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domingo, 24 de novembro de 2013

Nomes próprios e impróprios II


Postei no meu blog uma crônica sob o título acima e alguns amigos tiveram a generosidade não apenas de a ler, mas também de a comentar no Facebook. Minha reação imediata foi responder também na forma de um breve comentário. É parte do meu código de ética intelectual considerar sempre a opinião do leitor. Afinal, é para ele que escrevo. Não importa o fato de ser ou não um escritor profissional. Aliás, esclareço que sou apenas um amador. Uso o termo no seu sentido original, infelizmente corrompido pelo mau uso, como ocorre com tantos outros. Bastaria pensar em cínico, anarquista, amante... Os cultores da etimologia poderiam citar uma infinidade. É um dos capítulos apaixonantes da história de qualquer língua. Infelizmente, falta-me erudição para escrever sobre o assunto.
Peço perdão pela digressão impertinente e retomo o veio do artigo. Como dizia, é parte do meu código de ética intelectual conceder a devida atenção ao que o leitor me escreve, notadamente quando me critica. Elogio importa muito, claro, mas ninguém discute elogio. O autor agradece, pois é o que busca recolher das leituras, mas não vai além disso. Os mais discretos simplesmente silenciam. Como sabe o bom leitor, o silêncio, no caso, é sintoma de discrição, de agradecimento sem palavras, não desapreço. A crítica, contrariamente, merece maior consideração. Se o autor não busca apenas assentimento irrestrito ou aplauso, é graças à crítica que ele dialoga explicitamente com o leitor. É o que cuidarei de fazer neste artigo. Em suma, tentarei esclarecer melhor meu ponto de vista com relação ao uso e abuso dos nomes próprios que os brasileiros adotam.
Não sei de nenhum escrito de alguma importância que não contenha algum grão intencional de ambigüidade e ironia. Esclarecendo melhor, aludo precisamente à produção intelectual inscrita no âmbito do que designamos como ciências humanas ou ainda humanidades, aí incluída a produção artística. Justificando o que acabo de escrever, é da natureza desse campo, o das humanidades e das artes, certo grau ontológico de indeterminação. Isso decorre da própria natureza do objeto considerado, que é noutras palavras a natureza humana investigada no convívio social (que é da competência da sociologia, da antropologia etc) e noutros modos de ser humano. Por mais que o estudioso ambicione compor um discurso unívoco, não importando o quanto seja genial, esbarrará sempre no que há de insondável, ambíguo, ambivalente ou simplesmente indeterminável na natureza humana.
Devido às razões grosseiramente esboçadas no parágrafo precedente, há sempre algo de ambíguo e irônico no tipo de discurso a que me refiro, mesmo quando o autor dá o melhor de si visando alcançar o máximo de precisão e transparência. Além disso, o autor consciente e inventivo recorre intencionalmente à ambigüidade e à ironia como dispositivos retóricos passíveis de distender as camadas de significação do texto. Autores como Shakespeare, Machado de Assis, Auden, Drummond e todos os grandes são por definição ambíguos e irônicos. Quanto maior a densidade e força de sobrevivência no tempo atestadas na obra, maior a sua carga de ambigüidade e ironia. Disso decorre ainda que a obra dilata seu poder de permanente atualização e recontextualização semântica graças também à colaboração do leitor inteligente, aquele que projeta luz nas camadas de sentido atual ou potencial da obra.
Mas que diabos tudo isso tem a ver com uma mera crônica de um autor amador postada num blog quase anônimo? Reconheço que muito pouco. Se me perdi através de digressões tão tortuosas, foi apenas para sugerir como mesmo uma mera crônica pode suscitar leituras parciais ou ambíguas. E é graças a esse tipo de leitura que me sinto motivado a retomar o assunto, espichá-lo, melhor esclarecê-lo, ou pelo menos melhor esclarecer o leitor acerca do que penso.
Elizabeth Carneiro, por exemplo, afirma que a leitura da minha crônica acordou na sua memória a leitura de dois livros que qualifica como muito bons: um de José Ramos Tinhorão e outro de Mário Souto Maior. Embora não vá além disso, ponderei se acaso teria associado minha crônica a estes autores supondo que endosso a perspectiva radicalmente nacionalista do primeiro e a concepção de pesquisa folclórica do segundo.
