendo no centro do turbilhão que foi a guerra civil cujas sucessivas explosões impuseram à França estados de violência e divisão extrema. Embora católico confesso, Montaigne nunca se deixou contaminar pelo fanatismo religioso. Se na esfera pública declarava sua fidelidade à tradição católica, no pacto subjetivo que forjou para o exercício da sua subjetividade privada prevaleciam as práticas da liberdade tolerante e cética, tanto quanto as evidências disponíveis me autorizam deduzir. Eleito prefeito de Bordeaux, à revelia de sua vontade ou ambição, esteve à frente do poder na região onde era mais radical o conflito entre católicos e huguenotes, ou protestantes. A sabedoria com que se conduziu em meio a conflitos extremos evidencia-se no predomínio da tolerância que alcança articular entre facções belicosas. Apesar de as facções extremas – huguenotes versus a Liga católica – ameaçarem durante anos deflagrar mais uma vez na região uma guerra que entre tréguas precárias estendeu-se ao longo de toda a segunda metade do século, Montaigne e Matignon, chefe militar das forças reais na região, valeram-se astutamente da diplomacia e do poder intimidante, quando necessário, para manter a paz. Assim procedendo, asseguraram uma paz tensa, mas efetiva, em meio aos anos mais ferozes da guerra civil. Esse feito é ainda mais extraordinário se lembramos que teve como cenário a região onde os conflitos religiosos eram mais extremos.
Os fatos acima são suficientes para demonstrar que Montaigne não foi um filósofo contemplativo insulado na torre do seu castelo. Sua personalidade complexa e contraditória acomodava sem desequilíbrio sensível o homem recluso, voluntariamente recolhido à sua biblioteca, e o homem de ação cuja biografia registra não apenas uma relevante carreira militar, mas também o prazer de a viver, o prazer do convívio viril entre homens votados ao exercício da guerra e do combate armado. É certo, contudo, a julgar por suas próprias palavras, que nele prevalecia o homem tendente ao cultivo das letras e da filosofia. Afinal, não foi apenas por força da grande dor advinda da morte do seu amigo Étienne de La Boétie que aos 38 anos retirou-se da vida pública para devotar-se à solidão entre os livros. Este fato crucial, a perda do amigo que foi o bem mais valioso de sua vida, agravou os sintomas de melancolia que confessa num dos ensaios.
Parece-me importante salientar os fatos acima para que o leitor desprevenido não conclua indevidamente que Montaigne viveu a partir de então insulado na sua torre de marfim. Apesar de essas condições e o ambiente privado da torre e do castelo prevalecerem a partir de então; apesar de com o decorrer do tempo agravar-se a doença genética que por fim o matou, cálculo renal, Montaigne manteve intacto o elo substancial entre o estudo continuado dos sábios antigos que inspiraram sua sabedoria e a vida vivida orientada por seus princípios filosóficos. Estes ele os assimilou, num primeiro momento, imantado à tradição estoica. Esta, como bem ressaltou Pierre Villey num amplo e esclarecedor ensaio sobre a obra de Montaigne, Os ensaios de Montaigne, é mais perceptível nos primeiros ensaios. Segundo Villey, o estoicismo abraçado por Montaigne é fruto antes de sua imaginação de leitor do que propriamente de sua experiência e convicção profunda. Suponho que as exigências extremas do estoicismo, demandando da vontade uma energia e tenacidade em face da privação e da dor de existir raramente factíveis na nossa condição tão vulnerável e inconstante, contrariava as disposições temperamentais mais profundas de Montaigne.
