quarta-feira, 26 de março de 2014

Memórias de um leitor VIII

                                                                            
Retomo o fio da narrativa lembrando que  meu assunto presente é ainda a função formadora dos livros. Diria ainda mais: sua função terapêutica, fonte de consolação nos momentos de dor e desamparo. Em determinadas circunstâncias, como algumas que eu próprio vivi, o livro pode desempenhar o papel do amigo ou da força de amparo e renovação que nos falta na realidade das relações pessoais. O socorro espiritual que nos presta, a companhia na solidão carente de voz significativa, por vezes o livro pode ser isso na nossa vida. Quando a doença grave sobrevém, por exemplo, e sem aviso se apossa do paciente que não tem nem onde cair morto. Quem não ama os livros, quem não lhes cultiva a companhia, está com certeza bem mais exposto ao desamparo que nos assalta na hora da fatalidade. É exatamente nessa hora, a da fatalidade, que mais precisamos do outro, da sua ajuda e companhia consoladora. Mas quantos têm de fato a ventura de contar com esses suportes humanos? Quem nos concede companhia significativa e desinteressada quando a doença nos priva de autonomia expondo-nos à dependência do outro?
Os livros nada sabem de medicina, salvo evidentemente os que versam sobre este assunto,  e portanto são impotentes para salvar um jovem enfermo, desempregado e sem vintém. Logo, a medicina salvadora não proveio deles. Deles proveio a companhia que suprime o tédio dos enfermos, do corpo e sobretudo da alma, a solidão que sobrevém quando o corpo adoece e o enfermo é condenado ao isolamento de uma cama e quarto. O que fazer então da vida e do tempo paralisados sobre o colchão do enfermo solitário? Os supostos amigos desaparecem e então fica claro que as amizades de farra, de festa e botequim, prevalecentes na nossa inconsciente experiência da amizade, nada valem. O enfermo precisa enfim lidar consigo próprio, com sua solidão e com o tédio das horas que se arrastam impiedosas no quarto vazio de vida e humanidade. Posso no entanto afirmar por experiência própria que o enfermo leitor está isento dessa forma de dor e desamparo. Ele tem os livros, a companhia do semelhante imaginário que ilumina e imprime sentido à sua doença, sua solidão, seu desamparo de enfermo.
Embora longe de depreciar o amor e a solidariedade de Rejane e Semadá, amiga que conquistei na hora da adversidade, uma das mais poderosas evidências da amizade verdadeira, foi na companhia dos livros que ancorei minha carência de vida significativa. A leitura que acima de tudo ilustra essa experiência é a do Dom Quixote, de Cervantes. Li-o no momento ideal, quando dispunha de todo tempo do mundo para ler, já que forçado ao repouso absoluto, atado à cama dos enfermos. Foi então que pedi a Rejane que tomasse de empréstimo à Biblioteca de Afogados a edição em cinco volumes, primorosamente ilustrada por Gustave Doré, editada pela José Olympio. Nunca um livro me transformou de forma tão radical. Estava ainda sob o efeito sombrio da doença e do medo da morte quando comecei a ler aqueles volumes pesados. Pois logo mergulhei num mundo de transfiguração imaginária da vida tão imprevisível que cheguei ao extremo de inspirar temores a Rejane. Surpreendendo-me às gargalhadas quando o livro gargalhava, tagarela quando o alucinado Dom Quixote e seu escudeiro também delirante arengavam pelas estradas da Espanha, Rejane começou a duvidar de minha sanidade. Até Ednaldo precisou prescrever-me Somalium, o Lexotan da época, para induzir-me a dormir com alguma regularidade e assim estar desperto nos horários prescritos para a medicação necessária à minha cura.  À leitura do Dom Quixote acrescentei a audição continuada das sonatas e partitas para violino solo, de Bach. O intérprete era Heifetz. Ainda hoje ouço essas gravações que me comunicam uma experiência de beleza indizível. A companhia dos livros e da música tornou-se tão preciosa nesse momento difícil de minha vida que ao cabo, tendo já como certo meu regresso à vida saudável e normal, fui muitas vezes seduzido pelo desejo de continuar doente, de não mais reatar os vínculos ordinários e previsíveis com a vida.
Nas circunstâncias acima descritas, o livro nos concede mais do que companhia ou remédio para a solidão dos enfermos. Se importasse apenas para isso, poderia ser substituído pela televisão, um filme qualquer reproduzido num aparelho de DVD, assim como outras alternativas imagináveis num mundo cuja revolução tecnológica propicia múltiplas formas de anulação do isolamento individual. Para mim, a obra de Cervantes e a de Bach representaram muito mais do que mera companhia povoadora do longo estado de enfermidade que me reteve na cama. Ambas constituíram fonte de enriquecimento espiritual, de expansão da minha consciência e sensibilidade. Embora incapaz de traduzir em palavras o sentido radical dessa experiência estética, tenho ainda consciência de que a vivi e portanto sei o que significou para a minha vida, em particular para as circunstâncias adversas que então vivia.
Observei ainda, como por certo notou o leitor atento, que fui tomado pelo desejo de continuar doente. Volto a retomar este detalhe por me parecer que remete à compreensão da obra de arte investida de dupla funcionalidade: enquanto uma funciona como via de evasão da realidade, a outra nos devolve a esta enriquecidos pela sensibilidade e a consciência renovadas graças à obra que funde princípio de prazer e princípio de realidade, para lembrar aqui uma das polaridades conceituais propostas por Freud. Impregnado pela ideologia cientificista dominante na época de sua formação, Freud não raro se contradisse ao considerar a arte psicanaliticamente. Leitor refinado da melhor tradição do humanismo clássico, que remonta aos trágicos gregos desaguando em alguns dos seus contemporâneos, Freud expressou muitas vezes a consciência de que a dupla funcionalidade da arte acima indicada não implica, nas obras de autêntico valor estético, anulação de uma pela outra. Noutras palavras, a função evasiva funde-se à função transformadora da nossa relação com a realidade.
O próprio Freud nos fornece a melhor evidência dessa verdade. Quando recebeu o Prêmio Goethe de Literatura e foi saudado como o descobridor do inconsciente, teve a humildade, rara num homem dotado de ousado e confessado orgulho de conquistador na esfera do pensamento, de afirmar que o inconsciente foi descoberto bem antes dele pelos poetas e grandes inventores da literatura. Logo, a natureza fantasiosa da arte, expressão do princípio do prazer, não anula a possibilidade de a fantasia atuar sobre a realidade e portanto transformá-la. Se Freud foi por vezes incapaz de reconhecer essa verdade, o erro decorreu da impregnação da ideologia cientificista de sua época. Embora sem recorrer à psicanálise, contrário ou favorável a ela, Mario Vargas Llosa abordou frequentemente essa questão na sua obra, notadamente em La verdad de las mentiras, livro no qual estuda com sensibilidade e penetração crítica alguns dos mais importantes e influentes romances do século 20. Os textos de abertura e fecho da obra, intitulados La verdad de las mentiras e La literatura y la vida, exploram muito bem a questão que tentei esboçar acima.
E o que dizer agora da poesia, da forma como convencionalmente a representam as pessoas ajuizadas, a maioria esmagadora dos mortais aderentes aos movimentos pragmáticos da vida, à norma imperativa que nos incita a acreditar que a educação é meramente um instrumento de ascensão social e por conseguinte importa apenas na medida em que se traduz em inserção no mercado, sucesso profissional e muito dinheiro na conta bancária?  Se o intelectual, como antes ressaltei, é um tipo subordinado a representações sociais ambíguas, o poeta é definitivamente um caso perdido na história de qualquer família, um desastre corroendo os cálculos e ambições materiais de qualquer pai que tenha a desgraça de gerar esse tipo incapaz de ajustar-se aos códigos práticos da vida. Dou um outro salto no tempo para melhor ilustrar o que um inútil dessa natureza pode fazer em benefício de um gauche como eu. Uso o termo gauche bem a propósito, pois o poeta em questão é Carlos Drummond de Andrade.
Salto para o ano de 1980. O espaço dentro do qual me movo é São Paulo, a macota cidade, como diria o moleque Macunaíma. Tudo que fiz de prático ao me mudar para São Paulo foi transpor para lá, para aquela selva de concreto que me deixou aturdido durante muitos dias, a minha vida sem rumo, minha vida de judeu errante. Estava novamente sem um vintém no bolso. Literalmente à mercê do desamparo das ruas frias e indiferentes à minha desgraça, lembrei-me providencialmente de telefonar para Cleisa Maffei. Não a conhecia. Tudo que dela sabia era o seu telefone, anotado na minha agenda e fornecido por Denis Bernardes que em Olinda, pouco antes de minha partida, falou-me um pouco de Cleisa. Conheceram-se em Paris, ambos estudantes de pós-graduação.
Liguei para Cleisa e fui generosamente acolhido. Quando lhe relatei a situação em que me encontrava, convidou-me para morar provisoriamente no seu apartamento, onde vivia sozinha. Durante meses vivemos uma relação que nos marcou muito. Levei para o seu mundo de mulher pragmática, - professora da PUC, mas sobretudo militante em defesa dos pobres e miseráveis com quem trabalhava como assistente social – a sedução transfiguradora da literatura e da música. Lembrando o título do romance hoje esquecido de Orígenes Lessa, O feijão e o sonho, enquanto ela era a provedora do feijão, eu em troca lhe dava sonho, a imaginação sedutora e vagabunda de Macunaíma, que nessa época descrevia incríveis cambalhotas na minha vida. Além dele, vivia povoado por toda a obra de Mário de Andrade, então o autor que mais intensamente lia e se infiltrou de mil modos na minha vida e na minha imaginação, até porque era o centro do meu projeto de dissertação de mestrado, a fonte irradiadora de minha vida imaginativa naquele momento.
Precisei ralar a paciência do leitor esboçando acima o contexto autobiográfico necessário para adequadamente introduzir a poesia de Drummond nas trepidações que então assaltavam minha vida. Uma noite o telefone toca. Era minha irmã Zuleide ligando do Recife. Deus sabe, já não eu, como conseguira me localizar. Ligou para me dizer que papai estava gravemente enfermo, internado num hospital e tinha provavelmente poucos dias de vida. Até aquele momento me iludira supondo que tecera e emendara em mim os fios entrançados que me prendiam a meu pai. Afinal, remoí e sofri durante anos, nas lutas surdas com a vida e minha memória de família atormentada, tudo que podia retraçar, ordenar e tecer com uma lucidez e capacidade de sofrer e decantar a experiência que tinham muito de ilusório. Os vínculos com o passado, os traumas de família ainda me pesavam tanto que de repente me vi sentado no chão, o telefone ao ouvido, e as lágrimas escorrendo dos meus olhos. O telefonema de Zai, como carinhosamente ainda costumo chamar minha irmã, foi um choque tão grande que perdi a capacidade de dormir. Durante vários dias fiquei sem pregar olho, lutando com meus fantasmas, bebendo, pois então bebia muito, e nada de me pacificar, de me reconciliar com o sono tão necessário.
E eis que de repente o milagre desce sobre mim. Tão próximo, tão íntimo naquelas noites frias e embriagadas sofridas na macota São Paulo, que nem dei por ele nas primeiras linhas do poema. A fonte do milagre foi um poema de Drummond: Os últimos dias, incluído em A rosa do povo. O poema foi gradualmente me penetrando as camadas mais profundas da sensibilidade fatigada pelo peso da insônia. Dele fluíam em ondas líricas os sentidos profundos do fim último da nossa condição, a finitude da matéria “que a terra há de comer”, como diz o verso de abertura do poema. Pela primeira vez lia este poema, Os últimos dias, não mais como um poema neutramente belo e tocante. Naquele momento intraduzível ele vibrou nas camadas mais líricas e íntimas do meu ser. E então vi meu pai, a matéria finita, desdobrando-se no tempo imaginário, atravessando o longo e tumultuoso rio do tempo para afinal dissolver-se na corrente que também a mim um dia me tragará. E uma grande serenidade, uma grande paz desceu sobre a minha noite de insônia e pude enfim, depois de ainda lutar contra a insônia de tantos dias, pude enfim dormir em paz.
Nas noites seguintes, entretanto, a insônia voltou a rondar o quarto. Uma intuição inexplicável, como tantas que irrompem na vida, salvou-me de vez das garras da insônia. Tive a luminosa ideia de gravar minha própria voz lendo uma seleção dos poemas de Drummond eleitos como meus favoritos. Comecei com Os últimos dias e assim gravei uma fita inteira de 60 minutos. Concluída a gravação, acionei a tecla play, apaguei as luzes e me deitei completamente receptivo à audição dos versos de Drummond que me foram acalmando, ajustando as peças soltas do caos interior, remendando fios rompidos, recobrindo meus desertos com a luminosidade lírica de uma beleza, uma luz pacificadora que me transportaram à sonhada e necessária morte momentânea propiciada pelo sono. Assim, graças ao poder milagroso da grande poesia lírica, reacomodei a memória do meu pai em mim, prendi minha mão na sua mão invisível e cansada, tão doce e passivamente sofrida, e no fundo da noite insondável me vi refletido no espelho das águas imaginárias onde também se desenhava a figura comovente do meu pai.  
A poesia, a inútil poesia desprezada pelo burguês sempre pragmático, mesquinhamente reduzido a seus cálculos, que vão das operações elementares da matemática ao saldo bancário acumulado durante uma vida inteira impermeável à poesia, a qualquer experiência de ordem gratuita, a poesia é sem dúvida inútil mensurada segundo esses princípios estreitos. Fazendo justiça ao burguês, que aqui reponta bem mais como uma caricatura, não é ele o único a desprezar a poesia, a simplesmente ignorar-lhe a existência inútil. A maioria das pessoas, aqui incluídos muitos intelectuais demasiado pragmáticos para perder um minuto do seu tempo lendo um soneto ou um poema curto, acha simploriamente que a poesia não tem nenhuma importância. Talvez tenha para seduzir uma mulher, ou para propiciar um momento de brilho narcisista durante um sarau literário. Restrita a essas funções mundanas, contudo, ela está ainda subordinada ao cálculo mesquinho dos pragmáticos.
O que pretendi sugerir relatando as circunstâncias que me levaram a assimilar de forma mais profunda um poema de Drummond foi algo de natureza mais decisiva para nossa condição humana. A poesia, assim como a filosofia, remete no fundo às questões últimas da nossa existência. Abstraídas as especulações mirabolantes dos técnicos, não poucos filósofos profissionais, também alguns poetas que fazem do ensino da poesia um meio de sobrevivência, a poesia e a filosofia constituem, na sua expressão mais radical, uma interrogação sobre a experiência substantiva do ser humano. E essa experiência pode ser resumida nestes termos que identificam nossa experiência essencial e inescapável: o sentido da vida, o amor, o tempo, a perda, o sofrimento e por fim a morte. É claro que poderia acrescentar mais alguns substantivos que em síntese definem nossa condição e passagem por esse mundo. Mas fiquemos com a poesia assim mal formulada. Na voz dos grandes poetas, ela diz tudo que importa.



