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domingo, 15 de julho de 2012

Estação Tolstoi


O primeiro parágrafo de Anna Karenina, de Tolstoi, é justificadamente um dos mais atraentes e inesquecíveis da literatura universal. Mal o percorre, o leitor é prontamente seduzido por aquelas palavras impregnadas de ressonâncias imaginativas e assim atravessa o livro volumoso tomado pelo desejo de desvendar a história singular de cada família infeliz. As felizes decerto não lhe passam pela cabeça, já que são todas iguais, segundo a apreciação do autor. Ou será que há leitores seduzidos pela história de Anna Karenina supondo desvendar a história de uma heroína pertencente a uma família feliz? Cada família infeliz é infeliz de modo próprio ou singular.

O problema que de imediato me ocorre é refutar a ilusão contida na ideia de família feliz. Tolstoi, como sua heroína, não nasceu nem viveu numa família feliz. Nem como filho, cujos pais morreram quando era muito pequeno, nem como pai e ancião às portas da morte, como o comprova o filme de Michael Hoffman baseado no romance homônimo A última estação (The last station), de Jay Parini. Além de não conhecer o que muitos acreditam ser uma família feliz, Tolstoi foi um homem complexo e atormentado, sempre dividido nos seus desejos, ações, e convicções mais profundas. Depois de viver como sua esposa durante 48 anos, sua mulher Sofya confessou ignorar que tipo de homem ele era.

Comecei este artigo evocando o parágrafo de abertura de Anna Karenina porque o filme de Michael Hoffman me fez evocá-lo num sentido tragicamente irônico. O filme induziu-me ainda a uma outra associação que reforça a tragédia irônica patente no fim da vida do grande escritor e líder religioso, figura revestida de uma aura profética disseminada não apenas na Rússia autocrática saturada de misticismo, mas em grande parte do mundo. A outra associação que me ocorreu remete a Shakespeare e King Lear, tão grosseiramente incompreendidos por Tolstoi num ensaio intitulado “Sobre Shakespeare e o teatro”. Como não perceber essas duas ironias trágicas que singularizam o último ano de vida de Tolstoi condensado no filme de Hoffman? Difícil imaginar família mais infeliz que a dele, assim como é quase inevitável a identificação entre o ancião doente e atormentado fugindo da própria casa e família e o rei traído e desamparado pelas filhas a quem insensatamente transferiu seu poder.
Como observei, a ação do filme concentra-se no último ano de vida de Tolstoi (Christopher Plummer). Investido da liberdade imaginativa característica da literatura de ficção, mesmo quando inspirada em personagens e eventos históricos, Jay Parini nos revela o último ano da vida de Tolstoi, sua turbulenta relação com sua mulher Sofya (Helen Mirren), a implacável rivalidade entre esta e Chertkov (Paul Giamatti), líder do movimento religioso baseado nos escritos de Tolstoi, centrado na perspectiva de Valentim Bulgakov (James McAvoy). Bulgakov foi enviado por Chertkov para Yasnaya Polyana depois que o secretário de Tolstoi foi preso. Sua função expressa era não só substituir o secretário precedente, mas também espionar a ação de Sofya em benefício de Chertkov e do movimento religioso que este coordenava.

A rivalidade entre Sofya e Chertkov precipita o fim trágico de Tolstoi, disputado sem tréguas por interesses e paixões intransigentes. O inferno doméstico em que Tolstoi e Sofya viveram durante anos foi desencadeado quando o escritor adotou uma forma anárquica de cristianismo que acabou resultando na sua excomunhão da Igreja Ortodoxa, além de convertê-lo em inimigo da autocracia russa. Talvez o espectador que pouco conheça Tolstoi e o movimento religioso que liderou - em termos de organização e ação prática encabeçado por Chertkov, punido com dez anos de exílio – se surpreenda ao ler nas cenas iniciais do filme que Tolstoi era então o escritor mais celebrado do mundo. A informação seria mais precisa se esclarecesse que a celebridade decorria antes do papel religioso do que literário exercido pelo autor de Guerra e paz. Hoje o que antes de tudo sobrevive é o escritor literário, mais uma razão para a compreensível surpresa do meu hipotético espectador. O tolstoísmo que se difundiu pelo mundo durante o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, influenciando poderosamente personagens históricos excepcionais como Gandhi e Wittgenstein, é hoje uma pálida memória em meio à babel das seitas e movimentos religiosos concorrentes no mercado da fé.