Se de um lado esmerou-se no exercício da vontade, demonstrando diante da dor e da adversidade coragem e resistência dignas de um estoico, de outro tendia para o prazer de viver, para certa propensão hedonista inconciliável com o rigor austero do estoicismo. Isso por certo explica, retomando as ponderações de Pierre Villey, sua transição para a filosofia cética inspirada na leitura de Plutarco e sobretudo de Sexto Empírico. O que estes propõem a Montaigne como ideal de vida, e aqui confesso basear-me diretamente em Villey, é uma filosofia que corresponda às tendências predominantes do ser humano, não uma exigência de austeridade que no limite compromete o que há de saudavelmente humano em nós. O espírito de extrema austeridade dos estoicos é evidente, por exemplo, quando partindo do reconhecimento da realidade humana como uma experiência de sofrimento e transitoriedade postulam a indiferença em face da morte dos próprios filhos, dos que mais intimamente amamos. Como pregava um deles, abraça todos os dias o teu filho como se o fizesses pela última vez. Lembra-te de que ele e tudo são votados para a morte. Dessa compreensão da condição humana baseada numa negatividade extrema decorre a necessidade da constituição de uma vontade tenaz, uma vontade forjada com uma matéria que me parece exceder a medida humana razoável. Diria mais. Diria que essa filosofia tecida com preceitos tão extremos ultrapassa a fronteira de um pensamento heróico convertendo-se em arrogância e insensibilidade. É contra esses extremos da filosofia estoica que Plutarco se bate e aproxima Montaigne da sua obra, logo em seguida da de Sexto Empírico.
Foi dentro da moldura acima canhestramente esboçada que Montaigne produziu seus ensaios mais maduros e definitivos, isto é, afastando-se da vontade férrea do estoicismo ou de outro modo temperando-o com as virtudes mais amenas e humanas do ceticismo e do hedonismo. Caberia ainda realçar o papel que a filosofia cética desempenhou na sua vida e obra. No seu tempo, que foi de mudanças avassaladoras, como antes frisei, a Europa descortinou horizontes humanos e naturais até então desconhecidos. Noções secularmente estabelecidas são sacudidas pela revelação de outros modos de cultura, outros costumes, línguas e modos até antagônicos de ser. Essa realidade é patente, por exemplo, no ensaio sobre o canibalismo, fruto do contato de Montaigne com índios brasileiros conduzidos à França. A composição do ensaio, é também evidente, não decorreu apenas do contato ocasional que manteve com os índios e da conversa conduzida por um tradutor. Movido por sua curiosidade insaciável em face do outro, do estranho, até do intolerável para tantos que se sentem ameaçados pela irrupção do inusitado ou imaginariamente inconcebível, Montaigne leu a bibliografia disponível sobre a América colonizada pelos europeus. Dentre as leituras que fez, destacam-se as obras do protestante Jean de Léry e a do católico André Thevet. Segundo Sarah Bakewell, autora de How to Live, uma biografia acessível e muito bem escrita e documentada de Montaigne, preferiu a do protestante Léry: Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil.
O detalhe acima, integrado ao contexto de intolerância religiosa e cultural da época, constitui mais uma evidência da liberdade subjetiva de Montaigne. A esse propósito, importaria mencionar uma longa viagem que empreendeu, apesar da sua doença renal e das condições precárias da época, através da Suiça, Itália e Alemanha. Além de extrair da viagem o melhor que pôde, seguia fiel os passos de sua curiosidade isenta de intolerância e de muitos dos preconceitos correntes no seu tempo. Na Alemanha conversou com protestantes movido pelo desejo de melhor conhecer e compreender aqueles que eram em princípio seus inimigos religiosos. Conversou ainda com judeus, assim como assistiu a rituais judaicos em uma sinagoga e conversou com prostitutas – não como se fossem objeto de prazer mercantil, sublinho. Sua curiosidade admirável e incansável está muito próxima do que hoje reconhecemos como sendo o trabalho de campo de um etnógrafo. Em suma, conduziu-se dentro do espírito de humanismo radical contido na frase de Terêncio que tantos já citaram através dos tempos: nada do que é humano me é estranho.
