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sábado, 10 de outubro de 2015

A letra plural


Se não relutei em aceitar o convite de Mano Ferreira para me tornar colaborador da revista Café Colombo, relutei, e muito, para me decidir a adotar o título desta coluna. Tanto relutei que precisei escrever este artigo para justificar minha escolha. Na verdade, antes de ser mera justificativa, o artigo tende a ser um roteiro de viagem. Assim encurto o risco de me perder de mim e, pior ainda, perder o leitor que acaso me leia. Portanto, se este artigo inaugural está longe de ser um texto programático (o mundo se tornou tão incerto que somente call girl faz ainda programa), não deixa de ser um enunciado das intenções que espero transportar no curso dessa viagem quinzenal.
Começando pelo título da coluna, a ideia que de início propus a Mano Ferreira foi chamá-la de A Imaginação Liberal. A inspiração procede de um livro de Lionel Trilling, o grande crítico liberal americano que fez da sua militância como crítico literário uma forma coerente e confessa de adesão à tradição liberal americana. Antes disso, como tantos dos grandes intelectuais americanos de sua geração, Trilling filiou-se ao comunismo integrando o corpo de um dos mais importantes periódicos culturais dos EUA: a revista Partisan Review. Como Edmund Wilson e muitos outros, Trilling desiludiu-se com o comunismo soviético, aderiu ao liberalismo e se tornou desde então um crítico implacável do stalinismo. Sua obra mais importante, The Liberal Imagination, acima mencionada, foi traduzida no Brasil em meados dos anos 1960. Só que entre nós recebeu um outro título: Literatura e Sociedade, homônimo da obra igualmente notável de Antonio Candido. O tradutor foi Rubem Rocha Filho. Por acaso conheci-o aqui no Recife no apto. de Jacques e Helena Ribemboim poucos anos antes de morrer. Dado que a imaginação liberal se perdeu no trânsito tardio entre a língua de origem e a de recepção, tentou-me a ideia de batizar minha coluna com ela. Depois de muito relutar, acabei trocando-a pela que dá título a este artigo. É isso o que tentarei explicar abaixo.
O termo liberal e derivados, dentro da nossa tradição intelectual, parece-me demasiado preso à terminologia e à história política. Talvez isso seja um forte indício da nossa incapacidade de implantar nas nossas práticas culturais e políticas uma sólida tradição liberal. Daí, desdobrando ainda meu raciocínio hipotético, as resistências e deformações que o liberalismo tem sofrido no Brasil. Embora na prática tenhamos assimilado muitos dos seus melhores valores (bastaria pensar nos aspectos mais positivos da liberação dos costumes desde os anos 1960, herança antes de tudo da tradição liberal mais avançada que noutros países, como é o caso da Inglaterra, remontam ao século 19), tendemos a associar essas conquistas à esquerda. Trocando em miúdos, ao marxismo e tendências similares. Assim, os avanços no plano dos costumes e direitos civis, que em países de forte tradição liberal decorrem da dinâmica do liberalismo, aqui são atribuídos exclusivamente a ideologias que entendemos antagônicas ao liberalismo. O fato, em suma, é que o liberalismo entre nós é objeto de resistências e graves equívocos históricos e teóricos. O mais grave é que essas resistências tendem a anular um clima de debate livre que poderia esclarecer melhor o sentido dessas divergentes tradições (liberalismo, marxismo, socialismo...) concorrendo assim para melhor esclarecer as ideias e pôr as coisas nos seus devidos lugares. Infelizmente, liberalismo, mesmo nos círculos acadêmicos mais ilustrados, tornou-se neoliberalismo, termo que no geral se confunde com um insulto ideológico que de partida anula qualquer possibilidade de debate.
Estendi-me indevidamente nessas considerações para melhor justificar por que desisti de dar a esta coluna o título de A Imaginação Liberal. Além dos mal-entendidos e preconceitos que de imediato suscitaria, poderia induzir o leitor a pensar que se trata de uma coluna antes de tudo consagrada à discussão da política. Além de não ser um especialista no assunto, sou de resto avesso à política em qualquer sentido militante por formação e temperamento, quero sentir-me à vontade para comentar antes de tudo questões mais variadas, que também incluem a política. Minha perspectiva confessa é liberal. Daí, depois de muito relutar entre muitos títulos que me ocorreram, A Letra Plural que confere o devido batismo à coluna.