O jovem e casto Bulgakov, dócil seguidor do tolstoísmo, tanto que de início nada questiona nos seus líderes nem nas ações e pregações correntes na comunidade em que passa a viver, sofre de um sintoma revelador da sua tibieza. Espirrar é sua reação compulsiva sempre que se defronta com uma situação que lhe provoca embaraço, relutância ou temor. Lembrei-me de que Mario Vargas Llosa usa artifício literário semelhante para caracterizar psicologicamente a cegueira ideológica do protagonista de A guerra do fim do mundo, inspirado em Euclides da Cunha. Por isso cheguei a supor que o livro de Vargas Llosa seria a fonte desse detalhe caracterizador de Bulgakov. Somente mais tarde descobri, ouvindo comentários do próprio diretor do filme, que a fonte inspiradora fora um conto delicioso e pouco conhecido de Tchekhov: “The Sneeze” (“O Espirro”). O alcance crítico da alusão é maior do que aparenta, pois me parece esclarecer o tom tchekhoviano (com perdão do neologismo), ou tragicômico que pontua muitas das melhores cenas do filme.

Mais do que o centro da propriedade rural do nobre Leon Tolstoi, Yasnaya Polyana tornou-se um lugar mítico, santuário para onde acorriam peregrinos e místicos tocados pela fé nos ensinamentos religiosos de Tolstoi. O cristianismo anárquico concebido por Tolstoi representa Jesus não como um deus, mas como um ser humano investido de virtudes humanas excepcionais. É baseado nesse princípio que Tolstoi define sua versão do evangelho e procura pautar sua ação no mundo. Inspira-se ainda nas tradições místicas do mujique, o camponês russo, fonte mítica inspiradora do populismo russo contraposto à corrente dos ocidentalistas, que divisavam nos valores modernos dos países europeus mais avançados a solução para o atraso social e político da Rússia.

Tolstoi pregou e tentou praticar, sempre emaranhando-se em contradições penosas agravantes do seu caráter atormentado, um tipo de socialismo do qual decorria sua convicção de que a propriedade era um roubo, inclusive a intelectual. Essa questão está na raiz da rivalidade entre Sofya e Chertkov. Enquanto este não mediu esforços e maquinações para fazer com que Tolstoi afinal assinasse um documento convertendo sua obra em propriedade pública (Tolstoi não escrevia para os editores, como afirma numa cena do filme, mas para o povo), aquela lutou tenazmente para preservar todas as propriedades do marido em benefício de si própria e da família. Chertkov venceu provisoriamente, como é evidente no filme, ao convencer Tolstoi a transformar sua obra em propriedade pública. Mais tarde, porém, já depois da morte do escritor, a lei do regime autocrático por ele combatido devolveu à viúva a propriedade causadora de muitos dos conflitos e tormentos compreendidos pela trama do filme.

Tolstoi afirma que o amor é o valor universal que liga todas as religiões. Se ele tem acaso razão, a verdade que prega, como todo órfão do absoluto, tem validade puramente abstrata ou teórica. Infelizmente, a história da religião desmente de ponta a ponta a verdade que prega, que antes dele Jesus Cristo e outros homens excepcionais também pregaram, não raro ao preço da liberdade e da vida. Saltando do absoluto religioso para o político, ou ideológico em geral, o que realisticamente se impõe é a impossibilidade do absoluto no reino contingente e falível da realidade humana. O que infelizmente vemos e sofremos acompanhando na tela as vidas dos seres que se amam, mas sobretudo se combatem e se castigam no microcosmo de Yasnaya Polyana, é a prevalência do mal. Eis mais uma ironia trágica pontuando o fim de Tolstoi, esse homem tão atormentado e perseguido pela miragem do absoluto.

