quinta-feira, 14 de março de 2013
Aforismos e desaforos V
A mulher será muito superior ao homem se um dia descobrir que a cabeça é a parte mais importante do corpo humano.
A mulher é a melhor coisa já inventada para o homem. As mais devotadas se extremam nessa função ao ponto de cuidar do homem do berço ao túmulo. Só que o misógino acrescenta: ai do santo que paga o preço de tal devoção.
Pascal é o avesso de Montaigne. É por isso que tanto se assemelham.
Uma das expectativas mais insensatas do ser humano é depositar no que não é ele o que somente ele pode ser.
Se a finalidade do aforismo fosse fazer rir, o aforista seria apenas um palhaço de picadeiro.
Aforismo pode ser até desaforo para quem o lê ao pé da letra.
Tem gente que vive como se a principal função da cabeça fosse bater contra a parede.
Grande parte da estupidez contemporânea deriva da cisão entre a mente e o corpo. Se é verdade que o ideal é ter um corpo saudável e uma mente sã, é fácil compreender por que há tanta mente insana. Basta começarem a falar ou a cantar.
Atenção, patrulha politicamente correta: a boceta da obra de Machado de Assis é outra coisa.
O mito de que o dinheiro compra tudo é uma invenção de quem nunca o teve ou então por ele tudo vendeu.
Livros tediosos matam. É por isso que o intelectual acadêmico típico não passa de um assassino arrogante.
O governo culpa a sociedade pelo desgoverno das nossas cidades, enquanto a sociedade culpa o governo pelo desgoverno dos governantes. A solução é simples: basta suprimir ambos.
Variando o aforismo precedente, no Brasil o culpado é sempre o outro. Isso explica nossa irresponsabilidade até em face do imperdoável.
A fama se tornou tão barata que me espanta o anonimato de tantos cultuados por nada serem. Que obra produziram, que feitos os distinguem? É por isso que relembro sempre as palavras de Chesterton: quando deixamos de acreditar em Deus, passamos a acreditar em qualquer coisa.
Aforismo e aforista
São coisas tão deste mundo
Que por mais que lave a vista
Mais vejo o mundo imundo.
Quem disse que o catolicismo retomou suas origens universalistas ao eleger um papa argentino? A Argentina é a Itália da América Latina.
O novo papa adotou o nome de Francisco e, segundo dizem, é homem de hábitos dignos de um franciscano. Isso bastou para que os apressados começassem a alimentar expectativas improcedentes. Se você é católico partidário da liberdade sexual, do aborto, da igualdade de gênero e da canonização de Pelé, tire o andor da chuva. Melhor dizendo, adote uma religião secular como o consumismo, que é de resto a mais popular e poderosa religião do mundo em que vivemos.
segunda-feira, 11 de março de 2013
A Boa Idade nos Trópicos
Severo Machado
Tenho setenta anos. Sou reumático, cardíaco e viúvo. Antes de aposentar-me, acalentei durante anos o sonho de envelhecer à beira mar, estoica e solitariamente esperando a morte numa praia tranquila do litoral pernambucano. A solidão da viuvez muito me doeu. Afinal, tive Carminha a meu lado, minha amada Maria do Carmo, durante grande parte da minha vida. Ficou-me de consolo a filha, Soledade, que aliás seguiu minha profissão. Fui dentista no centro do Recife durante 35 anos. Cuidei de muita gente, até de gente difícil como Sérgio Majo, Natalino, Paulo Farias, Severo Machado, Pedro Gadelha e Valêncio Costa. Se conquistei a amizade e o respeito destes, seres crivados de idiossincrasias e atávico temor à minha cadeira e instrumentos, o fato diz algo em favor do meu apreço por seres humanos, algo de minha singular bonomia. Ao cabo, todos se foram, inclusive Soledade, cujo nome foi venturosamente traído pelo destino, pois encontrou um amor em São Paulo, para lá transferiu o consultório e nunca mais voltou.
Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Por temperamento e consciência do meu jeito pouco pernambucano de ser, evitei sempre os ambientes ruidosos da cidade, as tradições festeiras que tanto importunam meus hábitos reservados. Além disso, cresci numa família de classe média modesta, mas regida por padrões de comportamento pouco comuns. Meu pai, homem discreto e amável, nunca foi de falar alto, gesticular por tudo e por nada, como é tão típico do pernambucano. Quando voltava do trabalho, acomodava-se na sua cadeira de balanço sem nunca incomodar vizinho. Apesar dos seus modos pacatos e discretos, era um homem acolhedor, afiado no humor com que comentava fatos e circunstâncias, além de me entreter com sua convivência imaginosa. Embora de pouco estudo, preso a um mundo de horizontes bem estreitos, era dotado de uma civilidade e senso de respeito que não vejo como explicar a partir das condições ambientes em que se formou. Acho que herdei muito desses traços que pingo aqui à deriva da memória.