Já frisei que ela não afirma nada disso. Sou eu que, leitor inconveniente, aproveito o comentário para alongá-lo em considerações que me interessaria fazer com o propósito de esclarecer melhor meu ponto de vista sobre a questão dos nomes próprios. Ressalto portanto que nada tenho em comum com o nacionalismo radical e até intolerante de Tinhorão. Li alguns dos seus livros sobre música e admiro sua dedicação de pesquisador apaixonado pela história da nossa música popular ainda tão pobremente estudada e documentada. Sua perspectiva, porém, é o avesso da minha. Se acaso alguém me leu supondo que minha crítica à adoção colonizada de nomes estrangeiros é feita em defesa do nosso renitente nacionalismo cultural, retruco que me leu erradamente. Há de resto na crônica algumas breves alusões ao nacionalismo cultural que bastam para bom entendedor.
Tinhorão nunca foi capaz de compreender ou simplesmente suportar a bossa nova, sem dúvida a mais refinada e fecunda ruptura modernizante da nossa música popular, devido a seu nacionalismo de viseiras, à intolerância da sua concepção redutoramente nacionalista. Parafraseando o velho ditado popular, o cão ladra e a caravana passa. O cão, explicito, é o crítico de viseiras, incapaz de ver além do muro compacto com que fecha as fronteiras e linhas de comunicação entre as culturas; a caravana é a bossa nova, que passa no sentido de ir além, de continuar viva na história da nossa cultura e portanto sempre se renovar a cada retomada, a cada atualização feita pelas gerações sucessivas de artistas e ouvintes.
É verdade que alguns artistas mais americanizados ou colonizados daquele momento, Elizabeth cita nominalmente Dick Farney e Johnny Alf, adotaram nomes artísticos inspirados na cultura dos Estados Unidos. Mas a analogia com o fenômeno relativo à adoção dos nomes próprios que critico é infeliz, ou inapropriada. Por quê? Porque o exemplo que ela menciona é um mero detalhe dentro do processo complexo de relacionamento da bossa nova com a música americana. Ele serve para desqualificar a bossa nova apenas na apreciação de críticos estreitamente nacionalistas como Tinhorão, que ouve o galo cantar e no entanto não tem ouvido afinado para traduzir o real sentido da música.
A bossa nova foi impiedosamente atacada por críticos do tipo de Tinhorão. Tom Jobim, nosso compositor supremo, foi também impiedosamente desqualificado por Tinhorão e Cia. A crítica é de uma cegueira ideológica tão absurda que cabe perguntar se críticos desse tipo têm pura e simplesmente sensibilidade musical. Notem que não me refiro a conhecimento de técnica e teoria musical, a cultura refinadamente musical. Fico num limite bem mais modesto. Como é que alguém que de fato conhece o conjunto da obra musical de Tom Jobim pode acusá-lo de ser americanizado (ou vendido aos dólares americanos, como afirmou Ariano Suassuna, nacionalista talvez ainda mais intolerante do que Tinhorão)?
Se queremos pregar origens e influências na música de Tom Jobim, é claro que ele bebeu nas fontes do jazz e da grande tradição musical americana. Também bebeu nas fontes do impressionismo musical francês e noutras fontes. Isso tudo é de uma tolice e de uma intolerância intragáveis. Como todo grande artista, Tom tinha antenas muito sensíveis e livres. Portanto, captava sons de todas as procedências. Foi isso o que fizeram gênios musicais ainda maiores, como Bach e Mozart. Se na época destes as formas de intercâmbio musical e estética eram já correntes, o que dizer de um compositor do século 20? Não importa quem ouviram, mas o que fizeram do que ouviram, a forma como recriaram influências e sugestões musicais. De resto, se é para falar em influência, há muito mais Villa-Lobos e muito mais tradição musical brasileira em Tom Jobim (modinha, samba, choro etc) do que música americana.
Concluindo, não argumentei contra a macaqueação dos nomes de procedência estrangeira baseado em nenhuma ideologia nacionalista. Noutras palavras, sou internacionalista em cultura. Mas é evidente que sou antes de tudo brasileiro. Por isso me chamo Fernando e falo a língua portuguesa e dela me valho para escrever e melhor me traduzir e comunicar. Por melhor que falasse inglês ou qualquer outra língua, é óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, que minha língua é minha pátria, minha frátria... Bem, aqui o leitor nota que já estou citando Caetano Veloso. Por isso ainda, se tivesse um filho daria a ele um nome extraído da minha língua. É certo que me sentiria ridículo, me sentiria um colonizado se acaso batizasse um filho meu como William ou Giselle, Peter ou Kate, Hulk ou Isabeli (sic). Acrescentaria ainda que em muitos casos é compreensível e mesmo justificável a adoção de nome próprio estrangeiro. Por exemplo: no caso dos casais compostos por membros de nacionalidades diferentes.
Recife, 22 de novembro de 2013.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Edu Lobo Bossa Recife