Isaiah Berlin, um dos estudiosos que mais profundamente perscrutaram esse homem genial e indecifrável, escreveu um dos mais citados ensaios contemporâneos movido pela ambição de o explicar. Refiro-me a “O porco-espinho e a raposa” (“The hedgehog and the Fox”). Berlin propõe a tipologia que confere título a seu ensaio com o propósito de explicar o conflito insolúvel que atormentou a vida de Tolstoi. Como toda tipologia, esta não escapa ao risco da simplificação grosseira, sobretudo quando manejada por intérpretes canhestros ou dogmáticos. Não é o caso de Isaiah Berlin, talvez o mais refinado e perceptivo filósofo político e ensaísta da moderna tradição liberal. Seguindo a distinção que propõe ao esboçar sua tipologia, a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe apenas uma, mas ela é sumamente importante. Fixada esta baliza distintiva, o ensaísta enumera alguns dos grandes nomes da cultura identificando-os ora com a raposa (Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Puchkin, Joyce...), ora com o porco-espinho (Platão, Dante, Pascal, Dostoievski, Nietzsche...).

O grande infortúnio de Tolstoi, segundo a admirável argumentação que Isaiah Berlin desdobra ao longo do seu ensaio, foi acreditar que era um porco-espinho, quando era por natureza uma raposa. Nos seus escritos religiosos ou proféticos, quem se impõe é o porco-espinho, não raro enrijecido num moralismo que o impeliu a incorrer em erros e injustiças desconcertantes num homem dotado de gênio. Bastaria pensar na apreciação crítica absurda que faz de Shakespeare contida no ensaio acima citado. Sua pregação moralista e dogmática estende-se à apreciação da arte em geral, sem poupar sequer sua própria obra. Também sua percepção do mundo moderno, sua aversão à ciência e à tecnologia, é de uma estreiteza espantosa. Seu moralismo sexual beira a hipocrisia mais chã enredando-se em extremos de contradição e culpa. Portanto, o que me parece mais importar em Tolstoi, e é isso que lhe assegura a imortalidade incontestável, é a obra literária na qual se espelha sua autêntica natureza: a natureza da raposa que sabe muitas coisas, embora nenhuma seja exclusiva ou absoluta.
Recife, 10 de julho de 2012.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Alain Finkielkraut


Um coração inteligente

Alain Finkielkraut, de origem polonesa, é um ensaísta e professor que se distingue na França por ser o que noutros tempos se conhecia como intelectual público. Atualizando a expressão, diríamos que é hoje um intelectual midiático, assim como no Brasil são ou foram Paulo Francis, Marilena Chauí (entre parêntesis: onde andará a grande profetisa da ética petista na polícia? Perdão, quis dizer política. Lula explica. Se o mensalão tem uma vítima, e mais que merecida, diria ser ela.) Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris, Marcelo Coelho e tantos outros. Finkielkraut é também um dos rebentos da geração conhecida como os novos filósofos, um grupo barulhento de jovens pós-sartreanos que fez muito barulho, como é de praxe na inteligência francesa, e bem pouca filosofia que sobreviva.

Finkielkraut reaparece na cena intelectual brasileira com um livro surpreendentemente consagrado à literatura. Começo pelo melhor, pelo que de pronto me atraiu no livro: o título. Eis um belo título: Um coração inteligente. Finkielkraut introduz seu título e a devida obra evocando a súplica que o rei Salomão fez a Deus: que Deus lhe desse um coração inteligente. A julgar pela tradição bíblica, Deus lhe deu, sim, um coração inteligente. Como há muito já não existe rei ou governante do feitio de Salomão, até porque o Deus e a política da modernidade são definitivamente entidades de ordem secular, é compreensível e até sábio o fato de Finkielkraut debruçar-se sobre as fontes da literatura tocado pela esperança de fazer do seu um coração inteligente, além de intentar comunicá-lo ao coração dividido do leitor.

Por que afirmei eu que o coração do leitor, o nosso, é um coração dividido? Porque penso que essa bela unidade expressa no titulo da obra foi cindida por forças e movimentos de ideias típicos da modernidade. Rousseau, pai fundador da filosofia e da literatura romântica, elevou a sensibilidade (isto é, o coração) à condição de ideal supremo. No outro lado do canal, na Inglaterra, Jeremy Bentham e sobretudo James Mill e seu filho John Stuart Mill expulsaram o coração do reino da inteligência ao consagrarem o princípio da utilidade como fundamento da filosofia utilitarista. Claro que simplifico a história moderna das relações entre o coração e a inteligência na modernidade. Mas o enredo geral bem pode ser assim esboçado. Esta é a cisão que percorre o espírito do livro de Finkielkraut e portanto cuidarei de a retomar mais abaixo.

