segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Rua Imperial


Imperial Imperial...
O longo e vago som na tarde reverbera
fundindo-se ao andante da Quinta de Beethoven.
Como num sonho há tanto repelido
ou pesadelo sacudindo meus desertos geológicos
um cortejo de imagens se perfaz
turvando a luz cristal sobre a janela.

As tardes de tédio e fuligem
deslizam sobre o asfalto
enquanto o menino arquiteta aritméticas automotivas
alheio ao inferno doméstico que lhe atormenta a infância.
Absorta na contabilidade de ônibus e carros
transposta para colunas
riscadas sobre o caderno escolar
sua imaginação liberta-se da vida suja e palpável
do exílio urbano sem pontes
para a ilha e o campo.

A iniciação nos bancos da escola pública.
Tímido e precoce, vindo de ignotos canaviais,
logo foi vítima da troça de alunos citadinos.
Eram moleques boçais, em tudo menores
mas eram da cidade.
Por isso principiaram infernizando-lhe a vida.
Um dia, maior que o medo,
peitou o mais valente
mudou as regras do jogo dando provas
relutantes de uma bravura
roubada talvez à memória do avô
único ascendente lendário
em quem venerava os traços agrestes do heroísmo.

Imperial Imperial...
As casas da Imperial.

Por ironia ou sarcasmo
chamavam-na Rua Azul.
Azuis acaso seriam os sonhos do adolescente
espremido entre o asfalto e o trem de ferro.
Rua Azul e seus caminhos de terra batida e estreita
alongando-se entre a Rua Imperial
e a estrada de ferro.

Na casa escura e pequena acotovelavam-se
pai avó tios primos irmãos
gastando os dias e a vida
entre a insegurança e o medo.
Mais que um grupo sem guia
a família semelhava um acampamento
sempre às bordas da guerra civil.

Imperial Imperial...
Meninas da Imperial.

Catarina Catarina
Quando na rua passava
o mar no cais se calava
corria até à esquina
dobrava o mar das tormentas
quando na rua passava.

Era tão linda, tão loura
na porta do tintureiro
(seu pai, o italiano).
Todo o meu ser se redoura
a praça, o Recife inteiro
na vaga napolitana.

Tantas, como eram tantas
e tontas de adolescência
maliciosa e escaldante
as meninas da Imperial.

As safadezas com a prima
no muro além do quintal.
Também às vezes no quarto
mãos sob a mesa, desejos
entre paredes retidos.
Mas iam além das paredes
além da casa e da rua
desejos sem pausa ou fuga.
Enroscando-se no vão das portas
transpunham frestas e fechaduras
aqui colando-se às roupas íntimas
da tia sonsa e provocativa
ali brechando as pernas inacessíveis das vizinhas
e em tudo seguindo o balanço
da mini-saia das colegiais.
Ah, como medir cogitar a que torturas
a simples presença da mulher
condena a carne indefesa.

Faze de mim teus haveres
de mim o que bem quiseres
gozando ela gemia
e eu cego na luz do dia
sobre o sofá possuía
o quente corpo de Ceres.

Era enfermeira da tia
que um câncer já remordia
por longo tempo sofrido.
Ceres em mim se esquecia
das surras que lhe batia
em casa o bruto marido.

Minha Ceres de turvas eras
com quem ouvi Primavera
na voz de Claudete Soares.
Ela chorando deserta
pra rua de porta aberta
e os desenredos nos ares.

Mas há um grande trem de vida
que o poema omite
talvez já ressabiado do estirão.
Um dia, anos e anos mais tarde,
conheci-a numa festa em Boa Viagem.
Nem Deus nem os cronistas da terra
atinam com o que houve.
O que sei é que um grande incêndio
alastrou-se pela praia
ressecou os canais e drenou
as águas do Atlântico.
A ponte do Pina desabou
e a cidade sobressaltada delirava na avenida
confusa entre um carnaval extemporâneo
e um hiato de amor universal amordaçando
duas almas atormentadas
na orgia da carne errante.

Recife 28 e 29 de novembro 2001.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Chuva


Quem se apaixona por mim
Que sou pequeno e qualquer
Se a poesia por fim
Sopra sua carne onde quer?

Quem sabe a dor que hoje em mim
Chove sua chuva onde quer
Depois inunda o jardim
E o sopro dessa mulher?

Quem sabe da vida o fim
O fim do que nada é
Se nada resta e enfim
Nada é a medida de ser?

