Os únicos livros que
importam são os que mudam nossa vida, se possível para melhor. Noutras
palavras, importam apenas os livros que se traduzem em experiência. É por isso
que me arrependo tardiamente, e sem reparação, da tralha colossal que li. A
literatura barata consumiu muito do meu tempo, que sei cada vez mais finito;
privou-me ainda de conhecer obras que sei constituírem lacuna irreparável na
minha anárquica travessia de leitor, pois cada livro irrelevante lido significa
tempo roubado às obras que todo leitor verdadeiramente culto precisa ler.
Apesar desta observação
introdutória, bendigo retrospectivamente a própria literatura barata que li na
minha adolescência. Considerando minha formação errática de leitor no contexto
devido, a literatura barata serviu ao menos para me dar algo que falta hoje à
maioria dos jovens: disciplina mental. Aludo mais precisamente à capacidade de
sentar-se num canto com um livro, apesar do ruído agressivo ao redor, e
mergulhar concentradamente na leitura. Foi esse o grande bem que a literatura
barata me propiciou. Para melhor avaliar a importância crucial dessa disciplina
básica como via de acesso ao mundo dos livros, em particular da experiência
imaginativa, basta olhar hoje um pouco à nossa volta. A disseminação universal
da tecnologia que produz muita coisa boa, até miraculosa, para quem a
comparasse com a que existia há 30 anos, também produz ruído em excesso. Se
esse dado negativo é decorrência inevitável da própria revolução tecnológica,
num país desregrado como o Brasil os efeitos vão muito além das trepidações
habituais causadas pelo estresse urbano.
O ruído agora é
onipresente. Por isso a prática rotineira da leitura tornou-se inviável, quando
não um inferno. O leitor do meu tipo, demasiado sensível ao ruído, com
frequência perde o fio da leitura. Triturado pelo ruído, não há como dele
escapar, pois, como ressaltei sem nenhum exagero, ele é onipresente na
realidade urbana em que vivo e me movo. Moro num bairro, Boa Viagem, que é
provavelmente uma das mais densas concentrações demográficas do Brasil. A
densidade foi predatoriamente acelerada no decorrer dos últimos dez anos e não
cessará enquanto houver um palmo de terra para sustentar monstrengos verticais.
As construtoras e seus prepostos políticos promovem o crescimento galopante do
Recife agravando os instrumentos de degradação do espaço urbano. Temos
crescimento, sim, até em demasia, mas nada que se assemelhe à urbanidade, ao
ideal de uma cidade construída por pessoas para as pessoas. A expansão do
Recife, como de praticamente de quase toda a malha urbana do Brasil, é feita
sob o comando do nosso capitalismo selvagem.
Saio das abstrações
para descer um pouco ao solo da realidade concreta. Boa Viagem não é apenas a
maior área de concentração demográfica do Recife, é também o bairro mais
extenso. Sua orla marítima, incluindo o Pina, tem 8 km. de extensão. No
entanto, não há em Boa Viagem uma única praça digna deste nome. A praça que tem
o nome do bairro é uma coisinha insignificante, com uma igrejinha no centro. O
que sobra é praticamente invadido por barracas do comércio artesanal. Basta
dizer que não tem um centímetro de grama, qualquer espaço de lazer. Chamar isso
de praça é um insulto à semântica. O mesmo se aplica aos chamados jardins de Boa
Viagem. São três, que somados não dariam um jardim de subúrbio. Some-se a isso
o fato de que Boa Viagem não tem um parque, uma biblioteca, um teatro, um
centro cultural, praticamente nenhuma área significativa de lazer. Tudo que nos
resta é o calçadão, invadido por barracas e pelo comércio ambulante. Quando a
maré baixa, resta ainda uma estreita faixa de areia onde é possível caminhar ao
longo das águas.