Adiciono mais algumas linhas à coluna para melhor esclarecer o sentido que confiro ao termo plural. Mario Vargas Llosa incluiu no volume Sabres e Utopias um texto, intitulado Confissões de um liberal, que define com clareza a concepção de liberalismo que adota. Acrescentaria ser também a minha. Por isso o recomendo ao leitor interessado em melhor demarcar os limites do liberalismo que informará o espírito geral desta coluna. Além de me servir, serve também para demonstrar o quanto Vargas Llosa tem sido incompreendido e até caluniado por ousar romper com as tradições autoritárias latino-americanas à esquerda e à direita aderindo a uma noção prática e teórica do liberalismo infelizmente longe de se consolidar nas nossas relações e instituições sociais. Melhor citar diretamente o parágrafo que condensa o que desejo ressaltar:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação entre Igreja e Estado e defensores da descriminalização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais, que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo, que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado” (p.301).
Minha modesta proposta ao aceitar o convite de Mano Ferreira é expor nesta coluna questões relativas ao liberalismo e sobretudo ao fortalecimento de uma cultura liberal. É alentador, a propósito, constatar que muitos dos melhores intelectuais jovens que leio (evito citar nomes, pois incorreria em omissões indesejáveis) debatem o bom e o mau legado intelectual e ideológico da minha geração isentos da intolerância e dos preconceitos ideológicos que a maior parte da minha geração, também muitos que a precederam e a sucederam, foi e é incapaz de radicalmente revisar. Na cultura encastelada na academia, notadamente, transmite-se um legado de fidelidade intransigente ao marxismo que muito dificulta a renovação ideológica dos estudantes, que obviamente representam os novos agentes de renovação cultural. Esse fato deplorável concentra-se nos programas de pós-graduação, onde os orientandos tendem a reproduzir acriticamente as modas intelectuais e modelos ideológicos impostos pelos mestres e orientadores. Assim procedendo, estes travam o processo de livre debate de ideias que deveria reger o funcionamento institucional da educação de elite. Para além disso, o que é já muito negativo, eles traem o princípio máximo da educação, isto é, educar o aluno para pensar por si próprio. Repetindo o dito célebre de Kant que se tornou apanágio da tradição liberal e humanista, sapere aude. Quem pensa verdadeiramente é quem ousa pensar. Se a cultura acadêmica promovesse este princípio, a história das ideias no Brasil teria sofrido uma profunda e desejável mudança depois que se consumou o fracasso colossal do comunismo. Infelizmente, o Brasil, assim como a América Latina em geral, está longe de ajustar essas contas com a história. Até quando o peso das tradições negativas continuará bloqueando as reformas de que tanto precisamos para ingressar definitivamente na modernidade?
Nota: artigo publicado na revista eletrônica Café Colombo em setembro de 2015 inaugurando minha coluna intitulada Letra Plural. O artigo foi publicado com um título ligeiramente diferente: Da imaginação liberal à letra plural.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Tchecov - As Três Irmãs


As três irmãs Prozorov que conferem título à peça de Tchecov – Olga, Masha e Irina - sofrem o tédio e a infelicidade da vida provinciana num país atrasado de organização política autocrática ainda baseada no trabalho servil. Essa realidade, a do servo doméstico privado de autonomia e portanto dependente de senhores no geral despóticos, transparece em Anfisa, serva da família Prozorov, e em Ferapont, outra personagem de condição servil. Já idosa e desamparada de recursos, Anfisa vive exposta à tirania de Natasha, mulher de Andrei Prozorov. É certo que Olga (Rosalie Crutchley) a ama e protege, assim como suas irmãs. Afinal, foram provavelmente amamentadas e criadas por Anfisa que delas cuidou a vida inteira, realidade social também corrente no patriarcalismo escravocrata nordestino tão singularmente examinado por Gilberto Freyre. Embora a ação da peça seja posterior à abolição da servidão, importa lembrar que a abolição teve efeito antes formal do que real. A lei que aboliu a escravidão no Brasil em 1888 encerra uma realidade histórica muito similar à da servidão russa.

