quarta-feira, 25 de abril de 2012
Claude Lévi-Strauss
Claude Lévi-Strauss é reconhecido como o pai da antropologia moderna até em orelhas de livro. Para os brasileiros importaria pelo menos saber que o Brasil desempenhou um papel fundamental na formação desse homem que revolucionou a antropologia. Aliás, ele afirma categoricamente que a ciência antropológica, assim como as ciências humanas em geral, de ciência tem apenas o nome. Isso já de início sugere que esse homem extremamente reservado, no fim da vida conservador e até nostálgico, além de sombrio na sua apreciação anti-humanista do mundo, não era de meias palavras. Outros dos seus juízos controvertidos referem-se ao racismo, ao multiculturalismo, à arte contemporânea, ao suposto caráter revolucionário do 1968 francês, cujos efeitos alastraram-se por grande parte do mundo, e outras questões polêmicas. Mais abaixo considerarei devidamente sua relação com o Brasil, que neste parágrafo me limito a indicar em termos sumários.
Claude Lévi-Strauss: O poeta no laboratório, objeto desta resenha, é uma biografia ricamente documentada e informativa, além de escrita com clareza e precisão exemplares. Alerto o leitor ocasional das biografias que tenho resenhado neste blog para o fato de que, se me repito nesse tipo de elogio, a culpa, melhor diria mérito, é atribuível aos excelentes biógrafos que tenho resenhado: Ron Rosenbaum, Stephen Greenblatt e agora Patrick Wilcken. Pois um mérito que em todos identifico e tenho ressaltado é a clareza da exposição, mesmo quando o biografado, é o caso de Lévi-Strauss, é autor de obra teoricamente complexa e portanto pouco acessível ao leitor privado de formação especializada.
Mas o próprio Wilcken apropriadamente nos informa, numa das seções do “Epílogo” (ver “Leituras Adicionais”, pp. 367-370), que Lévi-Strauss muito facilitou o acesso do leitor à sua obra através de entrevistas, documentários e transmissões radiofônicas muito esclarecedoras, dada sua facilidade expressiva. Efetivamente, quem acaso tenha lido De perto e de longe, série de conversas gravadas entre Lévi-Strauss e Didier Eribon, pode confirmar esta qualidade também salientada por Wilcken. Este livro, também traduzido no Brasil, desdobra-se tendo como objeto a vida e a obra de Lévi-Strauss. Precisando ainda os créditos e méritos do biógrafo, acrescentaria que é também um estudioso do Brasil, fato que sem dúvida concorreu para acentuar o valor e exatidão das páginas que consagra ao papel crucial que o Brasil desempenhou na biografia e na obra de Lévi-Strauss. A maior evidência consiste no fato de ele ser autor de um livro inteiramente consagrado ao Brasil: Império à deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821, também publicado pela Editora Objetiva.
Expondo o plano geral da obra, Wilcken divide-a em duas partes: a primeira, relativa à formação e treinamento de campo do biografado, tem o Brasil como referência seminal, prolonga-se no exílio vivido por Lévi-Strauss nos Estados Unidos, quando o avanço do nazismo o força a deixar a França, e se completa com a publicação de Tristes Trópicos, em 1955. A propósito, tentou inicialmente exilar-se no Brasil. É portanto um fato lamentável saber que a embaixada brasileira lhe negou o visto solicitado. Esse episódio, que Wilcken relata, foi antes registrado pelo próprio Lévi-Strauss no livro resultante de suas conversas com Didier Eribon. A segunda parte imprime relevo à elaboração e difusão das ideias do antropólogo que alcança converter-se em objeto de reverência, notadamente na França e no Brasil. Além do impacto que teve a partir da publicação do já citado Tristes Trópicos, o estruturalismo inspirado pela obra de Lévi-Strauss tornou-se uma autêntica moda acadêmica beneficiada pela crise profunda que se abateu sobre o marxismo e o existencialismo identificado com a figura legendária de Jean-Paul Sartre. A partir dessa crise, Sartre é suplantado por Lévi-Strauss no Olimpo intelectual francês, também por teóricos como Roland Barthes e Michel Foucault. Muitos dos que se diziam seguidores de Lévi-Strauss foram desmentidos pelo próprio, que com frequência queixou-se de ser incompreendido. A julgar por algumas de suas declarações tardias e pessimistas, a escola de pensamento que fundou não teve prolongamentos. Melhor dizendo, não teve seguidores que reconhecesse como fiéis ao espírito das suas ideias.
Esclarecendo um pouco o subtítulo da obra – “O poeta no laboratório” -, ele traduz uma frustração confessa do próprio Lévi-Strauss. Artista manqué, ou artista fracassado, seu sonho era ser pintor ou músico. Também sonhou ser escritor literário, e aqui chegou a tentativas efetivas, todavia malogradas. Queria ser dramaturgo ou poeta. A fotografia, que muitas vezes praticou como parte do seu ofício de etnólogo, também trai o seu gosto pela arte e seus méritos como fotógrafo foram reconhecidos, embora no fim da vida tenha depreciado o próprio alcance estético da fotografia. Além disso, denotando ainda suas inclinações e influências artísticas, na juventude demonstrou vivo interesse pelo surrealismo e outras correntes artísticas. Sua amizade com André Breton, fruto de um encontro acidental no navio que os transportou para o exílio nos Estados Unidos, também concorreu para reforçar seus vínculos com a arte. Como observa Patrick Wilcken,
“Ambos eram estetas intelectuais sérios, ambos sóbrios e um tanto formais na maneira de abordar o mundo, porém tomados pela paixão modernista da época pelo primitivo e pelo subconsciente. Sem livros, os dois passaram o resto da viagem conversando no tombadilho, mostrando um ao outro longas notas densamente teóricas, trocando ideias sobre a arte, o surrealismo, o juízo estético” (p. 127).