O documentário Vento Bravo (2007) começa com duas cenas muito significativas que, enquanto tal, anunciam duas referências fundamentais para nosso conhecimento da música de Edu Lobo: a premiação de Ponteio, talvez o triunfo supremo da sua carreira; o sentido seminal do Recife, sua cultura e paisagem, na sua formação. No andamento desta cena, com Edu a bordo de um carro transitando contra o fundo da paisagem tropical recortada pelos coqueirais e o mar invisível, mas já insinuado na imaginação do espectador, a tela é invadida pelos sons de Candeias. A cena desdobra-se na projeção da sombra movente de Edu sobre a areia úmida e por fim se alarga no plano geral do mar com seus tons verde-azulados, barcos à vela cortando as águas. Logo Edu é enquadrado no mundo da sua infância, no Recife e suas extensões litorâneas.

A música de Edu e a forma como desde o início ele a situa nas raízes da sua memória e experiência ilustram uma verdade corrente na história da arte: a função seminal da infância na criação estética. Embora nascido no Rio de Janeiro, toda a sua infância significativa foi vivida no Recife, onde passava férias deleitando-se na atmosfera absorvente da família. Esse é de resto um traço profundo da história social recifense, por extensão nordestina: a dominadora presença da família ramificando-se numa rede de parentes, amigos e outras forças humanas agregadas e agregadoras. A isso somaram-se os ruídos dos pregões de rua, um deles aliás incorporado a uma das composições de Edu: Cordão da Saideira, o mais belo e lírico frevo que conheço. O fato é que o menino Edu Lobo impregnou-se dessas vivências da infância mais tarde convertidas em memória afinal recriada em som e arte. Ele as rememora, as vivências, em muitas passagens do documentário: Caruaru e suas ruas ruidosas cortadas pelos sons agudos das bandas de pífanos; Itamaracá e Pontas de Pedra, Candeias e o esplendor da lua cheia espelhada no mar; cirandas e maracatus; frevos e troças, tudo inundou a imaginação encantada do menino nele fermentando o solo onde anos mais tarde teceu seu mar de sons e poesia. Lembrem Cirandeiro (letra de Capinam), pérola injustamente esquecida evocada por Maria Bethânia numa cena do filme.

Carioca cuja juventude foi vivida à sombra imperiosa da Bossa Nova e de Tom Jobim, expressão suprema das duas gerações musicalmente mais importantes da música brasileira, a da Bossa Nova e da MPB desmamada nos festivais de música e no clima turbulentamente criativo de resistência cultural à ditadura militar, Edu admite que não teria chance de se afirmar como artista diante de Tom, Baden Powell, Carlos Lyra e outros valendo-se dos recursos de criação musical que estes dominavam. Assim, a via de expressão estética que emprega, a regressão ao mundo da sua infância recifense, foi também uma estratégia de sobrevivência num clima de extraordinária competitividade. A propósito, o crítico Tárik de Souza lembra que Edu entra na atmosfera musical da sua juventude através de Luiz Gonzaga e do acordeon. Outros, como Eumir Deodato, trilharam caminho semelhante.

