Minha politização
coincidiu com o barateamento mercadológico das obras de esquerda, quando não
sua pura e simples supressão imposta pela ditadura. Devido a isso, pude
adquirir a preço de banana, como reza o lugar comum, obras de Lukács, Antonio
Gramsci, Antonio Banfi, Adolfo Sánchez Vásquez e vários autores comunistas
incluídos no índex da ditadura. A maior parte dos títulos era publicada pela
Civilização Brasileira, que resistiu heroicamente até ir à bancarrota. Foi
nesse momento que li boa parte das obras dadas a público pela editora, comandada pelo editor excepcional e
militantemente culto que foi Ênio Silveira. Demonstrando com incontáveis
evidências disponíveis ser um comunista de visão cultural ampla, além de
empresário consciente dos determinantes do mercado, ostentava um catálogo de
obras cuja variedade e riqueza contribuiu de forma decisiva para adensar as
forças civilizadoras na contracorrente da ditadura imposta pelos militares. Se
de um lado escrevia ele próprio As cartas ao presidente (cito de memória
e infelizmente não tenho como cotejá-la com as fontes devidas, já que há muito
me desfiz da minha coleção da Revista
Civilização Brasileira), inspirado no modelo homônimo assinado por Norman
Mailer endereçado ao presidente Lyndon Johnson, de outro, assessorado por
intelectuais como Paulo Francis, contribuiu para divulgar no Brasil a moderna
literatura norte-americana (Hemingway, Scott Fitzgerald, James Baldwin e
outros), além da crítica e da teoria do teatro. Foi nesse momento que li os
escritos críticos e teóricos de autores como Bertolt Brecht, Eric Bentley,
Stanislavsky e Francis Fergusson.
A literatura
brasileira, sobretudo aquela proveniente dos autores de esquerda (afirmar isso
com relação a esse momento soa quase como um truísmo), mereceu grande acolhida
da editora. À deriva da memória, digitando o que de imediato me ocorre, citaria
a obra de Carlos Heitor Cony, cujo imenso prestígio foi largamente favorecido
por sua valente oposição à ditadura condensada no volume de crônicas políticas O ato e o fato, Antonio Callado, Otto
Maria Carpeaux, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro, Dalton Trevisan, Hermilo
Borba Filho, Moacir Lopes e outros deliberadamente aqui omitidos, pois temo embaralhar a relação observável entre
autores e editoras. É evidente que, em meio a tanta efervescência ideológica,
não faltavam os autores menores cuja obra acabava favorecida por sua posição
política. Foi o caso, por exemplo, de Moacyr Félix, parceiro militante de Ênio
Silveira e editor da Revista Civilização
Brasileira, e Thiago de Melo, de cuja poesia militante fazia troça com meus
amigos mais lúcidos e ideologicamente isentos quando vivi um verão inesquecível
em Porto de Galinhas, então um paraíso ecológico completamente isolado da
atmosfera urbana que habitávamos.
Outra editora de
catálogo extraordinário, também merecedora de registro sumário, era a Zahar Editores.
