segunda-feira, 28 de dezembro de 2015
No Mural do Facebook VII
A Política e a Degradação da Língua Portuguesa:
Como a operação Lava Jato e suas derivações ideológicas parecem já não saciar nossa sede de ódio, o incidente envolvendo Chico Buarque caiu como uma luva nos punhos fechados do país intolerante que curiosamente é de todos e mistura tudo. O que vejo correndo no mural do Facebook lembrou-me um ensaio de George Orwell sobre a degradação da língua inglesa . Sei que para muita gente George Orwell é ainda um agente da CIA e coisas semelhantes. É outro sintoma da nossa paralisia ideológica que me faz ir adiante enquanto os cães ladram.
Alguém que já admirei afirmou que temos muito a aprender com os intelectuais. É um juízo típico de quem não aprendeu nada com a história. Por isso retruco: depende do intelectual, depende de quem você fala. Acreditei ingenuamente na minha juventude que os intelectuais eram a consciência da sociedade. A única coisa que desculpa meu erro é minha ignorância. Hoje a única coisa que me faz continuar acreditando nos intelectuais é o fato de saber que os intelectuais canalhas acabam sempre desmascarados por outros intelectuais. Leiam os livros de revisão histórica.
Indo ao que importa, vamos de mal a pior. A direita e a esquerda, seja lá o que isso hoje signifique, continuam vertendo ódio como se a gente aludisse a conceitos claros e precisos como vieram do berço, isto é, do alvorecer da Revolução Francesa. Quem diz isso é de direita, quem diz aquilo é de esquerda e estamos conversados. Nunca se falou tanto em fascismo. É grave ler pessoas escoladas, intelectuais e professores, a chamada elite intelectual brasileira, usando este termo a troco de tudo e de nada. Só quem ignora a história catastrófica do séc. xx, só os ignorantes ou dogmáticos recorrem a este termo com tamanha frivolidade.
E por aí vamos. Poderia multiplicar os exemplos ao infinito. mas sei que ninguém tem tempo para ler nada além de dois parágrafos no Facebook. reitero apenas este fato que Freud e outros homens lúcidos observaram em distintos momentos históricos: nada como um motivo aparentemente nobre para justificar nossa cruel necessidade de um objeto de ódio. Odeie, mon semblable, mon frère (Baudelaire: meu semelhante, meu irmão) porque sua causa é nobre e você se sentirá iluminado pela justiça humana, talvez divina.
(Postado no Facebook, 26 de dezembro 2015)
O País do Futuro:
É muito fácil ser profeta no Brasil. Basta prever o pior. Imodéstia à parte, essa é a futurologia que pratico. Observo o que os ídolos da minha geração estão fazendo, eles que tão corajosamente se opuseram à ditadura, e concluo: como tantos se envilecem quando envelhecem. Já nada deploro nem me desolo porque os céticos, desde Sócrates e Montaigne, temperaram minha experiência com a dúvida e a tolerância. Alguns dos que politicamente me decepcionam legaram ao Brasil obras intelectuais e artísticas preciosas. Fico com estas e desprezo a vilania dos seus criadores.
Quem busca a verdade procura ser fiel aos e fatos e evidências. Reescrevendo Tony Judt, um marxista que teve a integridade ética e intelectual de refutar o marxismo, quando os fatos mudam, devemos aderir à verdade dos fatos, não às ilusões e equívocos da ideologia na qual nos formamos. Não me envergonho por eles porque não sou comissário das suas consciências nem sou o povo que invocam para incorrer em todo tipo de iniquidade.
(Postado no mural do Facebook, 22 de dezembro de 2015).
A corrupção brasileira:
Tinha decidido não mais opinar neste mural, especialmente sobre as turbulências políticas que vivemos e se agravam. Até escrevi para amigos como Ester Aguiar e Adelino Montenegro declarando isso. Sempre desejei participar do mural inspirado por princípios de crítica isenta que concorressem para civilizar nosso debate público (será que existe?) e intervir num jogo de esclarecimento recíproco. Como isso é raro, saí do mural. Mas volto hoje já pela segunda vez porque às vezes é impossível refrear o desejo de dizer o que penso. Há pouco li um post compartilhado por Jeanine Japiassu e Gislaine Andrade. É sobre uma das muitas ironias da nossa história recente: Lindbergh Farias, líder do movimento de massas pela deposição de Fernando Collor, é agora investigado e foi dos poucos que votaram contra a prisão do senador (esqueci o nome dele).
Ora, falar de ironia histórica em casos dessa natureza é apenas um eufemismo. Afirmo que essas práticas corruptas, que convertem os honestos de ontem em corruptos de hoje, estão entranhadas na nossa formação cultural. Caso mais exemplar é o da parelha Lula e Collor (lembrem novamente o passado recente) e ainda o de Lula e Lulinha. Tal pai, tal filho, como diz o dito popular.
Ninguém precisa fazer um curso de história do Brasil, ou da nossa formação cultural (lembrem apenas Os donos do poder, de Raimundo Faoro, e Raízes do Brasil, do pai de Chico Buarque, esse artista extraordinário que sempre conferiu endosso moral ao PT e às ditaduras de esquerda da América Latina e continua calado) para ter noção das bases corruptas deste país. Sugiro que leiam Machado de Assis, em particular Memórias Póstumas de Brás Cubas. A esquerda da minha juventude era tão burra e sectária que desprezava Machado como negro de alma branca e sandices semelhantes. É por constatar que tudo isso se repete na nossa história que desisto de argumentar e me recolho ao meu silêncio, que nada tem a ver com o de Marilena Chaui, a paladina da ética da transparência petista.
(Postado no Facebook, 29 de novembro de 2015).
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Letícia Teles Sampaio
Letícia Teles Sampaio
Caiu sobre mim assim:
Como se fosse um raio
Sopro suspiro desmaio
Me desavindo de mim.
Letícia Teles Sampaio
Entrou sem pedir licença
Como soluço, doença
Facho de luz e demência
Flor no frescor da inocência
Verão num jardim de maio.
Letícia Teles Sampaio
Que faço agora de mim?
Não sei se entro, se saio
Se no teu gozo desmaio
Se sol no teu céu ou raio
E eis-me perdido de mim.
Recife, junho 1994.
sexta-feira, 6 de novembro de 2015
Marcela Viaja
Eu vou pra Serra Talhada
Sozinha pela estrada
Em noites de solidão
E ao mundo aceno meu lenço
Retendo o que muda penso
E sinto na escuridão.
O mundo dá tantas voltas
E em suas águas revoltas
Drena o amor e o sonho
Drena o que fui e queria
Mas resta o sopro, a poesia
No que perdida reponho.
A estrada é longa e comigo
Vou viajando e sigo
As curvas do meu caminho.
Há tanto que viajar
Mas o que busco é achar
A rota de um outro ninho.
Às vezes na madrugada
Na estrada silenciada
Choro saudades da vida
Que foi tão outra e enganosa
Mas coloria na prosa
A dor de uma flor traída.
Mas sei que a estrada amanhece
E outra paisagem floresce
No chão da viagem só.
Outras cidades virão
Cantar comigo a canção
Que varre a sombra e o pó.
E já não canto sozinha
Traçando as curvas da linha
Que segue pro litoral.
Sei de outros modos de canto
Feitos de riso e de pranto
De fado meu, tropical.
Recife, 04 / 06 / 2007
terça-feira, 3 de novembro de 2015
Se nos oriente
Valéria, o que valeria
o metro desta poesia
que à luz da tarde improviso?
Como moldar, traduzir
esse desejo de ir
além do que já preciso?
Preciso dar luz e forma
à prosa que vai e torna
a enredar-te com Freyre.
Essa viagem tão linda
vai do Oriente a Olinda
do latifúndio ao alqueire.
É variante de ensaio
novena em noite de maio
essa confessa pulsão
que faz de Freyre e de ti
um sonho de ir e vir
doutro Brasil à paixão
que arde em teu coração
fundindo afeto e razão
o Outro e seu Ocidente.
Tudo mal feito e transcrito
o que aqui vai e dito
tão pouco é que desmente
o que intentei versejar
entre te ler, te amar
nas linhas da amizade
que há tanto nos concilia.
Mas onde a arte, a poesia
no sopro, na luz do dia
que nos irmana em saudade?