Edu se afirma, portanto, integrando à sua música duas linhas de influência diferenciadoras e aparentemente antagônicas: a Bossa Nova, de extração carioca, urbana e visada internacionalista, e a música de procedência pernambucana impregnada de tradição rural, regional, e forte sentido de participação social. Foi esta, em síntese, a assinatura que acrescentou ao clima musical da época concorrendo de forma decisiva para desenhar o ponto de ruptura entre a Bossa Nova e a música que passa a ser sumariamente identificada como MPB: a música que explode nos festivais assaltados pelo espírito de competição estética e ideológica exacerbada pela inserção da música popular na máquina de consumo de massa que reponta na cena cultural brasileira em meados da década de 1960.

Edu representa de forma singular a cultura migrante que tanto vincou a formação cultural brasileira. Filho de Fernando Lobo, jornalista pernambucano que migrou para o Rio de Janeiro como tantos outros pernambucanos e nordestinos de talento, engrossou a corrente que desdobra no terreno musical uma tradição enraizada na literatura desde o século 19. Bastaria pensar em José de Alencar, Joaquim Nabuco, Franklin Távora, Sílvio Romero, Aluísio de Azevedo e muitos outros. No século 20 a corrente cresceu transportando sobretudo para o Rio de Janeiro, capital cultural e política do país, quase todos os talentos destacáveis na arte e na literatura.
Edu Lobo ouviu Chega de Saudade pela primeira vez quando de uma de suas férias em Recife. Acentua no documentário o sentido de choque estético que isso representou na sua vida. Passados já tantos anos, é difícil para um jovem de hoje avaliar o sentido radicalmente inovador desta música. Afinal, depois que o novo se rotiniza perde-se a dimensão de ruptura estética que introduz nos códigos dominantes. Ao evocar esse fato Edu reitera o sentido geracional simbolizado na primeira audição de Chega de Saudade. Quando tiveram a oportunidade de pronunciar-se sobre este assunto, também Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque reiteraram o sentido de choque estético expresso no depoimento de Edu. É provável que outros companheiros de geração, se acaso também se pronunciassem, repetissem a mesma história com as variações de ênfase e forma inevitáveis.

Outra experiência de cunho geracional liga-se ao fenômeno das casas abertas, pontos de agregação musical característicos da época em que Edu e seus contemporâneos ingressaram profissionalmente na música. Há quem diga que o símbolo maior dessa forma de associação artística era a casa de Vinícius de Moraes. Edu procura traduzir, também seu parceiro Paulo César Pinheiro, o que isso representou para seu acelerado desenvolvimento como músico. Antes de tudo, prevalecia naqueles grupos livremente compostos um sentido de gentileza, outros em contexto semelhante empregam o termo delicadeza, que definitivamente desapareceu do horizonte da nossa experiência social hodierna. Além de uma intensa e fecunda interação de artistas provenientes de diferentes formas de expressão artística, o convívio era pautado por um espírito de generosidade e senso comunitário impensáveis nos quadros do capitalismo ferozmente competitivo em que passamos a viver, competitividade exasperada pelo narcisismo que permeia todas as nossas relações sociais.

Outro tema interessante introduzido no documentário é o da relação entre Edu Lobo e a Tropicália, a grande explosão inovadora que sucedeu a Bossa Nova provocando reações de perplexidade e conflito nos círculos da MPB. Edu afirma que nunca brigou com a Tropicália. Enfatiza seu ponto de vista esclarecendo que gostava de tudo que Caetano Veloso e Gilberto Gil faziam desde que passou a conhecer o trabalho de ambos. Ressalta, no entanto, seu desagrado diante do caráter teatral do movimento, que na verdade traduzia a astúcia com que Caetano e Gil, narcisistas consumados, souberam explorar os novos recursos de projeção e sucesso forjados pela cultura de massa. É fácil imaginar que Edu, até por força de seu temperamento, do seu modo de aparecer como artista, não teria nenhuma afinidade com o que os baianos faziam na mídia, que então era outra coisa. Edu acrescenta – com razão, assim penso – que o grupo mineiro conhecido como Clube da Esquina tinha importância musical muito superior à Tropicália. Entretanto, pouco se fala disso, pouco se reconhece esta verdade nos estudos históricos relativos à música brasileira das décadas de 1960 e 1970.