segunda-feira, 24 de março de 2014

Máximas e Mínimas IX

            
            Consolação niilista:
            De tanto nada esperar
            eu nunca desesperei.
            Sendo incapaz de contar
            nunca dos três eu passei.
            E assim no nada meu nada
            calmo mergulha e até nada
            no tudo em que me afoguei.


Mas eis que na noite, quando pacificado respiro dentro da minha infelicidade confortável, assomam os rumores de uma voz proveniente da catástrofe: "O que sabe a mão que escreve catástrofes da catástrofe real do mundo?" Foi apenas um breve rumor, nota errante logo tragada por sons e ruídos circundantes. Que sei eu de fato sobre a catástrofe?

            Afora as formas correntes de corrupção, o mais seguro investimento brasileiro é ingressar numa família de bens.  Dependendo da escolha feita, pode-se automaticamente gozar do privilégio de ter casa na praia, no campo e na cidade, emprego no Estado e médico privado com absoluta isenção de custos. Perde-se, claro, a liberdade de ser solteiro, indivíduo dono de si próprio e do seu destino controlável. Mas não encontrará essa liberdade, para tantos um fardo intolerável, em si própria seu desejo de perder-se?

            Cindida entre o superego protestante e a carne aberta aos eróticos calores dos trópicos, refugiou-se na mentira como se esta fosse uma âncora boiando em meio ao naufrágio da psique. Mentindo por teimosia, mais tarde por convicção, acabou tomando por verdadeira toda a vida de mentiras com que presumira enganar-me. Se entretanto os fatos com frequência a desmentiam, pior para os fatos e meus ouvidos traídos. Por fim, nua na própria mentira vestida, nada mais restou-lhe, salvo atribuir traições de fato às maquinações projetivas do meu ciúme doentio. Como discernir, diluída neste oceano de irrazão, a gota de minha razão caindo caindo caindo...

            Assim canta a voz da solidão amorosa nas vozes de Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan: "In my solitude, you haunt me / with revêries of days gone by... " Na companhia de Antonella, entretanto, corpos latinos ludicamente movendo-se dentro do fog e da austeridade cravada sobre cada pedra das ruas de Colchester, "Solitude", esta mesma de Duke Ellington cantada em tons de dilaceramento pelas vozes negras citadas, convertia-se em matéria de fantasia e charme. "Solitude" era entre nós continuamente retraduzida, recontextualizada, reescrita ao sabor e humor das nossas fantasias e circunstâncias. Como sonhar essa virtude latina aclimatada às regulamentações ordinárias de uma cultura puritana? Alheia a barreiras impostas por espaço e tempo, minha imaginação salta da noite tropical nordestina para as ruas de Florença onde o corpo latino de Antonella dança os sombrios compassos de "Solitude" em ritmo de tango ou carnaval veneziano.

Quando no Hamlet uma personagem diz que "something is rotten in the state of Denmark", a podridão é de imediato denunciada pelo fantasma do rei assassinado pelo próprio irmão, usurpador do trono e novo senhor da rainha, mãe de Hamlet. "Frailty, thy name is woman". Mas este é já um outro tema. O meu, comprimido nas magras linhas deste parágrafo, é a podridão gerada pela ambição humana inscrita no cerne dos regimes de opressão e poder. Dado o avançado estado de degradação da coisa pública no Brasil, quem teria ainda o cinismo ou a inocência de assinalar a podridão do Estado brasileiro? O odor pestilento tanto corrói os ares e as almas, tanto frequenta o noticiário do dia, onde reportagem política há muito se confunde com livro de ocorrências policiais, que ghost já soa como se fosse gosto. E como dizem que gosto não se discute, resta apenas indagar: "What's your rotten taste?"

            Se virgindade fosse virtude
            eunuco seria santo
            teu gozo meu casto espanto
            a tua coca meu luto.

            Se falta fosse virtude
            pobreza casta nudez
            se este sol que me ilude
            iluminasse vocês
            elegeria o Nordeste
            céu, meu bordel português.

Meu país ideal seria um entre-lugar acima das fronteiras culturais que opõem Brasil e Inglaterra. Exemplos: Entre a baderna do primeiro e a rigidez codificada do segundo, um erotismo plasticamente civilizado, um "eros, builder of cities", como o cantou Auden no admirável poema "In Memory of Sigmund Freud". Entre a aridez vitoriana da inglesa e o corpo carne em vitrine da brasileira, uma medida ilustrada capaz de temperar nudez e ocultamento ativador dos sentidos já um tanto indiferentes diante do excesso de exibição e oferta. Entre o silêncio tumular das ruas britânicas e a barbárie reinante nas brasileiras, um ideal de convívio harmoniosamente dosando instâncias pública e privada. Como porém sei que meu país ideal não existe e nunca poderá existir, luto para conservar os vulneráveis limites da minha casa à margem do Brasil celebrado pela tradição antropológica proveniente de Gilberto Freyre e prolongada em Roberto da Matta. Matta que não é mata nem mata, thanks God.