Entendo que o coração inteligente é aquele que conjuga a emoção e a inteligência, a sensibilidade e o intelecto. Se é possível imaginar uma razão absolutamente fria e um coração puramente cego, temos aí o primeiro motor ou a fonte suprema da catástrofe, seja num extremo, seja no outro. É essa a consequência da cisão entre os pares complementares que são a sensibilidade e a inteligência. Como ressalta Finkielkraut, o possesso e o burocrata são perversões atuais desses pares complementares. Pervertem-nos não apenas porque os dividem, mas sobretudo porque, assim procedendo, dão um passo adiante e convertem um dos polos em ideal absoluto ou norma suprema de vida.

O possesso, sabe o leitor, é uma alusão implícita ao romance Os possessos (também traduzido como Os demônios), de Dostoiévski. Estes convertem a paixão revolucionária, ou o coração fanatizado, no absoluto que, na história política, produziu insanidades como o reinado do terror, durante a revolução francesa, o stalinismo e o nazismo. O burocrata, esse funcionário sem alma, é o carcereiro da modernidade, daquilo que Max Weber, teórico supremo da burocracia e dos processos de racionalização da modernidade, designou como a jaula de aço (iron cage) do mundo em que vivemos. Se querem um exemplo extremo desse burocrata sem alma, lembrem-se de Eichmann, julgado e condenado em Jerusalém e objeto de um livro momentoso e definitivo da filosofia política do século vinte escrito pela grande Hannah Arendt.

Penso que o eixo do livro de Finkielkraut consiste nas linhas de força e tensão que procurei esboçar nos parágrafos precedentes. Mas saiba o leitor que ele não o expõe, o eixo a que me refiro, com a clareza que intentei verter sobre esta resenha. Ele acredita, assim como eu, que é na literatura que tecemos o coração inteligente. Não em Deus, como acreditava Salomão, pois Deus, imerso no seu silêncio, é indiferente à nossa súplica. De resto, introduzindo aqui um travo de mordacidade, quem hoje suplica a Deus um coração inteligente? Os fiéis suplicantes que de ordinário encontro e ocasionalmente ouço suplicam a Deus as benesses do bezerro de ouro que é a nossa sociedade de consumo. Portanto, dou razão a Finkielkraut: é na literatura que podemos talvez identificar essa unidade rompida entre a sensibilidade e a inteligência.

Guiado pelo princípio acima exposto, Finkielkraut seleciona algumas obras da literatura escritas entre os séculos 19 e 20 para ilustrar seu argumento. Dentre os autores que estuda, há dois que desconheço completamente e, até onde sei, são praticamente desconhecidos no Brasil. Refiro-me a Vassili Grossman e Sebastian Haffner. Os demais são autores canônicos da literatura moderna: Dostoiévski, Joseph Conrad, Henry James, Karen Blixen (também conhecida como Isak Dinesen, seu pseudônimo literário), Albert Camus, Milan Kundera e Philip Roth. De cada um desses autores, Finkielkraut seleciona uma obra específica e daí se empenha antes em descrever do que demonstrar o coração inteligente que esses grandes ficcionistas narram.

A insuficiência do livro me parece consistir precisamente nisso: na prevalência da descrição sobre a demonstração. Quero noutras palavras dizer que Finkielkraut, ao estudar uma obra determinada de cada um dos ficcionistas acima mencionados, limita-se quase sempre a parafrasear ou transpor em estilo próprio as narrativas que no seu entender justamente traduzem no plano do imaginário ficcional a experiência do coração inteligente. O livro seria com certeza bem melhor se ele se aventurasse a melhor demonstrar seu argumento em defesa da literatura contra a filosofia e as ciências sociais.