Recife, 2 de dezembro de 2011.
terça-feira, 27 de outubro de 2015
Id e Super-ego
Isso e aquilo
São fantasias
Que a gente inventa
No carnaval.
Sem medo ou grilo
Só poesia
A gente tenta
Não se dar mal.
Id é você
Eu super-ego
O que fazer
Em pleno frevo?
Eu punitivo
Você sem freio
Quem o mais vivo
Quem o mais feio?
Quem concilia
N`alta folia
Estas metades
Assim cindidas?
Se o id um dia
Só por poesia
Curtisse a vida
Com o super-ego
E o super-ego
Não mais punisse
Nem se punisse
Batendo prego.
Essa harmonia
Por fim seria
Teu e meu ego.
Recife, 07-02-2002.
domingo, 25 de outubro de 2015
Paris
Subi aos céus de Paris
Prá ver se via você.
Saudade entra e não diz
Que é dor de não ver você.
Pulei nas águas do Sena
Sonhando encontrar você.
Cruzei as águas (que pena!)
Perdi Paris e você.
II
Ai, Notre Dame, me chama
Me faz de novo feliz
Me deita na tua cama
E me transporta de volta
Pros seios de Lollobrigida
Sob esses céus de Paris
Com que menino eu sonhei.
Faz-me de novo feliz
Faz do que fui, do que quis
Um outro modo de fé.
Nos seios de Lollobrigida
O espírito sopra onde quer.
III
Eu que sonhei ser eterno
Sequer tornei-me moderno.
De costas pra Torre Eiffel
Num barco ao longo do Sena
Misturo mel no meu fel
Quarenta e três vale a pena.
São anos, não mais meus sonhos
Traçando rotas de fuga.
Paris, 1992.
terça-feira, 20 de outubro de 2015
Biografia de um tirano
When he laughed, respectable senators burst with laughter,
And when he cried the little children died in the streets.
Auden
Filho de mãe devota e pai alcoólatra
Da primeira herdou a Bíblia
Do segundo a brutalidade.
Ainda bem jovem, trocou a fé ortodoxa
Pela ortodoxia marxista.
Líder de uma gang na Georgia
Cedo aprendeu a roubar e matar
Em nome da Causa e da Utopia.
Guardião da paz e benfeitor da humanidade
Guia genial dos povos
Quando sorria ou aplaudia
(apenas por dever do ofício)
Milhões de kulaks tombavam nos campos congelados
E crianças morriam de fome.
Irmãos de armas e revolução eram fuzilados
E milhões de proletários afundavam
Nos porões da escravidão.
Milhões de desamparados choraram órfãos
Também milhares de intelectuais autodelegados portadores da Utopia
Quando morreu vítima da própria crueldade e paranóia.
Seu nome era Stálin.
Recife, 15 de setembro 2015.
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Capitalismo Estatal e Cinema
Talvez importe iniciar este artigo declarando alguns fatos que sugerem meu trânsito à margem da realidade cultural pernambucana e sua rede de relações associativas. Faz muitos anos que não freqüento salas de cinema, muito menos a exibição de filmes brasileiros. O cinema que continuo vendo e revendo por escolha, fruição estética e prazer procede do mercado de DVD e redes como o You Tube. Ensaio este preâmbulo porque, depois de muito relutar, decidi enfiar minha colher torta no bate-boca que tomou conta do mural do Facebook, onde ocasionalmente ainda navego. Leio bem poucos. Alguns, como Cristiano Ramos e Mano Ferreira, me dão uma vaga noção de um incidente deplorável, mas culturalmente sintomático, como tentarei esclarecer adiante, ocorrido durante uma sessão no Cinema do Museu. Isento-me de sumariamente relatá-lo por ser de amplo conhecimento público. Meu interesse é partir do incidente encarando-o, antes de tudo, como um sintoma do nosso capitalismo estatizado. Reduzindo a questão ao campo cultural, passo a algumas ponderações inspiradas pelo ideário liberal que embasa esta coluna cujo título é A Letra Plural, publicada pela revista eletrônica Café Colombo.
Há vários anos, quando o chamado renascimento do cinema pernambucano ainda engatinhava, ouvi de um de seus participantes a frase seguinte: ninguém faz um filme no Brasil sem ceder 30% do patrocínio estatal (o truísmo intencional vale como ênfase) aos intermediários. O cinema nasceu e se difundiu pelo mundo como a arte do século XX. Convém todavia lembrar que é um misto de arte e indústria, talvez mais esta do que aquela. Além de produto financiado e controlado economicamente por capitalistas poderosos e ousados, depende de uma infraestrutura complexa, também de um processo de criação coletiva que o torna, não obstante a teoria falaciosa dos críticos do Cahiers du Cinema, obra de autoria coletiva.
No Brasil o enredo é outro e isso diz muito sobre a natureza do nosso capitalismo e a nossa cultura tutelada pelo Estado patrimonial. Bastaria lembrar que Fernando Collor, no auge do seu delírio privatista, dissolveu o cinema brasileiro com uma simples canetada. Aboliu a estatal e com ela se foi o cinema. Alguns mais talentosos, como Arnaldo Jabor, migraram para o jornalismo. Anos mais tarde o cinema renasceu novamente graças à tutela do Estado. Isso explica, em parte, a proliferação de tantos filmes ruins e sobretudo filmes que dão prejuízo aos cofres públicos, mas lucro assegurado a seus realizadores, para não falar dos ladrões que amealharam financiamento do qual não resultou nenhum filme. Enfiando aqui outra anedota autêntica, um amigo, sobrinho de cineasta famoso, me disse que o tio vive do que ganha dos filmes que dirige. De cinco em cinco anos realiza um filme cujos custos incluem seus ganhos pessoais previstos. É o chamado capitalismo sem risco. Assim funciona boa parte da nossa produção cultural.
No capitalismo moderno, largamente independente do Estado, as pessoas competem em todas as esferas. As relações culturais, ou o mercado da cultura, não foge a esta regra. No Brasil, todavia, a competição se concentra dentro e nas relações com o Estado entre agentes pautados não pelas normas impessoais do mercado, mas por um complexo de interesses e negociações dependentes de duas vigas: o Estado patrimonial e a renitente cordialidade admiravelmente dissecada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Indo aos miúdos que me interessa salientar, como ser um agente e/ou crítico independente no contexto acima grosseiramente esboçado? Como ser um liberal conseqüente dentro de uma ordem capitalista na qual o Estado mete o bedelho em tudo e a própria cultura, aqui compreendida no seu sentido socioantropológico, quase sempre funciona como a luva que veste a mão do Estado arbitrário? É por essas e outras que me constrange ainda declarar minha adesão ao liberalismo.
Tentei explicar o sentido em que o adoto através de uma citação de Vargas Llosa. Para quem queira compreender melhor o argumento deste artigo, e outros implícitos, recomendo a leitura do meu artigo inaugural já mencionado. Simplificando, limito-me a dizer que defendo um Estado regulador das relações gerais do mercado e interventor apenas na esfera das políticas públicas (saúde, educação, segurança, transporte público...). Por isso me oponho ao Estado empreendedor na esfera econômica, o Estado detentor de monopólios. Além de ineficaz, ele é fonte inevitável de corrupção e abuso de poder. A Petrobrás ilustra isso muito bem e só os inocentes ou desonestos podem acreditar que a culpa é apenas do PT ou de qualquer outro partido implicado nessa roubalheira colossal. Enquanto forem propriedade do Estado, as estatais serão fonte de abuso de poder político gerando privilégios, corrupção, nepotismo, superfaturamento e outras pragas correntes no Brasil. Enquanto o Brasil não reformar pela base o seu Estado, crises como que a estamos sofrendo serão recorrentes.
Mas quem quer reformar o Estado brasileiro convertendo-o de fato num Estado moderno, isto é, republicano e democrático? Nem o povo quer, ele que é a vítima desse modelo espoliador. Afinal, formou-se há séculos sob a tutela do Estado-pai encarnado mais recentemente em Getúlio Vargas e Lula. Raimundo Faoro traçou-lhe a genealogia demonstrando como se perpetuou através da nossa história. Dou um exemplo do seu oposto, o Estado democrático-liberal moderno, que vale por mil argumentos. Estava vivendo na Inglaterra quando o Estado totalitário soviético desmoronou. Quando destruíram o muro entre a Alemanha Ocidental e a Oriental li, com olhos de brasileiro perplexo, esta manchete de primeira página do The Sunday Times: 30 mil soldados ingleses sumariamente demitidos. Explicando melhor, as forças armadas que guarneciam o lado ocidental da fronteira foram automaticamente demitidas pelo Estado inglês tão logo o muro foi demolido e elas se tornaram portanto inoperantes. Não preciso acrescentar mais nada. Sugiro apenas ao leitor que imagine um dos nossos 39 ministérios sendo abolido e demitindo 1000, digamos 100, parasitas do nosso funcionalismo público. Que mais dizer, além do que o leitor crítico pode deduzir do meu exemplo?
