terça-feira, 27 de maio de 2014
Questão de polícia?
A violência crescente no Brasil me fez recordar uma frase famosa atribuída a um presidente da República Velha: A questão social é uma questão de polícia. Vai sem aspas porque cito de memória. O autor da frase, Washington Luís, expressa assim, de forma chocantemente reveladora, a mentalidade profunda da nossa classe dirigente. Ela pensava assim nos idos da década de 1920 e continua pensando tal e qual: questão social no Brasil é questão de polícia. Quando o povo tratado como gado se organiza para reivindicar o direito de ingressar no espaço da cidadania efetiva, não esta de clipe publicitário e propaganda oficial que vemos todos os dias paga pelo dinheiro do contribuinte, a classe dirigente, fiel à sua tradição, solta a polícia nas ruas, favelas, onde houver povo lutando para ser politicamente reconhecido como povo.
Quanto maior a pressão na panela, maior a força de repressão policial. Noutros termos, o governo de hoje continua fiel ao espírito da frase de Washington Luís. O mais inquietante é que a pressão na panela é crescente. Depois de séculos usando o mesmo remédio para sufocar problemas que logicamente tendem a agravar-se, o risco de a pressão estourar a panela não é nada improvável. Não me refiro a nenhuma revolução social, alerto os extremistas à esquerda e à direita. Refiro-me a uma explosão de violência cujos sinais são cada vez mais manifestos. O noticiário banal, cada vez mais um caso de polícia, assim como o cotidiano violento dos formigueiros urbanos onde se concentram cerca de 80% da população brasileira, são indícios inegáveis de um país às bordas de uma guerra civil. Somos incapazes de perceber a gravidade dessas evidências por uma razão muito simples: nossa violência está entranhada na nossa formação e história. Seres humanos tendem a ser espontaneamente etnocêntricos, isto é, tendem a aceitar como padrão de normalidade a realidade que vivem. Se vivemos num clima de violência rotineira, como é fato, passamos a viver a violência, também a exercê-la, inconscientes dessa realidade, ou simplesmente vivendo-a e tolerando-a como padrão de normalidade.
Até Paulo Coelho, guru supremo da literatura de auto-ajuda globalizada, vaticinou há poucos dias, em entrevista difundida na internet, a violência que muitos temem sacudir a Copa do Mundo. Embora convidado oficial da Fifa, o escritor, que há muitos anos vive fora do Brasil, como tantos que podem dar-se a esse luxo, recusou o convite. Vem ao Brasil apenas quando necessário. Como o futebol da Copa do Mundo não lhe parece necessário, e nisso afinal concordo com ele, melhor guardar distância dessa festa planetária que, a julgar pela previsão do guru, vai ter mais violência do que futebol.
Já que entramos neste assunto, futebol, por que a violência se agrava nos estádios, chegando, como é agora o caso, a extremos de barbárie aberrante? Quem sou eu para explicar essas coisas, muito menos propor solução para elas. Se as autoridades e especialistas parecem impotentes para conter a maré montante, que dizer de mim? Digo apenas que o fenômeno me transporta de volta à frase de Washington Luís. Embora o problema seja de extrema gravidade, e crescentemente se agrave, a classe dirigente, fiel ao jeitinho brasileiro, continua empurrando o problema e a solução com a barriga. Dá-se um jeitinho aqui, outro acolá, e tudo continua como está. Quero dizer, piora. Agora essa evidência indesejável salta aos olhos. As medidas tomadas pelo governo são foguetório para inglês ver, como se dizia em remotos tempos coloniais.
Compreender o funcionamento social e cultural do Brasil é uma coisa tão complicada que até nos casos em que a questão é nitidamente de polícia o governo se comporta como se a questão fosse de campanha educativa, medidas paliativas, declaração pública de boas intenções (quase me escapa o desfecho das intenções com o lugar comum previsível) e exortação midiática contra a violência seguida de louvores à paz. Em suma, tudo continua como vinha. Quero dizer, continua pior. Muitos dos casos de violência corrente são típicos de uma cultura regida pelo excesso, que na sua aba negativa descamba para a anarquia social. Isso está entranhado na nossa história. Não vem de hoje, portanto, nem de circunstâncias excepcionais. Sérgio Buarque de Holanda põe o dedo agudo nessa ferida quando salienta nossa mentalidade de barão. Como nunca fomos capazes de constituir uma ordem verdadeiramente democrática, quem pode tende a se comportar como barão. Como há barão em demasia, por vezes a desordem se converte em anarquia social. É aí que a maioria, sem excluir muitos democratas e liberais empedernidos, convoca o primeiro tirano à mão, ou as forças armadas. Esse é outro filme que já vimos muitas vezes.