Lévi-Strauss chegou ao Brasil em 1935 acompanhado por sua primeira mulher, Dina Dreyfus. Vieram com a segunda corrente da missão francesa encarregada de formar a primeira geração de estudantes da Universidade de São Paulo. Derrotado pelo poder central em 1932, na guerra conhecida como a Revolução Constitucionalista, São Paulo se mobiliza tomado por seu espírito pioneiro para lançar as bases da universidade que se tornou a mais importante do Brasil e de toda a América Latina. A missão francesa, convocada pelo psicólogo Georges Dumas, em acordo com a elite paulista, chegou ao estado a partir de 1934 com a função de estabelecer nos trópicos – ou tristes trópicos, se queremos evocar a obra de Lévi-Strauss inspirada por essa experiência – as bases de uma autêntica universidade moderna, já que o Brasil era praticamente desprovido de tradição universitária.
A hegemonia da cultura francesa era à época tão indisputada que os cursos eram ministrados em francês. Foi nessas circunstâncias que em São Paulo floresceram as carreiras acadêmicas de grandes nomes da cultura francesa como Lévi-Strauss, Fernand Braudel (este já mais velho e adiantado, com obra em curso quando chegou a São Paulo), Roger Bastide e outros que, não obstante menos famosos, exerceram papel decisivo na formação da primeira geração de professores nativos da USP. Bastaria acrescentar que os dois intelectuais uspianos mais renomados, Antonio Candido e Florestan Fernandes, pertenceram a esta geração, além de outros igualmente importantes como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado.
Além de atuarem como mestres dessa geração, os franceses prontamente se associaram à elite intelectual paulista, sobretudo aos modernistas já então empenhados em funções institucionais das quais resultou o triunfo do modernismo, que na década precedente irrompera como um movimento de vanguarda tomando de assalto a cultura estabelecida. O mais destacável, como é sabido, era Mário de Andrade. Desempenhando a função de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário realizou um trabalho de política cultura sem precedente, ousaria afirmar que também ainda sem sucessor à altura da obra extraordinária que comandou assistido por intelectuais qualificados e devotados como Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, Luís Saia e vários outros.
Mário de Andrade aliou-se antes a Dina do que a Lévi-Strauss. Mulher de notável talento e capacidade de trabalho, ela ministrou, a convite de Mário, o primeiro curso de etnografia na cidade de São Paulo. Além disso, exerceu papel chave na Sociedade de Etnografia e Folclore, criada por Mário de Andrade através do Departamento de Cultura. Wilcken nos revela que essa amizade e trabalho colaborativo provocaram ciúmes em Lévi-Strauss. Já depois de separar-se de Dina, queixou-se este das cartas carinhosas que Mário escrevia para ela. Quem conhece a correspondência de Mário, caso singular na história da literatura brasileira, pode bem imaginar o tom não raro demasiado afetuoso das suas cartas, notadamente quando destinadas a mulheres. As que escreveu para Stella, primeira mulher de Ascenso Ferreira, são sentimentalmente tão derramadas, ou desmedidas, que bem poderiam dar margem a leituras dúbias.
Cedendo à tentação de uma outra digressão que não figura no livro de Patrick Wilcken, talvez o leitor demasiado etnocêntrico ou estreitamente crítico da nossa formação colonizada erradamente conclua que a missão francesa foi apenas um outro capítulo na história da nossa subserviência à cultura francesa. Na verdade, as relações entre culturas são muito mais complexas. Esse episódio, o do papel formador dos franceses na história da USP, ilustra extraordinariamente essa questão. Como o demonstram depoimentos de alguns dos mais renomados rebentos da universidade e dessa experiência formadora, os franceses foram decisivos para despertar-lhes dimensões do Brasil que eles por si sós seriam incapazes de enxergar. Isso foi possível porque os franceses vieram também para aprender sobre o Brasil, transportavam com seu olhar de estrangeiro potencialidades perceptivas e desejos de descoberta adormecidos na percepção familiar do brasileiro. Em suma, renova-se aqui o costumeiro jogo dialético entre o familiar e o estranho, parte da formação de qualquer antropólogo, raiz metodológica de todo saber antropológico e por extensão humanístico. Os franceses nos ensinaram porque também queriam aprender. Assim, estabeleceu-se essa via de mão dupla tão fecunda na interação entre culturas. Ganharam eles e ganhamos nós. Quem perde é o etnocentrismo e variantes provincianas como o nacionalismo e o regionalismo. Sempre que estes ganham, perdemos nós na nossa capacidade de ampliar nossa compreensão do mundo, de apreender o mundo em viva e fecunda interação com a alteridade das culturas.
Quando Lévi-Strauss chegou ao Brasil, São Paulo tinha cerca de um milhão de habitantes. Sua febre expansiva, da qual a grande leva imigratória que acolheu era uma das manifestações mais extraordinárias, fascinou Lévi-Strauss, que aqui aportou com pré-concepções e expectativas largamente infundadas. Num curto intervalo do espaço urbano da macota cidade, como diria Macunaíma, acotovelavam-se tempos sociais e extremos culturais que iam dos resquícios coloniais ao espírito do capitalismo observável em Chicago, do rural mais rústico ao urbano mais requintado. Variando os termos de acordo com o jargão sociológico, o pré-moderno e o moderno se justapunham de forma complexa na medida em que tanto envolviam processos integradores quanto conflituosos. Como seus colegas formadores da universidade recém fundada, Lévi-Strauss documentou e estudou com seus alunos esse processo de profundas mudanças culturais e urbanas fixando-o empiricamente em monografias sobre a formação e desenvolvimento de bairros da cidade.
Depois disso embrenhou-se nas paisagens do interior explorando regiões do Mato Grosso onde efetivamente realizou seu grande trabalho de campo como antropólogo. Essa experiência embasa um dos seus livros fundamentais, o já citado Tristes Trópicos. Em 1985, passados muitos anos, revisitou São Paulo como membro da comitiva oficial do então presidente François Mitterrand. Melhor dar a palavra ao biógrafo:
“Quando estava em São Paulo, Lévi-Strauss conseguiu escapar um dia de manhã, pegou um táxi e foi até a avenida Paulista, procurando sua velha casa na Cincinato Braga. A cidade que ele tinha conhecido e amado na juventude, com suas ladeiras e casas de arquitetura colonial, tinha praticamente desaparecido. (...) Lévi-Strauss acabou ficando preso num congestionamento e foi obrigado a voltar.” (p. 319).