Montaigne foi um sábio, um dos raros filósofos que leio persuadido de estar lendo um sábio cuja sabedoria é pautada pelo bom senso, a compreensão profunda de nossa natureza tão retorcida e fascinante, tão complexa e perturbadora. Foi ainda um homem consciente do lugar que ocupamos na ordem da natureza. Por isso educou-se inspirado pelo humilde e resignado acolhimento do que na vida e no seu próprio corpo é natureza. Aliás, suponho que um dos mais sérios obstáculos para que alcancemos seguir-lhe o exemplo reside no profundo afastamento, senão mesmo divórcio, que o desenvolvimento da ciência e da técnica introduziram entre o ser humano e a natureza. Além disso, passamos a habitar formigueiros humanos onde se empilham milhões de pessoas imersas da luz da aurora ao fim do dia em ambientes artificiais. Essa realidade nos privou, por exemplo, do contato espontâneo e até inconsciente não apenas com o mundo da natureza, mas com a própria natureza que somos e nos habita. Espero que o leitor não leia essas breves impressões como uma queixa de nostalgia, mas como a constatação sumária de transformações profundas que, sem exagero, modificaram nossa natureza cavando um abismo entre natureza e cultura, as duas metades que nos constituem e todavia hoje se movem dentro de nós como se fossem metades cindidas. Por isso chegamos a extremos insensatos como a supressão da consciência e acolhimento da velhice, da nossa gradual impotência em face do curso irreversível da natureza e por fim em face da nossa morte.
Esse vínculo substancial entre o homem e a natureza é constantemente exposto nos Ensaios. Melhor dizendo, constitui o próprio fundamento da sabedoria assimilada e vivida por Montaigne. Diante do fantasma da morte, por certo a fonte mais renitente de medo que provamos na nossa existência, confessava confiar à natureza e sua fatalidade o curso e resolução de um processo que só nos cabe acolher e serenamente esperar. Deixava que a natureza cuidasse do que estava além do seu comando e desejo. Como assimilar essa sabedoria em face da nossa mortalidade, em face do medo que nos induz a tramar mil formas de protelação e refúgio, de ilusão e recalque, contanto que evitemos pensar o inevitável, suprimir da corrente da consciência nosso fim último?
III
domingo, 4 de maio de 2014
A sabedoria de Montaigne I
A sabedoria é um ideal ao qual muitos aspiram e raros efetivamente alcançam realizá-lo. Esses a quem me refiro não incluem por certo o grosso da nossa humanidade. Por isso tenho em mente os que se determinam a viver uma vida examinada, os que buscam para ela um sentido no geral enraizado em fontes filosóficas ou religiosas. Mas me parece certo que mesmo os que vivem e seguem vivendo indiferentes às águas turvas da metafísica e da transcendência, onde flui uma ordem de sentido existencial que bem poucos identificam e retêm, em determinadas circunstâncias se interrogam sobre o que são e o que é a vida. Embora nesse grau elástico aqui vagamente sugerido todos compartilhemos uma busca de sentido para a vida, parece-me certo que bem poucos convertem o exame da própria vida num modo refletido de ser, como se ser e pensar o ser fossem um modo singular e irredutível de se situar no mundo. Penso que isso é verdade, por exemplo, para homens como Buda, Sócrates e Montaigne, de quem me ocuparei neste ensaio.
Montaigne chegou mesmo a desqualificar o conhecimento teórico como fonte de sabedoria. Além disso, depreciava a filosofia acadêmica do seu tempo, ou mais exatamente a tradição escolástica. Também Descartes e Pascal, dois dos seus leitores com os quais compartilhava muitas afinidades, depreciaram ironicamente a filosofia. Tinham em comum o fato de imprimirem ênfase à experiência como fonte de sabedoria. Era raro no tempo de Montaigne um nobre enfatizar, como o fez, a sabedoria espontânea do camponês, do homem que lavrava as terras de sua propriedade. Observando o modo de vida do camponês, rente à linha da necessidade e por isso aderente ao movimento da natureza, Montaigne afirmou encontrar mais sabedoria neste do que nos filósofos que tanto refletiam sobre a morte sem todavia a acolherem com a sábia e resignada aceitação do camponês.
