segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Sabedoria de Montaigne III


Pena que a mera leitura não seja transmissora de sabedoria, como de resto observei já na entrada deste ensaio improvisado num fim de semana que me privou voluntariamente de gente para me propiciar mais uma vez horas de serena acomodação do meu eu insolúvel com minha natureza desencontrada dos mais altos ideais a que aspiro. Mas sei que escolher a companhia de Montaigne e costurar palavras confusas num ensaio inspirado pela sua leitura é marchar na contracorrente do tempo, colidir com a realidade que cegamente flui para além da paisagem da minha janela. Há um abismo tão grande entre este ensaio e o que ele demanda da minha vida para o compor que encerro me interrogando inquieto sobre o lugar que Montaigne e sua sabedoria podem ainda ocupar nesse insensato mundo em que vivemos.
Homem da biblioteca e da estrada, insulado na sua torre e ator político num tempo de turbulências inusitadas, cultor da sabedoria dos antigos e prefeito mediando com sua sabedoria cética e prática facções contaminadas pelo fanatismo religioso, Montaigne foi e se sabia um tecido esgarçado de contradições. Por isso o gênero que criou, o ensaio, parece amoldar-se na sua forma como uma luva à mão cuja natureza é mover-se e contradizer-se a cada movimento da vida. Já assinalei a sabedoria com que foi capaz de converter a dúvida em virtude tolerante e sempre receptiva à fluidez da vida que a tantos transtorna. Por isso o comum da nossa humanidade, já antes também ressaltei, se refugia em certezas isentas de exame e não raro de fundamento aferível na ordem da verdade assimilável pela experiência refletida.
Montaigne viajou como um homem de espírito livre. Num tempo em que ninguém sonhava com a antropologia, comportou-se com curiosidade insaciável e tolerante em meio a uma realidade regida por valores opostos aos seus. Mesmo em tempos banais, quero dizer, isentos de conflitos e guerras provocadas pela intolerância religiosa e política, viajamos no geral com olhos cegos, olhos impermeáveis à desconcertante diversidade e até franca oposição entre culturas e modos humanos de ser. A diversidade humana é tão inesgotável, como bem sabia ele, que demanda uma renúncia consciente e esclarecida ao etnocentrismo, se acaso queremos efetivamente nos compreender melhor, fundar num mundo globalizado modos renovados e mais universalistas de convívio entre culturas tão divergentes.
Saltando francamente do tempo em que Montaigne viveu para o presente, acredito que ele poderia servir de fonte inspiradora para uma humanidade que hoje introduz na nossa experiência condições históricas sem precedente. A revolução digital, a globalização irreversível do capitalismo, a redução drástica das fronteiras nacionais e culturais, tudo isso criou condições absolutamente originais de relação entre nações e povos, entre culturas e formas políticas de reordenamento do mundo. Nunca como no presente o mundo se tornou tão pequeno e palpável no sentido em que agora todas as nações e povos afetam uns aos outros graças à revolução sem precedente desencadeada pela tecnologia e à globalização do capitalismo cuja soberania, queiramos ou não, é inquestionável.
Diante da realidade acima esquematicamente esboçada, me pergunto que respostas culturais e mentais temos dado a esse mundo novo? No meu entender, continuamos tão prisioneiros da nossa natureza pequena, aquém das conquistas espantosas que a inteligência humana produziu no plano da invenção científica e material, que me sinto incapaz de antever o futuro com olhar otimista. Se de um lado o mundo encolheu a realidade, no sentido acima sugerido, de outro seguimos confinados nos limites da nossa percepção etnocêntrica da realidade.
O turista é um tipo que ilustra muito bem o que intento sugerir nestas linhas. Hoje milhões de pessoas cruzam fronteiras nacionais e mergulham como cegos de muleta em países e culturas cuja diversidade poderia induzir-nos a refletir melhor sobre a natureza das relações que estabelecemos dentro de uma espécie que, não obstante sua estonteante pluralidade, habita o mesmo planeta e compartilha um substrato humano comum. No entanto, a evidência disponível, apreendida nos relatos mais comezinhos dos turistas que cruzam fronteiras a toda hora, parece indicar que nada aprendemos. À diferença de Montaigne, cuja sabedoria partia de sua singularidade subjetiva para compreender e conviver com a humanidade compreendida na sua dimensão universal, vivemos como prisioneiros da caverna regida pela nossa nação, nossa cidade, nosso bairro e, no limite, nossa subjetividade tacanha, enclausurada no nosso egoísmo ferrenho, na nossa incapacidade de abrirmos as fronteiras do nosso ego narcísico para modos mais tolerantes e altruístas de convívio. Esse cerne psíquico aqui sugerido, que é antes de tudo biológico, está na raiz da nossa infelicidade, na nossa incapacidade de convívio mais harmonioso que nos aprisiona na nossa solidão ou desloca nossa carência de convívio e amor para espécies como as do gato e do cachorro. Estas nos propiciam pelo menos um tipo de segurança e certeza: amam privadas de liberdade.
Nossa espécie não é geneticamente determinada. Isso me parece distingui-la ou afirmar sua singularidade no reino da natureza que Montaigne teve a sabedoria de identificar como o fundamento último da nossa condição. A liberdade da espécie que nos diferencia e separa do reino da natureza é a mesma que ameaça a nossa sobrevivência enquanto espécie. O que faremos dessa liberdade? Que mundo imprevisível brotará dessa interrogação angustiante e sem resposta? É claro que a obra de Montaigne não tem resposta para a pergunta nem nunca se propôs respondê-la. Não obstante, ela continua piscando na escuridão da nossa natureza insolúvel vias céticas que iluminam nosso caminho cujo fim se desdobra em direção a uma única certeza: a da nossa morte. Seu ceticismo, a dúvida com que interroga a realidade com disposição acolhedora, já que o sábio é aquele que diz sim ao real, libertou-o de todas as certezas que nos fecham as fronteiras do mundo e nos transformam em dogmáticos possuídos pela intolerância e o medo destrutivos.