Como é notável, minha resenha enfatiza os vínculos de Lévi-Strauss com São Paulo e o início de sua vida e carreira associadas a esse tempo. Evidentemente, a biografia se espraia por outros tempos e lugares, circunstâncias e experiências: seu exílio nos Estados Unidos, ligeiramente anotado acima, seu retorno à França, seu encontro e sua amizade com Roman Jakobson, a elaboração da obra que firmou sua reputação como intelectual e muita coisa que me vejo forçado a omitir no meu roteiro demasiado seletivo. Sua amizade com Jakobson merece um registro mínimo, pois foi decisiva para a orientação da sua obra e a elaboração teórica do estruturalismo, como ele próprio reconhecia. Linguista e poliglota de extraordinária erudição e formação teórica, Jakobson o introduziu nos meandros da linguística estrutural. Através dele, Lévi-Strauss descobriu, entre outras coisas, o Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure.
No parágrafo inicial desta resenha, aludindo ao tom polêmico de certas declarações de Lévi-Strauss, mencionei de passagem o racismo, o multiculturalismo, a arte contemporânea e o 1968 francês, que muitos interpretam ainda como um ano revolucionário, senão mesmo uma década revolucionária. No Brasil, assim como em muitas outras extensões periféricas da cultura europeia, seu impacto foi inegável. O que é discutível é a sua natureza. Seria de fato revolucionária? O ponto de vista de Lévi-Strauss é francamente contrário. Esta frase diz tudo: “Achei o maio de 1968 repugnante” (p. 301). Segundo Greimas, Lévi-Strauss teria declarado durante uma conversa entre eles: “Acabou. Todos os projetos científicos vão retroceder vinte anos” (idem, ibidem).
Acerca do racismo ele também incorreu em declarações públicas no mínimo embaraçosas para a Unesco, que o convidou para proferir a conferência inaugural do Ano Internacional do Combate ao Racismo. Segundo Wilcken, suas declarações polêmicas puseram René Maheu, diretor-geral da Unesco, em pânico. No essencial, o que argumentava era que a política antirracista, tal como proposta pela Unesco, tenderia a alimentar um processo de decadência cultural, já que ameaçaria anular a força do individualismo que move os processos de renovação estética e os valores espirituais necessários à dignidade e valorização da vida. Também não poupou o multiculturalismo, que hoje, pelo menos no Brasil, foi reduzido a clichê da democracia cultural e palavrório vazio da publicidade oficial. O multiculturalismo que vivenciou durante seu exílio em Nova York passou a ser visto na velhice como uma ameaça à sua cultura.
Na velhice, como frisa seu biógrafo, seu pessimismo se acentuou, assim como sua adesão a uma visão conservadora, portanto oposta ao socialismo militante da sua juventude. As evidências mais fortes do seu pessimismo manifestam-se na sua preocupação relativa à explosão demográfica, à devastação da natureza provocada pela expansão da civilização técnica e as tendências dominantes na arte contemporânea, incompatíveis com seus ideais estéticos. A esse propósito, Patrick Wilcken cita passagens bem impressivas de um artigo que escreveu para a revista Time:
“Não acredito em Deus, mas tampouco acredito no homem. O humanismo fracassou. Não impediu as ações monstruosas de nossa geração. Ele tem se prestado a desculpar e justificar todas as espécies de horrores. Ele entendeu mal o homem. Tentou separá-lo de todas as outras manifestações da natureza”(p. 310).
A esse diagnóstico sombrio, mas talvez irretocável no essencial, não poderia deixar de acrescentar a longa e devastadora experiência do colonialismo imposto pela Europa a países como o Brasil, o fascismo e acima de tudo o nazismo cujos horrores excederam as mais tenebrosas figurações da imaginação humana.
E por aí foi ele de mal a pior para quem acredita ou precisa acreditar em visões de mundo consoladoras ou francamente otimistas. Quando morreu, já centenário, Lévi-Strauss deixou palavras ainda mais negativas para legar àqueles que o celebraram e ainda o celebram. Mas encurto o enredo, que de resto não recomendo ao leitor impressionável, sobretudo se incorrer na insensatez de ler este desfecho da resenha na hora de dormir. “O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”, é outra frase sombria que escreveu e nada de animador promete à posteridade.
segunda-feira, 23 de abril de 2012
Dopressivo
Os domingos na casa dias mortos
Tão triste e acremente escorrendo
Meus barcos naufragando em turvos portos
A morte meu domingo desvivendo.
O consolo do nada, a morbidez
Meu dia torturado se esvaindo.
E o ódio, essa raiva, esse talvez
Cegos rasgando as trevas do domingo.
As horas no relógio gota a gota
Pingando a me matar, lento veneno.
O eco, o passo, a voz, a sombra morta
Meu povo no curral mascando feno.
A família suspensa ante a tv
A trégua em meio à guerra renovada.
Domingo como o meu, quem há de ter
Inveja de uma vida assim tramada?
Dor pressa depressão, meu mal é o nada
E as horas gota a gota hão de ter fim.
Faltou-me no ato extremo a punhalada
Sangrando o vil passado vivo em mim.
Recife, 10 de outubro de 1999.
segunda-feira, 16 de abril de 2012
Daniel e a Magra Caetana
Acabo de ser atingido por uma revelação chocante: a imortalidade não existe. Como descobri esta verdade? Muito simples: acabo de saber que Daniel Lima morreu. Daniel viveu tão longa e intensamente que meio a contragosto aderi à crença de que era imortal. Digo a contragosto porque também eu queria alongar-me no tempo como ele compartilhando uma amizade que é simplesmente inefável, que não se traduz nem se calcula em palavra ou qualquer outro meio ou medida. Durante cerca de 30 anos, excluídos uns 9 ou 10 que vivi fora de Recife, tive a ventura de ser talvez seu mais íntimo e constante amigo. Com seu dom único para a amizade, irradiando uma luz e uma energia que um dia uma adolescente deslumbrada (com ele, infelizmente, não comigo) qualificou de carismática, foi dos raros que sempre tiveram amigos verdadeiros. Estes, sabemos, são raros e nem sempre duram. Os de Daniel duraram sempre e quase todos estão ainda aí, embora um pouquinho mais velhos que eu. Entre tantos, os que com ele mais conviveram foram Célia Veloso, Vital Lira e Zildo Rocha.