Acentuando talvez em demasia o papel da experiência, Montaigne incorreu em uma de suas muitas e reconhecidas contradições. Afinal, por mais que nos convença do quanto a experiência é decisiva na determinação do que somos e nos tornamos, não há como negar o fato de que foi um leitor apaixonado. Por mais que valorizasse a experiência e nela se refizesse e corrigisse, é patente na sua obra a correlação fecunda entre leitura e experiência, teoria e prática. Muito do tempo que viveu, desde a infância, foi devotado ao âmbito privado da sua biblioteca e mais tarde da sua torre onde, partindo de si próprio e de sua experiência, captava a passagem do ser, seu movimento incessante e as fontes de sabedoria que disso extraiu. Como deixar de reconhecer que no cerne dessas fontes estão os sábios antigos que tanto impregnaram sua experiência de leitor? O que ele alcança de modo singular, me parece, é o sábio equilíbrio entre vida pensada e vida vivida. Noutras palavras, dependendo de como pensamos e do que fazemos do que pensamos, pensar pode ser um modo de experiência.
Longe de mim a presunção de definir o que seja a sabedoria de viver. Penso apenas que é possível apreender a forma como teoricamente foi formulada e sobretudo vivida pelos poucos reconhecidos como sábios, como é o caso dos que acima mencionei. Seria todavia enganoso supor que a sabedoria vivida por Sócrates, tal como a expõe seu discípulo Platão, ou a de Montaigne, que se espelha no modelo do primeiro, seja transmissível através da mera leitura e reflexão. Supor isso seria confundir sabedoria com conhecimento. Alguém pode conhecer profundamente a obra de Montaigne e no entanto negá-la no exercício de viver. Quantos não vivem o avesso do que conhecem ou mesmo pregam, não raro inconscientes da contradição observável entre teoria e fato, entre conhecimento e vivência? Bastaria lembrar o lugar comum que irônica e certeiramente desmascara os que pregam indiferentes ao que vivem, quando não incorrem na ação desonesta consistente em empregar a teoria sedutora como instrumento de exploração dos incautos. Não é isso o que subjaz ao lugar comum: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço?
Sócrates afirmou saber que nada sabia. Montaigne, fiel a seu ceticismo, limitou-se a interrogar: que sei eu? Sabia que repetir Sócrates, em cuja sabedoria tanto confessadamente se inspirou, seria já afirmar uma certeza. Fiel a esse postulado, o da incerteza de tudo, nada ensina ou prega na sua obra. Por isso seus ensaios constituem um exemplo vivo da impossibilidade de se ensinar a sabedoria. Ela não é ensinável simplesmente porque cada um precisa traçar o seu próprio caminho. O viajante, para não errar cego pelo caminho e se perder nas veredas e encruzilhadas que o atravessam, pode valer-se de um guia ou mapa. Este pode ser os Ensaios de Montaigne, digamos, sob a condição de que não incorra na insensatez de confundir a viagem com o mapa, a caminhada com o guia cuja obra ou expressão de sabedoria é fruto da viagem singularmente vivida, aquela que por ser única é irrepetível. Portanto, se se pode afirmar algo acerca da sabedoria, esse algo consiste no reconhecimento dessa singularidade da experiência que somente Montaigne pôde viver.
O ceticismo de Montaigne, condensado na interrogação acima citada, que sei eu?, sugere-me algumas reflexões sobre a dúvida como fundamento do conhecimento e da experiência de viver. A dúvida adotada por Montaigne, no plano das ideias procedente de sua leitura de Pirro e Sexto Empírico, é a dúvida que diria liberadora, antídoto eficaz para nos defender de toda forma de dogmatismo, do fanatismo religioso que sacudiu a França durante a maior parte do tempo em que ele viveu. As pessoas tendem correntemente a apreciar de forma negativa quem de tudo duvida, quem não adere a nenhum grupo ou corrente de fé e pensamento. A intolerância ou incompreensão impaciente com que repelem o cético é com certeza um sintoma da insegurança em que vivem, da incapacidade de suportar o peso da vida e da liberdade sem a escora consoladora de uma fé ou convicção inabaláveis e no geral inquestionáveis. Não as questionam, nem suportam quem o faça, porque temem o desamparo dos que não sabem viver sem tutela e mentor, sem um governo exterior à sua determinação e vontade. Rios de sangue e horrores de toda a natureza atravessam a história humana decorrentes da sede intolerante de dobrar e exterminar o outro que nos nega, que afirma convicções ou crenças opostas ou divergentes dos escravos da certeza. A dúvida de Montaigne é de natureza absolutamente contrária. Duvidou sempre para sobre a dúvida fundar um ideal de liberdade subjetiva passível de preservá-lo de qualquer movimento inspirado pela intolerância.