Apesar de todo o foguetório de quase 20 anos sob o governo daqueles que supostamente constituiriam a alternativa legal para a classe dirigente que governa questão social confundindo-a com questão policial, o Brasil melhorou topicamente, evidência irrecusável, mas nada fez para sequer encaminhar as soluções estruturais mais urgentes. Depois de tanto repor o atraso como condição do desenvolvimento restrito a objetivos economicistas, apenas variando em grau a modernização conservadora imposta a porrada pela ditadura militar, chegamos ao impasse presente: a desigualdade iníqua, expressão que já virou lugar comum, atrelada a todos os problemas crônicos que vemos e sofremos nas ruas e no noticiário do dia: formigueiros humanos empilhados em metrópoles e cidades que semelham acampamentos urbanos, imobilidade urbana crescente, violência idem. O resto do filme todo mundo está cansado de ver: educação, saúde, segurança, transporte etc. aos bandalhos.
Quem ainda lembra a imprevisível e desastrosa ascensão de Fernando Collor, um jovem bonito das Alagoas cuja história política era praticamente nula quando saltou do anonimato para a presidência da República? Quem ainda lembra os mecanismos da publicidade astuciosa com que foi de um extremo ao outro? Fernando Collor vendeu com sucesso a imagem do caçador de marajás (expressão anacrônica cujo sentido continua atualíssimo) revolvendo assim a impotência e a revolta recalcada de um povo tratado como gado em hospitais públicos, repartições públicas etc. 26 anos mais tarde, continuo vendo o mesmo filme na televisão e na mídia em geral. É o filme que mais conheço sobre o Brasil, pois comecei a vê-lo na minha infância. Por essas e outras, o Brasil me transmite ainda a sensação depressiva de uma descrença paralisante.
Parece que o povo – ou a ralé do andar de baixo, como reza a expressão pejorativa repisada por profissionais da mídia – está cansado de ser gado. Ou simplesmente já não suporta o stress (como dizemos nós, os privilegiados, e o próprio brasileiro do andar de baixo já repete) que é viver e trabalhar no ‘Brasil de todos”, diz o mote insultuoso do partido que veio de baixo para se tornar igualzinho aos que sempre estiveram em cima. Pipocando de stress, o povo se rebela desordenadamente e agora parte para o quebra-quebra: queima ônibus e vagões de trem, fecha ruas e rodovias queimando pneus e imobilizando contingentes de veículos e pessoas ao longo de quilômetros nas vias ferventes de tensão e conflito. Raramente cenas dessa natureza são provocadas por grupos politicamente organizados. Portanto, não se trata de mobilização política do povo. O fenômeno sugere antes o desatino de um povo no limite da exaustão decorrente de formas endêmicas de opressão social. O que fará a classe dirigente diante de pressões tão inquietantes e incontroláveis? Continuará seguindo a regra crua da frase procedente de Washington Luís?
Há muito tempo, entre 1896-97, milhares de sertanejos nordestinos escaldados pela miséria tentaram fundar uma cidade comunitária regida pelo messianismo de Antônio Conselheiro num fim de mundo do mapa da Bahia. A Guerra de Canudos, desencadeada pelo exército brasileiro contra os canudenses, foi sem exagero um acontecimento épico na história do Brasil. O desfecho ilustrou de forma brutal a frase que Washington Luís cunhou algumas décadas mais tarde. Os canudenses foram literalmente varridos do sertão depois de exterminados até o último combatente. Seus herdeiros, no mato sem cachorro, ou Fabianos sem Baleia, para evocar a obra de Graciliano Ramos, migraram para a cidade. Muitos, absorvidos pelos mecanismos produtivos do nosso capitalismo selvagem, construíram tudo isso que vemos e desfrutamos à nossa volta. Constroem durante o dia e à noite tentam repor a força de trabalho transportados de volta à periferia como gado em ônibus, trem e metrô. Outros, os mais desvalidos, moram provisoriamente nas obras que erguem tijolo sobre tijolo. Mas uma grande fração desse povo é inassimilável ao sistema produtivo. Por isso engrossa a corrente do que Marx chamava de lumpen proletariado. Hoje de manhã vi um deles (militante do Movimento dos sem Teto) ocupando um prédio no centro de São Paulo. Sua procedência, seu lugar social era inconfundível: o tradicional chapéu de couro do sertanejo nordestino banido da utopia sonhada por Antônio Conselheiro. A imagem na televisão piscava para quem sabe das origens. Parecia advertir: Canudos está em São Paulo e quer o que o beato Conselheiro e Padim Ciço prometeram aos desvalidos deste país. Qual será a resposta dos herdeiros de Washington Luís? Aguardem o próximo capítulo. O guru Paulo Coelho prefere sensatamente espiar à distância guarnecido pela civilização europeia. Mas nós estamos aqui, espremidos entre a questão social e a policial. Não haverá uma saída?
Recife, 07 de maio de 2014.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário