terça-feira, 27 de outubro de 2015

Id e Super-ego


Isso e aquilo
São fantasias
Que a gente inventa
No carnaval.

Sem medo ou grilo
Só poesia
A gente tenta
Não se dar mal.

Id é você
Eu super-ego
O que fazer
Em pleno frevo?

Eu punitivo
Você sem freio
Quem o mais vivo
Quem o mais feio?

Quem concilia
N`alta folia
Estas metades
Assim cindidas?

Se o id um dia
Só por poesia
Curtisse a vida
Com o super-ego
E o super-ego
Não mais punisse
Nem se punisse
Batendo prego.
Essa harmonia
Por fim seria
Teu e meu ego.


Recife, 07-02-2002.

domingo, 25 de outubro de 2015

Paris


Subi aos céus de Paris
Prá ver se via você.
Saudade entra e não diz
Que é dor de não ver você.
Pulei nas águas do Sena
Sonhando encontrar você.
Cruzei as águas (que pena!)
Perdi Paris e você.
II
Ai, Notre Dame, me chama
Me faz de novo feliz
Me deita na tua cama
E me transporta de volta
Pros seios de Lollobrigida
Sob esses céus de Paris
Com que menino eu sonhei.
Faz-me de novo feliz
Faz do que fui, do que quis
Um outro modo de fé.
Nos seios de Lollobrigida
O espírito sopra onde quer.
III
Eu que sonhei ser eterno
Sequer tornei-me moderno.
De costas pra Torre Eiffel
Num barco ao longo do Sena
Misturo mel no meu fel
Quarenta e três vale a pena.
São anos, não mais meus sonhos
Traçando rotas de fuga.

Paris, 1992.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Biografia de um tirano


When he laughed, respectable senators burst with laughter,
And when he cried the little children died in the streets.
Auden
Filho de mãe devota e pai alcoólatra
Da primeira herdou a Bíblia
Do segundo a brutalidade.
Ainda bem jovem, trocou a fé ortodoxa
Pela ortodoxia marxista.
Líder de uma gang na Georgia
Cedo aprendeu a roubar e matar
Em nome da Causa e da Utopia.

Guardião da paz e benfeitor da humanidade
Guia genial dos povos
Quando sorria ou aplaudia
(apenas por dever do ofício)
Milhões de kulaks tombavam nos campos congelados
E crianças morriam de fome.
Irmãos de armas e revolução eram fuzilados
E milhões de proletários afundavam
Nos porões da escravidão.

Milhões de desamparados choraram órfãos
Também milhares de intelectuais autodelegados portadores da Utopia
Quando morreu vítima da própria crueldade e paranóia.
Seu nome era Stálin.
Recife, 15 de setembro 2015.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Capitalismo Estatal e Cinema


Talvez importe iniciar este artigo declarando alguns fatos que sugerem meu trânsito à margem da realidade cultural pernambucana e sua rede de relações associativas. Faz muitos anos que não freqüento salas de cinema, muito menos a exibição de filmes brasileiros. O cinema que continuo vendo e revendo por escolha, fruição estética e prazer procede do mercado de DVD e redes como o You Tube. Ensaio este preâmbulo porque, depois de muito relutar, decidi enfiar minha colher torta no bate-boca que tomou conta do mural do Facebook, onde ocasionalmente ainda navego. Leio bem poucos. Alguns, como Cristiano Ramos e Mano Ferreira, me dão uma vaga noção de um incidente deplorável, mas culturalmente sintomático, como tentarei esclarecer adiante, ocorrido durante uma sessão no Cinema do Museu. Isento-me de sumariamente relatá-lo por ser de amplo conhecimento público. Meu interesse é partir do incidente encarando-o, antes de tudo, como um sintoma do nosso capitalismo estatizado. Reduzindo a questão ao campo cultural, passo a algumas ponderações inspiradas pelo ideário liberal que embasa esta coluna cujo título é A Letra Plural, publicada pela revista eletrônica Café Colombo.

Há vários anos, quando o chamado renascimento do cinema pernambucano ainda engatinhava, ouvi de um de seus participantes a frase seguinte: ninguém faz um filme no Brasil sem ceder 30% do patrocínio estatal (o truísmo intencional vale como ênfase) aos intermediários. O cinema nasceu e se difundiu pelo mundo como a arte do século XX. Convém todavia lembrar que é um misto de arte e indústria, talvez mais esta do que aquela. Além de produto financiado e controlado economicamente por capitalistas poderosos e ousados, depende de uma infraestrutura complexa, também de um processo de criação coletiva que o torna, não obstante a teoria falaciosa dos críticos do Cahiers du Cinema, obra de autoria coletiva.