Embora tanto leia e releia Montaigne movido pelo desejo de assimilar alguns grãos de sabedoria, admito o fracasso de todos os esforços que tenho nesse sentido empreendido. Talvez a causa consista simplesmente no fato de que a sabedoria, se acaso logramos alcançá-la em algum grau, não é transmissível pela leitura dos poucos sábios que já existiram, ainda que o leitor a exercite, a leitura, com humildade concentrada, inteligência sensível e reflexão continuada. Assim como não se aprende filosofia lendo os filósofos, pois cada um precisa aprender filosofia filosofando ancorado nas condições singulares de sua experiência, menos ainda se assimila alguma sabedoria tomando-a de empréstimo a quem foi capaz de forjá-la para si próprio.
Se tomamos por filósofo aquele que é portador de um diploma de filosofia, ou ensina filosofia, o mundo está cheio de filósofos, pois a proliferação das universidades, em particular dos cursos de filosofia, verte aos milhares esse tipo de profissional no mercado dos saberes e ofícios. Se todavia queremos ser fieis ao sentido originário e etimológico da filosofia, há e sempre houve bem poucos filósofos no mundo. Se a filosofia, como ensina a origem do termo, consiste no amor à sabedoria, como tomar por filósofos os autores de dissertações, teses, livros e produtos similares despejados no mercado portando o rótulo de obra filosófica? Essa enxurrada de obras, procedente antes de tudo da demanda do mercado de reprodução institucionalizada do saber, pouco tem a ver com filosofia no sentido aqui explicitado.
Voltando a Montaigne, não é de estranhar que sua obra seja omitida nos currículos de filosofia no seu próprio país de origem, aliás um dos que ostentam mais longa e sólida tradição filosófica. Os Ensaios, segundo André Comte-Sponville, integram o currículo de história da literatura francesa, sendo portanto ministrados nos cursos de letras. Sendo mais preciso, no nível escolar correspondente ao que é hoje no Brasil o nível secundário. Deixando à parte os critérios arbitrários que regem a institucionalização dos campos de saber, a singularidade filosófica da obra de Montaigne é de fato demasiado indigesta para amoldar-se à normatização acadêmica da filosofia. Dentro dos parâmetros aqui implicados, é fácil remover Montaigne do cânone filosófico. Melhor dizendo, dentro desses critérios ele seria barrado na porta de acesso à universidade por qualquer aprendiz de Kant ou Hegel. Até Bertrand Russell, filósofo inquestionável em qualquer sentido concebível, praticamente o omite na sua A History of Western Philosophy.
O irônico, na omissão de Russell, reside no fato de que, apesar de se inscreverem em tradições filosóficas muito distintas, compartilham muita coisa. Depois de se afastar da aridez da filosofia técnica e mais especificamente matemática, passando o bastão para seu discípulo Wittgenstein, sobretudo depois de ser por este superado, Russell derivou para a filosofia moral. Nesse plano de sua obra me parece nítida a convergência com a orientação temática e mesmo estilística característica da tradição francesa, mescla de filosofia e literatura, procedente dos Ensaios. A imensa popularidade de que desfrutou, rara para um filósofo, derivou não apenas de sua militância política, mas também de obras aparentadas à tradição fundada por Montaigne. Lembraria, entre outras, A conquista da felicidade, O casamento e a moral, Elogio do lazer, Por que não sou cristão. Além disso, os ensaios que reuniu em volumes como Retratos de memória são vertidos numa prosa fluida e transparente como a de Montaigne. Acrescentaria ainda ser temperada por um senso de humor e ironia digno da melhor literatura cética que conheço. Essa prosa cativou milhares de leitores, leigos fascinados pela filosofia, como eu, e é também nítida na sua história da filosofia que acabo de citar. Indo além de Montaigne no fecundo acasalamento entre filosofia e literatura, Russell aventurou-se pelo campo da ficção. Se logo desistiu, muito pesou para isso a reserva crítica de Conrad, a quem tomou como modelo inspirador. Por fim, foi agraciado com o Nobel de Literatura, reconhecimento inegável tributado a um filósofo cuja obra, sobretudo a vertente que acima designei como filosofia moral, é uma refinada expressão da prosa literária.