Algum bairrista
ofendido com minha crítica poderia gritar o nome do parque Dona Lindu em defesa
dos espaços de lazer propiciados pela cidade. É outra coisinha mais ou menos do
tamanho da praça de Boa Viagem. Tem algum espaço de lazer, admito, mas foi
tomado de assalto por jovens e alguns adolescentes retardados que transformaram
todo espaço livre em pista de skate. Nos espaços marginais do parque, dominam o
comércio ambulante, crescente e sempre anti-higiênico, apesar das normas
impostas pela administração que nada administra, e os skatistas ainda mais
ruidosos e velozes, não raro movidos a maconha que fumam abertamente. O que há
de bom, em meio a tanta coisa precária, é o desenho arquitetônico de Niemeyer
um tanto deslocado em meio à bagunça. Diante disso, eu, que de início tentei
ser um frequentador do parque, removi a tenda e voltei às caminhadas também
precárias no calçadão da avenida beira mar. Afinal, bem ou mal, é o que me
resta. Ou me contento com isso ou dilato as horas de prisão domiciliar.
Quando o ruído ambiente
força-me a suspender a leitura irritado, muitas vezes desloco o olhar ao redor.
Estou cercado por altos condomínios cuja concentração anula qualquer veleidade
de vida privada. Através das minhas janelas e da minha varanda enfio meu olhar
intruso até sem querer na intimidade dos lares. Um pouco da paisagem humana que
estou saturado de ver: gente diante da televisão ligada, é a cena mais
corriqueira, gente tagarelando no celular, gente bebendo e falando alto, cachorro latindo,
operários reformando condomínios e fachadas... Vejo tudo que se possa imaginar,
mas juro que nunca surpreendi um vizinho lendo.
Quando ainda ensinava
na universidade, observava situação similar. A própria biblioteca passou a ser
rotineiramente invadida por gente que conversa sem cessar. Outros usam-na para
comer e pendurar os pés nas mesas de leitura e trabalho como se estivessem em
casa. Cansei de reclamar em vão e assim, como reza a norma prática, que sempre
atropela a escrita, recolhi-me a uma sala com ar condicionado onde tinha um
pouco de sossego para ler ou fazer anotações para minhas aulas. O ruído estendeu-se
também para a sala de aula onde alunos indisciplinados atendem celular, falam
abertamente durante a aula e incorrem noutras formas de comportamento
inconcebíveis em uma sociedade verdadeiramente regulada.
Deslocando o foco da
narrativa para o ambiente das livrarias, também aí já não é possível ler em
paz. Há alguns meses li na Livraria Cultura o editorial de uma das edições da
revista editada pela livraria e assinado por Pedro Herz. O assunto de destaque
da edição era precisamente o ruído. Por isso o editor da revista conferia
relevo ao assunto no editorial que assinava. O irônico, para não dizer
aberrante, era constatar que ele denunciava o mal inconsciente do fato de que a
própria livraria passou a promover abertamente o ruído dentro do seu espaço. Cansei
de reclamar contra o ruído de rock e outros ritmos barulhentos contra os quais
brigava em vão tentando concentrar-me na leitura. Como o incomodado sou eu,
reza outra norma prática da nossa cultura, pus minha violinha no saco e fui
esconder-me no alto de um viaduto com meus livros indesejáveis.
Enfim, seria ocioso
alongar os exemplos, que estão em todo o nosso espaço urbano. É claro que
noutras cidades, significativamente habitadas e construídas por imigrantes de
formação distinta das nossas tradições luso-africanas, a realidade é bem
distinta. Cito Curitiba como exemplo contrastante com o Recife ou qualquer
capital nordestina que conheço. Visitei-a em abril de 2013 com a intenção de me
mudar para lá. Por isso viajei com uma disposição de convívio e senso de
observação e participação na vida da cidade que contrariam meu temperamento
reservado e até tímido em ambiente estranho. Detendo-me em alguns poucos fatos
observados e vividos, li em paz na biblioteca central da cidade. Li durante
cerca de duas horas sem ser incomodado por qualquer ruído ou conversa. Na Rua
XV, a mais movimentada da cidade, caminhei todos os dias em meio à multidão sem
ser importunado por ruído excessivo. Cheguei até a me sentar num banco no meio
da rua, às três da tarde, onde escrevi dois poemas. Também visitei galerias e
museus, até shopping, sem ser importunado por gente ruidosa e mal educada. E o
que dizer da sucessão de parques e praças realmente fieis à semântica,
verdadeiros luxos à disposição do habitante que pode descansar, ler, sentir-se
à vontade no espaço público? Nisso tudo e em muito mais, a realidade urbana de
Curitiba contrasta vivamente com o cotidiano urbano de Recife que é hoje, na
minha percepção, a pior das capitais brasileiras que conheço.
