terça-feira, 27 de setembro de 2016

Inexplicável


O poema não vem quando quer
Nem é obra de nenhuma musa inspiradora.
O poema não promana do acaso
Nem do arbítrio de algum gênio.
Ele brota de muitas fontes
E flui entre muitos veios.
Há mesmo os que nascem quando querem
Assim como os que abortam.
Como o poeta, o poema não se explica.
Recife, maio 2014.

sábado, 24 de setembro de 2016

Literatura não é biografia


A relação complexa entre a literatura e a realidade é um tema que sempre me apaixonou. Já esbocei em artigos ocasionais algumas reflexões insatisfatórias tentando melhor compreendê-la e traduzi-la em palavra escrita. Algumas circunstâncias recentes conduzem-me de volta a este tema.
Publiquei recentemente um poema intitulado “A voz da insônia”. Trata-se de um poema de tons sombrios no qual a voz narrativa do poema transpira tristeza, solidão, memórias dolorosas do amor perdido atormentando a insônia de um homem castigado pela solidão. Uma amiga generosa, tomada por um impulso comovente, telefonou-me para confortar meu sofrimento. É claro que isso me sensibilizou, inspirou-me gratidão, quando em qualquer circunstância quase ninguém mais me telefona, mas precisei esclarecer que não era o narrador do poema, isto é, a voz lírica tecida por meu discurso poético não era a minha. É claro que injetei no poema algo da minha experiência relativa ao espectro de afetos e vivências condensados no poema. Mas cuidei de esclarecer o mal-entendido, ou a leitura biográfica do poema, acrescentando que felizmente durmo bem e convivo sem conflitos com a minha memória escovada pela minha determinação de nunca abafar perdas e traumas seguindo a via corrente da repressão de tudo que nos causa dor e desprazer. Por isso não duvido de que a voz da insônia atormentada é uma das conseqüências das memórias reprimidas.
Logo em seguida, escaldado por esse tipo de confusão elementar entre literatura e biografia, publiquei uma crônica ficcional cujo narrador é um alcoólatra desbocado e agressivo. Variando uma expressão que ele próprio usa na crônica, meu personagem é o tipo de companhia que me incomodaria e evito na vida real. Por essa e outras razões que não esmiuçarei, adotei o expediente nada original de me dissimular sob as vestes de um pseudônimo. Chama-se Severo Machado. Não o recomendo a ninguém, embora a experiência comprove que atrai muitas mulheres, e tenho muitos outros motivos justificáveis para inventá-lo sem todavia declarar publicamente minha paternidade. Muitos dos seus traços de personalidade me foram inspirados pela leitura dos contos de Rubem Fonseca, meu contista brasileiro preferido na cena literária contemporânea.
II
Literatura não é biografia:

O poema não é um documento biográfico, me disse meu amigo poeta. A frase lhe saiu com sabor de queixa, do desânimo de quem se sente incompreendido pelo leitor. Como todo autor, ele precisa do leitor, é em parte por este que escreve, mas seus poemas não são documentos biográficos. Lidos nestes termos, o leitor concluiria que seus poemas são a confissão de um homem solitário e insone, atormentado por memórias dolorosas. Foi isso o que lhe disse uma amiga com a comovente intenção de o consolar de suas dores derivantes do modo como ela leu o poema. Era um poema, claro, sobre a solidão e a insônia.
Mas o poema, repisa o poeta, não é um documento biográfico. Ele dorme bem, vive em paz com sua memória, embora sofra a carência do amor, a aridez desses tempos difíceis que vivemos: tanta infelicidade e solidão gritadas e dissimuladas nas redes sociais contra os políticos corruptos, com perdão da redundância, contra as mazelas insanáveis do Brasil.
O poeta, ser sensível decerto em demasia, lamenta não apenas a incompreensão da leitora que desastradamente o consola, mas a realidade sem vias de fuga. Ora, dirá quem me lê, como um poeta não encontra na imaginação vias de fuga da realidade? É outra incompreensão que também desola o poeta. Como é banal o preconceito de que a poesia é uma fuga do real. Lembrou-me o dia em que, cuidando de um amigo operado num hospital, recebeu a visita de uma médica enquanto lia Drummond para o enfermo, gravemente enfermo. Nunca esqueceu o que ela disse: "Por favor, não me fale de Drummond. Estou farta de realidade".
Em suma, todo poema verdadeiro é necessariamente belo, mas talvez insuportável para quem se contenta em viver na superfície da realidade. Por fim, reiterando ainda a queixa do poeta, o poema não é o reflexo do que o poeta vive. O poeta é uma antena do que é humano, não Narciso enamorado de si próprio nas águas da arte.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Aforismos e desaforos VIII


A justiça é um cochilo da lei.
Não existem fatos nem versões, apenas aversões.
No Brasil, cada um interpreta a lei de acordo com as minhas inconveniências.
Existe até lei com prazo de validade. Aliás, muitas têm apenas prazo de nulidade.
No Brasil, jurisprudência é palpite. A prova consiste no fato de que todos confundem Constituição com hermenêutica.
A Nova Constituição Brasileira:
Parágrafo único: vale tudo.
Ficam revogadas todas as indisposições em contrário.