            Nos anos 70 o arrogante triunfalismo da ditadura militar deu livre curso a dois lemas: um restaurado do nosso filão de mitos ("Brasil, país do futuro") e outro importado da matriz americana ("Brasil: ame-o ou deixe-o"). O primeiro atolou nos roteiros da transamazônica, estrada faraônica que partia do Piauí para nenhum lugar, e outras equívocas vias e acabou roído na letra de calendários celeremente envelhecidos. O segundo, nas origens brandido contra uma minoria empolgada pelo sonho delirante de promover uma revolução socialista neste país de capitalismo perversamente estatizado, tornou-se tão obsoleto quanto o país do futuro. A derrocada é tal que até quem antes o amava e batia continência para a tecnocracia militarizada agora anseia por deixá-lo. Se o fluxo de deserção não é massivo, a causa não radica na sobrevivência do amor pela pátria arruinada, mas no fato de que lá fora o sol declina em algumas latitudes alvejadas pelo sonho do desertor potencial e muitas fronteiras estão fechadas.
Recife, agosto de 1993.



quinta-feira, 20 de março de 2014

Memórias de um leitor VII


Os livros foram meus agentes civilizadores, também os modelos éticos incogitáveis no ambiente em que vivi. É provavelmente por essa razão que sempre me senti a pessoa errada no lugar errado, no tempo errado, na família errada, no país errado. Mario Vargas Llosa se indaga num dos seus ensaios críticos se acaso a literatura o tornou um ser humano melhor. Embora admita a impossibilidade de fornecer ao leitor uma explicação convincente, conclui por responder afirmativamente. Endosso seu ponto de vista. Aliás, um dos móveis agora confessos que percorrem as linhas e entrelinhas destas memórias é minha ambição por certo malograda de persuadir o leitor eventual de que me tornei melhor, ou menos falível, graças aos livros e em particular à literatura.
Um dos veios narrativos que distinguem a tradição literária alemã é o do bildungsroman, ou o romance de formação. É uma tradição tão notavelmente associada à literatura alemã que não vai no uso do termo próprio, bildungsroman, nenhum laivo de pedantismo. Usei-o simplesmente por já ser corrente na linguagem do leitor bem formado e informado. Talvez o romance que de imediato mereça associar a essa vertente da literatura alemã seja Demian, também Narciso e Goldmund,  ambos de Hermann Hesse. Hesse é outro autor que me influenciou de forma profunda e também me caiu nas mãos por obra do puro acaso. É também um outro caso exemplar da ambiguidade que permeia a recepção de todo grande escritor literário. Adotado nos anos 1960 pelo movimento hippie e segmentos radicalmente românticos e pacifistas da nova esquerda, acabou lido por razões evidentemente alheias, quando não opostas, a muitos sentidos objetivamente apreensíveis na sua obra.
Embora escreva estas páginas inteiramente baseado nas minhas memórias de leitor, consultei ocasionalmente algumas das obras cuja leitura vincou mais profundamente minha memória, mudou minha vida e justamente por isso são aqui consideradas. Não escrevo sobre elas como crítico literário; escrevo meramente como um amador, um leitor apaixonado dos livros. Adicionalmente, procuro demonstrar em algum grau a importância que os livros podem exercem sobre nossas vidas. Noutros termos, menciono e ocasionalmente comento, seguindo o andamento arbitrário da memória, apenas algumas obras que importam por se converterem em experiência. Impregnado dessas preocupações decorrentes da composição destas memórias, andei percorrendo minhas estantes, folheando e até relendo algo do que aqui tomo como matéria de escrita. Foi assim que repeguei meu exemplar da edição brasileira de O Lobo da Estepe e deparei com uma nota muito sugestiva do próprio Hermann Hesse acrescida ao final da edição compulsada, que é a 15ª., Editora Record. Que me lembre, não constava da edição que li no tempo que aqui rememoro. Aliás, todas as minhas releituras deste livro foram da edição inglesa. A nota é tão oportuna, reflete tanto do que tenho salientado em algumas passagens destas memórias que não resisto à tentação de transcrever alguns trechos:
“... Na maior parte dos casos o autor não constitui a autoridade mais indicada para decidir até que ponto o leitor compreende e onde começa a incompreensão. Não são poucos aqueles a cujos leitores sua obra parecia muito mais clara do que a eles próprios. Além do mais, as incompreensões até que podem ser frutíferas sob certas circunstâncias”.
Hesse segue discutindo sua obra dentro desta perspectiva ressaltando que nenhuma delas foi tão incompreendida quanto O Lobo da Estepe. Esboça algumas explicações, mas finda por deixar o assunto em suspenso, até porque a nota tem a extensão de menos de duas páginas. Dentre as explicações que cogita, ressalta o fato de grande parte dos leitores da obra ser constituída por jovens, os mesmos que acima caracterizei sumariamente como românticos, radicalmente pacifistas, diria ainda místicos da natureza seduzidos pela milenar tradição espiritual do Oriente. Como sabemos, Hesse, em particular sua obra Sidarta, foi talvez a fonte que mais concorreu para a moda espiritualista que se disseminou entre os jovens ocidentais, repercutindo também no Brasil. Completando minhas observações ainda baseadas na nota escrita por Hesse, ele próprio corrige a explicação que insinua ao lembrar que também os leitores da sua geração incorreram em incompreensões igualmente desconcertantes quando consideradas em relação aos sentidos objetivos da obra e às intenções do próprio autor, conclusão que extraio das entrelinhas da nota. Esclarecendo que este e os dois parágrafos precedentes são de inserção posterior, retomo abaixo o fio da memória.
Um dia, por volta de 1970, um amigo ofereceu-me de empréstimo um exemplar de O Lobo da Estepe. Meu amigo era espírita, sua mãe médium e portanto avessa à amizade que me ligava ao filho, pois sabia das minhas “ideias perigosas”. Não é de estranhar o fato de o livro chegar às minhas mãos embrulhado em enfáticas credenciais espíritas. Fiquei tão desconfiado que aceitei o empréstimo apenas por amizade, pois o amigo a quem me refiro era então meu melhor amigo. Lidas as primeiras páginas, dei-me conta de que adentrara nas páginas da mais alta tradição romântica alemã. Talvez este juízo crítico seja anacrônico, mas tenho perfeita memória de que já conhecia várias fontes críticas e históricas da literatura alemã, notadamente Otto Maria Carpeaux, quando li  este romance de Hermann Hesse. O fato de o meu amigo e sua mãe o lerem praticamente como se fosse apenas uma obra espírita denota quanto são tortas e ambíguas as formas de recepção de uma obra literária, sobretudo quando, sendo de grande qualidade, como era o caso, é composta por camadas significativas que se superpõem, se mesclam, se entrelaçam. Por isso o leitor a lê ajustando-a a seus horizontes mentais, seu desejo e expectativas. O fato com frequência concorre para deformar significados objetivos aferíveis na obra. Na aba positiva da recepção, entretanto, a obra se renova, se enriquece, torna-se outra quando subordinada ao crivo singular do leitor. Desdobrando esta aba, nas mãos do grande leitor, aquele refinado por anos e anos de leitura inteligente, sensível e penetrante, a obra se amplia revelando sentidos alheios à própria consciência e intenção do autor. Em suma, o autor põe, o leitor dispõe e ao cabo do processo que enlaça autor-obra-público a obra, o termo médio desta trindade, muitas vezes se transfigura no trânsito do primeiro para o último fator constitutivo da realidade ontológica da obra compreendida no sentido que lhe confere a sociologia da arte.
Não resisto à tentação de retomar a anedota relativa a meu amigo espírita e sua mãe porque seu desfecho é de uma ironia dolorosa. Zelosa de proteger o filho da má influência de um amigo ateu, às voltas com ideias de esquerda, ela tudo fez para nos afastar, sem contar a hostilidade comprimida com que me acolhia nas poucas vezes em que visitei sua casa ou precisei me relacionar com ela. Anos mais tarde soube da desintegração moral da família, que deve ter sido torturante para uma mulher já velha e inteiriçada na sua concepção intransigente do espiritismo. O filho mais velho tornou-se gay e foi morar com outro homem, o que para ela foi com certeza um golpe terrível; a filha adotiva engravidou envolvida numa relação amorosa ilícita. Por fim, meu amigo foi demitido da justiça federal devido a crimes de corrupção e morreu vítima de alcoolismo. Não tive qualquer tipo de participação nessa história tão infeliz. Relato apenas o que me foi transmitido por amigos comuns, gente ligada a esse círculo de relação do qual me afastei poucos anos depois da minha primeira leitura de O Lobo da Estepe, quando decidi separar-me da minha família para viver meu próprio bildungsroman, se é que posso forçar a tal ponto a história que vivi comparando-a à história bem mais exemplar dos protagonistas dos romances de formação.
Prisioneira das suas convicções intolerantes e também cômodas, já que a isentavam de duvidar, de interpelar eticamente sua vida, a mãe do meu amigo jamais conceberia a ideia de que a literatura possa desempenhar na vida das pessoas uma função formadora, servir como fonte inspiradora de uma ética humanista. Como acima observei, não tenho dúvida de que os livros, aqueles que verdadeiramente me formaram e portanto são os únicos que importam, foram meus agentes civilizadores, os modelos éticos incogitáveis no mundo em que vivi. Nessa fase de minha vida, temi muitas vezes sucumbir à adversidade: desintegração ética e econômica da minha família, os riscos e temores paranóicos decorrentes da atmosfera dos “anos de chumbo” impostos pela ditadura militar, doença grave e antes de tudo a pura e simples necessidade de sobrevivência material. Via meu pai envelhecendo, completamente falido em termos econômicos e morais, afundado na sua impotência, e via muito mais, a começar pelo ambiente imediato da família, que me era doloroso suportar.
Nas horas de solidão e desamparo, não me lembro de quantas vezes fui animado pelos livros. Quando sobreveio minha doença cardíaca, decorrente de uma febre reumática que emitiu sinais de alarme várias vezes ao longo da minha juventude sem que ninguém, sem que nenhum médico desconfiasse da bomba sendo montada no meu organismo, senti-me tão desamparado que tive um acesso de histeria no momento em que repus os pés na casa da minha família. Chorei feito bezerro desmamado, um choro que era sintoma aberrante de orgulho ferido, medo, desamparo. Jurara a mim próprio nunca mais voltar, pois acima de tudo jurara a mim próprio fazer de mim um homem capaz de suportar sozinho o peso da vida. Voltei por não ter onde cair morto, como diz a voz popular. Estava desempregado, sem um vintém no bolso, removendo meus cacos de um apartamento às bordas do Hospital das Clínicas na Cidade Universidade sem ter para onde ir, quando comecei a afundar na doença que mudaria minha vida durante os  próximos quatro anos.
Fui literalmente salvo por Rejane, minha namorada, e sua família, que com uma generosidade impagável acolheram-me na sua casa no Bairro Novo, Olinda. Fui também salvo por  Ednaldo Batista, professor de medicina da UPE (Universidade de Pernambuco) e médico-chefe do plantão do Hospital da Restauração. Quem me levou a ele foi Lilian, irmã mais velha de Rejane, então cursando o último semestre  de medicina e estagiária do hospital. Como noutras vezes aconteceu, fui salvo pela bondade dos estranhos. Quando vi o filme Uma rua chamada pecado (A streetcar named desire) baseado na peça de Tennessee Williams, e ouvi esta frase: the kindness of strangers, dita pela protagonista Blanche de Bois (Vivien Leigh), compreendi muito bem o que queria dizer. A frase está impregnada da minha vivência, que mais tarde ganhou maior peso significativo quando li a biografia do próprio autor, Tennessee Williams.