Quis sempre viver em paz com meu semelhante. Leitor voraz de literatura, apesar da inteligência e sensibilidade convencionais, sonhei ler e em alguns casos reler na solidão da velhice as grandes obras zelosamente enfileiradas na minha velha estante revestida de vidros foscos e empoeirados. Lá repousam Cervantes, Sterne, Thomas Hardy, Dickens, Balzac, Machado de Assis e uns poucos mais. Mal fechei o consultório, bati a poeira desta cidade que aprendi a detestar e fui esconder-me no meu cantinho de praia comprado em Porto de Galinhas. Fui dos primeiros a explorá-la, dos primeiros a render-lhe afeição que direi ecológica ou naturalista, pois amei-a desde o primeiro verão em que nela me instalei ouvindo nas noites de lua o violão de Baden Powell e a música suprema de Tom Jobim. Porto de Galinhas era o paraíso ecológico onde sonhei repousar minha velhice desiludida e esperar a Indesejada das Gentes com alguns laivos filosóficos de serenidade e aceitação compassiva do meu fim.
Bastou-me uma semana de aposentadoria na praia para que os turistas e veranistas predadores convertessem minha velhice num inferno. Meu sonho de viver uma velhice recolhida e sossegada, pontuada por caminhadas na beira mar ao entardecer e outros hábitos que me propiciam serenidade, tudo isso foi prontamente suprimido pelas mudanças que a indústria do turismo, crescendo a toque de festa, impôs a Porto de Galinhas. Mergulhado em funda depressão, vendi minha casinha. Sem saída, retornei a Recife onde reocupei o velho apartamento que considerara vender logo que me aclimatasse ao litoral onde fixei encontro ilusório com a Indesejada das Gentes. Vivo agora na área que os corretores de imóveis e publicitários chamam de cartão postal de Recife. Se é isso cartão postal, bem imagino o que seja o cotidiano dos carteiros.
Às sete da manhã os vendedores de gás de cozinha arrancam-me da cama. Rolam lentamente rua afora trovejando no alto-falante as virtudes e o preço irrisório do produto que me abala o sono e a paz doméstica. Depois o ruído incessante da construção civil, o bate-bate sem trégua das reformas de imóveis, o vendedor de cd pirata, as buzinas e alarmes eletrônicos dos automóveis guinchando dia e noite. Minha rua, meu bairro, a cidade inteira tornaram-se um corredor por onde rola todo tipo de mercadoria assaltando os ouvidos da população indefesa e no geral indiferente.
Não bastasse tanto, muitos dos meus vizinhos inconscientemente concorrem para infernizar o meu dia. Como a solidão imposta por uma cultura hiperindividualista é demasiado dolorosa, sobretudo para os separados e idosos, muita gente passou a projetar nos cachorros sentimentos e carências antes satisfeitos ou orientados para o semelhante. Já que este é cada vez mais indiferente, e lhe respondemos com a mesma moeda, restam os cães como companhia e consolo para a aridez e futilidade de nossas vidas. O problema é que esses diabos, os cães, latem onde e quando querem. Se não civilizamos nossos filhos, o que dizer dos cães adotados como nosso último refúgio de companhia e fidelidade?
Como observador indefeso e silencioso, impotente para moldar a cidade a meu jeito e feição, assisto desolado a um processo de aceleração urbana que vai desfigurando ainda mais uma cidade que nunca passou de um acampamento urbano. Sei que essa apreciação severa, mas verdadeira, irritaria qualquer leitor de Recife, cuja percepção de sua cidade é deformada pelo excesso de bairrismo. Aprendi na minha leitura errática de alguns antropólogos que etnocentrismo (o fenômeno que venho de nomear como bairrismo) é uma disposição universal e espontânea do ser humano. Penso que seja verdade, mas meus conterrâneos aparentem ir além dos excessos correntes quando celebram traços culturais e tradições que jamais proporia como modelo para qualquer cidade compreendida no sentido preciso do termo.
O fato é que Recife está nas mãos de um punhado de empreiteiras e políticos corruptos cuja única ambição é enriquecer a qualquer preço. Cidade sem plano de expansão e controle dos meios de recomposição do espaço urbano, marcha para ser uma São Paulo subdesenvolvida. Melhor dizendo, vai ser a São Paulo do Nordeste contendo apenas o que esta tem de pior. Mal escorado na fraqueza dos meus setenta anos, olho à minha volta, até onde mais longe a vista alcance, e não vejo um parque, uma praça, um espaço público acolhedor, ou simplesmente usável, onde possa viver algumas horas da minha rotina de aposentado. Diante de condições ambientes tão hostis, decretei eu próprio meu estado de prisão domiciliar.
Há pouco um publicitário imaginoso inventou um novo tipo de serviço vendido e prestado sobre rodas sustendo auto-falantes potentes. Quem perdeu ou teve um gato ou cachorro roubado, paga agora a esse meritório serviço para infernizar ainda mais meus ouvidos saturados desse cotidiano de bordel, com perdão das orgias que em nada importunam ou infelicitam os vizinhos. O inferno, dizia o outro, que de resto era francês, são os outros. Se o francês dizia coisas desse tipo, e graças a elas ficou famoso, citado até por gente que nunca o leu, o que diria um velhinho reumático e cardíaco prisioneiro da idade num bairro sem lei?