Fui talvez o mais íntimo e constante, como assinalei, por ser, como ele, um bicho desatado de nós de família e outros constrangimentos sociais que sempre lhe inspiravam suspeita e recusa irreverente. Apesar de haver criado sua ilha imaginária, ou mundo próprio e quase inacessível, ele por vezes deplorava os amigos que casaram e constituíram família. Deplorava-os por sentir que em certo grau os perdia. Casamento e família, aliás, sempre lhe pareceram ameaças à liberdade individual ou mesmo à concepção anárquica da vida que procurou realizar. Portanto, sua aversão de celibatário a essas instituições não derivava apenas da circunstância de ser padre. Melhor dizendo, da condição que livremente escolheu ao vestir uma batina. Mas esta, a batina, há muito desapareceu da paisagem religiosa que habitamos.
Quando o conheci, cobria-se de vestes civis acrescidas de outras aparências que dissimulavam o padre. Aliás, quando o conheci já se despojara completamente dessa identidade regida pela instituição, pela aparência que tende a sufocar ou baratear a essência. A religião em Daniel era um modo irredutível de ser, portanto dissociado de qualquer vínculo institucional. Quando o conheci, vivia como um cigano em estado de prisão domiciliar. Valho-me da expressão pouco imaginosa para sugerir o ser contraditório que sempre foi e de resto se deleitava em assim, sem fissuras aparentes, se dizer e sobretudo viver. Era um cigano no reino da imaginação, não raro transbordante, mas um ser fechado na casa. Costumava por isso dizer que a casa era o seu país; o lugar onde vivia, a sua cidade. Por isso, nunca falava de Recife, assim como nunca perdeu tempo celebrando a ideologia regionalista tão fortemente enraizada no imaginário pernambucano.
Daniel era uma força da natureza. Gostaria de traduzir sua energia singular de vida, sua vitalidade indomável, com expressões menos banais. Infelizmente, são as que me sobram ou no momento me ocorrem. Se há seres dotados para a felicidade, Daniel é um dos raros que conheci e dentre os raros o “singular”. Foi o único que reduziu sua vida, feita de alegria e incansável energia passional, a meios e modos despojados no grau máximo do despojamento. Um amigo me entendeu mal quando, num outro texto nele inspirado e postado neste blog (“Revendo Daniel Lima”) descrevi sumariamente a casa suja que habitava. Minha intenção, ao acentuar esse fato, foi apenas sugerir o que nele havia de despojamento extremado a um grau que o aparentava com a vetusta tradição cínica da filosofia antiga. Sugiro que o leitor pense no exemplo lendário de Diógenes, o cínico.
Se há seres investidos do dom da felicidade, Daniel foi o único que conheci. Sua felicidade se manifestava num estado de alegria e vitalidade que nunca observei esmorecerem. Melhor dizendo, contrastavam em circunstâncias excepcionais com reações de espantoso desequilíbrio emocional. Tentando melhor esboçar seu comportamento do ponto de vista psicológico, Daniel se fechou num mundo cujo controle podia de ordinário definir. Sendo assim, escondeu-se literalmente da maioria das pessoas. Dado seu poder de sedução – ou sua força carismática, como ressaltou a adolescente acima mencionada – é compreensível que atraísse muita gente. Além disso, sendo também padre, atraía pessoas carentes de aconselhamento, orientação ou pura necessidade de desabafo e compreensão. Quando o conheci, já se afastara completamente dos círculos rotineiros de convívio religioso e intelectual. Protegia-se da maioria das pessoas forjando códigos de acesso telefônico restritos aos poucos amigos que o frequentavam, alguns apenas por telefone. Quanto a seu endereço, bem raros o sabiam. No entanto, se assim se protegia, não conseguia, de outro lado, refrear seu temperamento passional e disposições narcisistas que naturalmente o impeliam de volta ao convívio humano, ainda que muito seletivo.Mas não me alongarei em considerações dessa natureza.
Escrevo esta crônica, escavando a mina da memória, sob o impacto da sua perda. O tom da crônica, decerto demasiado analítico, dissimula minha dor que, honestamente, é bem moderada. Afinal, tenho a convicção de que viveu uma vida extraordinária. Diria mais: foi o ser mais livre e feliz que conheci. Não bastasse tanto, viveu sempre guarnecido por uma fé católica inabalável. Ser contraditório, como já salientei, outra contradição sua se manifestava no convívio sem conflito entre uma inteligência insaciável e questionadora, por vezes bordejando o cinismo de quem tocou o fundo das insolúveis imperfeições do mundo humano, e uma fé religiosa inatingível por todas as forças acaso passíveis de refutá-la. Por isso teve amigos agnósticos ou ateus cuja atitude diante da religião integralmente respeitava. Não preciso acrescentar que a recíproca era verdadeira. Afinal, era esse um dos fundamentos da amizade que o prendiam a amigos como eu. De resto, é um dos fundamentos da amizade em geral: o reconhecimento da liberdade e da diferença do outro que amamos.
Lembro-me de que aludiu à Magra Caetana, pela primeira vez, quando eu morava na Inglaterra. Para quem não sabe, trata-se de uma alusão eufemística à morte. Talvez sentisse então os primeiros sintomas da velhice progressiva agravados por cirurgia cardíaca e outros achaques da idade. Mas saudou-a nesse tom, sempre alegre e trocista. A expressão, a partir daí, entrou no rol das nossas brincadeiras delirantemente imaginativas. Muitas vezes, indagando-o sobre o paradeiro dessa assombrosa e inevitável visitante, brincava inventando que ela o temia, que a imortalidade dele estava acima dos poderes com que ela nos amedronta. No fundo, porém, sabemos que a Magra Caetana é a Inescapável.
E eis que ontem à noite, quando Daniel tropeçava na UTI sustendo já sem forças o peso colossal dos 95 anos, eis que a Magra Caetana tomou-o pelo braço e por aí se foram. Embora amparado pela convicção de que os que perdemos sobrevivem na nossa memória, e portanto não morrem enquanto houver memória nos que aqui seguem vivendo, algo dele me falta e me dói. Com ele se vai também minha crença de que a imortalidade existe. Mas seguirei arengando loucamente com ele nos campos invisíveis da memória. Sem esquecer de que devemos uma morte à natureza. Ou a Deus, diriam Shakespeare e ele.