Além das afinidades culturais acima indicadas, seria possível fixar muitos outros paralelos culturais pertinentes e iluminadores entre a Rússia e o Brasil, esta Rússia dos trópicos. Gilberto Freyre, nosso mais refinado historiador social, chamou nossa atenção para esse veio comparativo. Mas ao salientá-lo tenho em mente antes de tudo Natasha´s Dance, de Orlando Figes. Figes foi minha grande descoberta no campo da história cultural. Lendo essa obra extraordinária, admirável painel da história cultural russa que se estende da época de Pedro O Grande ao século 20, aprendi muito sobre a Rússia e através dela sobre o Brasil. Na sua obra, assim como na de Gilberto Freyre, a história social torna-se uma leitura tão apaixonante quanto um romance das proporções de Guerra e Paz.

Orlando Figes é especialista em história cultural russa. Além de Natasha´s Dance, escreveu A People´s TragedyThe Russian Revolution, 1891-1924 e The Whisperers, uma história da vida privada na Rússia durante a era estalinista. Além de escrever com admirável clareza e precisão, Figes dá provas de uma erudição impressionante ao recompor cerca de três séculos da história cultural russa. Também ele ressalta em Natasha´s Dance o tédio e a infelicidade que oprimem as vidas das três irmãs, assim como das demais personagens. O fato de Tchecov não expor razões precisas para a atmosfera abafante da peça induziu alguns críticos a proporem explicações simplistas do tipo: mudem-se para Moscou e isso será o bastante para que suas vidas infelizes também mudem. Propor esse tipo de explicação é confundir a doença espiritual das personagens, como acentua Figes, com um simples estado de desenraizamento geográfico.

As três irmãs sonham com Moscou, onde nasceram e viveram os primeiros anos de suas vidas. Na imaginação exacerbada pelo tédio do horizonte provinciano que as sufoca, Moscou é antes um símbolo, um lugar de nostalgia e sonho pairando no avesso do presente real. Irina, a que mais padece da nostalgia de Moscou, é interpretada por Lynn Redgrave. Como a peça foi produzida pela Rádio BBC e transmitida pela primeira vez em 1965, tinha então 22 ou 23 anos de idade. É impressionante como sua voz soa irreconhecível, aparentando ser a voz de uma mulher muito mais jovem. Não a identificaria de modo algum, não fossem as informações fornecidas pela BBC. No entanto, identifiquei perfeitamente as vozes de Paul Scofield e Ian McKellen, que interpretam respectivamente o tenente-coronel Vershinin e o barão Tuzenbach.

Além do tédio que repassa essas vidas frustradas - e ressalto não aludir apenas às irmãs Olga, Masha (Jill Bennett) e Irina – são muitas as vias de fuga a que recorrem como um antídoto para a realidade que as aprisiona. Esses estados psíquicos e morais tão frequentes nas personagens malogradas da dramaturgia de Tchecov não expressam apenas uma condição metafísica, tédio e malogro próprios à condição humana abstratamente considerada. Como bem observa Elisaveta Fen esboçando um paralelo entre a atmosfera psicossocial da Rússia e a da Inglaterra – aquela caracterizada na realidade russa durante o vintênio em que Tchecov produziu sua obra, esta durante o vintênio correspondente ao entreguerras mundiais – é fácil nelas apreender um estado de espírito assinalado pelo desencantamento em face da vida, o desânimo espiritual, a opressiva sensação de descrença em si próprias e no futuro.