Talvez nada melhor traduza a diferença de temperamento e modo de manifestação pública da atividade artística entre Edu e os baianos da Tropicália do que sua renúncia deliberada a ser um grande astro da música brasileira ou um pop star. No auge da sua fama como compositor e intérprete, depois de vencer dois dos festivais de música da época, sobretudo o de 1967, sem dúvida o mais importante dentro deste importante capítulo da história da música popular brasileira, Edu larga tudo e vai estudar música em Los Angeles com Albert Harris. Esta é uma das evidências da superioridade de sua formação técnica e estética se o comparamos à maioria dos grandes compositores brasileiros. As cenas relacionadas à longa temporada de estudos em Los Angeles são pontuadas por uma de suas mais belas composições: a jobiniana Quase Memória. Sugiro ao leitor que a ouça com o outro ouvido sintonizado em Saudade do Brasil, do nosso maestro soberano.

Edu renunciou à fama já consolidada para fazer de si próprio um músico de formação refinada e exigente, um artesão supremo das formas musicais. Nesse sentido, é também sintomático seu reconhecimento de Tom Jobim como nosso compositor supremo. Como bem lembrou, Tom, assim como Villa-Lobos, é o tipo de compositor que obriga seus pares, ainda quando não o queiram ou saibam, a trabalhar, a fazer melhor. Se a memória não me trai, numa outra ocasião, falando de Tom em escala universal, distinguiu-o como um dos cinco maiores compositores populares do século 20. Isento de qualquer viés nacionalista, diria que é talvez o melhor. Comparáveis a ele são George Gershwin e Cole Porter, cito apenas os que primeiro me vêm à mente, mas penso que Tom é ainda melhor que ambos.

Espanta-me que o autor de letras como as de Cordão da Saideira e Candeias tão pouco se tenha aventurado a escrever a letra de suas próprias composições. Talvez o excesso de rigor, o perfeccionismo do artista consciente de que arte é antes transpiração do que inspiração, tenha refreado o letrista de talento lírico notável que é Edu Lobo. O fato é que teve muitos parceiros. Alguns, como Paulo César Pinheiro e Joyce depõem no documentário. Sabemos que seu parceiro mais constante e sem dúvida supremo é Chico Buarque. Como seria previsível e justo, Chico contracena com Edu em boa parte do filme. Talvez apenas a parceria Tom Jobim e Vinícius supere a de Edu e Chico. De certo modo, isso afeta negativamente a grandeza musical de Edu em termos de reconhecimento público. Afinal, que parceiro poderia competir com Chico? Edu fica injustamente rebaixado a um plano tão secundário que ouço gente de bom gosto e bem formada aludindo a Beatriz e outras composições de ambos como se fossem de autoria exclusiva de Chico. Dando a Edu o que de justiça cabe a Edu, tenhamos a consciência de reconhecer que, dentre todos os seus companheiros de geração, nenhum manteve o alto nível de qualidade criativa que ele manifestou dos anos 1990 para cá, exatamente quando alguns dos seus competidores mais talentosos começaram a dar sinal de perda de força criativa.

Nota: direção e o roteiro do documentário: Regina Zappa e Beatriz Thielmann.
Recife, 25 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Chico Buarque do Brasil


Chico Buarque do Brasil, volume publicado em 2004 e organizado por Rinaldo de Fernandes, é um dentre muitos títulos que celebram em tom consensual a trajetória artística e biográfica de Chico Buarque. Se ligeiramente consideramos a importância extraordinária de Chico Buarque na cultura brasileira desde meados dos anos 1960, torna-se dispensável reconhecer o significado de obras dessa natureza. Começo no entanto por ressaltar esse aspecto dominante da obra precisamente por acreditar que a atividade crítica deve ser sempre crítica, mesmo quando sua função é apreciar artistas em torno dos quais se articula a rede consensual apreensível na fortuna crítica de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso e outras raras e definitivas expressões da música e da cultura brasileira.