Recife, 16 de abril de 2012.
Elogio da tristeza
Somente as pessoas simplórias acreditam que a vida é simples. Mas somente as pessoas confusas acreditam que a vida é só complicação. Como libriano coerente, procuro equilibrar-me entre os dois pratos da balança ou os dois extremos da inverdade. O sábio equilíbrio, no caso, parece-me estar com Thoreau (não confundir com o romancista Paul Theroux), que simplesmente recomendava a medida da simplicidade, isto é, simplifique tudo que for simplificável. Ora, a cultura corrente tende para o oposto disso. Ela funciona na prática de um modo que complica tudo, já que as forças onipresentes do mercado obedecem a um princípio supremo: compre tudo que queremos lhe vender. E tudo é tudo mesmo, a começar por aquilo que os simplórios julgam acima de todos os interessem e cifras: o amor. Uma evidência? As crianças do presente já aprenderam com os publicitários que amar é dar presente; no caso delas, receber presente. Mas isso fica para um outro dia. No momento, meu alvo é outro, como é patente no título desta crônica.
O que a tristeza tem a ver com o parágrafo precedente? Tudo. A tristeza tornou-se no vasto bazar da cultura do presente um sentimento obsceno, assim como a velhice e a morte tornaram-se substantivos impronunciáveis. A mentalidade dominante simplesmente empurra para debaixo do tapete tudo que perturbe o ruído da festa, a alegria autêntica ou postiça que alimenta o mercado do entretenimento e ao mesmo tempo é por ele alimentada. Como alegria e felicidade autênticas são mercadorias pouco comuns, não é de espantar que tanta gente que encontro tenha cara de clipe publicitário. Trocando em miúdos, falo dessa multidão que confunde alegria com ansiedade, vitalidade com insônia, experiência erótica com performance de reality show. Minha vizinha, coitada, inveja essa gente. É que ela, como tanto consumidor iludido com propaganda enganosa, supõe que simplificar a vida é viver no shopping center, que em tempos menos globalizados já foi centro comercial.
E daí, pergunta meu único leitor já visivelmente irritado. Onde entra a tristeza? Abro-lhe enfim minha porta antes que a internet me feche a sua. Por exemplo assim: quem amou de verdade reconhece o sentimento da tristeza recriado numa infinidade de poemas e canções, em romances, contos, crônicas... Mas aludo aqui a um tipo determinado de tristeza quando o título da minha crônica sugere a substância de um determinado sentimento. Não me arriscarei a definir a tristeza, a não ser opondo-a à alegria, caminho que não me levaria a lugar nenhum. Associei-a ao amor simplesmente porque, no momento em que escrevia, me lembrei de letras de canções escritas por Vinícius de Moraes, provavelmente o último romântico autêntico do Brasil. Meu único leitor nota que estou insistentemente adjetivando substantivos preciosos como romântico, amor, alegria, tristeza... Como proceder de outro modo, se o capitalismo de consumo reduziu tudo isso a simples mercadoria? É por isso, em suma, que estou triste. Estou triste porque me vejo reduzido a uma cifra, uma mercadoria qualquer exposta na prateleira de um supermercado. Quem acaso pensou que eu consideraria a tristeza em termos poéticos, filosóficos ou psicológicos admitirá agora, antes que a crônica acabe, que entrou no blog errado, ou tomou o bonde errado, ou comprou o bode errado. Se o leitor pode ainda conceder-me um voto de confiança, prometo brevemente voltar com uma outra crônica, a que de fato tecerá o elogio da tristeza. Enquanto isso, deixo-o com os versos de Vinícius: É melhor ser alegre que ser triste / Alegria é a melhor coisa que existe...
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Inês em Olinda
Sonhando Inês em Olinda
O sino bate outra vez
O som sussurra: Inês
Inês, ai como ela é linda!
A vida reluz ao sol
Acende a torre, o farol
E tudo é festa em Olinda.
Sonho aviões da Panair
A alma voa onde quer
No pouso da tarde finda.
Mas voa à volta de Inês
Tropeça e cai outra vez
E diz outra vez: que linda!
Inês acaso existe?
Eis que a pergunta persiste
Suspensa no céu de Olinda.
E eu bebo no mar a onda
Antes que a brisa responda:
Ama a miragem que é linda.
Outro avião voa e passa
A mão de Inês esvoaça
E apaga as luzes de Olinda.
Errante na escuridão
Transformo Inês em canção
E canto ainda: que linda!
Recife, 12 de janeiro de 2002.
terça-feira, 10 de abril de 2012
Flávia renascida
É chuva.
Chuva na telha, na quilha
o mundo se maravilha
ao ver-te, Flávia. Uma ilha
no oceano se fez.
E era outra vida, outro clima
lua raiou cristalina
meu céu no teu se refez.
É chuva e entanto teu pranto
no véu da noite se enxuga.
É Flávia.
Flávia e o meu ganho, meu dia.
Outra manhã se anuncia
contra o teu poço de treva.
E neva.
Neva se a vida te nega
teu te fazer, Flávia linda.
E ainda
piscam as luzes de Olinda
iluminando na noite
Flávia refeita das cinzas.
E já não fora mais Flávia
a identidade no nome
agora Flávia Cassandra
ou outro nome que exprima
a concordância da rima
com o teu modo mulher.
Flávia das trevas se eleva
Deusa Mulher renascida
seu corpo sopra onde quer.
Fernando da Mota Lima.
Recife, 16 de julho 1997
terça-feira, 3 de abril de 2012
Shakespeare por S. Greenblatt
Uma outra biografia de Shakespeare
Como convém ao espírito do tempo, a supremacia de Shakespeare também se manifesta no mercado. Em Stratford-upon-Avon, sua cidade natal, o nome Shakespeare serve para vender tudo: canetas, camisetas, citações da sua obra impressas em toalhas, diários, agendas, lojas e livros. Uma poderosa rede de instituições culturais acentua essa glória para além do consumo estrito de mercadorias. Além de uma companhia teatral exclusivamente consagrada à montagem da sua obra, a Stratford Shakespeare Company (também a Royal Shakespeare Company, sediada em Londres), existem o Stratford Shakespeare Institute e o Stratford Shakespeare Centre. Importaria salientar que, diferentemente de instituições similares no Brasil, estas concorrem, através de incessantes pesquisas e estudos, para ampliar o conhecimento e a difusão da obra e vida de Shakespeare. As brasileiras, que não têm nenhuma relação com Shakespeare, friso, servem no geral como fonte de prestígio social, parasitismo cultural e ação entre amigos.