Na página de abertura do capítulo dedicado a um conto de Karen Blixen, A festa de Babette, Finkielkraut opõe francamente a literatura à filosofia e às ciências sociais tomando o partido da primeira. Ele acredita que o sentido do conto de Karen Blixen consiste em nos revelar na forma de uma narrativa, ou de uma história, o que significam grandes valores humanos como a civilização, a arte, o ideal e a graça. Quando se propõem questões dessa natureza, o filósofo e o cientista social recorrem ao pensamento especulativo, no caso do primeiro, e aos métodos indutivo e comparativo, no caso do segundo. O narrador ficcional, por sua vez, simplesmente inventa uma história, traduz na forma de uma narrativa as abstrações mentais do filósofo e do cientista social. Assim procedendo, e essa é na verdade a natureza do seu ofício, ele reconcilia a sensibilidade e a razão.
Traduzindo no plano do imaginário ficcional as questões fundamentais da experiência humana, o narrador converte a atividade especulativa e os conceitos abstratos em ação humana reinventada num enredo vivido por personagens portadores das qualidades sensíveis características de todo ser humano. Assim procedendo, ele reconcilia na obra de arte o coração e a inteligência, a sensibilidade e a razão. Em suma, ousaria afirmar que ser um grande criador literário, assim como ser um grande leitor, é ter o privilégio de possuir um coração esclarecido.

Alain Finkielkraut. Um coração inteligente.
Tradução: Marcos de Castro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Olhos Negros



Olhos Negros (Oci Ciornei, Dark Eyes, 1987) é um filme livremente baseado em três contos de Tchecov: The lady with the pet dog, Anna on the neck e The name-day party. O diretor Nikita Mikhalkov, também co-roteirista, transpõe a trama e os personagens destes contos para a Itália do início do século, no esplendor da belle époque, onde engenhosamente funde-os com personagens de extração italiana.

O filme começa a bordo de um cruzeiro turístico. Aí casualmente se encontram o garçom Romano (Marcello Mastroianni) e o comerciante russo Pavel (Vsevolod Larionov). Sentados no restaurante ainda vazio, o primeiro conta sua história ao segundo, que viaja pela Itália em lua de mel. A esposa o aguarda no convés do navio. A construção da narrativa é admiravelmente arquitetada, pois ao cabo saberemos que a esposa de Pavel é a russa que Romano amou ao ponto de tramar uma história que o levou à Rússia como suposto representante de uma fábrica de vidros.

Começando pelo começo, Romano é um arquiteto fracassado e parasita. Graças a seu casamento com Elisa (Silvana Mangano), filha de um banqueiro, vive numa mansão onde desfruta dos requintes de uma rica família italiana. Sua vida foi dissipada na ociosidade e em amores volúveis, pois não passa de um mulherengo insaciável que vive às custas da mulher rica. Homem desprovido de projeto, uso o termo no sentido mais genérico possível, Romano é um Macunaíma ítalo-russo às voltas com as mais engraçadas e sedutoras estripolias.

A pretexto de curar uma doença imaginária, mais uma das suas sucessivas malandragens, interna-se numa estação de águas (spa), onde conhece Anna (Elena Sofonova), a russa com o cachorrinho. Apaixonam-se e ao se entregarem ao amor vivem todas aquelas delícias e luminosos estados de intimidade e beleza que quem assim lindamente amou bem sabe o que é. Um dia Anna desaparece sem explicação. A explicação deixa-a numa carta... em russo. Que fazer, se Romano nada sabe de russo, se ninguém à sua volta sabe russo? Por fim, procura uma professora universitária, que traduz a carta. Só então fica sabendo que Anna, segundo suas próprias palavras, sumiu por fraqueza, por medo do amor intenso que com ele vivia. Romano ouve comovido a leitura da carta e então se decide a procurá-la na Rússia. Parece enfim que o amor terá o poder de infundir-lhe energia para lutar na vida por algo: o amor de Anna. Trama com Manlio, marido de Tina (interpretada pela linda Marthe Keller), a instalação de uma fábrica de vidros. Sua peregrinação através dos labirintos da burocracia czarista rende cenas de sátira primorosa à altura das melhores páginas de Gogol e Tchecov sobre o assunto.