Em alguns momentos dramáticos de minha vida, quando olhei à minha volta e desamparado me dei conta de que tudo me faltava, o acaso providencial entregou-me às mãos salvadoras da bondade dos estranhos. Esta forma de bondade é a que mais me desconcerta e me leva a corrigir minha visão negativa do ser humano por ser por definição desinteressada ou gratuita. O estranho não sabe quem sou, nada espera de mim, nada me pede de volta. Sua bondade, por conseguinte, é totalmente isenta de cálculo ou interesse. Ednaldo nunca quis nada de mim, nada que pudesse lhe dar de volta como instrumento de troca ou comércio de relações. É um homem tão bom, tão desprendido no exercício de sua humanidade desinteressada que, anos mais tarde, quando eu era já professor da Universidade Federal de Pernambuco, e portanto tinha condições de lhe pagar uma consulta, ele se recusava a receber meu cheque (juro que era cheque com fundos). Misantropos leitores da misantropia de Cioran, acreditem na experiência de um “misantropo teórico”: existe, sim, a bondade humana, transparente e desinteressada como a crucifixão histórica ou mítica (provavelmente esta, ainda que decorrente daquela) de Jesus Cristo. 

sábado, 15 de março de 2014

O Leitor na Cidade


Os únicos livros que importam são os que mudam nossa vida, se possível para melhor. Noutras palavras, importam apenas os livros que se traduzem em experiência. É por isso que me arrependo tardiamente, e sem reparação, da tralha colossal que li. A literatura barata consumiu muito do meu tempo, que sei cada vez mais finito; privou-me ainda de conhecer obras que sei constituírem lacuna irreparável na minha anárquica travessia de leitor, pois cada livro irrelevante lido significa tempo roubado às obras que todo leitor verdadeiramente culto precisa ler.
Apesar desta observação introdutória, bendigo retrospectivamente a própria literatura barata que li na minha adolescência. Considerando minha formação errática de leitor no contexto devido, a literatura barata serviu ao menos para me dar algo que falta hoje à maioria dos jovens: disciplina mental. Aludo mais precisamente à capacidade de sentar-se num canto com um livro, apesar do ruído agressivo ao redor, e mergulhar concentradamente na leitura. Foi esse o grande bem que a literatura barata me propiciou. Para melhor avaliar a importância crucial dessa disciplina básica como via de acesso ao mundo dos livros, em particular da experiência imaginativa, basta olhar hoje um pouco à nossa volta. A disseminação universal da tecnologia que produz muita coisa boa, até miraculosa, para quem a comparasse com a que existia há 30 anos, também produz ruído em excesso. Se esse dado negativo é decorrência inevitável da própria revolução tecnológica, num país desregrado como o Brasil os efeitos vão muito além das trepidações habituais causadas pelo estresse urbano.
O ruído agora é onipresente. Por isso a prática rotineira da leitura tornou-se inviável, quando não um inferno. O leitor do meu tipo, demasiado sensível ao ruído, com frequência perde o fio da leitura. Triturado pelo ruído, não há como dele escapar, pois, como ressaltei sem nenhum exagero, ele é onipresente na realidade urbana em que vivo e me movo. Moro num bairro, Boa Viagem, que é provavelmente uma das mais densas concentrações demográficas do Brasil. A densidade foi predatoriamente acelerada no decorrer dos últimos dez anos e não cessará enquanto houver um palmo de terra para sustentar monstrengos verticais. As construtoras e seus prepostos políticos promovem o crescimento galopante do Recife agravando os instrumentos de degradação do espaço urbano. Temos crescimento, sim, até em demasia, mas nada que se assemelhe à urbanidade, ao ideal de uma cidade construída por pessoas para as pessoas. A expansão do Recife, como de praticamente de quase toda a malha urbana do Brasil, é feita sob o comando do nosso capitalismo selvagem.
Saio das abstrações para descer um pouco ao solo da realidade concreta. Boa Viagem não é apenas a maior área de concentração demográfica do Recife, é também o bairro mais extenso. Sua orla marítima, incluindo o Pina, tem 8 km. de extensão. No entanto, não há em Boa Viagem uma única praça digna deste nome. A praça que tem o nome do bairro é uma coisinha insignificante, com uma igrejinha no centro. O que sobra é praticamente invadido por barracas do comércio artesanal. Basta dizer que não tem um centímetro de grama, qualquer espaço de lazer. Chamar isso de praça é um insulto à semântica. O mesmo se aplica aos chamados jardins de Boa Viagem. São três, que somados não dariam um jardim de subúrbio. Some-se a isso o fato de que Boa Viagem não tem um parque, uma biblioteca, um teatro, um centro cultural, praticamente nenhuma área significativa de lazer. Tudo que nos resta é o calçadão, invadido por barracas e pelo comércio ambulante. Quando a maré baixa, resta ainda uma estreita faixa de areia onde é possível caminhar ao longo das águas.
Algum bairrista ofendido com minha crítica poderia gritar o nome do parque Dona Lindu em defesa dos espaços de lazer propiciados pela cidade. É outra coisinha mais ou menos do tamanho da praça de Boa Viagem. Tem algum espaço de lazer, admito, mas foi tomado de assalto por jovens e alguns adolescentes retardados que transformaram todo espaço livre em pista de skate. Nos espaços marginais do parque, dominam o comércio ambulante, crescente e sempre anti-higiênico, apesar das normas impostas pela administração que nada administra, e os skatistas ainda mais ruidosos e velozes, não raro movidos a maconha que fumam abertamente. O que há de bom, em meio a tanta coisa precária, é o desenho arquitetônico de Niemeyer um tanto deslocado em meio à bagunça. Diante disso, eu, que de início tentei ser um frequentador do parque, removi a tenda e voltei às caminhadas também precárias no calçadão da avenida beira mar. Afinal, bem ou mal, é o que me resta. Ou me contento com isso ou dilato as horas de prisão domiciliar.
Quando o ruído ambiente força-me a suspender a leitura irritado, muitas vezes desloco o olhar ao redor. Estou cercado por altos condomínios cuja concentração anula qualquer veleidade de vida privada. Através das minhas janelas e da minha varanda enfio meu olhar intruso até sem querer na intimidade dos lares. Um pouco da paisagem humana que estou saturado de ver: gente diante da televisão ligada, é a cena mais corriqueira, gente tagarelando no celular, gente  bebendo e falando alto, cachorro latindo, operários reformando condomínios e fachadas... Vejo tudo que se possa imaginar, mas juro que nunca surpreendi um vizinho lendo.
Quando ainda ensinava na universidade, observava situação similar. A própria biblioteca passou a ser rotineiramente invadida por gente que conversa sem cessar. Outros usam-na para comer e pendurar os pés nas mesas de leitura e trabalho como se estivessem em casa. Cansei de reclamar em vão e assim, como reza a norma prática, que sempre atropela a escrita, recolhi-me a uma sala com ar condicionado onde tinha um pouco de sossego para ler ou fazer anotações para minhas aulas. O ruído estendeu-se também para a sala de aula onde alunos indisciplinados atendem celular, falam abertamente durante a aula e incorrem noutras formas de comportamento inconcebíveis em uma sociedade verdadeiramente regulada.
Deslocando o foco da narrativa para o ambiente das livrarias, também aí já não é possível ler em paz. Há alguns meses li na Livraria Cultura o editorial de uma das edições da revista editada pela livraria e assinado por Pedro Herz. O assunto de destaque da edição era precisamente o ruído. Por isso o editor da revista conferia relevo ao assunto no editorial   que assinava. O irônico, para não dizer aberrante, era constatar que ele denunciava o mal inconsciente do fato de que a própria livraria passou a promover abertamente o ruído dentro do seu espaço. Cansei de reclamar contra o ruído de rock e outros ritmos barulhentos contra os quais brigava em vão tentando concentrar-me na leitura. Como o incomodado sou eu, reza outra norma prática da nossa cultura, pus minha violinha no saco e fui esconder-me no alto de um viaduto com meus livros indesejáveis.