Falando por mim, resigno-me à minha ignorância filosófica e dou as costas a todos esses gênios da história da filosofia que não apenas são de leitura obrigatória na academia, mas também imortalizaram-se como fundadores de sistemas filosóficos. Confesso presumir que de nada me serviria assimilar sistemas tão complexos, quando não impenetráveis e controversos. Se ao cabo lograsse efetivamente assimilá-los, hipótese bem improvável, não percebo o sentido que teriam para ajustar-se às demandas existenciais que me movem para a filosofia. O que em síntese procuro como leigo apaixonado pela filosofia é um suporte de sentido para a minha vida, uma fonte de saber que ilumine minha ignorância orientando de forma mais adequada e serena o curso incerto da minha vida. É isso o que encontro na leitura dos Ensaios de Montaigne. Como sabemos, ele não propõe sistema nenhum. Por isso, também por ignorar a ambição dos formalizadores de sistemas filosóficos, elaborou uma obra absolutamente singular na forma compositiva, assim como no conteúdo. Ao escrevê-la, Montaigne fundou conscientemente um gênero: o ensaio.
O ensaio é uma roupa de medidas tão frouxas, para não dizer descosidas, que é capaz de vestir qualquer corpo. Este, depois de bem acomodado, pode não apenas sentar-se à vontade, mas também elastecer os músculos, flexioná-los segundo os caprichos do organismo carente de movimento e daí erguer-se, andar, correr na direção que mais lhe aprouver. Em trânsito ou sentado, pode dar-se ao luxo de deitar sobre o papel qualquer assunto. Não é isso o que faz seu fundador? Montaigne espichou e refinou a forma. Tanto acomodou-a à sua subjetividade arbitrária que o leitor ávido de aprender, como é o meu caso, de tudo encontra nos ensaios. A subjetividade arbitrária que acabo de mencionar fica evidente quando Montaigne afirma pintar a passagem, não o ser. Isso é por certo um choque, ou heresia filosófica para quem durante séculos acreditou, seguindo a matriz metafísica de Parmênides, nas categorias absolutas que regem a existência do ser.
A passagem do ser, que Montaigne limitou-se a descrever consciente da impossibilidade de espetá-lo no papel ou imobilizá-lo na corrente da vida, explica a natureza do ensaio, que é antes expressão formal do ser inapreensível por qualquer sistema de pensamento do que capricho da subjetividade arbitrária do ensaísta. Nesse e em muitos outros sentidos, penso não ser exagero afirmar que Montaigne foi um dos fundadores da subjetividade moderna. Perseguindo o fio descosido do ser fluente que apreende fluindo nas mesmas águas em que navegam o ser e o sujeito que o pensa, sinto-me também transportado para as páginas do narrador caprichoso, aparentemente errático, que alguns séculos mais tarde brota da pena de Machado de Assis. Restringindo a alusão a alguns gênios fundadores da moderna tradição literária, lembraria ainda predecessores de Machado como Shakespeare, Cervantes e Diderot.
O ser homem, esse ser que somos e tão mal sabemos, tão mal intentamos definir ou explicar, é tão diverso e mutável que nos escapa tão logo tentamos apreendê-lo paralisando-o na sua fluidez contínua quando em vão o retemos nas linhas esgarçadas de uma definição. Montaigne tinha absoluta ciência disso, como bem o demonstra nas palavras que cito:
“Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias idéias possivelmente já não seriam as mesmas”. (Ensaios, Do Arrependimento, vol. II, Editora Abril Cultural, p. 153).