Recife, 9 de abril de 2011.

domingo, 20 de outubro de 2013

Vinícius II


O documentário Vinícius é tão rico de temas e sugestões artísticas e humanas que ao decidir comentá-lo acabei excedendo todas as medidas previsíveis e razoáveis. Afinal, escrevo para blog e bem pouca gente tem ainda a paciência de ler na telinha qualquer texto que ultrapasse a medida de duas páginas, não importando a relevância do tema e a própria qualidade da escrita e do comentário. Digo isso, reconheço limpidamente isso, e no entanto insisto em exceder a própria medida do excesso. É um outro modo, ainda que involuntário, de prestar homenagem ao homem e artista excessivo que foi Vinícius. Se o romântico é por definição um ser de excessos, sobretudo quando cotejado com o seu avesso, o clássico, Vinícius foi romântico tão incorrigível que sustentou a tensão romântica da sua poesia quando o romantismo estava já francamente esgotado enquanto estilo de época ou movimento estético. É claro que num outro sentido, no sentido de atitude existencial em face do mundo, o romantismo é sempre presente.

Essas observações ligeiras favorecem aqui uma retomada do documentário no registro pertinente às amizades de Vinícius. Seria difícil, senão improvável, encontrar na história da nossa cultura um artista mais necessitado de amizade e companhia do que Vinícius. Ele foi no sentido mais excessivo do termo, novamente como romântico típico, um ser entregue ao exercício do convívio fraternal e intenso. É algo que testemunhou na linha da biografia, sempre povoada por gente, festa e confraternização, e também na própria poesia e na música que criou. A ênfase aqui, por razões que explicarei logo adiante, recairá sobre a música. Com certeza, não existe arte investida de maior energia socialmente integradora do que a música. Isso sugere possíveis explicações sociológicas para a hegemonia da música na nossa cultura, tão aderente aos vínculos gregários, à celebração da festa e do prazer grupal.

Vinícius foi poeta e antes de tudo poeta. Mas a poesia que por muito tempo praticou, a canônica e impressa, supõe um estado de recepção oposto ao da música popular. Lemos poesia de ordinário em estado de solidão. O poema, sobretudo o de natureza romântica, como é o caso do de Vinícius, é lido com frequência em voz alta, ou pelo menos sussurrado. Um crítico como Harold Bloom recomenda, com razão, que se leia poesia desse modo. Afinal, a leitura de viva voz acentua os elementos rítmicos e musicais do poema. Ainda que assim acrescentemos à recepção da poesia esses traços socializadores, o fato é que a leitura é por definição solitária. Não que estejamos sozinhos, bem pelo contrário, mas também precisamos estar fisicamente sozinhos quando lemos. É esse paradoxo que explica a verdade profunda e tocante contida nestas palavras de William Nicholson: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”.

Vinícius transita, já em meados da década de 1950, da poesia impressa para a música popular. É quando conhece Tom Jobim e se associam para musicar Orfeu da Conceição. E assim nasceu a parceria que foi provavelmente a de mais alta distinção poético-musical do Brasil. A história, inclusive com seus lances anedóticos, é conhecida demais para que aqui volte a repisá-la. O que ligeiramente acentuo é o fato de que a parceria Tom Jobim e Vinícius vai muito além do repertório identificável como característico da bossa nova. Vai tão além que precede e sucede esse estilo. Confiná-los nos limites da bossa nova, como alguns erradamente fazem, é empobrecer a amplitude e variedade da música que produziram tanto juntos quanto sozinhos ou associados a outros parceiros que tiveram.

O documentário, aliás, contém uma das cenas mais engraçadas de pura farra que já vi na tela. Refiro-me à passagem em que Tom e Vinícius estão cantando “Pela luz dos olhos teus” visivelmente de pileque. Tom toca violão e Vinícius, debruçado no seu ombro, canta meio engrolado a letra dessa bela canção. Depois emendam, em tom de humor, as dores de cabeça que dão às mulheres por causa dos excessos etílicos em que incorrem e a cena evidencia. Tom então diz que sua mulher, já desesperada, pegou duas garrafas de uísque e arrebentou-as na cozinha para impedi-lo de continuar bebendo. E ele encerra a anedota observando que não adianta quebrar as garrafas porque ele logo cuida de comprar outras.

Um momento de pura iluminação sensual irrompe quando Mariana de Moraes, a linda neta de Vinícius, canta “Coisa mais linda”. Fiquei simplesmente deslumbrado diante de sua graça, beleza e sensualidade. Só isso já valeria o filme. Um crítico americano, cujo nome me escapa, devastou o cd “Se é pecado sambar” que Mariana gravou há algum tempo. Pra mim ela pode desafinar, brigar com o compasso, errar por becos rítmicos e harmônicos improváveis. Ela precisa apenas aparecer, pecando no samba e sobretudo na vida. Não sei de melhor meio de honrar a ascendência onipresente do avô.