Se o leitor teve a
paciência de seguir-me até aqui, estará por certo se indagando o que essa
narrativa tosca sobre os males das nossas cidades, em particular o Recife, tem
a ver com as memórias de um leitor. Diria que tudo. A experiência de leitura é
indissociável da cidade. É nesta que brotam as editoras, livrarias e outras
instituições ordenadoras da vida intelectual, sem esquecer as que formam e
promovem o público: a escola, a biblioteca, as condições sociais favoráveis às
formas de integração dos leitores. É nesse sentido que o contexto social, ou as
condições do meio acima grosseiramente esboçadas, importa para compor um quadro
menos precário das memórias de um leitor. Acrescentaria ainda que, não obstante
o crescimento urbano e a expansão do conjunto das forças do capitalismo,
cidades como o Recife antes perderam do que ganharam, se consideradas do ponto
de vista dos critérios pincelados neste parágrafo.
Retomo algumas
experiências extraídas da minha memória de leitor para melhor ilustrar meu
argumento. Nos anos 1970, quando vivi de cuia na mão, sem dinheiro para comprar
livros, muito menos habitar em lugares que me resguardassem do ruído das ruas,
lia nas ruas e no ônibus. Era tudo precário, mas factível. Quando morei na
Cidade Universitária, cuja linha tinha apenas três ônibus, habituei-me a
suportar as longas esperas lendo no inicial ou terminal da linha, também no
curso da viagem. Foi então que tive a ideia de ler nossos melhores cronistas,
no geral editados pela Sabiá, de propriedade sintomática de dois desses grandes
cronistas: Fernando Sabino e Rubem Braga. Além de ler praticamente toda a obra
de crônicas de ambos, li também Drummond, Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Clarice
Lispector, Antonio Maria e Gilberto Freyre. Vali-me ainda do acervo de algumas
bibliotecas públicas, não obstante precárias e nem sempre de fácil acesso: a
Biblioteca Estadual, situada no parque 13 de Maio, o Gabinete Português de
Leitura, a Biblioteca Pública de Afogados e até a minúscula biblioteca da
Assembléia Legislativa, instalada numa sala do Edifício Caetés, ao lado da
assembléia. Também frequentei como
leitor constante a biblioteca da Faculdade de Direito, a melhor de todas, e até
a do mosteiro de São Bento. Desta tive uma experiência única e não de todo
proveitosa. Foi nela, por exemplo, que conheci e comecei a ler as Obras
Completas de Freud, editadas pela Imago.
Do ponto de vista
associativo, as livrarias da época desempenharam um papel fundamental, hoje suprimido
pela nova realidade imposta pela forma de capitalismo que inventamos. Aqui a
referência mais importante para minha geração é sem dúvida a Livro 7. Durante
pelo menos uma década, com mutações inevitáveis, foi o grande centro de
associação intelectual do leitor recifense. Num tempo de vacas magras e
sofrimento imposto pela ditadura à camada letrada e politizada da cidade,
valemo-nos, como é culturalmente de praxe, do recurso do carnaval e assim a
livraria, sob o comando de Tarcísio Pereira, fundou o bloco Nós sofre, mas nós
goza. O português, refiro-me à língua, fica por conta do culto à fala popular,
senão de algum intelectual que confundia concordância verbal com agressão
gramatical.