Hoje, quando descansava do almoço, fui acordado pelos alto-falantes. Falavam em favor de uma pobre senhora cuja gata siamesa foi roubada. Pela manhã outro agente filantrópico, ou zoológico, trovejou o desaparecimento ou roubo de um louro falante. Ontem foi a vez de um cachorro amado pela família que o procura de coração cortado. Todos esses infelizes, privados de tão inconsoláveis amores, prometem gratificação substanciosa, além de fornecerem número de telefone para ligação gratuita. Comovido com tanto amor por gatos e cachorros e louros, indo de contrapeso tanto desprezo pela minha paz doméstica, enfim encontrei um meio de bondosamente ajudar esses infelizes. Liguei para os órfãos do louro disfarçando a voz e dedurei a órfã da gata siamesa. Procedi ao mesmo tipo de troca com outros infelizes, num caso ou noutro enfiando perversamente o endereço e o telefone de algum desafeto. Ignoro que conforto levei à vida e corações de gente tão amável, mas sei que os alto-falantes continuam trovejando pelas ruas.
A perspectiva de uma viagem de uma semana sugeriu-me outra ideia humanitária. Liguei para a agência de publicidade. Alô, gostaria que você gravasse um anúncio e o transmitisse aqui no meu bairro de domingo a domingo. Quero que vá ao ar logo cedo, às sete da manhã e à tarde, logo depois do almoço. Pode ditar o anúncio, meu querido. Paga-se regiamente a quem encontrar um burro velho e reumático puxado por três patas mancas. Só três? Só. Será fácil localizá-lo, se evidentemente andar pelas ruas. Paguei a conta e logo viajei.
Voltei ainda secretamente me deleitando com o ruído que causara no ar do bairro durante minha ausência. Para minha surpresa, alguém gravou uma mensagem na secretária-eletrônica: Alô, dotô. Encontrei seu burro. Morto, mas encontrei. Tem três patas mancas e um par de remos. Estão quebrados, mas é fácil ver que eram usados por um burro remático. Tudo é possível no Brasil, suspirei desenganado. Tive tanto trabalho para me ver livre do chantagista que desisti de vingar-me dos vizinhos valendo-me do princípio cristão com que todos os dias me confortam a vida: o bem com o bem se paga.
Um dia comprarei um fuzil e serei notícia na mídia universal. Conquistarei enfim meus quinze minutos de celebridade fuzilando um carro de propaganda, envenenando uma gata siamesa ou enforcando um cãozinho veludoso. Ou ainda afogando um velho burro remador. O inferno serei eu.
sexta-feira, 1 de março de 2013
Aforismos e desaforos IV
Quem lê aforismo ao pé da letra deve mudar de letra para não atirar no próprio pé. Aforismo, assim como poesia, é metáfora ultracondensada. Nenhum aforista perde letra atirando no pé do leitor. Aforista que se preza é como a polícia brasileira: só atira na cabeça.
A mulher tem muito mais aquilo na cabeça do que o homem. O problema é que ela chama amor o que o homem chama sexo.
Existem muitos tipos de progresso, mas apenas um é absolutamente previsível e inescapável: nosso progresso em direção à morte.
A psicanálise é uma terapia tão ineficaz que culpa o paciente pelas doenças que ela inventa.
O único benefício comprovado que o divã do psicanalista propicia é repousar por alguns minutos o corpo fatigado do paciente. Tanto é verdade que sei de um que adormeceu durante uma sessão.
A solidão me tornou pior do que fui. Se entretanto escolhesse ficar com as companhias que tive, seria muito pior.
O único cristão que existiu foi Cristo. Marx, que leu a si próprio, disse que não era marxista.
Quem precisaria dos ensinamentos de Cristo para ser um Judas ou atirar pedra em pecadores? Acreditaria no cristianismo se os cristãos seguissem pelo menos o exemplo do bom samaritano.
Não me leia quem supõe que falo apenas de mim. Que importância tem meu ego mesquinho para que eu fale apenas de mim? Tudo que escrevo contém pelo menos um grão de sentido que prescinde do meu ego.
Falando francamente, nunca fui flor que se cheirasse, mas o jardim cheira muito pior.
A única nostalgia que me dói é a da bondade que está além da minha banalidade.
Andava sempre com um peso irreparável no lado do coração: era a culpa de não ser na amada o que somente ela poderia ser.
Não sou eu que complico a vida; as pessoas é que me complicam.
Nada como sonhar alto. Quando era criança, sonhava fazer-me grandioso e acabei ultrapassando todas as minhas expectativas: tornei-me tão anônimo que nem a mim próprio me reconheço.
Alcoólatra ao ponto de beber até água, contanto que com muitas doses antes e as saideiras depois.
Eu era ruim, mas as más companhias me tornaram muito pior.
Um defeito anulava suas virtudes: ressentia-se com a ingratidão daqueles a quem fazia o bem. Ora, o bem é um fim em si próprio. Além disso, quem pratica o bem aspirando a qualquer sorte de reconhecimento, nada sabe da ingratidão humana.
Nunca faça o bem sem cobrar adiantado. Invertendo o dito popular, nunca faça o bem sem antes olhar a quem.
Assinar:
Postagens (Atom)