No Brasil o enredo é outro e isso diz muito sobre a natureza do nosso capitalismo e a nossa cultura tutelada pelo Estado patrimonial. Bastaria lembrar que Fernando Collor, no auge do seu delírio privatista, dissolveu o cinema brasileiro com uma simples canetada. Aboliu a estatal e com ela se foi o cinema. Alguns mais talentosos, como Arnaldo Jabor, migraram para o jornalismo. Anos mais tarde o cinema renasceu novamente graças à tutela do Estado. Isso explica, em parte, a proliferação de tantos filmes ruins e sobretudo filmes que dão prejuízo aos cofres públicos, mas lucro assegurado a seus realizadores, para não falar dos ladrões que amealharam financiamento do qual não resultou nenhum filme. Enfiando aqui outra anedota autêntica, um amigo, sobrinho de cineasta famoso, me disse que o tio vive do que ganha dos filmes que dirige. De cinco em cinco anos realiza um filme cujos custos incluem seus ganhos pessoais previstos. É o chamado capitalismo sem risco. Assim funciona boa parte da nossa produção cultural.

No capitalismo moderno, largamente independente do Estado, as pessoas competem em todas as esferas. As relações culturais, ou o mercado da cultura, não foge a esta regra. No Brasil, todavia, a competição se concentra dentro e nas relações com o Estado entre agentes pautados não pelas normas impessoais do mercado, mas por um complexo de interesses e negociações dependentes de duas vigas: o Estado patrimonial e a renitente cordialidade admiravelmente dissecada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Indo aos miúdos que me interessa salientar, como ser um agente e/ou crítico independente no contexto acima grosseiramente esboçado? Como ser um liberal conseqüente dentro de uma ordem capitalista na qual o Estado mete o bedelho em tudo e a própria cultura, aqui compreendida no seu sentido socioantropológico, quase sempre funciona como a luva que veste a mão do Estado arbitrário? É por essas e outras que me constrange ainda declarar minha adesão ao liberalismo.

Tentei explicar o sentido em que o adoto através de uma citação de Vargas Llosa. Para quem queira compreender melhor o argumento deste artigo, e outros implícitos, recomendo a leitura do meu artigo inaugural já mencionado. Simplificando, limito-me a dizer que defendo um Estado regulador das relações gerais do mercado e interventor apenas na esfera das políticas públicas (saúde, educação, segurança, transporte público...). Por isso me oponho ao Estado empreendedor na esfera econômica, o Estado detentor de monopólios. Além de ineficaz, ele é fonte inevitável de corrupção e abuso de poder. A Petrobrás ilustra isso muito bem e só os inocentes ou desonestos podem acreditar que a culpa é apenas do PT ou de qualquer outro partido implicado nessa roubalheira colossal. Enquanto forem propriedade do Estado, as estatais serão fonte de abuso de poder político gerando privilégios, corrupção, nepotismo, superfaturamento e outras pragas correntes no Brasil. Enquanto o Brasil não reformar pela base o seu Estado, crises como que a estamos sofrendo serão recorrentes.

Mas quem quer reformar o Estado brasileiro convertendo-o de fato num Estado moderno, isto é, republicano e democrático? Nem o povo quer, ele que é a vítima desse modelo espoliador. Afinal, formou-se há séculos sob a tutela do Estado-pai encarnado mais recentemente em Getúlio Vargas e Lula. Raimundo Faoro traçou-lhe a genealogia demonstrando como se perpetuou através da nossa história. Dou um exemplo do seu oposto, o Estado democrático-liberal moderno, que vale por mil argumentos. Estava vivendo na Inglaterra quando o Estado totalitário soviético desmoronou. Quando destruíram o muro entre a Alemanha Ocidental e a Oriental li, com olhos de brasileiro perplexo, esta manchete de primeira página do The Sunday Times: 30 mil soldados ingleses sumariamente demitidos. Explicando melhor, as forças armadas que guarneciam o lado ocidental da fronteira foram automaticamente demitidas pelo Estado inglês tão logo o muro foi demolido e elas se tornaram portanto inoperantes. Não preciso acrescentar mais nada. Sugiro apenas ao leitor que imagine um dos nossos 39 ministérios sendo abolido e demitindo 1000, digamos 100, parasitas do nosso funcionalismo público. Que mais dizer, além do que o leitor crítico pode deduzir do meu exemplo?

