quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Tchecov - As Três Irmãs


As três irmãs Prozorov que conferem título à peça de Tchecov – Olga, Masha e Irina - sofrem o tédio e a infelicidade da vida provinciana num país atrasado de organização política autocrática ainda baseada no trabalho servil. Essa realidade, a do servo doméstico privado de autonomia e portanto dependente de senhores no geral despóticos, transparece em Anfisa, serva da família Prozorov, e em Ferapont, outra personagem de condição servil. Já idosa e desamparada de recursos, Anfisa vive exposta à tirania de Natasha, mulher de Andrei Prozorov. É certo que Olga (Rosalie Crutchley) a ama e protege, assim como suas irmãs. Afinal, foram provavelmente amamentadas e criadas por Anfisa que delas cuidou a vida inteira, realidade social também corrente no patriarcalismo escravocrata nordestino tão singularmente examinado por Gilberto Freyre. Embora a ação da peça seja posterior à abolição da servidão, importa lembrar que a abolição teve efeito antes formal do que real. A lei que aboliu a escravidão no Brasil em 1888 encerra uma realidade histórica muito similar à da servidão russa.

Além das afinidades culturais acima indicadas, seria possível fixar muitos outros paralelos culturais pertinentes e iluminadores entre a Rússia e o Brasil, esta Rússia dos trópicos. Gilberto Freyre, nosso mais refinado historiador social, chamou nossa atenção para esse veio comparativo. Mas ao salientá-lo tenho em mente antes de tudo Natasha´s Dance, de Orlando Figes. Figes foi minha grande descoberta no campo da história cultural. Lendo essa obra extraordinária, admirável painel da história cultural russa que se estende da época de Pedro O Grande ao século 20, aprendi muito sobre a Rússia e através dela sobre o Brasil. Na sua obra, assim como na de Gilberto Freyre, a história social torna-se uma leitura tão apaixonante quanto um romance das proporções de Guerra e Paz.

Orlando Figes é especialista em história cultural russa. Além de Natasha´s Dance, escreveu A People´s TragedyThe Russian Revolution, 1891-1924 e The Whisperers, uma história da vida privada na Rússia durante a era estalinista. Além de escrever com admirável clareza e precisão, Figes dá provas de uma erudição impressionante ao recompor cerca de três séculos da história cultural russa. Também ele ressalta em Natasha´s Dance o tédio e a infelicidade que oprimem as vidas das três irmãs, assim como das demais personagens. O fato de Tchecov não expor razões precisas para a atmosfera abafante da peça induziu alguns críticos a proporem explicações simplistas do tipo: mudem-se para Moscou e isso será o bastante para que suas vidas infelizes também mudem. Propor esse tipo de explicação é confundir a doença espiritual das personagens, como acentua Figes, com um simples estado de desenraizamento geográfico.

As três irmãs sonham com Moscou, onde nasceram e viveram os primeiros anos de suas vidas. Na imaginação exacerbada pelo tédio do horizonte provinciano que as sufoca, Moscou é antes um símbolo, um lugar de nostalgia e sonho pairando no avesso do presente real. Irina, a que mais padece da nostalgia de Moscou, é interpretada por Lynn Redgrave. Como a peça foi produzida pela Rádio BBC e transmitida pela primeira vez em 1965, tinha então 22 ou 23 anos de idade. É impressionante como sua voz soa irreconhecível, aparentando ser a voz de uma mulher muito mais jovem. Não a identificaria de modo algum, não fossem as informações fornecidas pela BBC. No entanto, identifiquei perfeitamente as vozes de Paul Scofield e Ian McKellen, que interpretam respectivamente o tenente-coronel Vershinin e o barão Tuzenbach.

Além do tédio que repassa essas vidas frustradas - e ressalto não aludir apenas às irmãs Olga, Masha (Jill Bennett) e Irina – são muitas as vias de fuga a que recorrem como um antídoto para a realidade que as aprisiona. Esses estados psíquicos e morais tão frequentes nas personagens malogradas da dramaturgia de Tchecov não expressam apenas uma condição metafísica, tédio e malogro próprios à condição humana abstratamente considerada. Como bem observa Elisaveta Fen esboçando um paralelo entre a atmosfera psicossocial da Rússia e a da Inglaterra – aquela caracterizada na realidade russa durante o vintênio em que Tchecov produziu sua obra, esta durante o vintênio correspondente ao entreguerras mundiais – é fácil nelas apreender um estado de espírito assinalado pelo desencantamento em face da vida, o desânimo espiritual, a opressiva sensação de descrença em si próprias e no futuro.