Enfim, seria ocioso alongar os exemplos, que estão em todo o nosso espaço urbano. É claro que noutras cidades, significativamente habitadas e construídas por imigrantes de formação distinta das nossas tradições luso-africanas, a realidade é bem distinta. Cito Curitiba como exemplo contrastante com o Recife ou qualquer capital nordestina que conheço. Visitei-a em abril de 2013 com a intenção de me mudar para lá. Por isso viajei com uma disposição de convívio e senso de observação e participação na vida da cidade que contrariam meu temperamento reservado e até tímido em ambiente estranho. Detendo-me em alguns poucos fatos observados e vividos, li em paz na biblioteca central da cidade. Li durante cerca de duas horas sem ser incomodado por qualquer ruído ou conversa. Na Rua XV, a mais movimentada da cidade, caminhei todos os dias em meio à multidão sem ser importunado por ruído excessivo. Cheguei até a me sentar num banco no meio da rua, às três da tarde, onde escrevi dois poemas. Também visitei galerias e museus, até shopping, sem ser importunado por gente ruidosa e mal educada. E o que dizer da sucessão de parques e praças realmente fieis à semântica, verdadeiros luxos à disposição do habitante que pode descansar, ler, sentir-se à vontade no espaço público? Nisso tudo e em muito mais, a realidade urbana de Curitiba contrasta vivamente com o cotidiano urbano de Recife que é hoje, na minha percepção, a pior das capitais brasileiras que conheço.
Se o leitor teve a paciência de seguir-me até aqui, estará por certo se indagando o que essa narrativa tosca sobre os males das nossas cidades, em particular o Recife, tem a ver com as memórias de um leitor. Diria que tudo. A experiência de leitura é indissociável da cidade. É nesta que brotam as editoras, livrarias e outras instituições ordenadoras da vida intelectual, sem esquecer as que formam e promovem o público: a escola, a biblioteca, as condições sociais favoráveis às formas de integração dos leitores. É nesse sentido que o contexto social, ou as condições do meio acima grosseiramente esboçadas, importa para compor um quadro menos precário das memórias de um leitor. Acrescentaria ainda que, não obstante o crescimento urbano e a expansão do conjunto das forças do capitalismo, cidades como o Recife antes perderam do que ganharam, se consideradas do ponto de vista dos critérios pincelados neste parágrafo.
Retomo algumas experiências extraídas da minha memória de leitor para melhor ilustrar meu argumento. Nos anos 1970, quando vivi de cuia na mão, sem dinheiro para comprar livros, muito menos habitar em lugares que me resguardassem do ruído das ruas, lia nas ruas e no ônibus. Era tudo precário, mas factível. Quando morei na Cidade Universitária, cuja linha tinha apenas três ônibus, habituei-me a suportar as longas esperas lendo no inicial ou terminal da linha, também no curso da viagem. Foi então que tive a ideia de ler nossos melhores cronistas, no geral editados pela Sabiá, de propriedade sintomática de dois desses grandes cronistas: Fernando Sabino e Rubem Braga. Além de ler praticamente toda a obra de crônicas de ambos, li também Drummond, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Antonio Maria e Gilberto Freyre. Vali-me ainda do acervo de algumas bibliotecas públicas, não obstante precárias e nem sempre de fácil acesso: a Biblioteca Estadual, situada no parque 13 de Maio, o Gabinete Português de Leitura, a Biblioteca Pública de Afogados e até a minúscula biblioteca da Assembléia Legislativa, instalada numa sala do Edifício Caetés, ao lado da assembléia. Também frequentei  como leitor constante a biblioteca da Faculdade de Direito, a melhor de todas, e até a do mosteiro de São Bento. Desta tive uma experiência única e não de todo proveitosa. Foi nela, por exemplo, que conheci e comecei a ler as Obras Completas de Freud, editadas pela Imago.
Do ponto de vista associativo, as livrarias da época desempenharam um papel fundamental, hoje suprimido pela nova realidade imposta pela forma de capitalismo que inventamos. Aqui a referência mais importante para minha geração é sem dúvida a Livro 7. Durante pelo menos uma década, com mutações inevitáveis, foi o grande centro de associação intelectual do leitor recifense. Num tempo de vacas magras e sofrimento imposto pela ditadura à camada letrada e politizada da cidade, valemo-nos, como é culturalmente de praxe, do recurso do carnaval e assim a livraria, sob o comando de Tarcísio Pereira, fundou o bloco Nós sofre, mas nós goza. O português, refiro-me à língua, fica por conta do culto à fala popular, senão de algum intelectual que confundia concordância verbal com agressão gramatical.
A Livro 7 era o grande centro de agregação intelectual e política da cidade. Ser intelectual era frequentar a Livro 7. Noutras palavras, ser de esquerda, salvo as exceções ditadas pelo bom senso, era fazer parte daquele clube ou gangue que nunca se assumiu como tal, talvez até por ignorar o que significava. Como esse momento coincidiu com meus anos de miséria e radicalismo antiburguês, não confundir com comunismo, que era apenas um braço dessa tendência ideológica, nunca me integrei ao clube ou gangue. Bastaria dizer que era tão marginal que converti, para prejuízo de Tarcísio, meu amor aos livros em cleptomania. Juro que ainda hoje sinto culpa por ter roubado as prateleiras da livraria num tempo em que minha miséria e meu marginalismo ideológico excediam em muito minha sede de livro e leitura. Quem perdeu, claro, foi Tarcísio, vítima de ladrões de livro como eu e muitos dos meus amigos de então. Como era um ladrão ético, sempre evitei qualquer intimidade com o dono da livraria. Juro que não suportaria, mesmo então, roubar um amigo. Assim, ganhei livros que não comprei, mas em compensação, perdi em Tarcísio um possível amigo e tive que arrastar comigo, através dos anos, o sentimento de culpa por haver concorrido em algum grau para precipitar a bancarrota da sua livraria.
Outra livraria, bem próxima, também merecedora de um breve registro de memória foi a Dom Quixote. O radicalismo dogmático dos proprietários fazia justiça ideológica ao nome da livraria. Bastaria dizer que os donos se recusavam a vender best-seller, termo que constituía um insulto à integridade ideológica e intelectual dos comunistas que aparentemente inventaram de abrir uma livraria regida não pelas leis do mercado, mas pela determinação doutrinária de combater o capitalismo e a ditadura militar. Ocupava apenas o espaço de uma sala pequena no edifício situado à esquina da Conde da Boa Vista com a Sete de Setembro, onde reinava a Livro 7. Para ocupar espaço nas prateleiras da Dom Quixote, qualquer autor tinha que ostentar ficha ideológica comprovadamente limpa, de preferência autenticada pelo comunismo, sobretudo o que identificava na democracia e em qualquer forma de liberalismo uma desprezível ideologia burguesa.
É evidente que não durou muito tempo, pois as leis do mercado são impiedosas, salvo se o capitalista tem conexões patrimoniais com o Estado brasileiro, o que é de resto uma forma de admitir que não obedece às leis do mercado. A Dom Quixote era o ponto de agregação de todos os dogmáticos e intolerantes que conheci. O dogmatismo é compreensível dentro do contexto de maniqueísmo ideológico imposto pela ditadura militar, mas nem por isso justificável. Esta, de resto, é uma das consequências  inevitáveis nos tempos de antagonismo intolerante: tudo passa a ser determinado pelo crivo do preto versus branco, direita versus esquerda. Retomando a polaridade enraizada na invenção metafísica do maniqueísmo, o bem versus o mal. Quem ousa ou é simplesmente incapaz de se situar nos extremos, como é o meu caso, é fatalmente hostilizado pelo bem que se supõe puro, assim como o mal, que se supõe o bem. Um tão puro quanto o outro. Essa forma de cegueira catastrófica constitui um tipo de loucura ideológica desgraçadamente familiar ao século 20. É impossível calcular com precisão os milhões de cadáveres que essa insanidade produziu.

Aparentemente, quase tudo que aqui exponho desmente a expectativa de quem anda à cata de memórias de um leitor. Volto a insistir no fato de que os livros importam na medida em que remetem à experiência ou traduzem em letra de forma a experiência do autor e do leitor. Apesar do desprezo que o livro e o intelectual humanista inspiram ao filisteísmo, que confunde cultura letrada com sucesso no mercado, a leitura importa na medida em que ilumina a experiência ou traduz a vida em formas mais elevadas de consciência humana. Nesse sentido, apesar de todas as aparências em contrário, estou falando da minha experiência de leitor quando derivo para considerações sobre a cidade e a história social do Recife a pretexto de falar de livros e de minhas leituras. Devo aos livros a forma de consciência e expressão letrada expressa nestas memórias, assim como devo à minha experiência muitas das leituras que escolhi fazer, ou que o acaso das circunstâncias pôs nas minhas mãos atraindo meus olhos para as páginas que iluminavam minha vida, ainda quando aparentassem dela me refugiar.  