Encurtando o artigo com uma provocação, pois as articulações entre Estado patrimonial, cordialidade e cultura são complexas demais para minha inteligência fatigada e cética, sugiro apenas a abolição dos patrocínios estatais ao cinema que não obedeça a funções rigorosamente educativas e culturais isentas de finalidades mercantis. Pelo menos uma conseqüência seria facilmente previsível: cessariam esses bate-bocas de gênio de província e o Recife – também o Brasil, por extensão – seria removido das páginas do Guiness como a cidade, e o país, que tem a mais alta taxa de cineastas por m2 do mundo.
sábado, 10 de outubro de 2015
A letra plural
Se não relutei em aceitar o convite de Mano Ferreira para me tornar colaborador da revista Café Colombo, relutei, e muito, para me decidir a adotar o título desta coluna. Tanto relutei que precisei escrever este artigo para justificar minha escolha. Na verdade, antes de ser mera justificativa, o artigo tende a ser um roteiro de viagem. Assim encurto o risco de me perder de mim e, pior ainda, perder o leitor que acaso me leia. Portanto, se este artigo inaugural está longe de ser um texto programático (o mundo se tornou tão incerto que somente call girl faz ainda programa), não deixa de ser um enunciado das intenções que espero transportar no curso dessa viagem quinzenal.
Começando pelo título da coluna, a ideia que de início propus a Mano Ferreira foi chamá-la de A Imaginação Liberal. A inspiração procede de um livro de Lionel Trilling, o grande crítico liberal americano que fez da sua militância como crítico literário uma forma coerente e confessa de adesão à tradição liberal americana. Antes disso, como tantos dos grandes intelectuais americanos de sua geração, Trilling filiou-se ao comunismo integrando o corpo de um dos mais importantes periódicos culturais dos EUA: a revista Partisan Review. Como Edmund Wilson e muitos outros, Trilling desiludiu-se com o comunismo soviético, aderiu ao liberalismo e se tornou desde então um crítico implacável do stalinismo. Sua obra mais importante, The Liberal Imagination, acima mencionada, foi traduzida no Brasil em meados dos anos 1960. Só que entre nós recebeu um outro título: Literatura e Sociedade, homônimo da obra igualmente notável de Antonio Candido. O tradutor foi Rubem Rocha Filho. Por acaso conheci-o aqui no Recife no apto. de Jacques e Helena Ribemboim poucos anos antes de morrer. Dado que a imaginação liberal se perdeu no trânsito tardio entre a língua de origem e a de recepção, tentou-me a ideia de batizar minha coluna com ela. Depois de muito relutar, acabei trocando-a pela que dá título a este artigo. É isso o que tentarei explicar abaixo.
O termo liberal e derivados, dentro da nossa tradição intelectual, parece-me demasiado preso à terminologia e à história política. Talvez isso seja um forte indício da nossa incapacidade de implantar nas nossas práticas culturais e políticas uma sólida tradição liberal. Daí, desdobrando ainda meu raciocínio hipotético, as resistências e deformações que o liberalismo tem sofrido no Brasil. Embora na prática tenhamos assimilado muitos dos seus melhores valores (bastaria pensar nos aspectos mais positivos da liberação dos costumes desde os anos 1960, herança antes de tudo da tradição liberal mais avançada que noutros países, como é o caso da Inglaterra, remontam ao século 19), tendemos a associar essas conquistas à esquerda. Trocando em miúdos, ao marxismo e tendências similares. Assim, os avanços no plano dos costumes e direitos civis, que em países de forte tradição liberal decorrem da dinâmica do liberalismo, aqui são atribuídos exclusivamente a ideologias que entendemos antagônicas ao liberalismo. O fato, em suma, é que o liberalismo entre nós é objeto de resistências e graves equívocos históricos e teóricos. O mais grave é que essas resistências tendem a anular um clima de debate livre que poderia esclarecer melhor o sentido dessas divergentes tradições (liberalismo, marxismo, socialismo...) concorrendo assim para melhor esclarecer as ideias e pôr as coisas nos seus devidos lugares. Infelizmente, liberalismo, mesmo nos círculos acadêmicos mais ilustrados, tornou-se neoliberalismo, termo que no geral se confunde com um insulto ideológico que de partida anula qualquer possibilidade de debate.
Estendi-me indevidamente nessas considerações para melhor justificar por que desisti de dar a esta coluna o título de A Imaginação Liberal. Além dos mal-entendidos e preconceitos que de imediato suscitaria, poderia induzir o leitor a pensar que se trata de uma coluna antes de tudo consagrada à discussão da política. Além de não ser um especialista no assunto, sou de resto avesso à política em qualquer sentido militante por formação e temperamento, quero sentir-me à vontade para comentar antes de tudo questões mais variadas, que também incluem a política. Minha perspectiva confessa é liberal. Daí, depois de muito relutar entre muitos títulos que me ocorreram, A Letra Plural que confere o devido batismo à coluna.
Adiciono mais algumas linhas à coluna para melhor esclarecer o sentido que confiro ao termo plural. Mario Vargas Llosa incluiu no volume Sabres e Utopias um texto, intitulado Confissões de um liberal, que define com clareza a concepção de liberalismo que adota. Acrescentaria ser também a minha. Por isso o recomendo ao leitor interessado em melhor demarcar os limites do liberalismo que informará o espírito geral desta coluna. Além de me servir, serve também para demonstrar o quanto Vargas Llosa tem sido incompreendido e até caluniado por ousar romper com as tradições autoritárias latino-americanas à esquerda e à direita aderindo a uma noção prática e teórica do liberalismo infelizmente longe de se consolidar nas nossas relações e instituições sociais. Melhor citar diretamente o parágrafo que condensa o que desejo ressaltar:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação entre Igreja e Estado e defensores da descriminalização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais, que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo, que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado” (p.301).
Minha modesta proposta ao aceitar o convite de Mano Ferreira é expor nesta coluna questões relativas ao liberalismo e sobretudo ao fortalecimento de uma cultura liberal. É alentador, a propósito, constatar que muitos dos melhores intelectuais jovens que leio (evito citar nomes, pois incorreria em omissões indesejáveis) debatem o bom e o mau legado intelectual e ideológico da minha geração isentos da intolerância e dos preconceitos ideológicos que a maior parte da minha geração, também muitos que a precederam e a sucederam, foi e é incapaz de radicalmente revisar. Na cultura encastelada na academia, notadamente, transmite-se um legado de fidelidade intransigente ao marxismo que muito dificulta a renovação ideológica dos estudantes, que obviamente representam os novos agentes de renovação cultural. Esse fato deplorável concentra-se nos programas de pós-graduação, onde os orientandos tendem a reproduzir acriticamente as modas intelectuais e modelos ideológicos impostos pelos mestres e orientadores. Assim procedendo, estes travam o processo de livre debate de ideias que deveria reger o funcionamento institucional da educação de elite. Para além disso, o que é já muito negativo, eles traem o princípio máximo da educação, isto é, educar o aluno para pensar por si próprio. Repetindo o dito célebre de Kant que se tornou apanágio da tradição liberal e humanista, sapere aude. Quem pensa verdadeiramente é quem ousa pensar. Se a cultura acadêmica promovesse este princípio, a história das ideias no Brasil teria sofrido uma profunda e desejável mudança depois que se consumou o fracasso colossal do comunismo. Infelizmente, o Brasil, assim como a América Latina em geral, está longe de ajustar essas contas com a história. Até quando o peso das tradições negativas continuará bloqueando as reformas de que tanto precisamos para ingressar definitivamente na modernidade?
Nota: artigo publicado na revista eletrônica Café Colombo em setembro de 2015 inaugurando minha coluna intitulada Letra Plural. O artigo foi publicado com um título ligeiramente diferente: Da imaginação liberal à letra plural.
domingo, 4 de outubro de 2015
Saudade de Táti
O nome de Tatiana
No ar da Bahia ressoa
Como saudade cigana
Que sobre a cidade voa.