Embora contenha pouca documentação original, o volume tem o mérito de reunir dados biográficos e críticos relevantes e talvez ainda desconhecidos dos que pouco leem sobre música brasileira. É muito interessante, por exemplo, a documentação reunida na Cronologia. Penso em particular na matéria de uma entrevista que Chico concedeu a Augusto Massi. Nela ele revela fontes preciosas para que melhor se aprecie sua iniciação literária. De início, lê exclusivamente autores franceses sob sugestão do próprio pai, Sérgio Buarque. Pelo que se sabe, a partir de declarações do próprio Chico, Sérgio era um estudioso incansável e metódico. Certamente a mais forte evidência disso está contida na obra de historiografia que produziu, talvez a melhor que temos, também na sua fina erudição crítica espelhada na produção jornalística reunida em livro por Antonio Arnoni Prado. Embora tivesse família numerosa, sua biblioteca era pouco acessível à intrusão dos filhos, provavelmente controlados pela sombra eficazmente protetora de Maria Amélia, sua mulher.

O próprio Chico confessa que sua iniciação literária foi uma tentativa de encontrar uma via de aproximação com o pai demasiado imerso no seu mundo de livros e símbolos. É de certo modo curioso, ou mesmo incompreensível, o fato de Chico aportar afinal na literatura brasileira não através do pai, fonte capital de conhecimento histórico e cultural sobre o Brasil, mas através de um amigo que o reprovou por viver discutindo literatura... em francês. Diante do que sei de Sérgio Buarque através de sua própria obra, causa-me estranheza saber que ele afastou o filho da literatura brasileira, quando o mais razoável seria aproximá-lo. Afinal, ele foi um dos grandes participantes do mais importante movimento literário que já tivemos na história da nossa literatura. O modernismo, dando nome ao boi, teve abrangência infinitamente maior que a literária, ainda que compreendida aqui em sentido elástico. Sérgio confirma de resto, quando consideramos sua trajetória intelectual, este fato que vai aqui brevemente mencionado e melhor expus num artigo já postado no meu blog: Modernismo e Ciências Sociais.

A opção de artistas literariamente privilegiados como Chico Buarque e Caetano Veloso pela música constitui evidência do status intelectual que nossa música popular conquista a partir da bossa nova e sobretudo da contribuição estética e intelectual fundamentais que Vinícius de Moraes e Tom Jobim transportaram para o seu curso tão admiravelmente renovado e elevado a partir de meados dos anos 1950. O primeiro, como se sabe, procedia da tradição poética canônica, portanto restrita a um público altamente letrado, enquanto o segundo era portador de uma sofisticada formação musical erudita, embora vivesse catando moeda como pianista nos inferninhos da noite carioca para sobreviver. Além disso, o pai de Tom, assim como o de Vinícius, era poeta, ainda que retardatariamente parnasiano. Este fato sugere o quanto é lenta a difusão dos grandes movimentos de renovação literária, mesmo no círculo das camadas letradas do qual ambos faziam parte.

Não fosse a mutação profunda sofrida pela música popular a partir desse período, jovens de formação privilegiada como Chico e Caetano teriam provavelmente derivado para outros campos de expressão cultural. O próprio Caetano sublinha bem essa circunstância. Como Chico, embora de extrato social inferior e preso na adolescência ao ambiente provinciano de Santo Amaro da Purificação, ele já lia autores literários de importância, já manifestava interesse pela filosofia e também já esboçara alguns passos de iniciação na crítica de cinema. Como ele próprio reconhece, foi a descoberta da bossa nova, antes de tudo da revolução estética introduzida por João Gilberto no cenário musical brasileiro, o que o atraiu para a música. A tudo isso se soma um fator de ordem sociológica importante, a expansão dos meios de comunicação de massa no momento em que a geração de Chico e Caetano ingressa no território musical.