Uma das vias de fuga ou consolação para essas vidas malogradas é bem desenhada no comportamento do tenente-coronel Vershinin. Suas divagações filosóficas – ele sempre acentua em certo tom irônico estar “filosofando” – não passam de fato de puro devaneio, figuração imaginária de um futuro inapreensível tendente ao puro delírio. Das dobras do seu discurso reponta sempre um futuro radiante que será usufruído pelas gerações futuras, enquanto os vivos estão condenados a vidas fracassadas que logo afundarão no esquecimento dos pósteros. Também o barão Tuzenbach compõe variações à volta da mesma rota de fuga. Embora nunca tenha trabalhado na vida, fato que denota sua condição social privilegiada, já que é um nobre montado sobre um vasto exército de trabalhadores servis, vive divagando sobre a excelência do trabalho, sobre o trabalho como necessidade e fundamento da vida ideal que transpira de suas falas.

Masha, casada com o professor Kulighin, padece das mesmas frustrações de suas irmãs. Infeliz com Kulighin, infeliz no ambiente provinciano que tende a acentuar sua nostalgia de Moscou, apaixona-se por Vershinin, tão volúvel nos sentimentos com que a seduz quanto nos devaneios que confunde com projeções filosóficas da realidade. Assim, desmente seus supostos sentimentos de paixão por Masha com a mesma leviandade com que de início os soprara nos ouvidos da sua presa carente. Ele se despede dela e em seguida parte apagando com uma mão o que com a outra antes compusera no avesso das linhas em que os sentimentos se anulam. Quero dizer, onde antes supostamente palpitava a paixão, agora resta apenas a despedida sem pesar real e a inconsciência da dor sofrida por Masha.

No prefácio que escreveu para As Três Irmãs, incluído no volume Prefaces to the Experience of Literature, Lionel Trilling começa por observar que é uma das obras mais tristes da literatura, também uma das mais entristecedoras. Acrescenta, em defesa do seu ponto de vista, que vários membros do Teatro de Arte de Moscou, a companhia dirigida por Constantin Stanislavsky, choraram quando da primeira leitura da peça. O intrigante no episódio, que de resto ilustra o argumento geral de Trilling, consiste no fato de que para Tchecov a peça era uma comédia, quase uma farsa. E o mais intrigante consiste na admissão de que sua apreciação era sincera, não uma contradição provocativa formulada com a intenção de confundir ou contrariar interpretações infundadas ou pelo menos discutíveis. Tanto é verdade que, a julgar pelo testemunho de amigos íntimos, a começar pelo próprio Stanislavsky, manteve até o fim sua convicção.

Trilling empenha-se em desatar esse nó insolúvel. Ao fazê-lo acentua a ambiguidade da obra, assim como seu contexto de recepção. Compreendida no registro ambíguo que caracteriza toda grande obra literária, a peça de Tchecov contém inegáveis traços de comédia. Encaradas num registro irônico, personagens como Vershinin, com suas filosofices devaneantes, assim como sua complicada vida conjugal, o barão Tuzenbach, o Dr. Chebutykin e o capitão Soliony, que mata o barão num duelo estúpido, aniquilando assim o noivado do barão com Irina, são sem dúvida também figuras cômicas. Resta, portanto, a leitura ambígua da peça aqui sugerida e antes sublinhada por Lionel Trilling no seu prefácio. Essa perspectiva amplia a gama de sentidos e possibilidades da obra, o que constitui um modo sumário de reconhecimento da sua excelência estética.

As palavras finais de Sônia em Tio Vânia e as de Olga em As Três Irmãs expressam um doloroso murmúrio de resignação estoica, uma pungente incerteza diante do sofrimento e da vida. Salvo variantes acidentais, o sentido substancial do que dizem nas duas peças é o mesmo. Nada podemos fazer, a não ser continuar vivendo. Precisamos continuar vivendo, não obstante a inevitável sucessão de dias e noites tediosas. E assim continuaremos trabalhando sem pausa, sofrendo as adversidades que o destino nos impõe. E assim viveremos até o dia da nossa morte, quando afinal Deus terá alguma piedade de nós. E então Sônia, que acredita numa vida transcendente, prefigura o repouso que neste mundo nunca conheceremos. O que acabo de escrever é uma paráfrase ou tradução livre das passagens mencionadas neste parágrafo, notadamente a fala de Sônia que encerra Tio Vânia.
Recife, 25 de novembro de 2010.