Voa de um jeito que engana
À luz da noite ou do dia
O sopro de Tatiana
No céu azul da Bahia.
Sinto saudade da fala
Do riso, humor de e-mail
Quando ela ilumina a sala
Soprando em meu devaneio
Tudo que canto e desejo
Tudo que entanto não veio
Tudo que é apenas lampejo
Do que nos ata ao e-mail.
Por isso canto na cama
Aberta ao mar da Bahia:
Táti Tati Tatiana
Se tua ausência me engana
Engana como poesia.
Salvador, 15 agosto 2004.
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
Máximas e Mínimas XIV
Todos os brasileiros são honestos, salvo os políticos.
Já que sou forçado a ir às urnas, na próxima eleição votarei no candidato que tiver a franqueza de afirmar que é corrupto e canalha, se é que algum ousará tanto. Pelo menos estarei votando num político sincero.
Morro de rir do determinismo histórico quando leio sobre a Revolução Russa, a Cubana e toda a história do comunismo. Por isso não troco meu ceticismo utópico pelo socialismo científico de ninguém.
Eu, tantas vezes afagado por muita aluna que me chamava de professor feminista, acabei punido pela televisão da academia de ginástica que todas as manhãs me obriga a ver programa de mulher. Assim acabarei convertido ao machismo senil.
Há verdades que não se dizem publicamente nem mesmo para desacreditar o melhor dos amigos.
Como diria o presidente da comissão de ética do congresso nacional, quem anda na linha é trem.
Depois de examinar todos os relatórios de prestação de contas do governo, os ministros descobrem contas que nem se conta.
Afinal, o Brasil é um país emergente ou imergente?
Como explicar que um país emergente viva em estado de emergência?
Se Marx fosse brasileiro, diria que a contradição fundamental do nosso capitalismo é a que opõe o proletariado ao funcionalismo público. Traidor da sua classe, logo integraria a casta do funcionalismo público, fato que o tornaria igualzinho à maioria dos nossos revolucionários: viveria bem pago e indignado com o capitalismo e a classe dominante.
É verdade que até Jesus Cristo freqüentou más companhias e assim se contradisse ao afirmar que nossas companhias definem quem somos. Ninguém, ainda que seja Cristo, anda apenas em boa companhia. Mas isso em nada justifica quem anda sempre mal acompanhado.
Tenham paciência, vocês que tanto falam mal do Brasil. Um dia o Brasil dará certo. Não antes que eu morra, com certeza, mas talvez antes que o país afunde de vez.
Era tão bela e tão arrogante na sua beleza que ignorava minha existência. Revi-a 10 anos mais tarde e murmurei apenas para mim próprio: como a natureza é impiedosa com as mulheres. É verdade que tudo passa, mas há coisas que passam muito mais depressa.
domingo, 20 de setembro de 2015
Máximas e Mínimas XIII
Brasil: um país tão grande habitado por gente tão pequena.
Sou do tempo em que TV era te ver.
O Brasil sempre compensa uma década ganha com outra perdida. Noutras palavras, periodicamente emergimos para o fundo do poço ou ascendemos para o buraco.
Afinal, somos um país emergente ou imergente?
Os brasileiros continuam esperando que Deus resolva os problemas que eles criam. Prefiro acreditar que quem aqui faz, aqui paga. A desgraça é que uns poucos roubam para que a maioria pague a conta. Mas a maioria não é inocente. No mínimo abre a porta para o ladrão entrar. Ninguém é inocente.
O Brasil é um país de esquerda com uma realidade de direita.
Quem tem a esquerda que temos não precisa de direita.
Narcisismo é uma doença imune até à velhice, que para Narciso é apenas adolescência tardia.
Sou do tempo em que se pedia empréstimo verbal isento de qualquer garantia que não fosse a honestidade do devedor. Hoje quem deve não paga e ainda se sente com o direito de pedir mais. Já inventaram até o amor a fundo perdido.
Corrupção no Brasil tornou-se uma virtude que nenhum oportunista desperdiça. Afinal, ela rende tudo, menos punição.
Brasil, país do faturo.
O PT realizou o verdadeiro milagre brasileiro: transformou o Brasil num país pior do que era.
Só quem é muito pobre e muito ressentido acredita que o dinheiro compra tudo. O dinheiro não compra tudo, mas compra muita coisa.
Não temos a mais vaga noção do que a estrela cintilante é e no entanto acreditamos que a realidade corresponde à aparência apreendida pelos nossos sentidos.
Ame um cão:
Se você se sente solitária e infeliz no amor, ou simplesmente se desiludiu dessas máquinas caprichosas e confusas que são os seres humanos, adote um cão. Seres humanos são dotados de uma singularidade da qual derivam nossas grandezas e misérias: a liberdade. Pena que a maioria a use como uma pata de elefante querendo esmagar uma mosca numa loja de cristais. A mosca é o alvo da liberdade humana e os cristais são seres humanos perseguindo o mesmo fim. Talvez algum dia destruam totalmente a loja.
Apesar de ser o país do jeitinho, o Brasil definitivamente não tem jeito.
O Brasil é o paraíso onde em se plantando tudo dá. O que?
O Brasil é o país da diversidade. Celebra-se a diversidade com festa, claro. Só que os que não gostam da festa ou não querem freqüentá-la são privados até do direito de ficar em paz dentro de suas próprias casas. No Brasil, até a diversidade é autoritária.
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
No Mural do Facebook VI
Ideologia e Religião:
Apesar do trote da carruagem, que já riscou o rosto de Dilma Rousseff de rugas indisfarçáveis, passo por alguns posts de petistas e comunistas dogmáticos e chego a esta conclusão óbvia: quem tem ideologia não precisa de religião. Mas ressalto duas diferenças fundamentais em defesa dos religiosos: 1-eles escolhem uma religião e têm portanto consciência de que professam uma religião, um sistema de fé; 2-Por serem crentes confessos, podem dar-se ao luxo de ignorar as evidências que refutam sua crença. Por isso, concluo, o ideólogo dogmático é muito mais alienado do que o religioso convencional. A história, com h minúsculo, escreveu ironias devastadoras no livro sagrado da ideologia que a converteu em História (com H). Mas o dogmático da ideologia, como um Édipo da utopia, cegou os próprios olhos para não ver o que minha diarista já viu há muito tempo. Para que tantos livros alienantes, tanto farelo ideológico, perguntou-se o homem comum que vê a realidade armado apenas de bom senso e experiência.
Facebook, 13 de setembro 2015.
Dilma cava o próprio túmulo:
Se as medidas propostas pelo governo forem aprovadas pelo congresso, o que é mais que improvável, Dilma Rousseff vai cavar ainda mais fundo a sua cova. Afinal, entre outros insultos contra a sociedade que a reelegeu manipulada pela máquina da propaganda enganosa, para não dizer caluniosa, ela quer retardar o reajuste do funcionalismo público de janeiro para agosto. O desespero é tão extremo que agora Dilma decidiu meter a mão no bolso de quem sempre a apoiou. Por muito menos, FHC foi definitivamente demonizado pelo funcionalismo público, setor onde ainda se concentra o que resta de apoio ao governo. Não bastasse isso, quer restaurar a CPMF, além de reduzir ainda mais os recursos para políticas públicas, que já andam aos bandalhos.
O mais grave de tudo é que esse governo perdeu qualquer legitimidade para impor sacrifícios ainda maiores à sociedade. Afundado na lama da corrupção que envenena todo o sistema de poder, não tem nenhuma autoridade moral para exigir sacrifícios adicionais a uma população castigada por toda sorte de abuso e empulhação. Acuados, refugiando-se no silêncio, quando não se escondem literalmente, Lula e sua patética criatura afundam cada vez mais.
Um único exemplo: há tempos o historiador Marco Antonio Villa desfecha críticas virulentas contra ambos e o PT em geral. Mais que isso, Villa vem há tempos denunciando publicamente Lula como o chefe da quadrilha que se instalou no poder e se embrulha cada vez mais no processo corrente de investigação que não se sabe quando chegará a termo. Apesar de denunciado, Lula não dá um pio.