II
quinta-feira, 1 de maio de 2014
Gabo no céu
A morte de Gabriel García Márquez simboliza o silêncio definitivo da voz ficcional que elevou ao mais alto nível uma inusitada explosão literária cuja repercussão internacional ficou conhecida como o boom da América Latina, também como o realismo mágico, conhecido ainda como o realismo fantástico, que integrou a literatura latino-americana, notadamente a hispano-americana, aos circuitos hegemônicos da cultura ocidental. De repente, um grupo de jovens escritores de variada procedência, todos residindo fora dos seus países de origem, irrompeu na cena literária internacional saudado com entusiasmo pela crítica e por um público amplo e deslumbrado pela descoberta de uma realidade remota, não raro exótica, mas transfigurada pela força imaginativa de tantos talentos novos. Na primeira linha deste grupo distinguem-se Julio Cortázar (argentino), Carlos Fuentes (mexicano), Mario Vargas Llosa (peruano) e Gabriel García Márquez (colombiano). Todos lançaram no decorrer dos anos 1960 obras marcantes que inscreveram a América de língua espanhola no mapa da literatura internacional. Mas foi o último, ao lançar na Argentina em 1967 Cem anos de solidão, quem alcançou a mais rumorosa consagração consolidando em definitivo o prestígio da literatura hispano-americana.
A primeira geração de leitores de García Márquez configurou-se nos anos 1960 e 1970 associando intimamente política e literatura. Diria que a primeira foi determinante para a adesão apaixonada do leitor brasileiro à literatura hispano-americana. De repente, duas metades cindidas – a América de língua espanhola e a de língua portuguesa – começaram a se corresponder movidas por ideais políticos comuns e inspiradas por um mito revolucionário passível de sacudir as estruturas arcaicas e autoritárias do continente. O mito que virou pelo avesso a trajetória de tantos militantes, sobretudo os jovens incendiados pela febre da utopia política, identificou na Revolução Cubana sua fonte inspiradora e marco irradiador. Os escritores acima mencionados também traduziram na obra e na prática política, em graus variáveis, sua adesão a esses ideais. Embora integrado a essa atmosfera ideológica e literária, o Brasil fica um tanto à margem da repercussão internacional do romance latino-americano. Há quem atribua isso a artimanhas do mercado literário internacional, também à inegável difusão da língua espanhola, incomparavelmente maior do que a portuguesa. O fato é que, apesar de ostentar valores literários comparáveis aos melhores hispano-americanos beneficiados pelo boom, quase nenhum brasileiro ingressou nesse grupo de eleitos. Ocasionalmente incluía-se Guimarães Rosa, mas sua posição foi sempre marginal. É claro que Jorge Amado e Érico Veríssimo, líderes indisputáveis no mercado literário brasileiro, tinham já um público amplo no estrangeiro. Mas esse é um fenômeno independente do que considero neste artigo.
Vivendo fora da Colômbia desde o início dos anos 1950, García Márquez tinha já publicado vários romances antes da consagração imediata e definitiva decorrente da publicação de Cem anos de solidão. As obras que precedem esta são já ambientadas em Macondo, que se tornou um lugar mítico tão extraordinário como o condado imaginário de Wessex, de Thomas Hardy e o de Yoknapatawpha de William Faulkner, cuja influência sobre a obra de García Márquez e Vargas Llosa é reconhecida por ambos. No entanto, cotejada com tudo que a precedeu, Cem anos de solidão constitui um salto de delirante invenção imaginativa. Por isso sua consagração como obra-prima indisputável foi imediata.
Um fato merecedor de relevo em Cem anos de solidão, assim como no conjunto das grandes obras integradas à irrupção do romance hispano-americano na cena internacional, consiste no reconhecimento não apenas da crítica, mas também do grande público. Embora García Márquez seja um engenhoso artesão das formas literárias, capaz de integrar na sua atividade criadora fontes locais e universais, ou mais propriamente europeias, sua obra é perfeitamente acessível ao grande público, que por isso logo a acolheu com vivo entusiasmo. O mesmo se observa com relação à obra dos demais integrantes do grupo ao qual me refiro desde as primeiras linhas deste artigo. Evidentemente nunca constituíram uma unidade em qualquer sentido, nem mesmo no ideológico, ou estritamente político. Seria possível dizer que da Revolução Cubana ao final dos anos 1960 havia uma unidade ideológica substancial entre eles. No entanto, acontecimentos como a Primavera de Praga, esmagada pelas forças armadas da União Soviética, e a questão dos direitos civis em Cuba romperam essa provisória unidade.