Vinícius teve parceiro em excesso, outra evidência do ser excessivo que foi. Já mencionei acima sua parceria mais alta, a que compartilhou com Tom Jobim. O documentário inclui seus parceiros mais constantes e notáveis, o que é de justiça. Assim, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho e Chico Buarque passam pela tela, tanto em imagens de época recuperadas de arquivos quanto em depoimentos atuais gravados exclusivamente para o documentário Já no fecho deste Mônica Salmaso canta uma das mais belas composições de Edu Lobo e Vinícius, infelizmente tão pouco lembrada hoje: “Canto Triste”. Se escolhesse as 20 melhores canções brasileiras de todos os tempos, com certeza a incluiria. Não preciso sublinhar o quanto essas seleções são arbitrárias. Se as renovo é tão-só com a intenção de realçar a excelência de “Canto triste”, que tantas vezes cantei acompanhado pelo violão badenpowelliano de Lucivânio Jatobá.
Concluo essas divagações já excessivas inspiradas pelo excessivo Vinícius lembrando que sua trajetória de vida é como uma linha de direção invertida. Melhor diria se trocasse a linha por um percurso em zigue-zague. Quero melhor sugerir que Vinícius foi velho quando jovem e jovem até porra louca, jovem desmedido e retardado quando já velho. Tentou-me aqui o termo ridículo, mas prontamente recuei. É que penso que era tão ele, tão espontaneamente Vinícius nos próprios excessos da velhice, quando se muda para a Bahia no auge do nosso desbunde cultural tupiniquim, que não consigo ver ridículo num comportamento que provavelmente assim seria qualificado fosse um outro velho qualquer.

Como Ferreira Gullar bem observou, mencionei isso na primeira parte deste artigo, ele começou velho impregnado de catolicismo, rabugice direitista e poesia metafísica. Com o tempo e as más companhias, benditas más companhias, foi se despojando das convenções que lhe tolhiam a liberdade individual, que atrapalhavam a infrene manifestação do romântico por temperamento, convicção e espontânea adesão estética. E assim se afirma na vida o diplomata boêmio e radicalmente antiburguês. E assim Vinícius se desprende do livro, da página impressa, para mergulhar de cabeça no mundo do espetáculo musical, o reino congenial do seu narcisismo generoso e irrefreável, carente de convívio caloroso e aconchego protetor contra os abismos da solidão que sempre repeliu, contra o poço do desamor e da indiferença que também passionalmente combateu.

Vinícius tem características pessoais muito divergentes do que sou. Isso todavia não anula a paixão, a comoção com que vejo sua vida e sua arte recompostas no documentário dirigido por Miguel Faria Jr. O registro emocional que assinala minha recepção da obra é também comum, tenho certeza, a muita gente que pouco o conhece, que pouco compartilha de sua figuração passional da vida. Mas como ficar indiferente a uma vida tão intensamente vivida, como passar à margem de uma presença que tão poderosamente iluminou a cena cultural brasileira dos anos 1950 para cá, que tanto impregnou nossas tradições românticas e dengosas, sensuais e festivas com a música e a poesia mais cativantes e comoventes?

Quando vi o documentário pela primeira vez, dentro de um cinema, sai quase chorando de emoção, a alma lavada por uma torrente de beleza, sensualidade e humor. E de repente, em meio à massa anônima que se movia nos corredores do Shopping Guararapes, tomou-me o desejo urgente de voltar correndo para casa, servir-me de uma dose de uísque e me abandonar na solidão da varanda ao canto de todas as suas músicas que sei toscamente acompanhar ao violão. É claro que isso tudo escandalizaria Vinícius, isto é, a emoção inspirada por sua vida e sua música fruída na solidão da minha varanda. Ele me empurraria para o centro ruidoso da vida onde os amigos e meros acompanhantes de ocasião confraternizam, desejam a bela mulher que passa e transfiguram as tintas e linhas banais do cotidiano. Como todo artista iluminado pela força da paixão criadora, Vinícius foi um dos nossos grandes transfiguradores da vida e do cotidiano, que sem ele teriam sido muito mais pobres.
Recife, 16 de outubro de 2010.

Nota: O poema abaixo transcrito foi escrito logo depois que vi o documentário Vinícius pela primeira vez. É apenas um poema de circunstância, modalidade também praticada por Vinícius, Drummond e sobretudo Manuel Bandeira. O que me encoraja a expor meu poema, antes circunstância do que poesia, é o exemplo destes modelos que converteram a matéria do cotidiano, da circunstância e da gratuidade do prazer lúdico numa outra modalidade de manifestação da poesia.
Vinícius
Vinícius, vícios
Quem não os tem?
Melhor que tê-los
É ter alguém.
Alguém pra amar
No ar, no mar
No céu da vida.
Em cada olhar
Reinventar
A voz traída.

Vinícius, vícios
Dor e suplícios
Há que sofrer.
Mas há paixão
Nessa canção
Que é você.