Por fim, repisando o lugar comum, Dilma teima em cortar apenas a carne alheia. Segundo voz corrente, o governo tem 113 mil cargos de confiança, expressão que é um eufemismo, e 39 ministérios que bem simbolizam a política parasitária do estatismo capitalista que sangra a sociedade brasileira. A coisa aqui `tá preta, como canta o verso famoso de Chico Buarque, um dos esteios morais de Lula, Dilma e do PT. Mas ele, como Marilena Chaui, também se refugiou no silêncio dos intelectuais irresponsáveis e cúmplices de tiranos gerados por belos ideais e irresistíveis utopias.
Nota: acrescentei algumas frases ao texto original postado no Facebook.
Facebook, 15 de setembro de 2015
Brás do Brasil
Brás é o homem mais afortunado do Brasil. Se Fidel Castro é o Brás de Cuba, Brás do Brasil é o Brás das Cubas, pois que as tem muitas e abundantes. Detentor de todas as fontes de petróleo, Brás fundou um monopólio chamado Petrobrás. Fez o mesmo com outros bens naturais num país tão farto em bens que trata de forma perdulária e irresponsável, quando não criminosamente vil e no geral impune. Capitalista perdulário, sobretudo infenso ao temor da falência, Brás esbanja, corrompe, queima e torra bens que sequer calcula. Se acaso a despesa excede a receita, Brás transfere os custos para os brasileiros. Estes que paguem pelo que nunca lucraram. Brás é o capitalista perfeito: o que ignora capital de risco e falência. Meu sonho é ser Fernãobrás, mas me contentaria em ser diretor ou operador do onipotente Brás.
Facebook, 16 de setembro de 2015
domingo, 13 de setembro de 2015
No Mural do Facebook V
Nossas velhas estruturas sociais:
Reiterando o poder nocivo e corruptor das nossas estruturas histórico-sociais, argumento que vale para o Brasil assim como para a América Latina em geral, importa lembrar ou aprender que pouco mudará da terrível realidade que vivemos se houver uma mera troca de partidos e agentes no comando do poder. Nosso Estado nunca ingressou na modernidade típica do Estado republicano e democrático. É uma adaptação do Estado patrimonial criado e regido por oligarquias retrógradas e um aparato burocrático ineficiente e parasitário. Um simples e significativo exemplo: o palácio do Planalto tem 4.487 funcionários; a Casa Branca, sede da maior potência mundial, apenas 468. Outra praga é o populismo, de esquerda ou de direita.
Basta ver não só o que acontece aqui, mas também na Argentina e na Venezuela. Esse regime maldito, que alega governar para o povo e salvar os oprimidos, é estatizante e sempre adota políticas cujos custos são pagos pelo povo oprimido. Por isso convém lembrar que o mal não é apenas o PT, mas essas estruturas retrógadas e resistentes à modernidade. Enquanto não mudarmos isso, e quem sabe lá quando mudará, o Brasil viverá entre ciclos de crescimento e recessão, euforia e depressão.
A crise é obra antes de tudo do PT. Mas observem o que acontece na sociedade e antes de tudo na burocracia estatal. Greves se sucedem sempre em defesa de interesses corporativos e se arrastam por meses. Essa inércia irresponsável, que na prática significa férias informais e abuso da tirania exercida contra o povo que luta e trabalha feito semiescravo, se repete regularmente como efeito de estruturas perversas. É claro que a crise agrava esses processos, mas periodicamente temos greves previsíveis em vários setores do serviço público. Todos falam em nome do povo e dos interesses do povo, mas este é o único que paga as contas e vive ainda, em plenos séc. xxi, submetido a um regime cotidiano típico de uma ditadura social.
Postado no Facebook, 10 de setembro 2015.
Dilma e as mentiras obsessivas:
Tentei ouvir a mensagem de Dilma Rousseff endereçada aos brasileiros no dia da nossa (In)dependência. São mais de 8 minutos. Aguentei 2 somente para conferir se alguma coisa mudaria na desconversa previsível. Apesar de tudo que salta aos olhos até dos imbecis, ela teima em sustentar as mesmas mentiras que ao cabo não passam de arrogância ou esquizofrenia. A arrogância, por exemplo, que a impede de ter um mínimo de humildade diante dos fatos; a arrogância que a leva a nos tratar como um rebanho de cegos servis às mentiras que tem repisado seguindo a lição do seu mestre: Luís Inácio Lula da Silva. O adorno da mensagem é a apelação publicitária de sempre recheada por sentimentalismo e diversionismo e a velha ladainha sobre a natureza miscigenada e pacífica do povo brasileiro. Chovendo no molhado onde ela desliza, somos um país marcado pela desigualdade, a violência sempre beirando a guerra civil, o preconceito e todas as opressões impostas por um capitalismo cujo vilão principal é o Estado patrimonial. Nossa herança maldita, que o PT denunciava alegando livrar-nos dela, está sendo agravada por um partido que foi a esperança de milhões de brasileiros até revelar-se uma organização de bandidos.
Facebook, 7 de setembro 2015.
A compaixão abstrata:
Comovem-me as manifestações de compaixão e indignação diante da massa de refugiados que pressionam as fronteiras da Europa. Mas como explicar que sejamos tão sensíveis ao sofrimento e desamparo desses infelizes (tão abstratos na volatilidade das redes sociais) enquanto sempre passamos indiferentes à miséria e desamparo dos brasileiros nos quais esbarramos a cada esquina e rua? Eu mesmo, que moro numa área privilegiada do Recife, vejo diariamente mendigos caídos nas calçadas, coberturas de galerias etc. No calçadão da praia, todo dia passamos indiferentes aos famintos e ébrios caídos na calçada. Passamos ao largo segurando a coleira de nossos cães e corremos (literalmente) para manter a forma e fugir da realidade intolerável.
E o que dizer dos nossos dependentes do SUS, humilhados e desassistidos em hospitais, UPAs etc? É um filme tão antigo que virou banalidade. Queria ver qual seria nossa reação se refugiados do mundo viessem pressionar nossas fronteiras continentais. Como é fácil ter compaixão do semelhante abstrato e remoto quando somos indiferentes aos esfomeados das nossas ruas.
Facebook, 3 de setembro 2015.
Ame um cão:
Para você, feicebuqueira(o): Se você se sente solitária e infeliz no amor, ou simplesmente se desiludiu dessas máquinas caprichosas e confusas que são os seres humanos, adote um cão. Seres humanos são dotados de uma singularidade da qual derivam nossas grandezas e misérias: a liberdade. Pena que a maioria a use como uma pata de elefante querendo esmagar uma mosca numa loja de cristais. A mosca é o alvo da liberdade humana e os cristais são seres humanos perseguindo o mesmo fim. Talvez algum dia destruam totalmente a loja.
Facebook, 3 de setembro 2015.
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
Heterodoxia
A heterodoxia
É uma estranha mania
Que certos loucos contraem.
Dão de pensar pelo avesso
Da ordem, do endereço
Do reino instituído
Chegando mesmo ao extremo
De injetar mil venenos
No corpo do falecido
Que é a fé, qualquer fé.
A heterodoxia
É a luz no fundo do dia
Que foi a minha utopia.
Recife, 30 de maio 2011.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Soneto intransitivo
Tanto amor nas fontes represado
Tanto amor doído e inconfesso
Tanto desejo de amar e ser amado
Tanto de ti no tanto que não peço.
Tanto amor no corpo intransitivo
Tanta memória na noite solitária
E esse silêncio prenhe de sentido
Na vida tão sozinha e entanto vária.
Tantas vozes remotas no deserto
Que hoje habito e estreita o seu aperto.
Tanto que fui no tanto que vivi
Tanto de ti nas sombras que a vagar
Confundem meu desejo de partir
Na dor de ainda e sempre te amar.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
A duração do amor
Amor é sempre pra sempre
Embora sempre acabe.
Vai para a frente demente
Velando no seu alarme
No grão de cada memória
O amor que perdido arde.
Amor é sempre pra sempre
Por isso tem tanto medo
De dar o que nem pressente
Que moerá no degredo
Da perda onde de repente
Refaz seu sempre enredo
Fechado em seu próprio fim:
Perder-se no ser do outro
Que se exila de mim.