Apesar dos ataques procedentes do radicalismo acadêmico, Shakespeare reina solitário no centro do cânone da literatura universal. O mercado editorial, assim como o conjunto da produção acadêmica, ratificam esse juízo. Também o teatro, seu domínio primário e supremo, e o cinema. Mesmo no Brasil, onde é tão pouco estudado e encenado, são lançadas novas biografias que se somam às muitas escritas ao longo de séculos. Recentemente resenhei neste blog As guerras de Shakespeare, de Ron Rosenbaum. A esta poderia acrescentar, sem intenção de proceder a um levantamento que o leitor pode facilmente fazer acessando os sites especializados, Frank Kermode, A linguagem de Shakespeare, Celeste Davidson, Quem foi William Shakespeare?, Claude Mourthe, Shakespeare. Por fim, encurtando a lista e chegando ao que mais importa para esta resenha, Stephen Greenblattt, Como Shakespeare se tornou Shakespeare.
Stephen Greenblat é o grande representante do Novo Historicismo, corrente teórica baseada na subordinação da obra e do autor às condições históricas. Objetiva assim interpretar ambos, a obra e o autor, no contexto cultural dentro da qual se situam. Greenblatt tornou-se a grande referência desta teoria ao propor sua formulação inicial em The forms of power and the power of forms in the renaissance (1980). Essa teoria nega autonomia aos agentes sociais, portanto também ao autor, que acaba reduzido a expressão do sistema ideológico vigente. Isso explica a hostilidade observável entre Greenblatt e Harold Bloom, outro celebrado crítico de Shakespeare. Suas perspectivas críticas são tão antagônicas que acabam transpostas para o plano da hostilidade pessoal. Isso me parece explicar o fato de que um não cita o outro, a não ser indiretamente como objeto de ataque.
Mas importa já de início ressaltar que Greenblatt, diferentemente de tantos teóricos ininteligíveis, escreve uma biografia legível, de leitura muito fluente cujo estilo expositivo prende de imediato o leitor. Como os muitos biógrafos que já se debruçaram sobre Shakespeare e seu tempo, ele reconstitui a vida do grande dramaturgo retomando as fontes documentais no geral já bem estudadas combinando-as com largos voos especulativos.
A vida e a obra de Shakespeare têm muito de obscuro, já que no seu tempo não se documentavam as vidas, mesmo de pessoas famosas, como hoje é comum. Aliás, diga-se que a Inglaterra do tempo era relativamente avançada nesse sentido. Foi isso o que tornou possível a sobrevivência de certo volume documental relativo a Shakespeare e sua obra. Mas o mito de tal forma se sobrepôs ao homem real através da história que seria um exercício detetivesco, algo à maneira de Sherlock Holmes, retraçar as muitas fraudes e supostas descobertas do autor real escondido sob a obra. Basta que se lembre que a obra de Shakespeare já foi atribuída a Francis Bacon, e a Edward de Vere, Conde de Oxford. Os autores dessas façanhas, aliás admiravelmente estudados numa das mais importantes obras dedicadas a Shakespeare e sua vida (The genius of Shakespeare, de Jonathan Bate) são conjuntamente identificados como os anti-Stratfordianos, isto é, os que negam a Shakespeare, nativo de Stratford-upon-Avon, a autoria da obra que o colocou no centro do cânone literário.
Imaginem que até Freud foi enredado num desses contos de vigário ou recriação mítica do autor depois de tomar conhecimento da obra de Thomas Looney, que sintomaticamente significa doido. Este senhor, um obscuro professor inglês, trabalhou obsessivamente durante muitos anos para afinal publicar uma obra na qual intenta provar que o verdadeiro autor das obras de Shakespeare seria o conde de Oxford. Freud engoliu essa invenção com tanta intransigência que morreu acreditando nela. Hoje ninguém mais leva a sério as interpretações delirantes de Looney e outros “reinventores” de Shakespeare. A propósito, Harold Bloom expõe uma interpretação engenhosa para a credulidade de Freud em O Cânone Ocidental. O leitor curioso pode cotejá-la com o ensaio de Peter Gay, “Freud e o homem de Stratford”, incluído em Lendo Freud.
Borges sintetiza a complexidade da obra de Shakespeare, já revestida dessas recriações míticas, ao afirmar que ele é todo mundo e ninguém. Devido a estas e muitas outras razões, Shakespeare continua a inspirar paixões, a dar emprego, pesquisa e fortuna a muitos acadêmicos. Um dos mais ilustres e devotados, o já citado Harold Bloom, sustenta a tese de que ele inventou nossa humanidade. Depois de Jesus Cristo, insiste Bloom, não há personagem mais seminal do que Hamlet. Ser ficcional, produto da imaginação transfundida em palavra, Hamlet traduz a complexidade da condição humana de forma absolutamente original, ou a inventa e dissemina no alvorecer da cultura moderna. É por essas e outras que críticos como Ron Rosenbaum atacam Bloom afirmando que ele pretende deificar Shakespeare. De fato, Bloom levou a bardolatria, o culto a Shakespeare, a um extremo tal que, como escreve textualmente, converteu a obra de Shakespeare em escritura secular, ou correspondente secular da Bíblia.
O que é bem curioso nessa indústria que continua produzindo biografias de Shakespeare é a opacidade dessa figura que os biógrafos perseguem. Repisando uma obviedade que alguns leitores ignoram ou desconsideram, Shakespeare viveu numa época isenta do culto da celebridade que hoje converte qualquer jogador de futebol ou arranhador de guitarra em Deus da mídia. Melhor dizendo, o status do ator e do autor de teatro no seu tempo era equivalente ao de vagabundos, de seres socialmente subordinados e portanto dependentes de patrocínio da nobreza ou do clero, expostos aos caprichos e variações da lei que a qualquer momento, por força de doenças contagiosas ou de pressões puritanas, poderiam ter as portas do teatro fechadas.