Chico e Caetano tornaram-se amigos no início de suas carreiras. Mas logo a amizade foi estremecida pela própria turbulência estética e política que tão profundamente caracterizou a década de 1960, talvez a mais rica do século 20 brasileiro. É provável que somente a de 1920, desdobrada na década seguinte, lhe possa fazer páreo. A amizade foi abalada quando o tropicalismo irrompeu na cena musical em meio a uma extraordinária atmosfera de turbulência e radicalismo ideológico. A corrente dominante nos movimentos de esquerda era o nacionalismo cultural. Sua radicalização foi tão notável que mesmo representantes da bossa nova como Vinícius de Moraes e Carlos Lyra acabaram atraídos pela música engajada, pela regressão a temas que punham a música e a arte em geral na linha de frente do combate político à realidade social sustentada pelo regime militar. À parte Tom Jobim e João Gilberto, praticamente todos aderem a um movimento de regressão às fontes tradicionais da música e da cultura brasileira afastando-se assim da sofisticação camerística e liricamente apolítica da bossa nova. A pesquisa das fontes folclóricas e nordestinas, de braço dado com o sentido de engajamento político, prevalece na atmosfera agitada dos festivais de música que irrompem somando a celebração coletiva ao embate ideológico nas salas de espetáculo.

O tropicalismo provocou um autêntico curto circuito nas esquerdas, notadamente, por razões óbvias, na esfera musical. Como movimento que alimentou ambições muito amplas, é difícil traçar num artigo ligeiro suas linhas fundamentais. Ressalto aqui, tendo em vista minhas intenções específicas, sua associação com a vanguarda erudita identificável no movimento da arte concreta, liderado pelos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e por Décio Pignatari. Augusto, o mais afinado com a música, tanto a de vanguarda erudita quanto a popular, escreveu naquele momento uma série de artigos polêmicos, de alta tensão crítica, em defesa do tropicalismo. Esses artigos, acrescidos de outros assinados por Júlio Medaglia e Gilberto Mendes, seus companheiros de armas dentro da vanguarda erudita, visavam a defesa radical das mudanças introduzidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Os artigos, que compreendem ainda uma ótima apreciação geral da bossa nova escrita por Brasil Rocha Brito e entrevistas com Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram mais tarde reunidos no volume Balanço da Bossa. Este volume foi mais tarde ampliado e reeditado com o acréscimo de um subtítulo “e outras bossas”. Mesmo o leitor que dele em muitos pontos discorda, é o meu caso, curva-se à força dos fatos para reconhecer que é a melhor avaliação crítica da música à época produzida. Falando da minha experiência de leitor e amante da música brasileira, friso que muito aprendi com esse livro, decisivo para modificar e aprimorar um pouco minha percepção da música popular e das íntimas conexões que a atavam à realidade política e social daquele momento extraordinariamente turbulento e criativo.

Como é típico das vanguardas, o elogio da ruptura estética era indissociável do ataque às correntes opostas. Foi nesse contexto que Augusto de Campos identificou na música de Chico Buarque uma expressão conservadora que precisaria ser criticada sem complacência. Sendo assim, propõe uma relação de antagonismo personalizada em Caetano e Chico. Ampliando o elo das relações antagônicas para melhor definir as linhas de força da cultura brasileira a partir do modernismo, opõe Oswald de Andrade a Mário de Andrade. Estes constituíram as matrizes de um embate renovado na década de 1960 no tropicalismo liderado por Caetano em oposição ao nacionalismo conservador apreensível na música de Chico povoada por bandas, Carolinas e ecos nostálgicos do passado brasileiro.

Oswald de Andrade, que ficara confinado ao quase esquecimento durante duas décadas, é reposto na linha de frente dos movimentos artísticos que agitam a cena cultural nos anos 1960. Além do papel decisivo desempenhado pelos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, outros focos de radicalização estética desencavam sua obra para acirrar o clima de irreverência, rebeldia e ruptura anárquica dos códigos dominantes. É o caso do Teatro Oficina, liderado por José Celso Correa, de Glauber Rocha na esfera do cinema novo, sobretudo do tropicalismo capitaneado por Caetano Veloso, que num certo sentido articula todas essas correntes contestadoras não apenas da cultura oficial guarnecida pela ditadura militar, mas também do nacionalismo de esquerda.