quarta-feira, 12 de março de 2014

Memórias de um Leitor VI


Minha politização coincidiu com o barateamento mercadológico das obras de esquerda, quando não sua pura e simples supressão imposta pela ditadura. Devido a isso, pude adquirir a preço de banana, como reza o lugar comum, obras de Lukács, Antonio Gramsci, Antonio Banfi, Adolfo Sánchez Vásquez e vários autores comunistas incluídos no índex da ditadura. A maior parte dos títulos era publicada pela Civilização Brasileira, que resistiu heroicamente até ir à bancarrota. Foi nesse momento que li boa parte das obras dadas a público pela editora,  comandada pelo editor excepcional e militantemente culto que foi Ênio Silveira. Demonstrando com incontáveis evidências disponíveis ser um comunista de visão cultural ampla, além de empresário consciente dos determinantes do mercado, ostentava um catálogo de obras cuja variedade e riqueza contribuiu de forma decisiva para adensar as forças civilizadoras na contracorrente da ditadura imposta pelos militares. Se de um lado escrevia ele próprio  As cartas ao presidente (cito de memória e infelizmente não tenho como cotejá-la com as fontes devidas, já que há muito me desfiz da minha coleção da Revista Civilização Brasileira), inspirado no modelo homônimo assinado por Norman Mailer endereçado ao presidente Lyndon Johnson, de outro, assessorado por intelectuais como Paulo Francis, contribuiu para divulgar no Brasil a moderna literatura norte-americana (Hemingway, Scott Fitzgerald, James Baldwin e outros), além da crítica e da teoria do teatro. Foi nesse momento que li os escritos críticos e teóricos de autores como Bertolt Brecht, Eric Bentley, Stanislavsky e Francis Fergusson.
A literatura brasileira, sobretudo aquela proveniente dos autores de esquerda (afirmar isso com relação a esse momento soa quase como um truísmo), mereceu grande acolhida da editora. À deriva da memória, digitando o que de imediato me ocorre, citaria a obra de Carlos Heitor Cony, cujo imenso prestígio foi largamente favorecido por sua valente oposição à ditadura condensada no volume de crônicas políticas O ato e o fato, Antonio Callado, Otto Maria Carpeaux, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro, Dalton Trevisan, Hermilo Borba Filho, Moacir Lopes e outros deliberadamente aqui omitidos, pois  temo embaralhar a relação observável entre autores e editoras. É evidente que, em meio a tanta efervescência ideológica, não faltavam os autores menores cuja obra acabava favorecida por sua posição política. Foi o caso, por exemplo, de Moacyr Félix, parceiro militante de Ênio Silveira e editor da Revista Civilização Brasileira, e Thiago de Melo, de cuja poesia militante fazia troça com meus amigos mais lúcidos e ideologicamente isentos quando vivi um verão inesquecível em Porto de Galinhas, então um paraíso ecológico completamente isolado da atmosfera urbana que habitávamos.
Outra editora de catálogo extraordinário, também merecedora de registro sumário, era a Zahar Editores. Foi por certo a mais decisiva na composição de um catálogo imprescindível para o público universitário. O melhor da bibliografia de ciências humanas produzido nas universidades europeias  e norte-americanas de referência tornou-se acessível ao leitor brasileiro graças a esta editora. Poderia citar, ainda e sempre à deriva da memória falível, uma infinidade de títulos. Dentre tantos, escolho um autor: Erich Fromm. Antes, porém, menciono teóricos de larga repercussão à época, no geral lidos através de comentadores. Importaria aqui mencionar os teóricos da escola de Frankfurt, especialmente Herbert Marcuse, moda de inspiração revolucionária cuja recepção constitui um dos capítulos mais fascinantes e contraditórios na história das idéias recente. Marcuse (e secundariamente Adorno, Horkheimer e Benjamin) ingressa nos círculos radicais brasileiros como o teórico da “grande recusa”, também como o articulador de uma das sínteses mais radicais de Marx e Freud (aqui a referência crucial é Eros e civilização), é em seguida apropriado pelo irracionalismo radical propagado por Luiz Carlos Maciel (guru da “nova esquerda” veiculada na sua coluna Underground, do revolucionário periódico O Pasquim) e mais recentemente foi reposto, com toda a escola, nos trilhos do racionalismo radical representado por Sérgio Paulo Rouanet. José Guilherme Merquior, que afinal está sendo reeditado e portanto reavaliado depois de repelido ou ignorado durante décadas nos círculos acadêmicos mais intolerantes da esquerda, dedicou um livro pioneiro à escola intitulado Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Li este livro à época, mas confesso que pouco o assimilei, apesar da prosa clara e precisa do autor. Anos mais tarde, já como estudante de pós-graduação em sociologia, onde ingressei em  1978, li afinal o livro que considero o melhor da bibliografia sobre a escola de Frankfurt: A imaginação dialética, de Martin Jay.
Cuido agora de Erich Fromm. Concedo-lhe atenção especial, antes de tudo, por ter sido uma das grandes influências que recebi quando ainda soletrava obras e teorias visando orientar-me dentro da vasta e perturbadora bibliografia das ciências humanas. Muitos dos teóricos da moda, então como agora, me parecem impenetráveis. O próprio Marcuse, depois de tecer louvores à obra de Adorno, admite o quanto este exige de leitura árdua e tem por fim a honestidade de declarar não entender muito do que ele escreve (conferir a entrevista que concedeu a Bryan Magee no volume Men of Ideas). Castigava-me lutando para penetrar os sentidos obscuros impressos sobre tantas páginas, não raro por dever acadêmico, sobretudo quando, no fim da década de 1970, desloquei-me da literatura para a sociologia, depois de penosamente obter um diploma de graduação em letras que em nada concorreu para refinar minha relação autodidática com aquela.
Embora também originário da escola de Frankfurt, Erich Fromm é de uma transparência luminosa quando cotejado com seus pares cujo reconhecimento e prestígio acadêmico paira muito acima da sua obra. Bastaria lembrar que no gênero tornou-se praticamente um best-seller, se temos em mente as edições correntes de obras de ciências humanas. Erich Fromm e Bertrand Russell foram provavelmente os primeiros a chamar minha atenção para a psicologia como instrumento analítico fundamental para uma compreensão mais adequada da política. A análise psicológica que o primeiro faz dos regimes totalitários, de resto responsáveis por sua fuga para os Estados Unidos, mudou completamente a noção primária que eu tinha da política e das supostas motivações que para ela me atraíram.

A argumentação de fundo psicossocial que desenvolve para explicar o que designa por caráter autoritário, contrapondo-lhe uma perspectiva humanista inspirada nas idéias de Marx e Freud, foi de grande valia para mim. A  política, que é antes de tudo ação, quedava paralisada na consciência inquieta e atormentada, já que a ditadura bloqueou os meios objetivos da ação. Além disso, em meio às minhas perplexidades e dramas insolúveis, determinados antes por minhas condições de origem de família e meio social, do que por enganosos determinantes de base estritamente política, somaram-se à minha experiência viva com o proletariado, antes com o trabalhador da zona açucareira, para reorientar meus vínculos com a política. Acima de tudo, induziram-me a considerar de um ponto de vista renovado e mais consciente o comportamento dos meus amigos de esquerda, em particular suas atitudes dogmáticas e intolerantes, o travo de ressentimento social inconsciente que passei a identificar no ódio com que atacavam pessoas cuja humanidade concreta desprezavam reduzindo-as ou enquadrando-as em abstrações como “pequeno-burguês”, “alienado”, “reacionário”, “liberal”, “luta de classes”, “necessidade histórica”, “sujeito da história”...