Stephen Greenblatt e muitos outros biógrafos demonstram o quanto Shakespeare também se singularizou ao converter sua condição socialmente subordinada em uma extraordinária experiência de ascensão social. Sabendo astutamente tirar proveito dos meios de patrocínio disponíveis à época, além das relações de competição impostas à atividade teatral, sua vida, até onde está irrefutavelmente documentada, foi um triunfo social. À diferença de outros grandes dramaturgos contemporâneos, bastaria pensarmos na trajetória atribulada e no desfecho chocante de vidas como as de Christopher Marlowe e Robert Greene, ele acumulou bens e prestígio sociais excepcionais para homens de sua condição. Marlowe morreu assassinado numa briga de taverna; Greene, em completa miséria, morreu acolhido na casa de um sapateiro desconhecido. Às portas da morte, Greene escreveu uma carta que sobrevive como documento valioso para que melhor se aprecie a condição precária do autor teatral à época.
Pondo sua teoria em prática, Greenblatt empenha-se em reconstituir as condições sociais do tempo para explicar Shakespeare, inclusive as muitas zonas obscuras de sua vida. Fiel a esse propósito, levanta documentação e hipóteses interpretativas relativas à escolaridade de Shakespeare, ao clima religioso dentro do qual se formou, dilacerado pelas lutas religiosas entre o catolicismo e a religião imposta por Henrique VIII e posteriormente por Elizabeth I. Shakespeare viveu em meio à ferocidade da guerra religiosa: conspirações, lutas pela sucessão no poder político, torturas e supressão impiedosa da tradição católica que durante séculos esteve no centro da tradição inglesa. Greenblatt também ressalta a influência que as festas populares e religiosas exerceram sobre a formação de Shakespeare e sua obra. Essa tradição popular de procedência medieval, tão viva na obra de Shakespeare que resiste aos princípios oriundos do teatro grego clássico, sobreviveu durante décadas aos controles rigorosos impostos pela Reforma.
Um dos problemas que salientaria na biografia escrita por Stephen Greenblat prende-se à recorrência das especulações com que visa preencher os claros da vida de Shakespeare. Enquanto outros biógrafos, é o caso de Jonathan Bate, conferem franca prioridade à obra, Greenblatt subordina a vida à obra, na medida em que intenta explicar aquela de acordo com elementos selecionados desta. Fiel ao espírito da sua teoria, subordina ambas, vida e obra, às condições sociais do tempo. Acrescentaria que essas condições sociais do tempo, recompostas dentro do espírito da teoria que adota, são frequentemente hipotéticas. Ademais, quando documentalmente comprovadas, é no mínimo duvidoso que sejam suficientes para explicar indivíduos excepcionais como Shakespeare.
Concluo com uma citação relativamente extensa visando ilustrar o que anotei no parágrafo precedente. O leitor decerto observará que ele especula, especula e por fim sensatamente repõe Shakespeare de volta a seu lugar supremo, o teatro, único que o explica na medida em que podemos explicá-lo:
“Ele recorreu, sem dúvida, a conceitos e termos legais, mas também era notavelmente receptivo a conceitos teológicos, médicos e militares. Teria ele se envolvido também, diretamente, com algumas dessas profissões? Como jovem sem muitas perspectivas, poderia ter se alistado no exército, para lutar uma guerra suja nos Países Baixos – ou isso é o que alguns foram levados a pensar, impressionados com o domínio de Shakespeare sobre o jargão militar. A partir do evidente fascínio que sentia por viagens marítimas, ele bem poderia ter arrumado um lugar num navio para a América – “Buscar novos mundos”, como disse Sir Walter Ralegh, “pelo ouro, pelo prazer, pela glória”. Mas a probabilidade estatística de retornar de aventuras desse porte era mínima. E nenhuma dessas possíveis profissões explicaria a trajetória que o teria levado de Stratford a Londres. Com efeito, todas elas parecem apenas distanciá-lo do lugar que mais importa em sua vida: o teatro” (p. 72).
Depois de tanta viagem especulativa, Greenblatt devolve Shakespeare ao teatro. Qual afinal o sentido de tanta especulação através de profissões hipotéticas e viagens fantasiosas? Shakespeare acaso precisaria exercer a profissão de militar ou viajar pelos mares para justificar seu domínio do jargão próprio a essas profissões e formas de experiência social? Confesso, já concluindo, preferir o livro de Jonathan Bate acima citado e infelizmente inédito no Brasil. Tecido com erudição impressionante e exemplar clareza crítica e expositiva, ele encontra na própria obra o que Greenblatt e outros estudiosos buscam sem sucesso fora do autor e da obra.
Em tempo: o título da obra em inglês é Will in the world acrescido do subtítulo How Shakespeare became Shakespeare. Este é evidentemente o que a tradução brasileira adotou como título. Penso, no entanto, que o título mais apropriado seria o que prevalece na edição original, isto é, Will compreendido como diminutivo de William (Shakespeare), com as conotações afetivas implicadas no uso do diminutivo. Diria ainda Will como sinônimo de vontade, volição. Quanto ao subtítulo que confere título à tradução brasileira, assinalaria apenas que é inapropriado ou infundado. O livro de Jonathan Bate explica muito mais do que o de Stephen Greenblatt como Shakespeare se tornou Shakespeare.
domingo, 1 de abril de 2012
José Miguel Wisnik
Foi um prazer pouco comum conhecer José Miguel Wisnik. Ele veio a Recife participar de um seminário promovido pela Fundação Joaquim Nabuco sobre futebol. Adicionalmente, lançou seu livro mais recente, sobre o mesmo assunto, alvo de acolhida elogiosa nas páginas de cultura da Folha de S. Paulo. Surpreendeu-me saber que o futebol era assunto que o interessava intelectualmente ao ponto de a ele dedicar anos de pesquisa e estudo. O resultado está no seu livro relativamente volumoso publicado pela Companhia das Letras.
