Os livros foram meus
agentes civilizadores, também os modelos éticos incogitáveis no ambiente em que
vivi. É provavelmente por essa razão que sempre me senti a pessoa errada no
lugar errado, no tempo errado, na família errada, no país errado. Mario Vargas
Llosa se indaga num dos seus ensaios críticos se acaso a literatura o tornou um
ser humano melhor. Embora admita a impossibilidade de fornecer ao leitor uma
explicação convincente, conclui por responder afirmativamente. Endosso seu
ponto de vista. Aliás, um dos móveis agora confessos que percorrem as linhas e
entrelinhas destas memórias é minha ambição por certo malograda de persuadir o
leitor eventual de que me tornei melhor, ou menos falível, graças aos livros e
em particular à literatura.
Um dos veios narrativos
que distinguem a tradição literária alemã é o do bildungsroman, ou o romance de
formação. É uma tradição tão notavelmente associada à literatura alemã que não
vai no uso do termo próprio, bildungsroman, nenhum laivo de pedantismo. Usei-o
simplesmente por já ser corrente na linguagem do leitor bem formado e informado.
Talvez o romance que de imediato mereça associar a essa vertente da literatura
alemã seja Demian, também Narciso e Goldmund, ambos de Hermann Hesse. Hesse é outro autor
que me influenciou de forma profunda e também me caiu nas mãos por obra do puro
acaso. É também um outro caso exemplar da ambiguidade que permeia a recepção de
todo grande escritor literário. Adotado nos anos 1960 pelo movimento hippie e
segmentos radicalmente românticos e pacifistas da nova esquerda, acabou lido
por razões evidentemente alheias, quando não opostas, a muitos sentidos
objetivamente apreensíveis na sua obra.
Embora escreva estas
páginas inteiramente baseado nas minhas memórias de leitor, consultei
ocasionalmente algumas das obras cuja leitura vincou mais profundamente minha
memória, mudou minha vida e justamente por isso são aqui consideradas. Não
escrevo sobre elas como crítico literário; escrevo meramente como um amador, um
leitor apaixonado dos livros. Adicionalmente, procuro demonstrar em algum grau
a importância que os livros podem exercem sobre nossas vidas. Noutros termos,
menciono e ocasionalmente comento, seguindo o andamento arbitrário da memória,
apenas algumas obras que importam por se converterem em experiência. Impregnado
dessas preocupações decorrentes da composição destas memórias, andei
percorrendo minhas estantes, folheando e até relendo algo do que aqui tomo como
matéria de escrita. Foi assim que repeguei meu exemplar da edição brasileira de
O Lobo da Estepe e deparei com uma
nota muito sugestiva do próprio Hermann Hesse acrescida ao final da edição
compulsada, que é a 15ª., Editora Record. Que me lembre, não constava da edição
que li no tempo que aqui rememoro. Aliás, todas as minhas releituras deste
livro foram da edição inglesa. A nota é tão oportuna, reflete tanto do que
tenho salientado em algumas passagens destas memórias que não resisto à
tentação de transcrever alguns trechos:
“... Na maior parte dos
casos o autor não constitui a autoridade mais indicada para decidir até que
ponto o leitor compreende e onde começa a incompreensão. Não são poucos aqueles
a cujos leitores sua obra parecia muito mais clara do que a eles próprios. Além
do mais, as incompreensões até que podem ser frutíferas sob certas
circunstâncias”.
Hesse segue discutindo
sua obra dentro desta perspectiva ressaltando que nenhuma delas foi tão
incompreendida quanto O Lobo da Estepe.
Esboça algumas explicações, mas finda por deixar o assunto em suspenso, até
porque a nota tem a extensão de menos de duas páginas. Dentre as explicações
que cogita, ressalta o fato de grande parte dos leitores da obra ser constituída
por jovens, os mesmos que acima caracterizei sumariamente como românticos,
radicalmente pacifistas, diria ainda místicos da natureza seduzidos pela
milenar tradição espiritual do Oriente. Como sabemos, Hesse, em particular sua
obra Sidarta, foi talvez a fonte que
mais concorreu para a moda espiritualista que se disseminou entre os jovens
ocidentais, repercutindo também no Brasil. Completando minhas observações ainda
baseadas na nota escrita por Hesse, ele próprio corrige a explicação que
insinua ao lembrar que também os leitores da sua geração incorreram em
incompreensões igualmente desconcertantes quando consideradas em relação aos
sentidos objetivos da obra e às intenções do próprio autor, conclusão que
extraio das entrelinhas da nota. Esclarecendo que este e os dois parágrafos
precedentes são de inserção posterior, retomo abaixo o fio da memória.
