terça-feira, 20 de maio de 2014

Nos Murais da Internet II


Brasil Insolúvel
Depois de tanto arriscar a própria vida em busca de uma solução para o Brasil, até para a humanidade, pois todo utópico é no fundo um delirante, Ferreira Gullar curvou-se à força dos fatos: a vida não tem solução. O verso é da letra que escreveu para um belo samba de Paulinho da Viola. O problema do Brasil, no entanto, é que ele é insolúvel além de qualquer medida razoável. Problemas básicos que outros países solucionaram, no Brasil persistem, quando não se agravam. Ao invés de lutar por soluções viáveis, algumas bem simples, preferimos nos refugiar na festa, na piada, em mitos consoladores como Brasil, país do futuro. O futuro está sempre além, aquém ou em nenhum lugar. Por isso nunca o alcançamos. Além do mais, o melhor dele é fruto de projetos do presente, que é o único tempo real. Mas nos resignamos a ser um país pequeno, cuja grandeza está apenas no carnaval e no futebol. Também nos consolamos com a esperança, sintoma de desamparo no presente. Só quem está muito mal é que vive de nutrir esperança. A esperança, como o futuro, está sempre além do nosso poder e vontade. Quando faremos do presente um presente que confirme nossa grandeza imaginária? (11 de março 2014)

Mobilidade carnavalesca
Tentei chegar à prévia do Piano, troça carnavalesca na qual cantei muitas vezes e vivi carnavais memoráveis. No Pina o trânsito deu um nó tão apertado que acabei perdendo a paciência e descendo do ônibus (opcional, friso). Precisei andar cerca de 7 km para afinal encontrar um táxi (na praça de Boa Viagem) e voltar para casa frustrado e cansado. Liguei a TV e então vi o povo nas ruas alegre e feliz. Fico imaginando o que sofreu para chegar aos pólos da folia e penso o que muitas vezes já pensei ao ver a resignação e tolerância com que nosso povo suporta tantas opressões cotidianas que logo se dissolvem em riso, batuque e festa. O que penso é isto: como o povo brasileiro se contenta com tão pouco! De onde vem tanta alegria e prazer de viver mesclados a um estado cotidiano de coisas tão opressivas e revoltantes? Confesso que não entendo nem louvo esse modo de ser brasileiro. Talvez ele explique o fato de sermos um país tão pequeno, tão pequeno que se consola com sua grandeza geográfica. Esse povo, transportado nas nossas cidades como gado, humilhado de todas as formas, se desmancha em festa delirante e inconsciente ao ouvir o bater de um tambor. Merecemos ser o que somos. (27 de fevereiro 2014)

Beijo gay na TV Globo:
Acabo de ler uma postagem de Renato Janine Ribeiro sobre o beijo gay que fecha com final feliz (ou infeliz?) uma telenovela da Globo. O impressionante é o fato de a emissora divulgar uma nota para a mídia justificando a cena. O Brasil definitivamente foge à minha estreiteza mental. Como é que, a essa altura da história, o país que se vangloria de sua sensualidade, de suas virtudes integradoras, capaz de juntar na mesma mesa e cama todas as raças, classes e ideologias, pelo menos de acordo com os mitos correntes, precisa apresentar uma justificativa moral e estética para uma cena de beijo entre dois gays? Países de tradição puritana, como a Inglaterra e os EUA, já banalizaram esse tema e a liberdade a ele associada, que é matéria de direitos humanos sancionada em lei. Lei lá não é como aqui, que discutimos ao infinito se pega ou não pega. Tenho que concluir repisando um inevitável lugar comum: o Brasil não existe. Ou é uma ficção inventada pela Globo. Tudo isso por causa de um beijo entre dois gays? (3 de fevereiro 2014)

Tesouros de João Pessoa
Para Fatima, Paulo, Juliana, Rosa, António, Eduardo, Taciana, Salete, Nino, Marcelle, Junior e João Batista:

Amigo é coisa tão rara
Em meio a tanto comércio
Que há quem confunda a cara
Com a coroa do preço.

Em João Pessoa me deram
O que mais quero e careço
Sendo o que são, o que eram
Eu tão-somente agradeço

O tudo que não tem paga
O tudo que em trigo teço
O que a maré apaga
E entanto sempre amanheço

Como a aurora na linha
Entre o arco-íris e o mar.
Tudo converge e se aninha
No que já foi e será.
(João Pessoa, 14 de janeiro de 2014).

