Consolação
niilista:
De tanto nada esperar
eu nunca desesperei.
Sendo incapaz de contar
nunca dos três eu passei.
E assim no nada meu nada
calmo mergulha e até nada
no tudo em que me afoguei.
Mas eis que
na noite, quando pacificado respiro dentro da minha infelicidade confortável,
assomam os rumores de uma voz proveniente da catástrofe: "O que sabe a mão
que escreve catástrofes da catástrofe real do mundo?" Foi apenas um breve
rumor, nota errante logo tragada por sons e ruídos circundantes. Que sei eu de
fato sobre a catástrofe?
Afora as formas correntes de
corrupção, o mais seguro investimento brasileiro é ingressar numa família de
bens. Dependendo da escolha feita,
pode-se automaticamente gozar do privilégio de ter casa na praia, no campo e na
cidade, emprego no Estado e médico privado com absoluta isenção de custos.
Perde-se, claro, a liberdade de ser solteiro, indivíduo dono de si próprio e do
seu destino controlável. Mas não encontrará essa liberdade, para tantos um fardo
intolerável, em si própria seu desejo de perder-se?
Cindida entre o superego protestante
e a carne aberta aos eróticos calores dos trópicos, refugiou-se na mentira como
se esta fosse uma âncora boiando em meio ao naufrágio da psique. Mentindo por
teimosia, mais tarde por convicção, acabou tomando por verdadeira toda a vida
de mentiras com que presumira enganar-me. Se entretanto os fatos com frequência
a desmentiam, pior para os fatos e meus ouvidos traídos. Por fim, nua na
própria mentira vestida, nada mais restou-lhe, salvo atribuir traições de fato
às maquinações projetivas do meu ciúme doentio. Como discernir, diluída neste
oceano de irrazão, a gota de minha razão caindo caindo caindo...
Assim canta a voz da solidão amorosa nas vozes de Billie Holiday, Ella
Fitzgerald e Sarah Vaughan: "In my solitude, you haunt me / with revêries
of days gone by... " Na companhia de Antonella, entretanto, corpos
latinos ludicamente movendo-se dentro do fog e da austeridade cravada sobre
cada pedra das ruas de Colchester, "Solitude", esta mesma de Duke
Ellington cantada em tons de dilaceramento pelas vozes negras citadas,
convertia-se em matéria de fantasia e charme. "Solitude" era entre
nós continuamente retraduzida, recontextualizada, reescrita ao sabor e humor
das nossas fantasias e circunstâncias. Como sonhar essa virtude latina
aclimatada às regulamentações ordinárias de uma cultura puritana? Alheia a
barreiras impostas por espaço e tempo, minha imaginação salta da noite tropical
nordestina para as ruas de Florença onde o corpo latino de Antonella dança os
sombrios compassos de "Solitude" em ritmo de tango ou carnaval
veneziano.
Quando no Hamlet uma personagem diz que
"something is rotten in the state of Denmark", a podridão é de
imediato denunciada pelo fantasma do rei assassinado pelo próprio irmão,
usurpador do trono e novo senhor da rainha, mãe de Hamlet. "Frailty, thy
name is woman". Mas este é já um outro tema. O meu, comprimido nas magras
linhas deste parágrafo, é a podridão gerada pela ambição humana inscrita no
cerne dos regimes de opressão e poder. Dado o avançado estado de degradação da
coisa pública no Brasil, quem teria ainda o cinismo ou a inocência de assinalar
a podridão do Estado brasileiro? O odor pestilento tanto corrói os ares e as
almas, tanto frequenta o noticiário do dia, onde reportagem política há muito
se confunde com livro de ocorrências policiais, que ghost já soa como se fosse
gosto. E como dizem que gosto não se discute, resta apenas indagar:
"What's your rotten taste?"
Se virgindade fosse virtude
eunuco seria santo
teu gozo meu casto espanto
a tua coca meu luto.
Se falta fosse virtude
pobreza casta nudez
se este sol que me ilude
iluminasse vocês
elegeria o Nordeste
céu, meu bordel português.
Meu país
ideal seria um entre-lugar acima das fronteiras culturais que opõem Brasil e
Inglaterra. Exemplos: Entre a baderna do primeiro e a rigidez codificada do
segundo, um erotismo plasticamente civilizado, um "eros, builder of
cities", como o cantou Auden no admirável poema "In Memory of Sigmund
Freud". Entre a aridez vitoriana da inglesa e o corpo carne em vitrine da
brasileira, uma medida ilustrada capaz de temperar nudez e ocultamento ativador
dos sentidos já um tanto indiferentes diante do excesso de exibição e oferta.
Entre o silêncio tumular das ruas britânicas e a barbárie reinante nas
brasileiras, um ideal de convívio harmoniosamente dosando instâncias pública e
privada. Como porém sei que meu país ideal não existe e nunca poderá existir,
luto para conservar os vulneráveis limites da minha casa à margem do Brasil
celebrado pela tradição antropológica proveniente de Gilberto Freyre e
prolongada em Roberto da Matta. Matta que não é mata nem mata, thanks God.
Nos anos 70 o arrogante triunfalismo
da ditadura militar deu livre curso a dois lemas: um restaurado do nosso filão
de mitos ("Brasil, país do futuro") e outro importado da matriz
americana ("Brasil: ame-o ou deixe-o"). O primeiro atolou nos
roteiros da transamazônica, estrada faraônica que partia do Piauí para nenhum
lugar, e outras equívocas vias e acabou roído na letra de calendários
celeremente envelhecidos. O segundo, nas origens brandido contra uma minoria
empolgada pelo sonho delirante de promover uma revolução socialista neste país
de capitalismo perversamente estatizado, tornou-se tão obsoleto quanto o país
do futuro. A derrocada é tal que até quem antes o amava e batia continência para
a tecnocracia militarizada agora anseia por deixá-lo. Se o fluxo de deserção
não é massivo, a causa não radica na sobrevivência do amor pela pátria
arruinada, mas no fato de que lá fora o sol declina em algumas latitudes
alvejadas pelo sonho do desertor potencial e muitas fronteiras estão fechadas.
Recife,
agosto de 1993.
Nenhum comentário:
Postar um comentário