O passado continua governando o presente, enquanto o presente sonha o futuro como a realidade desejável. Por isso, se você liga a televisão, corre o risco de confundir o folhetim novelesco com a crônica político-policial.
Liberalismo – É um termo tão ambíguo e deslizante que começou como liberação do mercado, daí escancarou os costumes, que caíram completamente na vida e acabaram no bordel. Agora a puta liberal é a que faz tudo cobrando pelo serviço completo. Tornou-se, no plano dos costumes, o correspondente do humanista do Renascimento. Isso ilustra a trajetória perfeita do progresso humano.
Neoliberal – não confundir com “novo liberal” ou renovador dos ideais liberais. No Brasil, o neoliberal é todo propositor ou agente de privatização da atividade econômica. No ideologuês estatizante, é o espoliador do povo. Ah, é também o empresário que defende o mercado livre, contanto que o Estado financie seus empreendimentos sem risco.
Para os inconformados: relaxem, o Brasil já foi muito pior; para os otimistas: cuidado, amanhã pode ser ainda pior.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

No Mural do Facebook XXIV


O brasileiro e seus hábitos culturais:

Embora brasileiro já cansado de guerra e de tentar decifrar nossos códigos culturais, sou ainda e certamente morrerei como um aprendiz perplexo da minha própria cultura. Como ninguém consegue viver sem conferir sentido e expectativa às formas de convívio que estabelece com o semelhante, tento sempre traduzir certas atitudes básicas ou cotidianas, mas com frequencia me confundo ou sigo meu caminho solitário sem explicações convincentes. Espremo o assunto demasiado complexo num único item: a amizade.
Um dos mitos culturais do qual muito nos orgulhamos refere-se à facilidade com que fazemos amigos. Ora, essa facilidade já por si só diz muito do sentido da nossa amizade. Amizade é uma conquista rara e preciosa. No entanto, dela falamos como se fosse algo banal. Isso já me parece uma evidência do quanto somos volúveis e inconsequentes nas nossas relações afetivas. Há muitos anos, quando era idiota ao ponto de confundir amizade com coisas apenas semelhantes, disse a alguém que tinha quatro grandes amigos. Ele prontamente respondeu: então você tem muita sorte, pois não tenho nenhum. Achei isso estranho porque esse alguém é uma das pessoas mais queridas, sedutoras e engraçadas que conheço. Depois compreendi melhor sua resposta e, pior, a experiência dissolveu meus quatro amigos, reduzidos a um, que aliás morreu há alguns anos.
Como preciso concluir, antes que desistam de ler o que segue, somos demasiado gregários, demasiado presos aos vínculos de família, cujos valores contaminam nossas relações públicas, para construir amizades verdadeiras. Não nego que existam, claro, mas numa cultura tão familista e gregária como a nossa, tão afeita a resultados fáceis e imediatos, a amizade não é nada fácil como parece. Se parece tão comum num país onde estranhos se tratam calorosamente como "amigões" e "amigos do peito" é porque quase sempre a confundimos com outra coisa.
(Publicado no Facebook, 23 de agosto 2016).

Vítimas da democracia:

Sérgio Buarque de Holanda, que para a maioria dos brasileiros supostamente cultos é apenas o pai de Chico Buarque de Hollanda (tão mais importante que dobrou um l no sobrenome), disse que no Brasil a democracia não passava de um lamentável mal-entendido. Errou apenas no tempo verbal, isto é, a democracia continua sendo um mal-entendido. Acentuo apenas duas das múltiplas faces desse mal-entendido: o abuso da democracia e o culto da vitimização. Como a democracia nunca se entranhou de fato na nossa cultura, ela existe antes de tudo como institucionalização formal. Longe de mim depreciar a que temos. Antes ela do que nada ou a regressão a estados de exceção ou autoritarismo nu e cru.
Mas convenhamos: o que é mesmo que Dilma Rousseff, essa carpideira da história (ou da istória, como escrevia Millôr Fernandes), quer dizer quando clama contra o golpe de que é vítima em nome da democracia? Ela, seu criador e todos seus fieis sectários clamam contra um golpe político em curso perpetrado em nome da democracia. Martelam essa denúncia obsessiva ao mesmo tempo em que legitimam democraticamente todo o processo de impeachment, já que participam dele segundo todas as regras estabelecidas pela lei. Não desdobro a argumentação por saber que quem está do outro lado confunde, intencionalmente ou não, lógica argumentativa com fé dogmática.
Passando ao segundo ponto, a vitimização, não vou falar das vítimas da história recente, que são muitas. Abusando um pouco da imaginação histórica, já que hoje tantos abusam da imaginação histérica, fico pensando no que hoje seria o Brasil, se ele houvesse lutado nos campos de batalha como a Alemanha, Inglaterra, Rússia, Estados Unidos... Em suma, acho que estaríamos ainda carpindo nossas vítimas entre as ruínas literais da grande devastação. Como ninguém vive apenas de chorar, milhões estariam nas filas do INSS requisitando pensão de vítima da guerra. Fico por aqui porque vou pegar meu lugar na fila: vou requerer pensão por ser vítima da democracia. E ai do INSS se não acatar e remunerar substancialmente meus direitos. Afinal, sou também vítima da democracia, esse lamentável mal-entendido.
(Publicado no Facebook, 29 de agosto de 2016).