Tua matriz
Outro país
Há de inspirar.
Em Lu, Laís
Outros brasis
Virão cantar.
Recife, 26 de maio de 2006.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vinícius


Vinícius é um documentário que encanta, diverte e sobretudo comove o espectador. Esses efeitos decorrem antes de tudo do personagem que se move no centro da trama. Se a tradição romântica, datemo-la a partir de Rousseau e Herder, elevou o artista à condição de polo da realização estética, tão ou até mais importante do que a própria obra de arte, Vinícius cedo se destacou como um poeta cuja força narcisista converteu a obra que produziu numa derivação ou projeção da sua personalidade. Mário de Andrade, valendo-se de outras palavras, acentua esta verdade ao criticar em 1939 a poesia de Vinícius num artigo mais tarde enfeixado no volume O Empalhador de Passarinho. E logo comprova seu argumento citando estes versos exemplares:
“Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas”.

Os versos acima são extraídos do “Poema para todas as mulheres”. Não bastasse o tom afoito, ou até arrogante, ele demonstra, como romântico impenitente que sempre foi, o quanto a obra é antes de tudo uma expressão da sua individualidade soberana. E o fato é que isso é ainda bem pouco, se consideramos, no desdobramento da sua vida e obra, o quanto espraiou esse tom afoito em tudo que viveu e poeticamente realizou, uma coisa sendo na verdade indissociável da outra. O documentário que doravante acompanho constitui prova cabal do que acabo de afirmar.

O documentário começa nos bastidores do teatro que serve de palco para a encenação da vida e da obra de Vinícius. Os atores que o interpretam, Camila Morgado e Ricardo Blat, mesclam ao longo da obra a leitura de fragmentos de poemas de Vinícius, infelizmente vários carecem de identificação, e matéria de cunho biográfico e histórico alternada com a interpretação de canções compostas pelo próprio Vinícius e seus parceiros mais frequentes: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho.

Não bastasse a excelência dessa amostra da história recente da música brasileira, comparecem ainda, como depoentes e comentadores, nomes definitivos da nossa cultura como Antonio Candido, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Maria Bethânia e vários outros. Dentre os poemas cujos fragmentos são declamados sem a devida identificação, menciono três que de resto figuram entre os melhores que escreveu: “Poema de Natal”, “O haver” e o também longo e comovente “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”. Aproveito a deixa para aqui enfiar uma nota de espanto e protesto diante do fato de que o segundo poema citado, “O haver”, não consta da minha edição da Poesia Completa & Prosa de Vinícius de Moraes, editora Aguilar. Friso que minha edição é de 1986, lançada portanto 6 anos depois da morte do poeta.

Da infância à idade tardia, apesar das muitas ausências impostas pela vida de diplomata e outras circunstâncias, Vinícius acompanhou as transformações do século que profundamente alteraram a paisagem urbana do Rio de Janeiro, além de ser personagem de muitas delas. Nascido ainda quando as luzes da belle époque já se apagavam no horizonte de modo catastrófico, cedo impregnou-se da cultura francesa que tão nitidamente desenhou o perfil de várias gerações da elite carioca. Mas esse processo de impregnação foi sempre impuro, notadamente no seu caso. Quero noutros termos ressaltar o caráter da mestiçagem que no conjunto da nossa história cultural sempre entreteceu a tradição cultural de corte europeu, antes de tudo francês, com os ingredientes africanos e indígenas que tão singularmente nos diferenciam da Europa e do conjunto da tradição ocidental.

O pai de Vinícius, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, a quem dedicou o poema acima mencionado, foi poeta anônimo de extração erudita, enquanto a família da mãe era muito achegada à boêmia e à música popular de tão viva presença no universo social do Rio de Janeiro. Já aí se nota como o ambiente que enquadrou a sua infância livremente conciliou na origem dos seus próprios ancestrais traços culturais divergentes. A isso importaria acrescentar seus estudos, desde pequeno, no Santo Inácio, colégio jesuíta intimamente associado à formação da elite carioca.
Sua poesia da primeira fase, de nítido viés metafísico, transpira a atmosfera mística assimilada no contexto católico que vincou a maior parte da sua juventude. A isso se soma a poderosa influência que sofreu de Octávio de Faria, notável romancista católico politicamente reacionário, o que quase soava como truísmo no clima ideológico e cultural do Brasil da década de 1930. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, aproximou-se do integralismo, a ideologia de corte direitista hegemônica à época. Evidentemente sua íntima ligação com Octávio de Faria tinha muito a ver com esses traços ideológicos dos quais mais tarde se dissociará.