A Livro 7 era o grande
centro de agregação intelectual e política da cidade. Ser intelectual era
frequentar a Livro 7. Noutras palavras, ser de esquerda, salvo as exceções
ditadas pelo bom senso, era fazer parte daquele clube ou gangue que nunca se
assumiu como tal, talvez até por ignorar o que significava. Como esse momento
coincidiu com meus anos de miséria e radicalismo antiburguês, não confundir com
comunismo, que era apenas um braço dessa tendência ideológica, nunca me
integrei ao clube ou gangue. Bastaria dizer que era tão marginal que converti,
para prejuízo de Tarcísio, meu amor aos livros em cleptomania. Juro que ainda
hoje sinto culpa por ter roubado as prateleiras da livraria num tempo em que
minha miséria e meu marginalismo ideológico excediam em muito minha sede de
livro e leitura. Quem perdeu, claro, foi Tarcísio, vítima de ladrões de livro
como eu e muitos dos meus amigos de então. Como era um ladrão ético, sempre
evitei qualquer intimidade com o dono da livraria. Juro que não suportaria,
mesmo então, roubar um amigo. Assim, ganhei livros que não comprei, mas em
compensação, perdi em Tarcísio um possível amigo e tive que arrastar comigo,
através dos anos, o sentimento de culpa por haver concorrido em algum grau para
precipitar a bancarrota da sua livraria.
Outra livraria, bem
próxima, também merecedora de um breve registro de memória foi a Dom Quixote. O
radicalismo dogmático dos proprietários fazia justiça ideológica ao nome da
livraria. Bastaria dizer que os donos se recusavam a vender best-seller, termo
que constituía um insulto à integridade ideológica e intelectual dos comunistas
que aparentemente inventaram de abrir uma livraria regida não pelas leis do
mercado, mas pela determinação doutrinária de combater o capitalismo e a
ditadura militar. Ocupava apenas o espaço de uma sala pequena no edifício
situado à esquina da Conde da Boa Vista com a Sete de Setembro, onde reinava a
Livro 7. Para ocupar espaço nas prateleiras da Dom Quixote, qualquer autor
tinha que ostentar ficha ideológica comprovadamente limpa, de preferência
autenticada pelo comunismo, sobretudo o que identificava na democracia e em
qualquer forma de liberalismo uma desprezível ideologia burguesa.
É evidente que não
durou muito tempo, pois as leis do mercado são impiedosas, salvo se o capitalista
tem conexões patrimoniais com o Estado brasileiro, o que é de resto uma forma
de admitir que não obedece às leis do mercado. A Dom Quixote era o ponto de
agregação de todos os dogmáticos e intolerantes que conheci. O dogmatismo é
compreensível dentro do contexto de maniqueísmo ideológico imposto pela
ditadura militar, mas nem por isso justificável. Esta, de resto, é uma das
consequências inevitáveis nos tempos de
antagonismo intolerante: tudo passa a ser determinado pelo crivo do preto
versus branco, direita versus esquerda. Retomando a polaridade enraizada na
invenção metafísica do maniqueísmo, o bem versus o mal. Quem ousa ou é
simplesmente incapaz de se situar nos extremos, como é o meu caso, é fatalmente
hostilizado pelo bem que se supõe puro, assim como o mal, que se supõe o bem.
Um tão puro quanto o outro. Essa forma de cegueira catastrófica constitui um
tipo de loucura ideológica desgraçadamente familiar ao século 20. É impossível
calcular com precisão os milhões de cadáveres que essa insanidade produziu.
Aparentemente, quase
tudo que aqui exponho desmente a expectativa de quem anda à cata de memórias de
um leitor. Volto a insistir no fato de que os livros importam na medida em que
remetem à experiência ou traduzem em letra de forma a experiência do autor e do
leitor. Apesar do desprezo que o livro e o intelectual humanista inspiram ao filisteísmo,
que confunde cultura letrada com sucesso no mercado, a leitura importa na
medida em que ilumina a experiência ou traduz a vida em formas mais elevadas de
consciência humana. Nesse sentido, apesar de todas as aparências em contrário,
estou falando da minha experiência de leitor quando derivo para considerações
sobre a cidade e a história social do Recife a pretexto de falar de livros e de
minhas leituras. Devo aos livros a forma de consciência e expressão letrada
expressa nestas memórias, assim como devo à minha experiência muitas das
leituras que escolhi fazer, ou que o acaso das circunstâncias pôs nas minhas
mãos atraindo meus olhos para as páginas que iluminavam minha vida, ainda
quando aparentassem dela me refugiar.
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