Encurtando o artigo com uma provocação, pois as articulações entre Estado patrimonial, cordialidade e cultura são complexas demais para minha inteligência fatigada e cética, sugiro apenas a abolição dos patrocínios estatais ao cinema que não obedeça a funções rigorosamente educativas e culturais isentas de finalidades mercantis. Pelo menos uma conseqüência seria facilmente previsível: cessariam esses bate-bocas de gênio de província e o Recife – também o Brasil, por extensão – seria removido das páginas do Guiness como a cidade, e o país, que tem a mais alta taxa de cineastas por m2 do mundo.

sábado, 10 de outubro de 2015

A letra plural


Se não relutei em aceitar o convite de Mano Ferreira para me tornar colaborador da revista Café Colombo, relutei, e muito, para me decidir a adotar o título desta coluna. Tanto relutei que precisei escrever este artigo para justificar minha escolha. Na verdade, antes de ser mera justificativa, o artigo tende a ser um roteiro de viagem. Assim encurto o risco de me perder de mim e, pior ainda, perder o leitor que acaso me leia. Portanto, se este artigo inaugural está longe de ser um texto programático (o mundo se tornou tão incerto que somente call girl faz ainda programa), não deixa de ser um enunciado das intenções que espero transportar no curso dessa viagem quinzenal.
Começando pelo título da coluna, a ideia que de início propus a Mano Ferreira foi chamá-la de A Imaginação Liberal. A inspiração procede de um livro de Lionel Trilling, o grande crítico liberal americano que fez da sua militância como crítico literário uma forma coerente e confessa de adesão à tradição liberal americana. Antes disso, como tantos dos grandes intelectuais americanos de sua geração, Trilling filiou-se ao comunismo integrando o corpo de um dos mais importantes periódicos culturais dos EUA: a revista Partisan Review. Como Edmund Wilson e muitos outros, Trilling desiludiu-se com o comunismo soviético, aderiu ao liberalismo e se tornou desde então um crítico implacável do stalinismo. Sua obra mais importante, The Liberal Imagination, acima mencionada, foi traduzida no Brasil em meados dos anos 1960. Só que entre nós recebeu um outro título: Literatura e Sociedade, homônimo da obra igualmente notável de Antonio Candido. O tradutor foi Rubem Rocha Filho. Por acaso conheci-o aqui no Recife no apto. de Jacques e Helena Ribemboim poucos anos antes de morrer. Dado que a imaginação liberal se perdeu no trânsito tardio entre a língua de origem e a de recepção, tentou-me a ideia de batizar minha coluna com ela. Depois de muito relutar, acabei trocando-a pela que dá título a este artigo. É isso o que tentarei explicar abaixo.
O termo liberal e derivados, dentro da nossa tradição intelectual, parece-me demasiado preso à terminologia e à história política. Talvez isso seja um forte indício da nossa incapacidade de implantar nas nossas práticas culturais e políticas uma sólida tradição liberal. Daí, desdobrando ainda meu raciocínio hipotético, as resistências e deformações que o liberalismo tem sofrido no Brasil. Embora na prática tenhamos assimilado muitos dos seus melhores valores (bastaria pensar nos aspectos mais positivos da liberação dos costumes desde os anos 1960, herança antes de tudo da tradição liberal mais avançada que noutros países, como é o caso da Inglaterra, remontam ao século 19), tendemos a associar essas conquistas à esquerda. Trocando em miúdos, ao marxismo e tendências similares. Assim, os avanços no plano dos costumes e direitos civis, que em países de forte tradição liberal decorrem da dinâmica do liberalismo, aqui são atribuídos exclusivamente a ideologias que entendemos antagônicas ao liberalismo. O fato, em suma, é que o liberalismo entre nós é objeto de resistências e graves equívocos históricos e teóricos. O mais grave é que essas resistências tendem a anular um clima de debate livre que poderia esclarecer melhor o sentido dessas divergentes tradições (liberalismo, marxismo, socialismo...) concorrendo assim para melhor esclarecer as ideias e pôr as coisas nos seus devidos lugares. Infelizmente, liberalismo, mesmo nos círculos acadêmicos mais ilustrados, tornou-se neoliberalismo, termo que no geral se confunde com um insulto ideológico que de partida anula qualquer possibilidade de debate.
Estendi-me indevidamente nessas considerações para melhor justificar por que desisti de dar a esta coluna o título de A Imaginação Liberal. Além dos mal-entendidos e preconceitos que de imediato suscitaria, poderia induzir o leitor a pensar que se trata de uma coluna antes de tudo consagrada à discussão da política. Além de não ser um especialista no assunto, sou de resto avesso à política em qualquer sentido militante por formação e temperamento, quero sentir-me à vontade para comentar antes de tudo questões mais variadas, que também incluem a política. Minha perspectiva confessa é liberal. Daí, depois de muito relutar entre muitos títulos que me ocorreram, A Letra Plural que confere o devido batismo à coluna.