E assim amando pra sempre
O amor, ferida demente
Arde no inferno sem fim.
terça-feira, 26 de maio de 2015
No Mural do Facebook IV
A herança das utopias
Se é possível falar em debate público nas redes sociais, ele está restrito a questões políticas imediatas ou conjunturais. Há questões de fundamento que, sei, não podem ser razoavelmente discutidas nessas vitrines moventes. Se no entanto teimamos em ignorá-las, continuaremos repetindo nossos erros e brigando em torno dos efeitos alheios às causas. Um exemplo: a esquerda, da qual procedo e dentro da qual formei minha concepção da realidade histórica, continua cegamente presa a ideais utópicos e a projetos políticos que foram profundamente abalados pela história do século 20. As utopias de esquerda (comunismo) e direita (nazi-fascismo) resultaram em Estados totalitários e conflitos armados sem precedente histórico. O custo social disso tudo é inominável. Há pouco li um livro obrigatório para quem deseja conhecer líderes da esquerda como Stalin. Refiro-me a Stalin – the court of the red tsar, de Simon Montefiore. Também recomendo este de Orlando Figes: The Whisperers. Eduquei-me politicamente aprendendo que Stalin era o grande benfeitor da humanidade. Hoje sei que foi um dos maiores tiranos da história. Seus crimes e os horrores que praticou para converter um país feudal e autocrático em uma grande potência são simplesmente inomináveis. Não conheço um intelectual ou militante de esquerda do Brasil que tenha feito publicamente um exame dos nossos erros e ilusões, dos enganos e crimes que cometemos, como agentes ou cúmplices omissos, da história de horrores do século 20, que se estende para o presente. Não falo da direita porque todo mundo sabe, pelo menos via cinema e a mídia de massa em geral, dos horrores que praticou. Além disso, o ideário dela nunca enganou às pessoas inspiradas por autênticos ideais humanistas. É por isso que miro a esquerda neste comentário que ou será ignorado ou servirá para que alguns dogmáticos e cegos intransigentes atirem pedras no meu telhado de vidro. No entanto, é preciso enfrentar essa história, se de fato queremos saber o que significam a história da revolução cubana, nosso bolivarianismo novamente em ascensão e a degradação do PT. (Facebook, 6 de abril de 2015).
A militância é tendenciosa
Há muito aprendi que a consciência militante ou partidária é no geral tendenciosa. Por isso renunciei a me pronunciar ou opinar em qualquer sentido em nome de um partido ou um poder constituído. Longe de mim a presunção de que sou imparcial ou neutro. Sei que as ações e juízos humanos são por natureza parciais. O que acredito é que é possível encurtar a distância ou desacordo entre a consciência e a verdade objetivamente verificável. Seguindo esse princípio, já fui acusado por amigos de ser omisso. Quando assim me acusavam, pressionavam-me significativamente para tomar partido... aderindo ao partido deles.
A verdade humana é sempre limitada. Isso não justifica o partidarismo e sectarismo que todos os dias leio no mural do Facebook. Lamento constatar que pessoas que me inspiram afeto e admiração (algumas não mais) compartilham e endossam posts, pesquisas e qualquer tipo de suposta evidência que supostamente denuncia X ou Y como o partido mais corrupto do Brasil, X ou Y como o presidente mais corrupto do Brasil e coisas desse tipo. As pessoas que assim procedem estão implicitamente justificando a corrupção e os crimes do seu partido. O subtexto é o seguinte: defendo a corrupção e os crimes do meu partido porque o partido X ou o presidente Y foram ou são muito mais corruptos. Essas pessoas se veem, no entanto, como portadoras de boa consciência cívica. Se o fossem de fato denunciariam e se oporiam a toda e qualquer corrupção, todo e qualquer crime, não importando de onde ou de quem procedessem. Não consigo ser otimista com relação ao Brasil porque, no auge de uma crise crescente, em meio à corrupção de todo tipo, pessoas supostamente éticas combatem-se nas redes sociais para justificar os crimes dos seus partidos. Só falta aparecer alguém para ter a canalhice de defender a inocência do partido, político ou presidente que roubou menos. Seria uma variação deste dito famoso que muito traduz a mentalidade corrente do Brasil: rouba, mas faz. Ou ainda: rouba, mas ajuda os pobres.
(Postado no Facebook, 15 de abril 2015)
Direitos Urbanos e Estelita
Posto este comentário para declarar meu apoio ao movimento Direitos Urbanos, notadamente à sua luta em defesa de uma cidade mais humana, portanto voltada para os interesses coletivos. Recife é um dos piores, senão o mais desastroso exemplo de uma forma de crescimento urbano tutelado pelo poder das empreiteiras associadas a uma tradição política oligárquica e autoritária. Isso explica o estado de calamidade a que chegamos. Vivemos numa cidade onde não há espaço efetivo para as pessoas, sequer para se locomoverem livremente exercendo seus direitos mais elementares. Nesse contexto, o movimento Direitos Urbanos tornou-se um símbolo de admirável resistência à depredação do espaço público. Ocasionalmente, no passado, houve esboços de reação contra a sanha predatória dos que estão levando nossa cidade à ruína. Mas essas reações momentâneas nunca lograram organizar-se como movimento efetivo de resistência continuada. O movimento Direitos Urbanos é, por isso mesmo, um fato novo na política local, espero que também inspirador de práticas semelhantes e urgentes em todas as cidades brasileiras onde a cidade é do povo apenas na enganação publicitária promovida por uma classe dirigente cínica, corrupta e indiferente ao próprio futuro dos seus filhos, pois a cidade que estes irão herdar é isso que vemos e cotidianamente sofremos à nossa volta.
(Postado no Facebook, 14 maio 2015).
O tédio militante
Borges: a política é uma das formas do tédio. Cito a frase antes de tudo por espírito de provocação, embora acredite que contém muito de verdade. Cito-a porque me entedia correr os olhos pelo mural do Facebook e ver, não ler, as mesmas e previsíveis postagens. Não me limito a vê-las por ser indiferente, mas simplesmente por já sabê-las de cor. Por isso dou razão a Borges, o grande reacionário argentino, o gênio literário que foi aviltado durante décadas pela esquerda latino-americana. Cito também Glauber Rocha, embora noutro contexto: Chico Buarque é o Tom Mix da esquerda. A frase é do tempo em que Chico, escudado pela sua fama e pela sua admirável integridade, resistia quando todos nós silenciávamos temendo os castigos da ditadura. Hoje, quando se diz tudo, sobretudo a futilidade e a mentira, qualquer um é Tom Mix: diz o que quer no mural do Facebook, sempre o previsível, e vai dormir em paz com a sua consciência. Preferiria ler um reacionário consciente, responsável pelo que diz.
(Postado no mural do Facebook, 9 de maio 2015)
sexta-feira, 20 de março de 2015
No Mural do Facebook III
O Capital Moral do PT
Penso que a mais nefasta conseqüência moral da corrupção que corroeu e destruiu a identidade ideológica do PT, não obstante a cegueira tenaz dos sectários, consiste na degradação do capital moral que ele infundiu na política brasileira. O PT representou, sem dúvida, a maior renovação democrática e partidária do Brasil. Foi o primeiro e único partido formado a partir das bases mais conscientes e organizadas da classe trabalhadora associada aos movimentos mais avançados da sociedade: as comunidades eclesiais da Igreja católica e os melhores setores da esquerda saída da ditadura. Mesmo gente como eu, que nunca foi petista, reconheceu esse sopro de renovação política trazido pelo PT. Durante anos, apesar dos erros inevitáveis e do radicalismo muitas vezes desastrado, o PT simbolizou para os melhores setores da sociedade uma alternativa progressista e uma fonte de inspiração ética.
Confesso que comecei a duvidar dele e do seu discurso quando Marilena Chauí se impôs nos anos 1980 como a articuladora da ética da transparência. Quem lembra ainda o que dizia bradando e fazendo coro indignado com Lula, sempre raivosamente moralista, contra os demais partidos? Quem lembra o tom arrogante desse discurso banhado pela pureza redentora de uma tradição utópica investida da missão autodelegada de salvar o mundo? Encurtando o enredo, vejam onde o PT acabou. Por mais que queiram apagar a luz do sol que ilumina a realidade no calor do meio-dia, não há como negar que o PT seguiu e até radicalizou a trilha das nossas tradições corruptas. O maior estrago, como comecei dizendo, foi a dissolução do capital moral que simbolizava para os melhores setores da nossa sociedade, para aqueles que acreditavam em alternativas políticas progressistas e realmente transformadoras. Agora, queiram ou não os sectários, o PT é apenas um partido igual a tudo que combateu desde a sua origem promissora. Isso concorreu não apenas para dissolver promessas e esperanças de mudança qualitativa, mas também para promover o vale-tudo que observamos disseminar-se por toda a sociedade. Esse é o mal mais maligno que o PT promoveu na política e na sociedade brasileira.