Foi por certo a mais decisiva na composição de um catálogo imprescindível para
o público universitário. O melhor da bibliografia de ciências humanas produzido
nas universidades europeias e
norte-americanas de referência tornou-se acessível ao leitor brasileiro graças
a esta editora. Poderia citar, ainda e sempre à deriva da memória falível, uma
infinidade de títulos. Dentre tantos, escolho um autor: Erich Fromm. Antes,
porém, menciono teóricos de larga repercussão à época, no geral lidos através
de comentadores. Importaria aqui mencionar os teóricos da escola de Frankfurt,
especialmente Herbert Marcuse, moda de inspiração revolucionária cuja recepção
constitui um dos capítulos mais fascinantes e contraditórios na história das
idéias recente. Marcuse (e secundariamente Adorno, Horkheimer e Benjamin)
ingressa nos círculos radicais brasileiros como o teórico da “grande recusa”,
também como o articulador de uma das sínteses mais radicais de Marx e Freud
(aqui a referência crucial é Eros e
civilização), é em seguida apropriado pelo irracionalismo radical propagado
por Luiz Carlos Maciel (guru da “nova esquerda” veiculada na sua coluna Underground, do revolucionário periódico
O Pasquim) e mais recentemente foi
reposto, com toda a escola, nos trilhos do racionalismo radical representado
por Sérgio Paulo Rouanet. José Guilherme Merquior, que afinal está sendo
reeditado e portanto reavaliado depois de repelido ou ignorado durante décadas
nos círculos acadêmicos mais intolerantes da esquerda, dedicou um livro
pioneiro à escola intitulado Arte e
sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Li este livro à época, mas
confesso que pouco o assimilei, apesar da prosa clara e precisa do autor. Anos
mais tarde, já como estudante de pós-graduação em sociologia, onde ingressei
em 1978, li afinal o livro que considero
o melhor da bibliografia sobre a escola de Frankfurt: A imaginação dialética, de Martin Jay.
Cuido agora de Erich
Fromm. Concedo-lhe atenção especial, antes de tudo, por ter sido uma das grandes
influências que recebi quando ainda soletrava obras e teorias visando orientar-me
dentro da vasta e perturbadora bibliografia das ciências humanas. Muitos dos
teóricos da moda, então como agora, me parecem impenetráveis. O próprio
Marcuse, depois de tecer louvores à obra de Adorno, admite o quanto este exige
de leitura árdua e tem por fim a honestidade de declarar não entender muito do
que ele escreve (conferir a entrevista que concedeu a Bryan Magee no volume Men of Ideas). Castigava-me lutando
para penetrar os sentidos obscuros impressos sobre tantas páginas, não raro por
dever acadêmico, sobretudo quando, no fim da década de 1970, desloquei-me da
literatura para a sociologia, depois de penosamente obter um diploma de
graduação em letras que em nada concorreu para refinar minha relação
autodidática com aquela.
Embora também
originário da escola de Frankfurt, Erich Fromm é de uma transparência luminosa
quando cotejado com seus pares cujo reconhecimento e prestígio acadêmico paira
muito acima da sua obra. Bastaria lembrar que no gênero tornou-se praticamente
um best-seller, se temos em mente as edições correntes de obras de ciências
humanas. Erich Fromm e Bertrand Russell foram provavelmente os primeiros a
chamar minha atenção para a psicologia como instrumento analítico fundamental
para uma compreensão mais adequada da política. A análise psicológica que o
primeiro faz dos regimes totalitários, de resto responsáveis por sua fuga para
os Estados Unidos, mudou completamente a noção primária que eu tinha da
política e das supostas motivações que para ela me atraíram.
A argumentação de fundo
psicossocial que desenvolve para explicar o que designa por caráter
autoritário, contrapondo-lhe uma perspectiva humanista inspirada nas idéias de
Marx e Freud, foi de grande valia para mim. A
política, que é antes de tudo ação, quedava paralisada na consciência
inquieta e atormentada, já que a ditadura bloqueou os meios objetivos da ação. Além
disso, em meio às minhas perplexidades e dramas insolúveis, determinados antes
por minhas condições de origem de família e meio social, do que por enganosos
determinantes de base estritamente política, somaram-se à minha experiência
viva com o proletariado, antes com o trabalhador da zona açucareira, para
reorientar meus vínculos com a política. Acima de tudo, induziram-me a
considerar de um ponto de vista renovado e mais consciente o comportamento dos
meus amigos de esquerda, em particular suas atitudes dogmáticas e intolerantes,
o travo de ressentimento social inconsciente que passei a identificar no ódio
com que atacavam pessoas cuja humanidade concreta desprezavam reduzindo-as ou
enquadrando-as em abstrações como “pequeno-burguês”, “alienado”, “reacionário”,
“liberal”, “luta de classes”, “necessidade histórica”, “sujeito da história”...
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