A destruição da nossa memória social:
No fim dos anos 1970 fui morar em São Paulo. Lembro-me ainda do impacto que sofri diluído dentro daquela floresta de concreto. Lembro-me ainda de sentir a alienação dolorosa de quem vive numa cidade que demoliu os suportes materiais da memória social de quem a habita: prédios, praças, jardins, cinemas e todo o complexo arquitetônico cujo sentido humano consiste no fato de simbolizar a memória que vivemos no espaço da cidade. Meu estranhamento foi tão doloroso que senti a urgência de conhecer a história de São Paulo com seu passado submerso na paisagem de concreto e ruas de trânsito congelado. Foi quando descobri e li comovido o livro de Ecléa Bosi: Memória e Sociedade - lembranças de velhos. É uma das mais belas expressões do que significa memória social.
Acreditem que hoje sinto, morando no Recife, sensação de estranhamento semelhante: não mais me reconheço na cidade da minha infância, adolescência, juventude... O caso é bem mais grave. Em São Paulo eu era já o estranho que chegava; aqui estou me tornando estranho porque o poder da política corrupta e do capital desalmado estão demolindo a cidade onde vivi a maior parte da minha vida. Algo de mim, algo de cada recifense portador de memória ruiu com as paredes e a história sem texto do Edifício Caiçara. (28 de setembro 2013)

Medicina no Brasil:
Tenho evitado me meter nesta controvérsia relativa à importação de médicos estrangeiros, em particular os cubanos. Minha justificativa é muito simples: contrariamente a tantos que opinam à vontade sobre tudo, sobretudo acerca do que nada entendem, procuro opinar apenas quando tenho razões fundamentadas para fazê-lo. Este caso, porém, chegou a extremos intoleráveis. Refiro-me, em particular, às vaias dos médicos de Fortaleza, que constituem insulto inqualificável. Sem entrar nos detalhes da controvérsia, lembro pelo menos um argumento definitivo para que eu aprove a importação de qualquer médico qualificado e portador dos meios culturais e linguísticos necessários ao exercício de sua profissão no Brasil: eles vão para onde ninguém quer ir. Essa campanha implacável movida pelas instituições médicas, aparentemente em defesa da saúde dos pacientes, serve antes de tudo para encobrir e justificar a mentalidade corporativa dominante neste país cruel. O que defendem de forma inconfessável é antes de tudo interesses mercantis. Além disso, os médicos estrangeiros estão indo trabalhar aonde ninguém quer ir, repito. Acredito que levarão algum socorro a uma grande parcela dos brasileiros desamparados e expostos ao puro e simples abandono.
Quanto aos nossos médicos de todas as faixas, excluo as exceções de praxe, todos os dias abusam dos nossos direitos. Refiro-me precisamente a pacientes do meu tipo, relativamente privilegiados. Ainda não temos, pelo menos no Recife, sequer o direito elementar de ser atendidos mediante hora marcada. Ontem mesmo fui a um hospital de referência, o Memorial São José, e esperei 2 horas para ser atendido por um cirurgião que me despachou depois de 5 minutos. E esperei numa sala cheia, televisão ligada, como a teletela de 1984 (George Orwell), sentado numa cadeira apertada e desconfortável. Quando mudaremos o Brasil Profundo, o que harmoniza tecnologia de ponta e outros luxos do capitalismo globalizado com a mentalidade escravocrata que envenena ainda hoje nossas relações sociais? (27 de agosto 2013)

Médicos cubanos
Depois de ver reportagens do Jornal Nacional (ontem e anteontem) sobre a contratação de médicos cubanos, retifico o apoio, embora condicional, que emprestei a essa medida do governo. Além disso, peço desculpas a meu amigo José Carlos Cordeiro Freire, um dos mais intransigentes críticos do governo, por ter discordado dele. Lembrando um samba de Paulo Vanzoloni, curvo-me à força dos fatos. Aliás, acho que este princípio deveria reger todo tipo de discussão que travamos no Facebook. Se os fatos prevalecessem sobre o discurso ideológico, sempre deformado por nossas paixões e interesses não raro inconscientes, seríamos melhor formados pelo debate público no qual nos empenhamos. Mas quem está interessado nisso e em tudo mais, salvo o carnaval? O Brasil realizou o milagre de reduzir pão e circo a circo.
(1 de março 2014)


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