Um dia, num castelo remoto, um homem de 37 ou 38 anos recolheu-se à solidão da sua torre depois de perdas dolorosas: a do seu pai, que tanto amava e lhe concedeu uma educação excepcionalmente refinada, a de um irmão e sobretudo a do seu amigo Étienne de La Boétie. Este suportou uma morte lenta e dolorosa assistido até o fim pelo amigo que mais tarde lhe dedicou um ensaio comovente: Da amizade. Na biblioteca da sua torre, cercado pelos livros de filosofia e história dos antigos sábios gregos e romanos, Montaigne um dia começou a escrever os seus ensaios. De início não passavam de peças curtas vazadas em estilo convencional e versando temas que se acumulavam e com freqüência traíam nos títulos enganadores as expectativas do leitor. A composição dos ensaios, compreendida a totalidade da qual resultou a obra definitiva, estendeu-se por certa de 20 anos. O homem que os compôs voltou ao mundo, do qual nunca verdadeiramente se isolou, mais livre para viver e ensinar a viver, embora nunca se propusesse isso como diretriz. Se de início acreditava que filosofar é aprender a morrer, título que conferiu a um dos ensaios, a experiência refletida findou por persuadi-lo de que é vivendo que se aprende a morrer, se é que de fato aprendemos. Tudo indica que aprendeu. Quanto à obra que legou à posteridade, ela prossegue iluminando a busca tateante de leitores que, como eu, reconhecem nas suas páginas a voz singular de um amigo inspirador. Seu nome, repito, é Montaigne.
E por aí, falam as más línguas, vai Montaigne trotando estrada a fora. Passam os séculos, nós com eles, e todavia ele nos comunica ainda e sempre o sopro de uma voz cuja humanidade poucos alcançam articular. Ele pega a estrada em tempos de turbulência arriscando perder o que não perdem os que ficam sensatamente em casa, mas recolhendo no trânsito da viagem bens e prazeres somente concebíveis em quem corre os riscos de viver. Se na estrada os salteadores o tomam de assalto, ameaçando sua própria vida, ele é capaz de desarmá-los não com as armas mortíferas dos assaltantes e outros inimigos da vida, mas com a energia serena do seu caráter impressivo, o caráter daqueles cuja natureza superior se revela na fisionomia e nos atos banais da vida. Assim desarma os que contra ele se armam sem disparar um tiro; assim por vezes nos persuade da força desarmada dos sábios e justos.
Como não sou Montaigne, viajo na sua companhia puxado pela sedução dos seus ensaios que me empurram pelas estradas sem que eu precise mover um pé. Viajo ao trote seguro do seu livro como noutros tempos e circunstâncias viajei gargalhando com Dom Quixote e Sancho através dos caminhos delirantes que aquele me descortinava afrouxando a andadura à sombra de pousadas de beira de estrada, sonhando moinhos de vento que nunca vi nesse mundão de Brasil que já percorri de carro com meu sempre presente amigo Daniel Lima, um Quixote de província tão real quanto eu. Esses amigos, imaginários e reais, deixaram na estrada vivida, assim como na memória com que hoje os atualizo, uma inefável sensação de vida belamente fruída. Essa sensação é da ordem da gratuidade das coisas humanas que somente os seres dotados de generoso acolhimento da vida conhecem. Esses raros que acabo de rememorar existem na vida imaginária da literatura e também na realidade sensível. É por vivê-los que, para além do meu ceticismo por vezes desolado, posso dizer que vale a pena. Viver. Nós que tanto medimos o tempo vivido, até o que nem sabemos ainda se o viveremos; nós que trocamos o tempo por dinheiro, o gosto de viver pelo abuso perdulário dos que simplesmente se gastam e gastam a vida, nós pouco sabemos dessa gente e temos o coração aleijado demais pelas práticas perversas da utilidade, do cálculo, do interesse frio que rege o movimento de nossas vidas.
Montaigne é um mundo sem preço. Ele nos atrai para os caminhos através dos quais viaja e quando nos damos conta do tempo a cidade é já outra, outro o mundo viajado. Ele nos engana matreiro sugerindo nos títulos dos ensaios que lemos trilhas equívocas, roteiros que nos confundem. Mas o encanto da viagem é tanto, tão singular o fio de sabedoria que nos puxa pelas curvas do caminho que nos deixamos docilmente levar através das digressões infinitas que ele vai abrindo à direita e à esquerda. Ele nos promete falar dos coxos, das fisionomias, de uma ilha remota, promete mundos e fundos, mas ao cabo o que nos comunica é algo muito além de tudo que acaso tenhamos previsto ou desejado: ele nos comunica a experiência de um homem que nos descreve a sabedoria cuja substância podemos extrair da nossa humana e pequena condição. Ele nos lembra simplesmente isto:
“Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer. Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo” (Obra citada, Vol. II, Da Experiência, p. 397).
Trocando o citado em miúdos, tudo que precisamos é dizer sim ao real, outro sim humilde à nossa condição, cuja natureza falível está expressa no traseiro sobre o qual sempre nos sentamos, sejamos reis ou plebeus, poderosos ou humildes lavradores como os que lavravam as terras do nobre Montaigne. No mais, o que nos resta é viver e isso é muito, ou tudo que podemos. Viver simplesmente. Mas quem sabe fazê-lo com a sabedoria deste que dissolve toda a poeira transcendental da experiência humana ao nos lembrar de que isso é muito, senão tudo?

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