Ferreira Gullar observa com irreprimível humor que Vinícius traçou na vida uma trajetória singular. Poeta de marcada aprendizagem erudita e francesa na juventude - mais tarde acrescida da literatura inglesa, antes de tudo romântica, assimilada durante seus estudos em Oxford - à medida que amadurece vai progressivamente se despojando de toda essa herança pesada e asfixiante. O peso maior, em termos de tradição opressiva e conservadorismo político, procede de sua já referida formação católica. Entretanto, mesmo quando católico confesso e praticante já vivia uma vida dupla, aliás comum à religiosidade tingida de tradição patriarcal, que tendia a isolar e comprimir a mulher no recesso da casa enquanto tecia com rédea frouxa, para não dizer desatada, uma ética masculina no geral pontuada pelo desmando e a duplicidade hipócrita. Como era de conveniência corrente para os homens, Vinícius pagou farto tributo a essa divisão injusta atribuível aos gêneros bem característica das culturas de raiz patriarcal.

Depois dos livros ancorados na metafísica de intensa impregnação católica, reponta na poesia de Vinícius a influência de Manuel Bandeira. Também da sua primeira mulher, Tati, de ideias políticas e estéticas avançadas. Ele próprio reconhecia o quanto foi transformado pela intimidade amorosa com Tati. Sua amizade com o socialista americano Waldo Frank, lavada na água suja da miséria nordestina que vieram conhecer de perto, também decisivamente concorreu para mudar sua visão da realidade. Isso se traduzirá na sua poesia que, sobretudo a partir de A Saudade do Cotidiano e O Encontro do Cotidiano, ata as matrizes eruditas à matéria impura e até sórdida da vida tal como já expressa nos títulos que acabo de indicar. É a partir daí que dominam na sua poesia a matéria carnal do cotidiano, os bordéis sórdidos da Lapa, a paixão erótica elevada a expressões de lirismo saturadas pela realidade sem máscaras e isentas de transfigurações religiosamente idealizadas. Assim grosseiramente descrevo o processo através do qual Vinícius se desprende das amarras conservadoras do catolicismo e dos vínculos tradicionais que lhe abafaram a infância e a juventude.

Antonio Candido, sempre agudo e preciso, projeta mais alguma luz sobre as linhas incertas desse quadro quando ressalta que Vinícius soube, mais que qualquer outro poeta modernista, harmonizar sua fidelidade às formas poéticas da tradição com o mergulho no cotidiano, a imersão na corrente da vida isenta dos artificialismos que tanto recobrem a tradição erudita. Vinícius consolidou, em suma, a ponte entre a tradição erudita e a matéria do cotidiano postulada e também largamente praticada desde os primeiros ecos do modernismo por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e nossos poetas mais sólidos e renovadores. Mas ninguém avançou tanto nessa linha quanto Vinícius, notadamente a partir do momento em que definitivamente se desgarra da poesia canônica e impressa e todo se entrega à poesia posta a serviço da música popular num momento de extraordinária inflexão qualitativa no veio fecundo e democratizante da cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960.

Drummond confessou com tocante franqueza e generosidade a inveja que a vida de Vinícius lhe inspirava. Segundo ele, Vinícius foi o único poeta que viveu integralmente como poeta, aquele que teve a coragem de converter a paixão antes em matéria de vida do que de poesia. Sem dúvida, um personagem desse porte constitui um prato cheio, ou já feito, para um bom documentário ou uma boa biografia, como é a que José Castello escreveu.
A vida passionalmente vivida se traduz antes de tudo na sua fome infrene de amor, na sua determinação de viver desgovernado pelo princípio da paixão. Daí resultaram nove casamentos, reviravoltas mirabolantes e loucuras que raros ousariam cometer em nome da paixão carnal e do amor incendiado por uma intensidade romântica que requeima de inveja os românticos frustrados e inspira estranheza ou reserva ao racionalista regulado por seu senso de conveniência e medida. Vinícius casou tanto quanto Oswald de Andrade, outra figura lendária que, como tal, também sobrepôs a vida vivida à obra realizada, que, também como é de praxe, resultou muito imperfeita.
No que se refere a esse ponto, há quem tenda a depreciar essa verdade na obra de Vinícius. É um fato marcante no documentário. Todos que se pronunciam sobre a obra, antes de tudo sobre o autor, silenciam ou são incapazes de reconhecer o quanto há de imperfeição e fragilidade no romantismo exaltado que sustenta e move a poesia de Vinícius. O erro de apreciação é parcialmente compreensível, se se considera que o documentário objetiva antes de tudo realçar em tom de encantamento e paixão a grandeza singularmente humana do personagem. Mas cabe ao crítico consistente e isento também assinalar o quanto a obra de Vinícius está complacentemente saturada de lugares comuns típicos do romantismo desregrado, que privilegia antes a expressão da subjetividade criadora do que a realização formal da ideia ou daquilo que Mário de Andrade, também contaminado pelo fascínio das forças líricas inconscientes, louvava enquanto impulso desgovernado da criação poética.

