segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Desacertos de um sem caráter



As evidências, tantas e reiteradas, emergentes de inesgotáveis fontes e direções, de mim fizeram o sem caráter que hoje penso ser. Um tempo tomei-me por humanista. Presumia saber o que a palavra significava. Mas vem um dia, aí por volta de 1978 (sou tão desmemoriado quanto o país em que vivo), descubro que o coronel Erasmo Dias é também um humanista. Profissão de fé assinada e reconhecida pelo próprio em entrevista a “Isto é” num dos intervalos dos surtos repressivos que desfechava contra operários do ABC e estudantes da PUC. A companhia lisonjeava-me, mas não ao ponto de impedir-me de pular fora de tão equívoca navegação humanista. Mudei eu, pedestremente sem caráter, ou a embarcação em que por certo tempo ilusoriamente me transportei?

Como fui sempre um desconfiado diante de todas as formas de poder, discretamente passei a tomar-me por um anarquista. Mas de tanto olhar em volta, de tanto tropeçar em evidências negativas, também aí fui me desencantando. Me desencantando, por exemplo, de anarquistas que cultuam ídolos de massa como se fossem deuses empunhando guitarras no Olimpo. Me desencantando de anarquistas que em nome da negação do poder, esse demônio de mil faces mutantes, racionalizam, no sentido freudiano, todas as formas de dominação a que aderem nas relações cotidianas, públicas e privadas. Me desencantando de anarquistas inconscientemente sequiosos de um poderoso que os submeta e domine: no partido, na escola, na família, no bar, na cama, na própria anarquia que confunde anarquia com “anarquia”. E lá vou eu à cata de outro caráter em que me possa caracterizadamente transportar.

Um tempo fui namorar a contracultura tupiniquim na própria Meca idem: Bahia de 1970. Achei que a coisa não passava de uma bad trip da rebeldia juvenil financiada pela família, instituição naquele contexto tão abjeta, tão execrável quanto até à altura da decretação do AI-5 se execrava o imperialismo capitalista. Fui tão infeliz na minha fantasia de integração que nem por um dia abri mão do hábito repressivo de tomar banho. Além do mais, quem então financiava minha rebeldia era a fábrica de Leon Heimer, o polonês, ao preço repressivo de oito horas diárias de trabalho (não computadas as horas extras, evidentemente).

Do bojo da contracultura, e de outras contestações culturais, desprendeu-se a venerável ideologia da liberação. O Atlântico, em Olinda, foi o palco preferencial desse renovado desejo de integração à moda contestadora do dia. No zum-zum das mesas e da radiola de fichas, drogados pelas mais delirantes fantasias, todas as noites reprocessávamos nosso exaltado ritual de liberação. Com o passar do tempo, dei para acordar oprimido por insólitos sintomas: ressaca moral, vazio e esterilidade afetiva. Christopher Lasch (ver A Cultura do Narcisismo, Editora Imago) historiador social americano, propõe inquietante diagnóstico aos eventuais interessados, que por certo não se incluem na maioria dos profissionais do ramo. Diante do quadro em que me vi metido, achei por bem desconfiar. À época, falei dessa desconfiança num artiguinho vagabundo. Moralista foi a qualificação mais amável de alguns liberados do pedaço. Entre despedaçar-me dentro e contra as práticas celebradas no pedaço e partir em busca de outra forma de integração, opitei (assim como está escrito, revisor, para que não me confundam com um criptopetista) pela segunda alternativa e fui ser alternativo.

Não é lindo, não é charmoso ser alternativo? Não é in fazer terapia alternativa, sexo alternativo, música alternativa, TV alternativa, jornalismo alternativo, educação alternativa, tudo e tudo alternativo? Um sarro, cara. Muito massa. Como resistir à sedução da cultura alternativa? Já estava decidido a ler (e aderir, claro) a bibliazinha alternativa de Fernando Gabeira, esse charmoso mutante do descartável cultural, quando o próprio veio participar de um debate no hall do Centro de Artes da UFPE. Fui de coração batendim, batendim. A plateia apertava-se fissuradamente alternativa. Até que lá pelas tantas ele falou do parto alternativo da mãe do seu filho praticado numa “clínica dominante”, com toda a aparelhagem da “medicina dominante” (há expressões mais apropriadas?) pronta para entrar em ação na hipótese de haver qualquer falha no parto alternativo. Não é massa, gente? Não é superalternativo? Também acho, mas para bom entendedor parto nessas condições mais se assemelha a aborto alternativo. Assim, voltei a mamar no seio da cultura dominante e repressiva.

Embora machucadamente resignado, dava já por encerrada minha desventurada trajetória em busca da integração quando Clériston, meu perverso reizinho da notícia, me botou no saco da “geração eu e eu”, última variante do narcisismo que a cultura dominante vem estimulando a mil. Escrevi para o último número do “Rei da Notícia” duas notas de crítica sumária à cultura do narcisismo. Vou repeti-las (não mexe não, Clériston): 1-Epitáfio da cultura narcísica: eu me amei tanto, mas tanto, que não amei; 2-Narciso mirando-se no espelho do outro: ele sou eu.

O que pretendi, explicando grosseiramente, foi por o dedo na miséria essencial do narcisismo “geração eu e eu”: a negação da alteridade. Privado da experiência do amor (perda e encontro de si próprio no encontro com a alteridade), esse tipo de narciso está condenado à esterilidade afetiva. Haja vitrine e tome picaretagem psicanalítica. Compondo a edição de texto, Clériston suprimiu a primeira parte da primeira nota e alterou a segunda, que no sumário do jornal aparece com o destaque de subtítulo. Como se não bastasse, suprimiu integralmente a segunda nota. Assim, quando já me resignara a desistir de qualquer moda contestatória, Clériston enquadrou-me no espírito narcisista da “geração eu e eu”. Eu me amei tanto, mas tanto, Clériston, que te odiei.

Publicado no jornal O Rei da Notícia, no. 6, Recife, novembro de 1985.

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