Adiciono mais algumas linhas à coluna para melhor esclarecer o sentido que confiro ao termo plural. Mario Vargas Llosa incluiu no volume Sabres e Utopias um texto, intitulado Confissões de um liberal, que define com clareza a concepção de liberalismo que adota. Acrescentaria ser também a minha. Por isso o recomendo ao leitor interessado em melhor demarcar os limites do liberalismo que informará o espírito geral desta coluna. Além de me servir, serve também para demonstrar o quanto Vargas Llosa tem sido incompreendido e até caluniado por ousar romper com as tradições autoritárias latino-americanas à esquerda e à direita aderindo a uma noção prática e teórica do liberalismo infelizmente longe de se consolidar nas nossas relações e instituições sociais. Melhor citar diretamente o parágrafo que condensa o que desejo ressaltar:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação entre Igreja e Estado e defensores da descriminalização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais, que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo, que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado” (p.301).
Minha modesta proposta ao aceitar o convite de Mano Ferreira é expor nesta coluna questões relativas ao liberalismo e sobretudo ao fortalecimento de uma cultura liberal. É alentador, a propósito, constatar que muitos dos melhores intelectuais jovens que leio (evito citar nomes, pois incorreria em omissões indesejáveis) debatem o bom e o mau legado intelectual e ideológico da minha geração isentos da intolerância e dos preconceitos ideológicos que a maior parte da minha geração, também muitos que a precederam e a sucederam, foi e é incapaz de radicalmente revisar. Na cultura encastelada na academia, notadamente, transmite-se um legado de fidelidade intransigente ao marxismo que muito dificulta a renovação ideológica dos estudantes, que obviamente representam os novos agentes de renovação cultural. Esse fato deplorável concentra-se nos programas de pós-graduação, onde os orientandos tendem a reproduzir acriticamente as modas intelectuais e modelos ideológicos impostos pelos mestres e orientadores. Assim procedendo, estes travam o processo de livre debate de ideias que deveria reger o funcionamento institucional da educação de elite. Para além disso, o que é já muito negativo, eles traem o princípio máximo da educação, isto é, educar o aluno para pensar por si próprio. Repetindo o dito célebre de Kant que se tornou apanágio da tradição liberal e humanista, sapere aude. Quem pensa verdadeiramente é quem ousa pensar. Se a cultura acadêmica promovesse este princípio, a história das ideias no Brasil teria sofrido uma profunda e desejável mudança depois que se consumou o fracasso colossal do comunismo. Infelizmente, o Brasil, assim como a América Latina em geral, está longe de ajustar essas contas com a história. Até quando o peso das tradições negativas continuará bloqueando as reformas de que tanto precisamos para ingressar definitivamente na modernidade?
Nota: artigo publicado na revista eletrônica Café Colombo em setembro de 2015 inaugurando minha coluna intitulada Letra Plural. O artigo foi publicado com um título ligeiramente diferente: Da imaginação liberal à letra plural.

domingo, 4 de outubro de 2015

Saudade de Táti


O nome de Tatiana
No ar da Bahia ressoa
Como saudade cigana
Que sobre a cidade voa.

Voa de um jeito que engana
À luz da noite ou do dia
O sopro de Tatiana
No céu azul da Bahia.

Sinto saudade da fala
Do riso, humor de e-mail
Quando ela ilumina a sala
Soprando em meu devaneio

Tudo que canto e desejo
Tudo que entanto não veio
Tudo que é apenas lampejo
Do que nos ata ao e-mail.

Por isso canto na cama
Aberta ao mar da Bahia:
Táti Tati Tatiana
Se tua ausência me engana
Engana como poesia.
Salvador, 15 agosto 2004.