Vinícius era passional demais para se contentar em reter a vida ardentemente consumida nos limites convencionais do amor conjugal e da família. Viveu sempre possuído por uma sede de presença, de vida passionalmente movente que o impelia a abrir literalmente as portas de sua casa para a festa e a música e a farra sem hora ou medida. Daí o cortejo de amigos que foi arrebanhando ao longo da vida. Daí a paixão pelo cinema e pelo jazz, em especial durante os anos em que viveu em Los Angeles como diplomata. Daí as viagens que se repetiam e renovavam devido à profissão de diplomata, mas também à margem dela. A vida em trânsito contínuo levou-o do Rio a Oxford, de Paris a Los Angeles, de algum lugar a Montevidéu, daí aos candomblés da Bahia, da Itália à Argentina, de São Paulo ao deus dará... Toda essa viagem trepidante dentro da vida era acelerada pelo álcool, do qual se tornou dependente e ao qual foi fiel até a morte. Se foi fiel a alguma coisa, digamos que o foi ao uísque. Como disse numa de suas definições definitivas, o uísque é o cachorro engarrafado, isto é, o verdadeiro amigo do homem. Sem deixar de acrescentar que nunca viu amizade nenhuma germinar em leiteria.

Tudo isso visto e sorvido num documentário é belo, sedutor e estonteante. Os amigos celebram Vinícius, sua vida de desgoverno e paixão, e se rendem deliciados a seu narcisismo generoso e absorvente. As mulheres imagino, e o invejo, o quanto não se entregaram enlouquecidas à sua fome de carne e amor, carícias, gozo e outros inefáveis da intimidade amorosa. E o que dizer das incontáveis que antes e ainda no presente e por tempos improváveis se abandonaram, ouvindo seus poemas musicados, às fantasias mais indizíveis e extremas? Evocando os versos modelares de Chico Buarque: “O que não tem governo / nem nunca terá / o que não tem vergonha / nem nunca terá / o que não tem juízo”.

Mas o documentário abafa os danos decorrentes da paixão infrene, silencia ainda sobre o que meu amigo Luciano Oliveira chama de os anexos do amor ou ainda as agruras do amor casado e atado a filhos que, como escreveu o próprio Vinícius, é bem melhor não tê-los. E complementa: sem tê-los, como sabê-los? Ora, não é preciso ir a tanto para avaliar o quanto nos custam e o quanto lhes custamos. O que intento melhor salientar é que o filme compõe um retrato puramente sedutor e deslumbrante de Vinícius, um retrato que nos faz espontaneamente cair de riso enlevados diante da própria loucura inconsequente, diante da porra louquice que com certeza muito vincou a vida aventurosa e passional de Vinícius. Noutras palavras, ao silenciar sobre os danos e anexos da vida passionalmente desgovernada, o documentário suprime a dimensão ética da nossa experiência amorosa. Essa dimensão poderia ser menos vagamente sugerida se formulasse a seguinte questão: até onde posso ir na minha fome de amor e sexo, de desejo e realização do desejo?
Todos sabemos, salvo os ingênuos e omissos diante da vida, que é impossível amar sem causar algum dano ao outro. Mas isso não nos isenta desta interrogação angustiante: até onde posso em nome do meu desejo e do meu amor causar dano ao outro que me ama e sobretudo amo? Ninguém pode em sã consciência legislar sobre isso, determinar a priori o limite arbitrário entre a busca do amor e as consequências dessa busca. Mas a questão de fundo ético é real, ainda quando, por pura cegueira egoísta ou compreensível prevalência do princípio do prazer, convenha empurrá-la para debaixo do tapete e entregar-se ao impulso do gozo imediato da vida. Como afirmei, esse problema ético é central na vida aventurosa de um homem como Vinícius e não penso que propô-lo consista em incorrer em simples interpelação moralista.

Como todo grande sedutor, como todo romântico que escolheu viver a vida para além das convenções que nem sempre podem ser descartadas como artificialismos atravancadores da liberdade humana, do empenho em realizar uma vida autêntica, como tanto prezavam sustentar os existencialistas sartreanos, Vinícius aparentemente nunca perdeu o sono atormentado por esses obstáculos éticos inscritos na esfera da intimidade amorosa. Que me lembre, nenhum grande sedutor relutou entre a mulher desejada, não importa a que preço, e os limites éticos da realização do desejo. Tônia Carrero, que foi grande amiga de Vinícius desde o primeiro casamento deste, afirma sem nenhuma reprovação moral aparente que ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher.
De Casanova a Vinícius, traçando um limite temporal arbitrário, não sei de nenhum grande sedutor que tenha refreado sua sede de conquista cerceado pela questão ética que aqui proponho. Portanto, fechando ou abrindo as pernas, a alternativa fica a critério ético de quem me leia, é fato que a sedução colide com a ética, quando não simplesmente a ignora. Esticando ainda mais a corda, para que essa digressão não se exceda em ponderações morais que de ordinário descambam para o leito apertado do moralismo, convenhamos que o desapreço pelo limite ético convém tanto ao sedutor quanto ao seduzido, tanto a quem vive e realiza a vida na linha do excesso descrito pela biografia de Vinícius quanto ao sedutor comprimido malgré-lui que foi, por exemplo, Drummond. O fato é que a ética, em assuntos dessa natureza, constitui sempre um constrangimento ou impedimento que agride nossa natureza indomavelmente egoísta. É por isso que tantas vezes adoecemos quando renunciamos a desejos e tentações demasiado desejáveis. Ninguém precisaria ler Freud ou deitar num divã para ter consciência dessa banalidade recorrente na nossa economia erótica e moral.