(Postado no mural do Facebook, 18 de março 2015).
A Irracionalidade dos Petistas
Sérgio Ferraz mencionou Stanislaw Ponte Preta aqui no mural do Facebook. Isso me fez lembrar um samba muito inventino, de fino humor, como tudo que Stanislaw escrevia e criava, intitulado Samba do Crioulo Doido. A letra, para quem não conhece o samba, é uma condensação delirante da história do Brasil, uma paródia maluca de samba-enredo das escolas de samba. Lembrei o samba porque tenho lido o que muitos partidários do PT escrevem sobre os últimos acontecimentos. É uma mistura maluca de ignorância e sectarismo movida a paranóia e desprezo cego pela realidade. Não sei sinceramente o que dizer a essas pessoas. Há muito procuro compreender a irracionalidade humana, sobretudo no plano das relações amorosas, religiosas e políticas. Cheguei à conclusão de que o ser humano é em princípio, dependendo das circunstâncias, capaz de acreditar em qualquer coisa. O mais grave é que nossas crenças mais primitivas, impermeáveis à prova dos fatos e da razão, têm sido e continuam sendo uma fonte de horrores na história humana. Lembrando outro samba, este de Paulo Vanzolini, confesso que me rendo à força dos fatos. É inútil argumentar racionalmente com quem está enceguecido pela ideologia. Como também estou farto de enganação e desconversa delirante, vou cair fora deste mural.
(Postado no mural do Facebook, 17 de março 2015).
Crise política e golpismo
Faz vários dias que alguns vizinhos golpistas bradam nas varandas contra Dilma e o PT entre sopros de apito e vuvuzela. Os otimistas ou crédulos acham que nossa democracia é sólida simplesmente porque, depois da ditadura, foi promulgada uma “constituição cidadã” e algumas instituições básicas funcionam. Antes isso do que o pior, friso. Daí a acreditar que vivemos numa autêntica democracia, o erro me parece provável. Uma verdadeira democracia supõe conquistas que estamos ainda muito longe de alcançar. Ficando no miúdo, faltam-nos de fato direitos que todo Estado democrático assegura ao cidadão (que nunca fomos), sobretudo quando a sociedade é sangrada por impostos extorsivos. Que direitos são esses? Moradia, saúde, educação, segurança, transporte... em suma, uma vida social verdadeiramente digna e cidadã. Os anos de governo do PSDB e do PT promoveram avanços significativos em várias áreas, mas no essencial nada mudaram. Volta-se a falar em reforma política e reforma social como falavam antes do golpe que instaurou a última ditadura. O enredo essencial é ainda o mesmo, insisto. Enquanto não houver uma reforma social profunda no Brasil, o risco da regressão golpista, das soluções de intolerância e força, que nada solucionam, continuará rondando este país de muita esperança e pouca mudança.
(Postado no mural do Facebook, 15 de março 2015).
Corrupção
Li as várias tentativas de explicação da leniência ou cumplicidade generalizadas de brasileiros de diferentes perfis em face da corrupção. Suponho que nenhuma parece suficiente, tanto que continuamos propondo razões de variável consistência. Longe de mim propor uma que satisfaça a mim próprio. Não obstante, acrescento alguns palpites. Antes de tudo, a corrupção está entranhada em toda a nossa formação social. Portanto, mais do que nos casos de incidência rotineira em outras sociedades, no Brasil a força explicativa do etnocentrismo é muito mais poderosa. O etnocentrismo é uma verdade consensual na antropologia e na psicologia social, isto é, tendemos inconscientemente a aceitar os valores e práticas dominantes na sociedade em que vivemos. Por isso há muito passei a dar importância muito maior a quem diz não, a quem nada na contracorrente. Ademais, o racionalismo ensinou-me paradoxalmente a perceber o quanto o ser humano é movido pelas paixões. Esta é a força talvez mais poderosa das ideologias, um complexo abstrato de interesses e desejos passível de cegar as inteligências mais agudas. Quando penso nas sandices em que gênios como Rousseau, Marx, Engels, Trotsky e Rosa Luxemburgo acreditaram (para citar apenas alguns exemplos de utópicos de esquerda), concluo que o ser humano pode em princípio acreditar em qualquer coisa. Em suma, entre todas as crenças mais delirantes talvez a mais sustentável seja acreditar em Deus. Pelo menos não há como demonstrar racional e empiricamente sua inexistência. Talvez no fundo o católico Chesterton tenha razão: quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Se alguma coisa aprendi, foi a contentar-me com meu racionalismo que muito pouco explica e por isso se acautela contra qualquer tipo de presunção dogmática.
(Postado na Revista Será? em 22 fevereiro 2015)
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Espelho Cru
Quem no espelho reflete
As linhas cruéis da vida
Fato que em todos repete
Do tempo a sua ferida?
Quem no espelho quer ver
Os fatos que a vida inscreve
Se a dor de a si se doer
Converte a ilusão na breve
Aparição de uma sombra
Que errante vaga no mundo?
Quem que ousa ser não se assombra
No cru espelho em que afundo?
domingo, 1 de fevereiro de 2015
Eduarda no Piano
O carnaval sempre tarda
E logo além se dissipa
Mas algo vem, algo fica
Na aparição de Eduarda.
Talvez a lembrança arda
Ou seja como se fosse
Algo tão lindo, tão doce
Como a visão de Eduarda.
Talvez apenas trapaça
Pois tudo na vida passa
Passa Eduarda também.
Um sopro porém repica
Dizendo que algo fica
Além de tudo, algo além...
Fernando da Mota Lima
Recife, 06 de março 2009.
quarta-feira, 28 de janeiro de 2015
O Islamismo no Ocidente
É difícil para um brasileiro alheio à realidade concreta das relações culturais em países como a França e a Inglaterra opinar adequadamente sobre os atos de terrorismo ocorridos há poucos dias em Paris. Além de detentor de um vasto território, o Brasil goza do privilégio de ter uma cultura nacional integrada e nunca sofreu pressões imigratórias semelhantes às que ocorrem na Europa e nos EUA. Nossas pressões imigratórias são internas, basicamente no sentido campo-cidade e Nordeste-Sudeste. Apesar de se processarem entre compatriotas, sabemos os problemas que geraram e ainda geram. Tomo a liberdade de mencionar brevemente minha própria experiência como estudante brasileiro vivendo na Inglaterra. Assim poupo o leitor de abstrações teóricas mais complicadas.
O célebre affair Salman Rushdie eclodiu pouco depois que cheguei à Inglaterra. Para quem tem memória curta, Rushdie é um paquistanês de nacionalidade inglesa. Quando publicou Os Versos Satânicos, seu explosivo romance abordando o islamismo através de mecanismos literários correntes no Ocidente, desencadeou um clima de revolta e intolerância que me deixou simplesmente chocado. Quando vi na BBC multidões de imigrantes muçulmanos manifestando-se agressivamente nas ruas, sobretudo em Bradford, no Norte da Inglaterra, onde o livro foi queimado publicamente, logo me vieram à memória imagens do nazismo e uma amostra do humor mordente de Freud. Quando estudantes nazistas queimaram obras de escritores judeus e antinazistas, Freud fez a seguinte observação ao saber que livros seus foram também para a fogueira: Como estamos progredindo... Na Idade Média eles me queimariam; hoje contentam-se em queimar meus livros (omito as aspas, já que cito de memória).
Convivendo durante mais de quatro anos numa universidade inglesa com gente de todos os credos e procedências, pude constatar que mesmo o país fundador do liberalismo e das mais civilizadas formas de tolerância entre culturas lida com problemas inconcebíveis em países como o Brasil para acomodar sem conflitos extremos a sua população muçulmana. A julgar, no entanto, por quase tudo que ouço e leio entre nós, parece que nossa inconsciência etnocêntrica e o clima relativista e até niilista da nossa cultura acadêmica é incapaz de apreender a complexidade das tensões crescentes entre religiões e culturas inconciliáveis. Antes que me acusem de pregar o choque das civilizações, alinhando-me com o conservadorismo ocidental, adianto que o choque, se efetivamente ocorresse, teria consequências inimagináveis. Lembrando apenas um fato banal, a população de muçulmanos da Inglaterra, França e EUA é tão grande que não haveria como fixar fronteiras culturais e religiosas entre os grupos conflitantes. Noutras palavras, qualquer solução possível forçosamente traduzirá uma acomodação de forças dentro da realidade gerada pelo mundo globalizado que habitamos.