Um dia, por volta de
1970, um amigo ofereceu-me de empréstimo um exemplar de O Lobo da Estepe. Meu amigo era espírita, sua mãe médium e portanto
avessa à amizade que me ligava ao filho, pois sabia das minhas “ideias
perigosas”. Não é de estranhar o fato de o livro chegar às minhas mãos
embrulhado em enfáticas credenciais espíritas. Fiquei tão desconfiado que
aceitei o empréstimo apenas por amizade, pois o amigo a quem me refiro era
então meu melhor amigo. Lidas as primeiras páginas, dei-me conta de que
adentrara nas páginas da mais alta tradição romântica alemã. Talvez este juízo
crítico seja anacrônico, mas tenho perfeita memória de que já conhecia várias
fontes críticas e históricas da literatura alemã, notadamente Otto Maria Carpeaux,
quando li este romance de Hermann Hesse.
O fato de o meu amigo e sua mãe o lerem praticamente como se fosse apenas uma
obra espírita denota quanto são tortas e ambíguas as formas de recepção de uma
obra literária, sobretudo quando, sendo de grande qualidade, como era o caso, é
composta por camadas significativas que se superpõem, se mesclam, se
entrelaçam. Por isso o leitor a lê ajustando-a a seus horizontes mentais, seu
desejo e expectativas. O fato com frequência concorre para deformar
significados objetivos aferíveis na obra. Na aba positiva da recepção,
entretanto, a obra se renova, se enriquece, torna-se outra quando subordinada
ao crivo singular do leitor. Desdobrando esta aba, nas mãos do grande leitor,
aquele refinado por anos e anos de leitura inteligente, sensível e penetrante,
a obra se amplia revelando sentidos alheios à própria consciência e intenção do
autor. Em suma, o autor põe, o leitor dispõe e ao cabo do processo que enlaça
autor-obra-público a obra, o termo médio desta trindade, muitas vezes se
transfigura no trânsito do primeiro para o último fator constitutivo da
realidade ontológica da obra compreendida no sentido que lhe confere a
sociologia da arte.
Não resisto à tentação
de retomar a anedota relativa a meu amigo espírita e sua mãe porque seu
desfecho é de uma ironia dolorosa. Zelosa de proteger o filho da má influência
de um amigo ateu, às voltas com ideias de esquerda, ela tudo fez para nos
afastar, sem contar a hostilidade comprimida com que me acolhia nas poucas
vezes em que visitei sua casa ou precisei me relacionar com ela. Anos mais
tarde soube da desintegração moral da família, que deve ter sido torturante
para uma mulher já velha e inteiriçada na sua concepção intransigente do espiritismo.
O filho mais velho tornou-se gay e foi morar com outro homem, o que para ela
foi com certeza um golpe terrível; a filha adotiva engravidou envolvida numa
relação amorosa ilícita. Por fim, meu amigo foi demitido da justiça federal
devido a crimes de corrupção e morreu vítima de alcoolismo. Não tive qualquer
tipo de participação nessa história tão infeliz. Relato apenas o que me foi
transmitido por amigos comuns, gente ligada a esse círculo de relação do qual me
afastei poucos anos depois da minha primeira leitura de O Lobo da Estepe, quando decidi separar-me da minha família para
viver meu próprio bildungsroman, se é que posso forçar a tal ponto a história
que vivi comparando-a à história bem mais exemplar dos protagonistas dos
romances de formação.
Prisioneira das suas
convicções intolerantes e também cômodas, já que a isentavam de duvidar, de
interpelar eticamente sua vida, a mãe do meu amigo jamais conceberia a ideia de
que a literatura possa desempenhar na vida das pessoas uma função formadora, servir
como fonte inspiradora de uma ética humanista. Como acima observei, não tenho
dúvida de que os livros, aqueles que verdadeiramente me formaram e portanto são
os únicos que importam, foram meus agentes civilizadores, os modelos éticos incogitáveis
no mundo em que vivi. Nessa fase de minha vida, temi muitas vezes sucumbir à
adversidade: desintegração ética e econômica da minha família, os riscos e
temores paranóicos decorrentes da atmosfera dos “anos de chumbo” impostos pela
ditadura militar, doença grave e antes de tudo a pura e simples necessidade de
sobrevivência material. Via meu pai envelhecendo, completamente falido em
termos econômicos e morais, afundado na sua impotência, e via muito mais, a
começar pelo ambiente imediato da família, que me era doloroso suportar.