O fato é que, reitero e amplio, caímos no laço da sedução que pontua a trajetória biográfica de Vinícius. É isso o que pulsa no cerne da recepção encantatória e deleitosa com que viajamos deslumbrados no bojo dessa cadeia de imagens e sons, de fantasias e pulsões que compõem a tessitura do documentário. O receptor generoso, na linha de Drummond, admira ou inveja Vinícius no melhor sentido da inveja ao reconhecer que ele foi o único poeta investido do desejo e da coragem de fazer de sua vida um largo e absorvente poema passional. O invejoso, pelo contrário, vê o filme roendo a corda de suas frustrações e na inveja ressentida com que abarca a vida e a obra do poeta projeta no que ele viveu tudo o que gostaria de ter vivido. É uma prova variável, convenhamos, do desejo de ser Vinícius.

Saindo um pouco das ponderações éticas insolúveis que acima esbocei, salvo em alguma medida a ética e Vinícius ao introduzir neste ponto um outro comentário de Ferreira Gullar. Rememorando Vinícius, afirma não conseguir lembrá-lo senão rindo, senão entregue ao prazer do riso, da atitude afirmativa e gozosa diante da vida. O próprio Gullar se ilumina na moldura de um riso espontâneo ao exprimir o sentimento com que evoca o amigo morto. Vislumbra-o sempre no avesso do desespero, sempre na faixa iluminada da vida. Indo adiante, afirma que esta é uma invenção, isto é, depende da atitude positiva ou negativa com que a encaramos e vivemos. Por conseguinte, é inútil e mesmo indesejável procurar no fundo da nossa experiência o sentido de uma verdade objetiva e universal relativa à vida. Isso é coisa de chatos como Beckett, citado literalmente por Gullar, ou intelectuais sombrios que se enredam e se atormentam – pior ainda, nos atormentam – buscando ou mesmo traçando na obra que criam um hipotético e de resto improvável sentido para a vida. Somos nós que a cavaleiro de nossa subjetividade arbitrária propomos um sentido para a vida e vivemos movidos pela determinação de realizá-lo. Vinícius teria feito isso ao decidir-se pela vida que viveu comunicando aos amigos e a todos tocados por sua vida um sentido de vida alegre e prazerosa.

Não que tenha sido feliz, como Chico Buarque certeiramente observa. Afinal, reiterando o óbvio, Vinícius foi romântico por temperamento, convicção e diria até determinação. Ora, um dos traços definitivos do romântico radica precisamente na busca intransigente do ideal: a mulher ideal, o amor ideal e outros ideais que são por definição inalcançáveis na vida. É isso, em suma, o que me assegura na convicção de que Vinícius não foi nunca feliz. De resto, felicidade é sempre um estado provisório, nunca uma fortuna confundível com a duração que seria permanência. A propósito, ele inventa a quadratura do círculo ao conciliar a duração provisória e o infinito nos dois versos que são talvez os melhores que escreveu e fecham seu mais belo e mais citado soneto: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

Ficha técnica:
Direção: Miguel Faria Jr.
Elenco: Camila Morgado e Ricardo Blat.
Roteiro: Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcelos
Colaboração de Eucanaã Ferraz.
Texto final: Eric Nepomuceno.
Fotografia: Lauro Escorel.
Direção musical: Luiz Cláudio Ramos
Direção de arte: Marcos Flaksman
Montagem: Diana Vasconcelos.

Recife, 14 de outubro de 2010.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Carpeaux e Merquior


Começo por esclarecer ao leitor que este artigo foi escrito há algum tempo. Na ocasião em que meu amigo César Melo o leu, prontamente sugeriu-me propor a Daniel Lopes, nosso editor do blog Amálgama, que o publicasse quando do intervalo entre as datas da morte de Carpeaux e Merquior. Lembro ao leitor desmemoriado, como é o meu caso, que Merquior morreu em 07 de janeiro de 1991; Carpeaux, 03 de fevereiro de 1978. Minha intenção, portanto, era encaminhar o artigo para Daniel em meados de janeiro passado. A data passou, também o mês e somente agora, meio envergonhado de minha memória, proponho afinal a Daniel que publique o artigo. Encerro esta nota introdutória acrescentando uma razão pessoal e outra pública visando justificar a publicação tardia. A pessoal prende-se ao fato de que César, Daniel e eu admiramos a obra de Carpeaux e Merquior, além de nos identificarmos com a tradição do humanismo liberal a que se filiam; a segunda deriva do silêncio, salvo desatenção compreensível num leitor pouco regular da mídia, que cercou as datas acima assinaladas.

