sábado, 1 de novembro de 2014
Joyce e a Torre de Babel
Embora publicada em 1914, Dublinenses, obra composta de quinze narrativas curtas, foi escrita cerca de 10 anos antes. O intervalo de tempo aí assinalado sugere os obstáculos que sempre separaram James Joyce, ícone supremo do alto modernismo europeu, e o público. No caso, o problema maior foi com o editor e outros mediadores entre o autor e o público. A obra conteria, para os valores da época, passagens pornográficas e alusões ofensivas a dublinenses identificáveis nos personagens que foram de fato concebidos a partir de fontes biográficas do autor. Aliás, esta é uma característica que atravessa de forma nítida o conjunto da obra de Joyce. Sob as compactas camadas experimentais da forma lateja a realidade social de Dublin e da Irlanda. Não foi à toa que Joyce certa vez observou que, acaso Dublin fosse varrida do mapa, seria possível reconstituí-la integralmente com base na sua obra. A minudência obsessiva, o zelo detalhista mobilizado na composição textual, a revelação crua da realidade que de resto lhe valeu a acusação de ser um autor pornográfico, tudo isso deriva da linhagem naturalista a que Joyce se filia. Conviria precisar que o termo “naturalista” remete a influências procedentes de Flaubert e Ibsen, não Émile Zola, foco irradiador da estética naturalista que marcou a tradição literária brasileira em fins do século 19.
Quem acaso lê Joyce, sobretudo quem dele ouve falar, pois não há dúvida de que é um escritor antes louvado do que lido, prontamente o associa a Ulysses. Por isso, embora este artigo seja em princípio consagrado ao centenário de Dublinenses, anuncio desde já que é aquele que tenho em mente. Comparada a Ulysses, Dublinenses é uma obra que pouco se afasta da tradição realista acima salientada. Noutras palavras, não é propriamente fruto do alto modernismo europeu que nas primeiras décadas do século 20 abalou a tradição literária ocidental impondo às formas narrativas e poéticas um sentido de radicalidade estética sem precedente histórico. Sendo assim, o leitor atravessa os 15 contos prescindindo de guias e exegetas, ou explicadores, que no caso de Ulysses tornam-se imprescindíveis, ainda quando o leitor seja muito cultivado literariamente.
Joyce escreveu que Dublin era o centro da paralisia: the centre of paralysis. Essa paralisia de Dublin, cidade periférica oprimida pelo mais poderoso império do século 19, o império britânico, é perceptível em toda a obra de Joyce. Ele tinha profunda consciência desse fato. Formado dentro dos quadros da tradição jesuíta, rebelou-se contra o catolicismo irlandês, esteio da paralisia que o sufocava, e escolheu ser um auto-exilado. Migrou para o Continente, como dizem nas ilhas britânicas, antes mesmo de escrever Dublinenses. Foi viver em Trieste, onde compôs o livro, e onde, para proveito recíproco, conviveu com Italo Svevo, autor do mais importante romance italiano do século 20: A Consciência de Zeno. Em suma, viveu toda sua vida de escritor ausente de Dublin, vivendo entre Trieste, Paris e Zurich, onde morreu em 1941.
O modernismo europeu foi um movimento indissociável do exílio. Os dois maiores modernistas americanos viveram voluntariamente exilados na Europa: Eliot e Ezra Pound. Nos anos 1920, década suprema do modernismo, vários americanos fizeram de Paris o seu país de exílio: Gertrude Stein, Hemingway, Scott Fitzgerald. Na década seguinte o nazismo forçou o exílio de muitos outros modernistas banindo-os da Alemanha e da Áustria. Auden e Christopher Isherwood fizeram o percurso inverso ao de Eliot e Pound. Kafka viveu a vida inteira como um exilado dentro da própria cidade em que nasceu. Voltando a Joyce, Stephen Dedalus, seu alter ego, condensa numa célebre passagem de Retrato do artista quando jovem o sentido do seu exílio voluntário e as armas de que se serviria para sobreviver e dar sentido à sua vida: “Silence, exile and cunning”.
Se é fato que Joyce um dia partiu de Dublin para nunca mais voltar, Dublin impregnou-lhe a imaginação e a alma de forma definitiva. Como antes ressaltei, Dublin pulsa em cada linha de toda a obra de Joyce, que mesmo à distância lhe esquadrinhava as ruas, monumentos, casas, a tagarelice bêbada dos dublinenses, as vozes e baladas ecoando nas ruas e bares. Cada uma das suas obras constitui um testemunho, um vinco profundo e inapagável de memória e reinvenção mítica da cidade natal. Joyce escolheu o exílio e tornou-se em definitivo um escritor cosmopolita apenas para se fazer ainda mais dublinense.