Uma das vias de fuga ou consolação para essas vidas malogradas é bem desenhada no comportamento do tenente-coronel Vershinin. Suas divagações filosóficas – ele sempre acentua em certo tom irônico estar “filosofando” – não passam de fato de puro devaneio, figuração imaginária de um futuro inapreensível tendente ao puro delírio. Das dobras do seu discurso reponta sempre um futuro radiante que será usufruído pelas gerações futuras, enquanto os vivos estão condenados a vidas fracassadas que logo afundarão no esquecimento dos pósteros. Também o barão Tuzenbach compõe variações à volta da mesma rota de fuga. Embora nunca tenha trabalhado na vida, fato que denota sua condição social privilegiada, já que é um nobre montado sobre um vasto exército de trabalhadores servis, vive divagando sobre a excelência do trabalho, sobre o trabalho como necessidade e fundamento da vida ideal que transpira de suas falas.

Masha, casada com o professor Kulighin, padece das mesmas frustrações de suas irmãs. Infeliz com Kulighin, infeliz no ambiente provinciano que tende a acentuar sua nostalgia de Moscou, apaixona-se por Vershinin, tão volúvel nos sentimentos com que a seduz quanto nos devaneios que confunde com projeções filosóficas da realidade. Assim, desmente seus supostos sentimentos de paixão por Masha com a mesma leviandade com que de início os soprara nos ouvidos da sua presa carente. Ele se despede dela e em seguida parte apagando com uma mão o que com a outra antes compusera no avesso das linhas em que os sentimentos se anulam. Quero dizer, onde antes supostamente palpitava a paixão, agora resta apenas a despedida sem pesar real e a inconsciência da dor sofrida por Masha.

No prefácio que escreveu para As Três Irmãs, incluído no volume Prefaces to the Experience of Literature, Lionel Trilling começa por observar que é uma das obras mais tristes da literatura, também uma das mais entristecedoras. Acrescenta, em defesa do seu ponto de vista, que vários membros do Teatro de Arte de Moscou, a companhia dirigida por Constantin Stanislavsky, choraram quando da primeira leitura da peça. O intrigante no episódio, que de resto ilustra o argumento geral de Trilling, consiste no fato de que para Tchecov a peça era uma comédia, quase uma farsa. E o mais intrigante consiste na admissão de que sua apreciação era sincera, não uma contradição provocativa formulada com a intenção de confundir ou contrariar interpretações infundadas ou pelo menos discutíveis. Tanto é verdade que, a julgar pelo testemunho de amigos íntimos, a começar pelo próprio Stanislavsky, manteve até o fim sua convicção.

Trilling empenha-se em desatar esse nó insolúvel. Ao fazê-lo acentua a ambiguidade da obra, assim como seu contexto de recepção. Compreendida no registro ambíguo que caracteriza toda grande obra literária, a peça de Tchecov contém inegáveis traços de comédia. Encaradas num registro irônico, personagens como Vershinin, com suas filosofices devaneantes, assim como sua complicada vida conjugal, o barão Tuzenbach, o Dr. Chebutykin e o capitão Soliony, que mata o barão num duelo estúpido, aniquilando assim o noivado do barão com Irina, são sem dúvida também figuras cômicas. Resta, portanto, a leitura ambígua da peça aqui sugerida e antes sublinhada por Lionel Trilling no seu prefácio. Essa perspectiva amplia a gama de sentidos e possibilidades da obra, o que constitui um modo sumário de reconhecimento da sua excelência estética.

As palavras finais de Sônia em Tio Vânia e as de Olga em As Três Irmãs expressam um doloroso murmúrio de resignação estoica, uma pungente incerteza diante do sofrimento e da vida. Salvo variantes acidentais, o sentido substancial do que dizem nas duas peças é o mesmo. Nada podemos fazer, a não ser continuar vivendo. Precisamos continuar vivendo, não obstante a inevitável sucessão de dias e noites tediosas. E assim continuaremos trabalhando sem pausa, sofrendo as adversidades que o destino nos impõe. E assim viveremos até o dia da nossa morte, quando afinal Deus terá alguma piedade de nós. E então Sônia, que acredita numa vida transcendente, prefigura o repouso que neste mundo nunca conheceremos. O que acabo de escrever é uma paráfrase ou tradução livre das passagens mencionadas neste parágrafo, notadamente a fala de Sônia que encerra Tio Vânia.
Recife, 25 de novembro de 2010.

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