Tenho ainda uma outra razão, esta bem recente, para justificar a repostagem deste artigo. Embora pouco informado sobre a produção crítica corrente, até por não ser e nunca ter sido crítico militante, tenho lido dois críticos da nova geração de escritores pernambucanos: Cristiano Ramos e Eduardo César Maia. Além de intervirem com freqüência nas redes sociais e em eventos relacionados à literatura, têm ambos explicitado o quadro ideológico ao qual vinculam sua atividade crítica. Adeptos confessos e combativos do liberalismo humanista, escrevem e debatem publicamente as obras e as idéias correntes salientando a importância que os críticos considerados neste artigo têm na sua formação. A eles acrescentam Octavio Paz, Mario Vargas Llosa, Ortega y Gasset e Álvaro Lins. Dado que a tradição liberal dentro da qual nos alinhamos é ainda tão incompreendida no Brasil e na América Latina, quando não deliberadamente deformada, acolho com vivo entusiasmo estes jovens decididos a intervir no nosso ambiente intelectual tão pobre de obras e idéias, sobretudo neutralizado no seu potencial crítico pela prática longeva da cordialidade literária. Friso conferir ao termo cordialidade o sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda. Como foi tão incompreendido, e ainda o é, esforcei-me por esclarecê-lo no artigo Raízes do Brasil, que o leitor interessado pode conferir no meu blog. E assim fecho a nota explicativa antes que ela se torne mais extensa que o artigo original.

Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, enquanto sua visibilidade decai no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzida em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias.Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.

domingo, 13 de outubro de 2013

Ser


Sou o que sou
não onde estou.
Mas o espaço
afeta o ser
e entanto passo
sem me perder.

Sou eu e outro
eu e você
misto de dor
busca e prazer.

Sou e me indago
sobre meu ser.
O tempo vago
e o espaço hostil
são o meu nada
que já partiu.

Sou e não sou
áporo sempre
catando a via
às vezes luz
meu céu e cruz
minha poesia.

Curitiba, 18 de abril 2013.

sábado, 5 de outubro de 2013

Melancolia


Melancolia, me diz
O nome da cicatriz
Riscada no coração.
O amor não passa, não cura?
Por que tão dura e escura
É a crua punição?

Que dor castiga o amante
Que supondo ir adiante
Rasteja sempre pra trás?
Que jaz na insana memória
Que se repete uma história
Sem uma trégua de paz?

Alguma régua que meça
A dor em que o amor tropeça
Caindo sempre prá trás?
Por que caindo de dor
Constante ama o amor
Que até na dor se compraz?

Melancolia, me explica
De tanto amor o que fica
E a todo mal sobrevive.
Ou tão voraz é o veneno
Que o torna um sinal de menos
E o mata do mal que vive?

Porto de Galinhas, agosto 1987.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Irreparável


Frailty, thy name is woman!
Shakespeare: Hamlet

Porque mente o amor
Ele diz amor
Com rancor calado.
E o que ele abraça
É sombra que enlaça
Um abajur quebrado.

Mente, o amor mente
Tão completamente
Com meias verdades.
E se a gente entende
Se algo dele aprende
É tarde, bem tarde.

Mente se se escusa
Mente na recusa
Da maior mentira.
Essa dor insana
No âmago se inflama
E outra dor transpira.

Mas se tanto mente
Se tão fundo sente
Mentir tanto assim
Por que o levamos
Até se o negamos
Ao fundo do fim?

Se o amor engana
Se ama o que não ama
Tão irreparável
Que doença é essa
Que louca se apressa
Para o inevitável?

Porto de Galinhas, agosto 1987.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

O adeus


Sweets for the sweet. Farewell!
Shakespeare, Hamlet.

Flores para a flor
Que dilacerou
A razão de ser.
Flores pra essa dor
Bem maior que a dor
De sobreviver.

Flores para o adeus
Que nos olhos seus
Mudamente fala.
E meu coração
Fecha-se na mão
Sofre e só se cala.

Sofre sem uma queixa
Deixa quem o deixa
Vão é o lamento.
O amor é chama.
Ah, mísera chama
Que se dobra ao vento.

Flores para a flor
Que não é mais flor
No meu coração.
É como a poesia
Que se esgota um dia
Sem explicação.

Flores para a flor
O amor passou
Como fugaz lenda.
Vã é a procura:
Esta senda escura
Não há quem entenda.

Porto de Galinhas, agosto 1987.