segunda-feira, 10 de março de 2014

Memórias de um Leitor V


A áspera realidade da pobreza, não raro resvalando para a miséria, é prodigamente descrita na tradição literária nordestina, também no cinema, nas artes plásticas, na história social e saberes conexos. Vivendo nas ruas e bairros do Recife num tempo em que as fronteiras de classe eram bem menos nítidas, li com familiaridade inconsciente romances como O Moleque Ricardo, de José Lins do Rego e a tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, de Hermilo Borba Filho. Daí passei para a obra de Josué de Castro, notadamente Sete palmos de terra e um caixão. Também João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida Severina, marcou de forma profunda minha consciência das condições iníquas que ainda hoje caracterizam nossa realidade social.
Corrigindo-me a tempo, ou sendo mais preciso, o que designo por “familiaridade inconsciente” é meramente a pobreza e a miséria enquanto fatos ou dados objetivos integrados desde a infância à minha experiência social. Reencontrar essa realidade transposta para o registro da invenção ficcional e da análise histórica e sociológica foi passar a encarar com estranhamento crítico algo decisivo para imprimir consciência política à minha percepção de leitor. Foi por essas vias e fontes que politizei minha relação com o mundo próximo e imediato do subdesenvolvimento nordestino, assim como também com o mundo social mais amplo. Noutras palavras, fui gradualmente captando em algumas das leituras que agora registro os determinantes externos do subdesenvolvimento do Nordeste e, por extensão, do Brasil. A isso acrescentei outra ordem de determinação: a das relações de poder interregional. Para integrar esses fatores complexos numa figura dotada de alguma coerência, inserindo o particular imediato, aderente à minha experiência social espontânea, no contexto político global, concorreram de forma decisiva minha leitura de Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, e a leitura de articulistas políticos como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Alceu Amoroso Lima, que na velhice rejuvenesceu politicamente passando a ser um dos críticos mais intransigentes e corajosos da ditadura militar, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e muitos outros que concorreram para politizar minha noção até então inocente da realidade do mundo. Como escreveu Graham Greene em The quiet American, “Innocence is a kind of insanity”. Muitas outras circunstâncias, algumas puramente acidentais, importaram para adensar minha consciência crítica conduzindo-me para a vertente das ideologias de esquerda. Não me detenho na reconstituição desse processo para não me desviar em demasia da rota retorcida dessas minhas memórias primariamente subordinadas à minha experiência de leitor.
Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, me caiu nas mãos por mero acaso. Alguém emprestou-o a minha irmã Zuleide, que vivia numa outra esfera de realidade e interesse, e assim ele acabou nas minhas mãos. A essa altura, entre 1969 e 1971, tendi progressivamente a envolver-me com a realidade política através da leitura de obras de ciências sociais, da própria literatura e do cinema. Outro fato que decisivamente me despertou para a política foi minha amizade com algumas pessoas de esquerda, no geral confessadamente comunistas. A primeira delas foi Urariano Mota. Conheci-o quando nos candidatamos a um emprego na empresa que editava o guia telefônico do Recife. Perdi um emprego, mas ganhei uma amizade. Nossa conversa revelou-nos de imediato afinidades literárias, políticas e musicais. Daí para a amizade estreita e constante a passada foi curta. Através dele, fiz também amizade com José Antônio Spinelli. Considerado o meio em que eu vivia, a aridez mental e a alienação política nele dominantes, Spinelli impressionou-me intelectualmente. Foi a primeira pessoa que me falou de Sartre, de vários intelectuais comunistas influentes e tudo isso aprofundou meu interesse pelas questões políticas da época. Meu ingresso na Faculdade de Direito, em 1971, consolidou e ampliou meus vínculos políticos com a realidade precisamente nas circunstâncias mais perigosas para quem ousasse envolver-se com essas coisas, já que foi precisamente durante esses anos que a ditadura se extremou na repressão implacável contra a minoria numericamente insignificante que se atreveu a desafiá-la, seja através da luta armada, seja através da oposição pública e ativa. Mas corto caminho para novamente não enveredar por digressões impertinentes.
Viver no Recife, então quanto agora, era esbarrar na pobreza e na miséria a cada esquina da cidade. A diferença que importa neste passo salientar é que então havia menos violência nas ruas, que ainda eram do povo, contanto que não se atrevesse a contestar a ditadura. O centro do Recife, também à diferença de hoje, era o centro da vida social da cidade. Havia os cinemas, as livrarias, os bares e sobretudo uma atmosfera de livre convívio nas ruas isenta das zonas de segregação hoje correntes. Além de freqüentar os cinemas do centro (o São Luiz, o Moderno, o Trianon e o Art Palácio), sem contar as salas de subúrbio já em vias de desaparecimento imposto pela crescente difusão da cultura televisiva, vivia nos bares do centro da cidade com os amigos, todos de esquerda.
Gilberto Freyre enfatiza em Sobrados e Mucambos os processos de mudança social descritos na dimensão da longue durée, como escrevem os historiadores franceses, que modificaram de forma profunda e irreversível os vínculos de confraternização atenuantes dos antagonismos implicados nos extremos senhor e escravo, casa-grande e senzala. O fenômeno da urbanização, desatado ao longo do século 19, alterou radicalmente as zonas de confraternização típicas da nossa sociedade colonial lastreada no patriarcalismo fixado no latifúndio monocultor e na escravidão. A transposição gradual dessa forma de organização social e cultural para a cidade rompeu os elos de confraternização tradicionais. Na interpretação otimista de Freyre, no entanto, eles se refazem no espaço da cidade através das procissões, das festas religiosas, do carnaval e de toda essa agregação festeira que pipoca a cada esquina ou espaço público ainda não privatizado pela sanha predatória das empreiteiras e seus prepostos, os políticos corruptos ou apenas inconscientes do caos urbano e das consequências desastrosas da política insana que praticam.
Se hoje as zonas de segregação tendem a acentuar-se, não obstante toda a ideologia “multiculturalista” e os mitos persistentes da nossa cultura integradora, naquele momento o centro da cidade, como já frisei, era ainda o espaço fundamental de vida associativa do Recife. Apesar da repressão política impiedosa, disseminada na universidade, notadamente na Faculdade de Direito, e nos pontos de maior agregação dos grupos politizados, vivíamos nos bares mais badalados, como o Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, nos cinemas, livrarias e sobretudo nas ruas. Lembro-me ainda dos papos sobre política e literatura, das nossas conspirações inviáveis e românticas às margens do Capibaribe e nas ruas onde circulávamos a qualquer hora do dia e da noite. O perigo que temíamos rondava na sombra e nada tinha a ver com a bandidagem marginal hoje corrente, bandidagem da qual nos protegemos fechados dentro da fortaleza do shopping, do condomínio policiado por câmeras, portões lacrados, alarmes eletrônicos e muros intransponíveis, não raro eletrificados. O Recife era outro. Não muito melhor, talvez pior, mas desse ponto de vista sem dúvida melhor. Em suma, havia ditadura, politização da juventude sem vias de acesso à militância institucionalizada, repressão política feroz. No mais, as ruas e o espaço público, embora sempre precário, eram ainda do povo.
Foi quando esse clima ideológico estava ainda se esboçando na minha vida pessoal que li Crimes de guerra no Vietnam. Diria simplesmente que representou um choque mental e ideológico na minha vida. Até então, minha consciência da cultura americana, assim como do que representava no mundo, era moldada sobretudo pelos filmes made in Hollywood. Noutras palavras, era um inocente do Leblon, lembrando o poema de Drummond. Cultuava os mitos do cinema americano, admirava a democracia americana, a música americana difundida pela cultura radiofônica e fonográfica da época e evidentemente vivia com minha imaginação erótica atormentada por Marilyn Monroe, Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Elizabeth Taylor, Natalie Wood, Kim Novak, Doris Day e outras figuras mitológicas. Bertrand Russell revelou-me algo das entranhas da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos não apenas ao Vietnam, onde explodia a primeira guerra totalmente coberta pela mídia mundial, mas também ao Brasil e ao conjunto da América Latina. Foi um choque que suprimiu de vez minha inocência ideológica.
Outro sintoma das turbulências ideológicas da época associadas à minha experiência de leitor foi a emergência do boom da literatura hispano-americana. A difusão internacional desta literatura foi fruto antes de tudo de fatores políticos como o combate às ditaduras impostas praticamente a toda a América Latina, as lutas pela descolonização dentro do clima da guerra fria e o antiamericanismo reativo, fruto da política imperialista desencadeada pelos Estados Unidos em todo o mundo não-comunista. É claro que esse clima ideológico foi decisivo para que muitos jovens se bandeassem para o comunismo. Os de tendência mais moderada, abrangendo um leque que ia do catolicismo socialista ao liberalismo de esquerda, como era o meu caso, tornavam-se companheiros de viagem dos radicais. O clima de antagonismo ideológico, no entanto, reduzia todos esses matizes em termos práticos a dois pólos: direita versus esquerda, capitalismo versus comunismo. Na hora do pega pra capar, as forças repressivas nunca distinguiram quem do outro lado era comunista, simpatizante, companheiro de viagem, nem mesmo o inocente útil ou azarado, pego no “local do crime” na hora em que todos os gatos eram vermelhos.
Apesar da atmosfera ideológica acima grosseiramente pincelada, fui sempre um politizado malgré moi. Fosse outro o tempo, outras as circunstâncias, outra a geração dentro da qual me formei, jamais teria me metido com política, jamais teria feito o pouco que fiz dentro das possibilidades objetivas e subjetivas do tempo. O pouco que fiz foi feito contra o meu medo, minha aversão temperamental à política, minha consciência de que não podia ser indiferente, também um sentimento de solidariedade e compaixão inculcado por anos de leitura e convívio lastreados por valores humanistas cuja abrangência ia do catolicismo ao marxismo. Não preciso declarar que a política constitui um componente fundamental da consciência de todo intelectual digno deste termo, ainda quando se recuse à militância ou seja avesso à ação prática característica das formas e processos implicados no exercício do poder, nos modos de ordenação política da realidade. Sei de tudo isso, incorporo tudo isso à minha representação mental da realidade, mas confesso e reitero minha aversão à política compreendida no sentido prático e dominante do termo.
Voltei a derivar para as considerações político-ideológicas porque, no momento que considero dentro destas memórias de leitor que vou canhestramente compondo à deriva da memória, não há como dissociar minha experiência de leitor desse contexto que teima em enfiar-se nas linhas que vou cosendo tendo os livros como alvo prioritário. Isso explica o desvio que tomei em direção aos autores americanos de língua espanhola. Acho que o primeiro que li foi Gabriel García Márquez. Dele saltei para Juan Rulfo, Alejo Carpentier e Mario Vargas Llosa. Borges, hoje pairando por consenso crítico acima de todos, era então no mínimo silenciado. Li-o bem mais tarde. Um pouco antes conheci a obra de Ernesto Sabato e Manuel Puig. Minha leitura definitiva, direi mesmo suprema e insuperável dentro dessa linhagem procedente da língua espanhola, foi Dom Quixote, de Cervantes, que evidentemente nada tem a ver com os condicionantes ideológicos implicados nessa etapa da minha vida de leitor. Hoje os que mais leio e portanto elejo como preferidos são Borges, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Ernesto Sabato.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Eliane Brum