Saltando de Dublinenses para Ulysses, publicada em 1922, Joyce afasta-se radicalmente dos seus modelos realistas, Flaubert e Ibsen, depois de fundi-los com o simbolismo fin de siècle, para inventar uma forma de romance cujo fim último é abolir o gênero gestado e desenvolvido rente à ascensão da classe burguesa. Segundo a narrativa bíblica, Deus criou a torre de babel com o propósito de introduzir o desentendimento linguístico entre os povos. Cada povo funda sua língua, ou cada cultura sua fala, e desde então ninguém mais se entende. Nesse sentido, não seria exagero afirmar que Joyce, cujo egocentrismo genial competia com a invenção divina, fundou a literatura torre de babel. Ulysses é o monumento supremo desse feito.
Se é assim, se ele dinamitou todas as linhas de comunicação entre o leitor e a obra, como explicar que seja reconhecido como ícone supremo do modernismo? Se ele esgota um gênero narrativo, o romance, se leva ao limite último a literatura experimental, como conciliar esses fatos com a sua celebridade canônica? Como explicar que uma obra ilegível como Ulysses seja exaltada no Brasil, por exemplo, cujo público letrado constitui uma minoria insignificante comparada à população letrada compreendida em sentido amplo? Este é um enigma cuja explicação caberia antes ao sociólogo da literatura do que ao crítico ou historiador da literatura.
Afirmei acima que Ulysses é uma obra ilegível não apenas porque tenho a franqueza de declarar que tentei fazer sua leitura integral em inglês e em português, seguindo as pegadas da tradução de Antonio Houaiss, e fracassei. Tentei outras vezes amparado pela mão e iluminado pela razão de um exegeta como Stuart Gilbert, autor de um guia de leitura da obra escrito com a colaboração e aprovação integral do próprio Joyce. Outros críticos de inegável erudição e estilo transparente como Edmund Wilson, Otto Maria Carpeaux e Malcolm Bradbury, também me socorreram. Ainda assim, preciso confessar minha incapacidade de ler essa obra suprema do modernismo. Posso falar dela, dissertar sobre as linhas de correspondência entre ela e a Odisséia, iluminar muitos dos enigmas e sentidos que esses mediadores eruditos iluminam, mas preciso admitir que com minhas próprias pernas não consigo ir muito longe. Aliás, devolvendo a Joyce aqui de baixo da minha insignificância de leitor e crítico a arrogância impenetrável da sua obra-prima, há muito me libertei dessa prisão pedante que é lutar anos a fio para compreender ou fingir compreender uma obra inacessível. Ele, do alto do seu pedantismo genial e erudito, disse que o leitor precisaria gastar sua vida inteira para compreender o mundo desnorteante de sentidos e invenção formal que sustenta sua torre de babel. Quanto a mim, reconciliado com a minha medida falível de leitor, afasto de mim qualquer obra impermeável à minha compreensão.
À época em que suava para dar forma definitiva a Macunaíma, Mário de Andrade escreveu uma carta para Manuel Bandeira desabafando seu enfado diante de grandes poetas experimentais como Rimbaud e Mallarmé. Ele que foi o condutor de um modernismo cuja primeira dentição foi caracterizada pelos dentes cortantes e indomáveis do experimentalismo estético, tomou juízo ao sentir o pulso do país real em que vivia e assim reorientou o modernismo saltando dos trilhos da modernidade tecnológica corrente no mundo europeu da época para as trilhas ainda inexploradas de um país periférico. Essa mudança de rumo foi fundamental para imprimir funcionalidade estética e social ao nosso modernismo.
O parágrafo acima, aparentemente despropositado, decorreu de uma associação espontânea entre os supostos leitores de Joyce, dentro do Brasil e até mesmo no seu país de origem, e o beco sem saída para onde nos impelem os sentidos impenetráveis da obra de Joyce, assim como da vanguarda mais radical, que de resto esgotou seus ciclos sucessivos através do século passado. Joyce é sem dúvida um gênio, um dos gênios supremos da literatura, mas é um gênio impenetrável. Por que, no entanto, tantos leitores capengas celebram Ulysses, e mais recentemente o ilegível Finnegans Wake, enquanto ignoram nossa tradição literária média e portanto tão acessível? Como explicar o pedantismo subintelectual de tantos supostos leitores de Joyce sequer capazes de escrever o português culto corrente nos círculos efetivamente letrados do Brasil? Como acima sugeri, estas são questões pertinentes ao sociólogo da literatura, não ao crítico ou historiador.
Recife, 17 de julho de 2014
Nota: Este ensaio crítico foi originalmente publicado na Revista do Café Colombo, no.1.
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Você tem razão. Gostei do itinerário do artista quando jovem. Um excelente artigo.
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