A dissensão é mais evidente na trajetória de García Márquez contraposta à de Mário Vargas Llosa. Além de grandes amigos, foram até vizinhos quando moraram em Barcelona, Vargas Llosa publicou em 1971 uma volumosa obra dedicada ao conjunto da obra de García Márquez até Cem anos de solidão. Fruto de uma tese de doutorado, a obra intitula-se História de um deicídio, título que sugere o sentido fundamental da interpretação proposta pelo autor. O deicida, como sabemos, é aquele que mata Deus. Segundo Vargas Llosa, é isso o que García Márquez faz ao reinventar literariamente a realidade. Por isso o criador literário é um rebelde que se volta contra Deus e sua criação, o mundo real como empiricamente o apreendemos. Noutras palavras, prendendo-me ao caso que considero, o rebelde García Márquez mata Deus ao reinventar Aracataca, seu lugar de origem. Daí procede Macondo, universo imaginário criado pela imaginação delirante de García Márquez, deicida e competidor de Deus. Macondo se entranhou de forma tão profunda na imaginação do leitor, sobretudo do colombiano, que a população de Aracataca chegou a promover uma eleição para mudar o nome do lugar. Por pouco Aracataca não se tornou Macondo. Essa vitória da realidade é contudo aparente, pois Macondo vive e continuará vivendo na geografia imaginária de cada leitor a cada leitura que faça do livro. Por isso não é preciso ser profeta para prever que Macondo e Cem anos de solidão, assim como outras das obras de García Márquez que não me aventuro a citar com a sólida convicção do profeta, sobreviverão enquanto houver leitor de obra literária. Portanto, não seria exagero afirmar que a imortalidade de García Márquez está assegurada.
Na intimidade García Márquez era conhecido apenas como Gabo. Se podia gabar-se de matar Deus, segundo a interpretação de Vargas Llosa, conosco compartilhava a mortalidade que tanto nos assombra. A prodigiosa imaginação mítica da fração americana entranhada na sua obra maquinou muitas formas de vencer a morte. A resistência contra nossa mortalidade se traduz nitidamente na religiosidade exuberante, na tradição da literatura oral do povo secularmente imune às formas letradas da cultura, nas mitologias indígena e africana, na linguagem ricamente imaginativa do povo que se vale de eufemismos e metáforas em narrativas tão delirantes quanto as que lemos no repositório mítico de Macondo para anular a morte. Embora ateu e deicida, Gabo impregnou-se de forma tão profunda desse manancial mítico que por certo tramou para si próprio uma imortalidade para além da que lhe assegura sua obra literária. Quero noutras palavras dizer que não me espantaria saber que tramou algum pacto com Deus ou com as forças míticas de Macondo para migrar para o céu dos ateus.
Macunaíma, uma das mais luminosas matrizes dessa tradição mágica e realista na qual se inscreve a obra de Gabo, subiu ao céu conduzido por um cipó plantado no fundo da mata virgem. Lá chegando para repousar na imortalidade estelar, foi providencialmente protegido por Pauí-Pódole, que conhecemos como o Cruzeiro do Sul. Reza a lenda magistralmente narrada por Mário de Andrade que Pauí-Pódole transformou Macunaíma na constelação da Ursa Maior depois de jogar três pauzinhos para o alto e fazer encruzilhada. Não duvidem de que algum mago da estirpe dos Buendía inventada por Gabo tramou algo semelhante e dele fez uma estrela que doravante brilhará na eternidade inútil do céu, com certeza o céu dos ateus. Que deus o acolha e continuem competindo para reinventar nossa confusa humanidade.
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