Os representantes da arte concreta, adestrados na polêmica e no combate agressivo a tudo que lhes parecesse conservador, reiteravam assim o sentido mais definidor da vanguarda. Na sua obsessão pelo novo sempre contraposto ao velho, da ruptura no avesso da rotina ou da repetição, viam novidade até onde ela não existia. Apostando no caráter potencialmente renovador dos meios de massa, que poderiam ser agenciados em defesa da ruptura estética e política, associaram-se não apenas ao tropicalismo, mas também à jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos, também de Vanderléa. Eles, os concretistas, que tanto combateram em prol da radicalidade da arte contemporânea, acabaram fabricando aliados inexistentes quando festivamente se integraram à corrente da arte de consumo promovida pelos novos meios de massa. E o fizeram batendo de frente contra o nacionalismo cultural de esquerda e de direita, aí incluída a figura consensual de Chico Buarque e sua música que, sem dúvida, soava conservadora se apreciada pelo metro formal e temático da tropicália.

Outro artifício de que Augusto de Campos se valeu foi o de adotar a tipologia procedente de Ezra Pound, que opõe os inventores, ou a radicalidade vanguardista, aos mestres e por fim aos diluidores. É fácil concluir que identifica Caetano e Gilberto Gil com a invenção, deprecia Chico como um mestre e silencia sobre os diluidores, salvo se os identifica com o grupo impreciso que repisa e dilui os clichês do nacionalismo cultural. Augusto de Campos tem certa margem de razão, mas muito do que combate, assim como muito do que prega, transborda da sua receita polarizadora e intransigente. Em suma, o senso de mediação crítica sai bastante chamuscado pelo ardor vanguardista que singulariza sua ação no âmbito da crítica da música popular.

Dando provas de grande vitalidade criativa, Chico se renovou de forma extraordinária sem abrir mão de sua coerência e fidelidade substancial à melhor e mais viva tradição cultural do Brasil. Quando isso se tornou evidente, o próprio Augusto de Campos voltou à cena do crime em tom mais contemporizador observando que Chico “é ainda um mestre mas se contaminou de invenção” Como seria previsível, atribui o ingrediente de invenção à influência saudavelmente contaminadora de Caetano Veloso. O artifício crítico constitui apenas uma variação da leitura que ele e seu irmão Haroldo fazem de Macunaíma quando subordinam a obra inventiva de Mário de Andrade ao espírito da antropofagia ideado por Oswald de Andrade.

Assentada a poeira da polêmica, logo ficou claro que a aposta dos vanguardistas no caráter de radicalidade da música integrada ao circuito do consumo de massa não passava de canoa furada. É certo que a jovem guarda continha elementos de inegável renovação cultural, à revelia da consciência ingênua dos seus líderes. O exemplo dos Beatles, repetidas vezes invocado por Augusto de Campos, é ainda mais forte. Eles sem dúvida renovaram a música de massa, o pop internacional de modo extraordinário. Mas tudo não passou de um episódio isolado no cerne de um sistema de produção e consumo de massa cuja dominante é a repetição, a diluição que tanta hostilidade inspira àqueles identificados com a vanguarda.

Quanto a Chico e Caetano, felizmente se reencontraram em termos pessoais acima dessas polarizações artificiais propostas por Augusto de Campos. A evidência maior da inconsistência desses antagonismos infundados, tão frequentemente promovidos pelos que personificam a rebeldia estética e a radicalidade das vanguardas, está inscrita antes de tudo na própria qualidade da obra musical que produziram dos anos 1960 ao presente. Um dos grandes méritos do tropicalismo consistiu precisamente no combate que moveu contra a intolerância estética e política traduzida em preconceitos contra a jovem guarda, o baião simbolizado em Luiz Gonzaga e até a nossa tradição brega, o mau gosto em geral, para usar aqui uma expressão bem vaga. Como todavia não vivemos isentos de preconceitos e apreciações duvidosas, o próprio tropicalismo entronizou na cena cultural um outro modo de preconceito, o que visa o nacionalismo cultural sem as discriminações devidas, o que opõe arbitrariamente a tradição à ruptura. Felizmente há muito foi superada a necessidade de os grupos de criação e recepção musical oporem esquematicamente Chico Buarque a Caetano Veloso.