Nas horas de solidão e
desamparo, não me lembro de quantas vezes fui animado pelos livros. Quando
sobreveio minha doença cardíaca, decorrente de uma febre reumática que emitiu
sinais de alarme várias vezes ao longo da minha juventude sem que ninguém, sem
que nenhum médico desconfiasse da bomba sendo montada no meu organismo,
senti-me tão desamparado que tive um acesso de histeria no momento em que repus
os pés na casa da minha família. Chorei feito bezerro desmamado, um choro que
era sintoma aberrante de orgulho ferido, medo, desamparo. Jurara a mim próprio
nunca mais voltar, pois acima de tudo jurara a mim próprio fazer de mim um
homem capaz de suportar sozinho o peso da vida. Voltei por não ter onde cair
morto, como diz a voz popular. Estava desempregado, sem um vintém no bolso, removendo
meus cacos de um apartamento às bordas do Hospital das Clínicas na Cidade
Universidade sem ter para onde ir, quando comecei a afundar na doença que mudaria
minha vida durante os próximos quatro anos.
Fui literalmente salvo
por Rejane, minha namorada, e sua família, que com uma generosidade impagável
acolheram-me na sua casa no Bairro Novo, Olinda. Fui também salvo por Ednaldo Batista, professor de medicina da UPE
(Universidade de Pernambuco) e médico-chefe do plantão do Hospital da
Restauração. Quem me levou a ele foi Lilian, irmã mais velha de Rejane, então
cursando o último semestre de medicina e
estagiária do hospital. Como noutras vezes aconteceu, fui salvo pela bondade
dos estranhos. Quando vi o filme Uma rua
chamada pecado (A streetcar named
desire) baseado na peça de Tennessee Williams, e ouvi esta frase: the
kindness of strangers, dita pela protagonista Blanche de Bois (Vivien Leigh),
compreendi muito bem o que queria dizer. A frase está impregnada da minha
vivência, que mais tarde ganhou maior peso significativo quando li a biografia
do próprio autor, Tennessee Williams.
Em alguns momentos
dramáticos de minha vida, quando olhei à minha volta e desamparado me dei conta
de que tudo me faltava, o acaso providencial entregou-me às mãos salvadoras da
bondade dos estranhos. Esta forma de bondade é a que mais me desconcerta e me
leva a corrigir minha visão negativa do ser humano por ser por definição
desinteressada ou gratuita. O estranho não sabe quem sou, nada espera de mim,
nada me pede de volta. Sua bondade, por conseguinte, é totalmente isenta de
cálculo ou interesse. Ednaldo nunca quis nada de mim, nada que pudesse lhe dar
de volta como instrumento de troca ou comércio de relações. É um homem tão bom,
tão desprendido no exercício de sua humanidade desinteressada que, anos mais
tarde, quando eu era já professor da Universidade Federal de Pernambuco, e
portanto tinha condições de lhe pagar uma consulta, ele se recusava a receber
meu cheque (juro que era cheque com fundos). Misantropos leitores da
misantropia de Cioran, acreditem na experiência de um “misantropo teórico”:
existe, sim, a bondade humana, transparente e desinteressada como a crucifixão
histórica ou mítica (provavelmente esta, ainda que decorrente daquela) de Jesus
Cristo.
Se eu entendi bem, as ajudas expressivas que você recebeu na vida foram de estranhos. Um estranho do bem, poderia permanecer na sua vida como um mecenas eterno. Mas, você não menciona tal fato neste início de biografia. O que me possibilita questionar se os estranhos depois de te conhecerem bem se arrependem e param de exercer as suas bondades. Pela sua experiência não dá para receber benesses de quem te conhece a mais digamos de dois ou três meses, você sempre tem que estar pulando para se enturmar por quem desavisado está passando pelos corredores da vida. Com um papo: você tem cigarro, aí? Ou que horas são? Tá fazendo um calor de matar, né?
ResponderExcluirMeu caro Dirceu: A memória que você comenta, a minha, é intencionalmente sumária e seletiva. Por isso não entro nas considerações que você propõe. Minha intenção foi antes de tudo relatar momentos de extrema adversidade, quando fui amparado pelo que chamei de a bondade dos estranhos. É claro que também fui ajudado noutras circunstâncias menos graves por amigos. Você constitui um bom exemplo disso. ?Devo a você amizade e apoio e saiba que não me esqueço disso. Prezo muito a memória da gratidão, que foi o que procurei ressaltar nas memórias que você comenta. É claro que a gente espera solidariedade e ajuda de quem a gente conhece e ama. O que quis dizer é que isso frequentemente nos falta. Foi em tais circunstâncias que fui salvo pela bondade dos estranhos.
Excluireu achei bonito!
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