Eliane Brum não existe. Não faltará quem leia esta frase certo de que estou troçando com a realidade ou simplesmente enlouqueci. Afinal, as evidências apreensíveis pelo senso comum são irrefutáveis: Eliane Brum é repórter, jornalista, colunista, documentarista, ficcionista... Eu próprio admito ter diante dos olhos outra evidência aparente: um livro intitulado A menina quebrada. Na aba da contracapa examino demoradamente a foto de uma mulher identificada como Eliane Brum. Ela me devolve o olhar com a cabeça pendida e um rosto indefinível: misto de ironia, acolhimento e uma audácia intrigantemente delicada e determinada. Mas resisto à ilusão dos sentidos e insisto em me dizer: Eliane Brum não existe. Por isso preciso inventá-la.
Vou inventar Eliane moldando-a numa personalidade passível de conter e expressar valores éticos e existenciais que eu condensaria nesta frase: nada do que é humano me é estranho. A frase, sabe o leitor, procede de Terêncio e inspirou gênios do pensamento como Karl Marx. Desdobrando esse princípio, Eliane desde cedo determinou-se a viver uma vida excepcional. Embora consciente dos limites por vezes cruéis impostos pela realidade objetiva, ela faz de sua inquietação uma permanente força de reinvenção de si própria. Dou-lhe a palavra para que não digam que desenho toscamente minha personagem como se ela fosse um fantoche à serviço da minha imaginação arbitrária:
“... não basta saber quem eu sou. É preciso também saber quem eu não sou. Para, então, saber quem eu posso ser. (...) Para nos estabelecermos na vida adulta precisamos construir um personagem. Não com a total liberdade com que muitos sonham e alguns se iludem que têm, mas com algum grau de livre arbítrio”.
José Castello escreveu um fascinante capítulo no qual narra seus encontros com Clarice Lispector. Refiro-me ao capítulo que abre o volume Inventário das Sombras. Muito jovem e tímido, tateando ainda um caminho como escritor e jornalista, ousou enviar um conto para que Clarice o apreciasse. Ela respondeu com franqueza rude, mas necessária. Disse, noutras palavras, que ele era muito covarde para escrever. Escrever para remover os véus enganadores da realidade e reinventar-se, é o caso de escritoras como Clarice e Eliane Brum, é antes de tudo um exercício de determinação e coragem. Por isso Eliane se recusa a ser um clichê e faz da escrita um ato de intransigente reivindicação da sua individualidade, isto é, da sua singularidade irredutível. Eliane há muito descobriu este milagre banal, como é da natureza de quase todos os milagres: cada um de nós é a expressão de uma singularidade irredutível. Não é espantoso que entre tantos bilhões que somos, tantos bilhões que foram e na terra de algum modo deixaram impressos os rastros de sua passagem, cada um de nós seja em algum indeterminável sentido absolutamente único? A maioria, por inconsciência ou covardia, como disse Clarice exortando José Castello a se inventar através da literatura, dobra-se às conveniências, à ilusória segurança dos que se dissolvem no anonimato, na repetição alienada apreensível na sociedade das massas. Estes anônimos, que nunca escreverão uma simples linha portadora da sua singularidade, que nunca se empenharão num ato de recusa ao rebanho da repetição, não sabem nem querem saber da existência de mulheres como Clarice e Eliane.
É difícil determinar a natureza e os limites das colunas que Eliane Brum escreve. Aliás, ela é a primeira a reconhecer a insuficiência desta classificação. Depois de muito escavar um termo que melhor qualifique o que escreve, arrisca afirmar que escreve sobre direitos humanos. Consciente, no entanto, de que sua singularidade complexa transborda da medida dos conceitos cogitáveis, resigna-se a ser o que é e de resto indicia sua originalidade: uma mulher que escreve para importunar a falsa ordem do mundo e a ilusória segurança do leitor. Por isso este termo anódino, coluna, indica de imediato um fato irrelevante: Eliane assinava a coluna da última página da revista Época. Mais tarde passou a assinar a coluna na internet. É desta que extrai o conjunto dos textos que compõem A menina quebrada.
Se me desse ao trabalho de ler a revista Época, teria inventado Eliane há muitos anos. Mas confesso que também tenho preconceitos. À diferença do brasileiro típico, orgulhoso de não ter preconceito, fato que faz dele o pior tipo de preconceituoso, tenho sem dúvida vários. Quando vi a Época exposta pela primeira vez numa banca de revista, tive a curiosidade de a folhear. Fui até a última página e olhei com vago interesse a foto dessa mulher que tanto demorei a inventar. Não perdi tempo lendo sua coluna porque minha apreciação ligeira e preconceituosa da revista fez com que eu simplesmente a ignorasse. Afinal, a revista me pareceu apenas uma versão impressa da programação televisiva da Globo, um calidoscópio de imagens e textos talhados para leitores sem fôlego mental. Navegador ocasional do Facebook, vi recentemente algumas postagens de colunas (insistirei na designação anódina, já que identifica o conjunto de textos contidos no volume A menina quebrada) assinadas por Eliane. Desta vez, felizmente, cedi à curiosidade e logo descobri estar diante de minha melhor invenção jornalística.
Como acima sugiro, o termo coluna me incomoda, incomoda tanto que eu removeria o subtítulo do livro simplesmente por enquadrar as mais de 400 páginas da prosa radical e iluminadora de Eliane Brum num conceito demasiado genérico e portanto pobre demais para sequer indicar a múltipla, complexa e perturbadora personalidade da autora. Também penso que termos alternativos como artigo ou crônica seriam insuficientes para traduzir a real dimensão desses textos que vinculam certos gêneros do jornalismo à literatura, à prosa escrita para os periódicos, mas sempre tensionada pela intenção crítica e reflexiva, o mergulho destemido de uma inteligência e sensibilidade singulares na trama trepidante e confusa do mundo cotidiano que nos assalta e fascina. Pois o que Eliane Brum escreve é uma mescla indefinível de crônica de memórias, reportagem, confissão calibrada pelo fio cortante da (auto)apreciação isenta de complacência ou dócil acomodação às idéias feitas, que de resto não são idéias, apenas automatismos mentais passíveis de acomodar nossa alienada aceitação da realidade como ela não é. É por isso que ler Eliane é um exercício de reinvenção em duas vias: reinvenção do leitor pela autora, desta por aquele.
Convém ir um pouco ao próprio livro para melhor ilustrar o que acima imprecisamente escrevi. A Apresentação já anuncia, no próprio título, o mundo que Eliane desdobrará aos olhos do leitor: “Um percurso de (des)identidades”. Os ossos do ofício (meus estudos de muitos anos dedicados à sociologia da cultura e domínios conexos) propiciaram-me certa familiaridade com os escritos e práticas pertinentes à identidade. País de extenso e traumático passado colonial e escravista, o Brasil vive ainda engavetado nos impasses da identidade cultural, que é antes uma ideologia do que um saber baseado na e aferido pela realidade objetiva. Por certo, estados como o Rio Grande do Sul e Pernambuco se distinguem nessa obsessão traduzida inclusive em práticas institucionalizadas, mitos e fantasias compensatórias para os impasses emperrados pela tradição conservadora, entre outros obstáculos.
Eliane Brum investe contras essas brumas da ideologia seu pensamento aderente às tensões do concreto, da realidade viva que continuamente desmente nossas projeções consoladoras acerca do que seria nossa identidade, individual e coletiva. Sendo jornalista e repórter, ela lida por profissão e escolha com a realidade crua dos fatos, com a empiria de um solo minado pelos ventos da mudança e da incerteza, pelas tensões desnorteantes pulsando entre o mundo globalizado e Ijuí, seu obscuro lugar de origem; entre a tradição procedente da família de imigrantes e da cultura local e as turbulências da modernidade, pós-modernidade ou como queiram designá-la os acadêmicos e teóricos. Eliane afia as armas da razão e da experiência reflexiva mirando no fundo da retina o furacão que tanto nos desconcerta e tememos. E assim se apresenta ao leitor já nas primeiras linhas do seu livro: “Escrevo porque a vida me dói, porque não seria capaz de viver sem transformar dor em palavra escrita. Mas não é só dor o que vejo no mundo. É também delicadeza, uma abissal delicadeza, e é com ela que alimento a minha fome”.
Depois de expressar as motivações primárias que a impelem para a escrita, ela acentua o papel que a dúvida também desempenha no que escreve. O que oferece ao leitor não é a certeza que os carentes de amparo e os simplistas procuram. Ela respeita a inteligência e a coragem do leitor. Por isso lhe oferece a dúvida que é sua razão de escrever ou de chegar a algum outro lugar através dela. A certeza, sabem os que ousam duvidar, não leva a lugar nenhum. Por isso ela, impiedosa, afasta das suas páginas o leitor covarde e conformista. Assim, deixa claro que sua aspiração é descentrar o leitor, erguê-lo da cadeira da certeza preguiçosa e indiferente para que ele veja verdadeiramente o mundo. Ver o mundo com olhos livres, como disse Oswald de Andrade, é mudar de lugar, deslocar a perspectiva de quem vê.
A determinação perspectivista com que Eliane Brum se debruça sobre o mundo remete a afinidades profundas com a pensadora mais radical do século 20: Hannah Arendt. O que me parece explicar a radicalidade do olhar crítico de ambas é a coragem generosa e ousada com que se movem para a perspectiva do outro, ainda quando esse outro seja o nazista, no caso de Hannah Arendt, ou o pedófilo, no caso de Eliane. Mencionei o exemplo do pedófilo (conferir a coluna intitulada “Pedófilo é gente?, pp. 87-92) porque a boa consciência do presente passou a suprimi-lo do horizonte ético e humano como um monstro. No entanto, os que ousam pensar com radicalidade sabem muito bem que a vida não é assim tão simples. Alternativas maniqueístas como isso ou aquilo, médico ou monstro, para lembrar o famoso romance de Stevenson, vítima ou algoz, culpado ou inocente, puro ou impuro são o combustível ideológico e moral que move os simplórios, os intolerantes, fanáticos, dogmáticos e, no limite, os fascistas enceguecidos pelo desejo de aniquilamento de qualquer diferença. Hannah Arendt e Eliane Brum são radicais porque ousam sair de si próprias, dos limites de toda perspectiva individual para empatizar com o outro, colocar-se imaginariamente no ponto de vista do outro. Por ousarem tanto, elas chocam e levantam fúrias de indignação e intolerância. Na verdade, elas traduzem no exercício do pensamento a coragem dos que pensam com radicalidade. Pensar com radicalidade é ser capaz de tornar-se o outro.
Chegando ao termo das considerações acima esboçadas, movido por minha teimosa determinação de inventar Eliane Brum, perguntei-me se acaso poderia encontrar uma medida ou precedente para o que ela representa como expressão singular e radical do jornalismo brasileiro. Lembrei-me então de Millôr Fernandes e Paulo Francis. Mas logo admiti que o paralelo que tinha em mente era descabido. Estes, que tanto me ensinaram e tanto aprendi a admirar, tensionavam por vezes a liberdade de pensar ao extremo da arrogância brutal e do sadismo. Não é nunca o caso de Eliane Brum. O que nela mais me impressiona é a capacidade de pensar radicalmente o mundo inspirada pelo desejo predominante de compreender o próprio inominável. Ela sabe que a natureza humana é um poço sem fundo, sabe o que contém de horripilante, e todavia mergulha até o mais fundo do fundo. Mesmo diante do horror, resiste à tentação demasiado humana da condenação, da segurança assegurada por alguma fé consoladora. Por isso tentou-me dizer que é portadora da vontade sábia dos estóicos. Mas estes pregam e refinam um sentido de compaixão humana estranho ao amor com que Eliane acolhe o mundo e melhor se expressa na forma personalizada apreensível nos sentimentos que devota aos pais, à filha e ao marido. Além disso, duvido que ela aspire ao ideal da ataraxia indissociável da filosofia estóica, embora a determinação da vontade e a aceitação do mundo, a forma como diz sim ao real, sem dúvida a aproximem dessa tradição filosófica.
Eliane Brum é uma mulher tão rara que precisei inventá-la à medida que lia seu livro apaixonante e iluminador. Como duvido em demasia, ou me tornei demasiado cético à força de medir sem ilusão o mundo humano que vejo à minha volta e, pior ainda, sou forçado a tolerar, dei por favas contadas que ela não passava de uma invenção, mais uma invenção da minha imaginação descontente. Mas preciso concluir dobrando-me à força dos fatos: Eliane Brum existe, sim. Durante dias mergulhei no seu livro seduzido pela tentação de ser ela. Se eu fosse mulher, queria ser Eliane Brum.
Recife, 8 de dezembro de 2013