Aludi acima ao relativismo e ao niilismo correntes na nossa cultura acadêmica, que é de resto, como de praxe, reflexo do radicalismo intelectual servilmente adotado por nossa inteligência colonizada, porque daí procedem as críticas mais veementes contra o Ocidente e tudo que de pior este produziu na história moderna: colonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, genocídio, espoliação das massas periféricas e outros males que o leitor informado poderá acrescentar melhor do que eu. O que me incomoda é o fato de essa casta privilegiada de radicais simplesmente silenciar sobre os melhores valores da tradição ocidental que prezo com a convicção de que estão entre as defesas precárias de que dispomos para realizar um ideal mais civilizado e integrador de convívio. Lembrando Walter Benjamin, não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (novamente sem aspas).
Tenho em mente, noutras palavras, conquistas como a democracia moderna, a liberdade de opinião e credo, os direitos humanos e o reconhecimento do outro. Os radicais do Ocidente que não medem esforços para minar esses valores vêem apenas o que lhes convém denunciar. Parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam, além da sucessão de modas teóricas gestadas e diluídas na academia (estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo etc) são inconcebíveis fora do Ocidente. A evidência é simples assim: tentem imaginar um Nietzsche, um Foucault, um Edward Said, qualquer dos gurus do relativismo e do niilismo pregando suas ideias no Oriente Médio ou em qualquer país muçulmano. Tentem imaginar qualquer teórico ou adepto das minorias (aqui incluídas maiorias, pelo menos estatísticas, como o feminismo) pregando e sobretudo vivendo em ato e fato a diferença e o multiculturalismo que são moeda corrente e com freqüência falsa no vale tudo cultural do Ocidente.
Encurto o artigo sugerindo ao leitor um breve exercício de imaginação sociológica. Um terço da população de Marselha, berço do hino nacional francês, é constituído de muçulmanos. Espremendo o caldo, todos que não foram assimilados – ou aculturados, como bem ou mal dizem os antropólogos – nada têm a ver com os valores dominantes na França fundados pela tradição iluminista depois de séculos de conflitos internos e externos. Fatos extremos e inqualificáveis como os atos de terror recentes concorrem apenas para agravar tensões já por si muito complexas. Ademais, o terror não serve a ninguém, salvo àqueles que querem resolver os impasses humanos através da força e da destruição. Até nós, que gozamos do privilégio de não abrigar em território nacional esses conflitos entre culturas e religiões, até nós perdemos parte da liberdade e da segurança já precárias de que desfrutamos. No mais, é fácil para um relativista ou ressentido cultural brasileiro esbravejar contra a xenofobia francesa agravada por esses atos de terror. Queria ver como nos comportaríamos se Paris fosse a capital do Brasil.
Recife, 12 de janeiro de 2015
domingo, 25 de janeiro de 2015
No Mural do Facebook II
Brasilbrás
A inconsciência e a apatia política do brasileiro não é uma coisa qualquer. É um mal entranhado na nossa formação mais remota. Por isso governantes, seja de que partido forem, usam e abusam dos nossos direitos e bens. Mesmo a minoria politizada e opinativa denuncia no geral os efeitos, pois não percebe as causas profundas do nosso atraso e problemas que se arrastam através de séculos. O Estado brasileiro, por exemplo, não mudou essencialmente desde as origens do império colonial português. É o Estado patrimonial, privatizado por uma casta que governa em benefício próprio e dos seus parentes, apadrinhados, amigos e associados. Nossa chamada elite é apenas uma clientela, como bem observou Evaldo Cabral de Melo. O Estado concentra o poder usando seu poder de agente interventor na esfera econômica para pilhar impiedosa e sistematicamente a sociedade. Segundo Eduardo Giannetti, 60% da nossa renda salarial procede do Estado. Isso evidencia o quanto a esfera do capital privado é restrita. Todos os países de comprovada eficiência econômica no capitalismo moderno funcionam exatamente de modo contrário. No país das estatais, ai de quem ousar sequer sugerir a privatização de um monstrengo como a Petrobrás.
Não falta quem denuncie a corrupção, sobretudo agora, quando assistimos à investigação de mais uma colossal pilhagem que provavelmente vai dar em nada ou em muito pouco, já que todos os partidos de maior força estão implicados. Para bom entendedor: vão se associar para impedir o avanço efetivo das investigações na esfera política. Quem paga a conta? O contribuinte, é claro. A sociedade apática e inconsciente da pilhagem sistemática a que é submetida continua dormindo nas filas e macas depredadas pela corrupção e o parasitismo público. Temos uma das mais altas cargas tributárias do mundo, com o agravante de que o Estado bem pouco retribui em serviços e deveres constitucionais o que cobra da sociedade, e agora vem por aí mais arrocho. Vamos novamente pagar as contas astronômicas da corrupção entranhada nas estatais e em todo o aparato estatal. Mas nem os críticos mais veementes ousam falar em privatização. Falar nisso é incorrer numa heresia, é coisa de neoliberal entreguista. E assim continuamos pagando contas sem resgate cada vez mais extorsivas. O que nos consola é a complacência fatalista com que nos gozamos e gozamos de tudo, sobretudo o circo que não pode parar. O carnaval já começou de costas para a crise que se agrava enquanto a classe dirigente e sua clientela continuam saqueando a sociedade inconsciente e apática. Merecemos continuar sendo um país de segunda categoria como se isso fosse uma praga ou fatalidade. E quase todos se consolam cantando o país da esperança, como se esperança fosse realidade. Nossa miséria é tão grande que sequer nos consola esperar sentado. Tem fila até para a esperança.
Facebook, 20 de janeiro de 2015
Je suis Charlie
Acho que minha amiga Deborah Echeverria pisou em falso ao endossar argumentos de certos relativistas e críticos do Ocidente. Refiro-me a quem diz que não é Charlie. Para começar, o endosso à frase, ou slogan, não significa adesão irrestrita ao humor da revista Charlie Hebdo. Significa, antes de tudo, defesa da liberdade de expressão. Portanto, rejeição à barbárie destrutiva, com perdão do truísmo que se justifica como forma enfática. Lembrando a definição da liberdade proposta por Rosa Luxemburgo: Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós. Afirmar que o islamismo rejeita as grandes conquistas da modernidade, fruto da tradição iluminista cujo foco mais dinâmico foi a França do Século XVIII, não é incorrer em crime de intolerância ao islamismo, muito menos justificação do imperialismo ocidental.
É claro que há intolerância de um e de outro lado. Mas todas as conquistas democráticas, toda a tradição de reconhecimento e respeito pelo outro é obra do Ocidente. Isso é tão verdadeiro que somente no Ocidente existe relativismo cultural. Nossas universidades estão cheias de radicais de cátedra usando os sofismas do relativismo para atacar o Ocidente e defender todas as culturas diferentes ou incompatíveis com a tradição de tolerância fundada no Ocidente depois de muitos séculos de luta. A diferença é simples: tentem imaginar um Foucault ou um militante de qualquer movimento em defesa das minorias no Oriente Médio
Facebook, 10 de janeiro 2015.
P. S. – O comentário acima, postado no mural do Facebook, provocou a incompreensão previsível. Os limites do espaço já de partida me obrigam a condensar e também simplificar meus argumentos. Não bastasse tanto, a natureza polêmica do tema concorre acima de tudo para gerar todo tipo de controvérsia e apreciação impertinente. Não sou de frente ampla nem de voz unida. Nunca militei em partido político ou professei qualquer fé religiosa. Ademais, deixei claro o sentido em que endossava a frase que correu o mundo como um símbolo de resistência à intolerância e ao terror: Je suis Charlie. Pois não faltou quem me interpelasse acerca dos limites da liberdade de expressão, do meu eurocentrismo e por fim me incluísse na corrente dos conservadores intolerantes. Apesar de tudo, insisto em me explicar fiel a um princípio de respeito à opinião alheia, à opinião do leitor, seja quem for, até que me dou conta de que esbarro em paredes surdas e me calo.
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