Alguns amigos, agora interessados pelo futebol como matéria acadêmica, falaram-me elogiosamente do livro, que de resto ofereceram-me de empréstimo. Agradeci mas recusei, pois sinceramente não me ocorre privilegiar assunto que me interessa apenas enquanto espetáculo esportivo vinculado aos veículos especializados em entretenimento para as massas. Longe de mim desprezar a óbvia significação cultural desse esporte, notadamente no país que se orgulha ainda de ostentar o melhor futebol do mundo, mas minhas prioridades intelectuais foram e sempre serão outras.
Voltando a Wisnik, ele veio diretamente do aeroporto para o meu apartamento trazido pela mediação generosa da minha amiga Valéria Torres. Aliás, nossa amiga comum que o conheceu em Berkeley durante os dois períodos em que ele lá esteve como professor visitante. Essa circunstância propiciou um conhecimento indireto entre nós, já que amigos comuns radicados em Berkeley dele me falaram e vice-versa. Assim que chegaram, ele e Valéria, seguimos para o Restaurante Leite, onde almoçamos também acompanhados por Danielle.
Minha simpatia por Wisnik foi automática. Pelo que dele percebia, através de referências de amigos, além de uma palestra excelente que gravou para a Tv Cultura sobre Mário de Andrade, esperava que fosse mais ou menos como se me apresentou: amável, receptivo, sensível ao convívio inteligente e espontâneo, isento de qualquer afetação. Nossa conversa foi variada, em vários momentos divertida e ampla o suficiente para incluir intelectuais e assuntos do nosso interesse comum: Mário de Andrade, Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Arthur Nestrovski, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, Chico Buarque, Caetano Veloso... Pena que estava então ainda me refazendo de uma bruta virose associada a rinite alérgica. Isso impediu-me de gozar mais folgadamente a companhia dele e de minhas lindas amigas Valéria e Dáni. Encerrado o almoço, deixamo-lo no hotel onde pouco mais tarde seria levado por um carro da Fundação Joaquim Nabuco diretamente para o cenário programado para acolher o seminário e o lançamento do seu livro. De minha parte, resignei-me a voltar para casa e para a cama. Somente alguns dias mais tarde é que soube, através de Dáni, que, ao saírem do seminário, vieram beber e conversar animadamente nas mesas do Biruta. Embora doente, disse a Dáni, não teria relutado em acompanhá-los, se acaso soubesse do encontro.
A música tem conferido a Wisnik uma fama, ainda que confinada a um público demasiado restrito, incogitável na trajetória de um intelectual de atuação puramente acadêmica. Embora parte de sua obra há muito encontre acolhida em periódicos como a Folha de S. Paulo, notadamente nos cadernos culturais, nem mesmo seus escritos sobre música alcançaram repercussão significativa. Afinal, apesar de tanto enfatizarmos a importância da música na nossa cultura, somos quase iletrados em matéria de história, teoria e crítica musical. Foi depois que passou a exibir-se em casas de espetáculo e a gravar sua própria música que Wisnik passou a desfrutar de alguma fama. Conheço bem pouco suas composições, mas ressalto a belíssima “Assum branco”. Dentre seus muitos intérpretes – citaria o próprio Wisnik e Gonzaga Leal – destacaria Cecília Leite. Surpreendeu-me saber que ele não tinha conhecimento do cd de Cecília Leite, que também compõe um belo dueto com Chico Buarque cantando “Dis-moi comment”, versão francesa de “Eu te amo” escrita pelo próprio Chico.
O momento mais divertido do meu encontro com Wisnik ocorreu quando nos falou de uma visita recente que fez a Antonio Candido. Este, que é na intimidade um talentoso imitador de personagens célebres do seu convívio, começou servindo vinho do porto a Wisnik enquanto se punha à vontade para rememorar encontros com gente como Mário de Andrade, Guimarães Rosa e outros. Ia então recortando na memória episódios dos quais extraía a nota de pitoresco ou humor acentuada por seu dom histriônico. Assim, imitou certos trejeitos adamados (qualificativo por ele empregado) de Mário de Andrade. Rimos muito vendo Wisnik imitar Antonio Candido imitando Mário; também Guimarães Rosa, o “untuoso” (termo empregado por Antonio Candido). Antonio Candido imitou-o reproduzindo um encontro social ligado à juventude de ambos. Participavam de uma festa de intelectuais quando Guimarães, dele se acercando, tomou-lhe a mão e disse enquanto a alisava de modo “untuoso”: “Antonio Candido, autor de Brigada Ligeira, um pequeno grande livro que é minha leitura de cabeceira”. Antonio Candido logo encontra um jeito de se safar das mãos untuosas de Guimarães e deslizar para outro espaço da sala. Pouco depois ouve às suas costas Guimarães repetindo o mesmo ritual pegajoso e hipócrita com um outro escritor.
E assim somos todos, é o que me sugerem essas anedotas tão divertidamente recriadas por Wisnik na mesa do restaurante. Pequenos ou grandes, célebres ou obscuros, em cada um de nós palpitam essas notas humanas e banais, no caso também engraçadas, que ao cabo nos dissolvem numa humanidade comum. O olhar mais severo de um moralista, digamos Machado de Assis, decerto acrescentaria a este breve parágrafo uma máxima de corte menos complacente.
Por fim, uma nota de memória se insinua nessas ligeiras anotações de um encontro prazeroso. É que as alusões de Wisnik a Antonio Candido levaram-me inadvertidamente a um momento inesquecível. Visitando-o em 1995, graças a meu amigo José Luiz Passos, entretivemos uma longa conversa na sala da sua casa acompanhados pela presença discreta de Gilda de Mello e Souza. Como já anotei em textos postados no meu blog algo do melhor que conversamos e ouvi, prendo-me aqui a uma observação particular. É que assim sem mais me dei conta de que Antonio Candido sobreviveu a todos os seus melhores amigos: Oswald de Andrade, Paulo Emílio, Sérgio Buarque de Holanda e, acima de todos, sua mulher e companheira da vida inteira, Gilda de Mello e Souza. Receio que, para além da perda indizível a tudo se sobreponha a consciência dolorosa de sobreviver a todos que com certeza mais profundamente deram sentido à sua vida. Também aqui sei que Machado introduziria uma anotação mais apropriada. Tivesse eu a paciência de catá-la numa de suas obras, não me custaria muito extraí-la das páginas de Dom Casmurro ou do Memorial de Aires.
Recife, 05 de setembro de 2008.
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