Quando enfim a encontra, trocadas as juras de amor previsíveis, promete-lhe ir à Itália para se tornar um homem livre e afinal regressar à Rússia para viver com ela. Quando todavia reencontra Elisa, ocupada em fazer as malas e vender a mansão, pois os prenúncios de falência antes anunciados se confirmam, Romano recai na pusilanimidade de Macunaíma. Elisa encontrara a carta em russo escrita por Anna. Pergunta-lhe no momento decisivo da trama de quem é aquela carta perfumada cujo conteúdo evidentemente lhe é inacessível. Mais precisamente, pergunta-lhe se tem uma mulher na Rússia. Romano hesita e por fim nega Anna e seu amor diante de Elisa. Esta se recompõe e rasga a carta como quem diz: está tudo resolvido e assim novamente reinará a paz conjugal.

Consumada a falência da família rica que lhe garantia sustento privilegiado e dispensadas as explicações desnecessárias ao andamento do entrecho, eis Romano reduzido à condição de garçom. É nesse ponto, como de início assinalei, que o filme começa e agora é retomado. O filme acaba no momento em que Pavel vai ao encontro da esposa, a Anna da história, para levá-la ao restaurante onde encontrarão Romano.
Para além da personagem sedutora que é Romano, as mulheres não resistem a tipos assim, ressalta no filme uma questão de fundo ético que também pontua o universo ficcional de Macunaíma. Retomo este até porque identifiquei em Romano seu correspondente ítalo-russo. A questão de fundo ético se põe, por exemplo, na relação amorosa entre ele e Anna. Embora ela fuja do amor punindo-se por sua covardia, o verdadeiro covarde é Romano, homem privado da espessura ética necessária à experiência amorosa vivida no grau de autenticidade e entrega suposta numa personagem do feitio de Anna. O contraste ético é ainda mais nítido entre Romano e Pavel. Isso fica bem claro no final do filme quando este se indigna diante do descaso com que Romano arremata sua história de amor com Anna. Romano justifica-se alegando que estamos no século 20, quando ninguém mais se importa com ninguém. É aí que Pavel o contesta de forma veemente contrapondo-lhe seu amor paciente e tenaz por Anna, apesar de anos de recusa afinal abrandados por um casamento sem amor, firmado em bases de companheirismo afetivo.

Estou tão descontente com esse relato insosso e parcial do enredo do filme que por pouco não desisto desta resenha insípida. Acentuando uma verdade estética elementar, não importa na obra de arte o conteúdo, mas sim a forma como ele é transposto para o universo das convenções estéticas. Portanto, o enredo que acabo de toscamente resumir não dá ao leitor a mais vaga ideia da beleza extraordinária deste filme. Nikita Mikhalkov logrou recriar com fina sensibilidade fílmica o universo ficcional apaixonante dos contos de Tchecov mesclando habilmente tons líricos e satíricos cujos efeitos afetam o espectador de forma comovente. Há cenas de intensidade lírica e satírica –no spa, por exemplo, assim como na mansão de Elisa e durante as apaixonantes aventuras de Romano na Rússia – que me fizeram evocar o grande Fellini de Amarcord.

Aos méritos do diretor e co-roteirista somam-se a bela fotografia do filme e o elenco marcante do qual sobressai o talento excepcional de Marcello Mastroianni. Sua interpretação de Romano, esse Macunaíma italiano, é de fato soberba. Ele contracena com verve e histrionismo insuperáveis com os atores russos nas cenas ambientadas em Sisoiev, a cidade onde reencontra Anna. A cena campestre, de insólita beleza repassada pela nostalgia profunda da canção “Nanna Ninna”, comove o espectador de forma indizível. Romano evoca a imagem remota da mãe, da infância, e assim com ele mergulhamos numa atmosfera de sonho e sortilégio que somente a mais pura arte nos propicia. Como traduzir esses momentos de pura epifania numa resenha tão insuficiente? Melhor encerrar recomendando ao leitor que esqueça a resenha e veja o filme, o que vale como uma forma discreta de admitir a irrelevância da pequena crítica em face da grande obra de arte.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Onegin


Paixão Proibida (Onegin)

Segundo o consenso crítico, Onegin, de Alexander Pushkin, é a obra fundadora da modernidade literária na Rússia. Romance composto em versos, consumiu anos de trabalho dentro da evolução criativa de Pushkin e por fim converteu Onegin e Tatiana, protagonistas da obra, em símbolos literários de uma cultura, então periférica no contexto europeu, que ao longo do século realizou a façanha de inscrever definitivamente a literatura russa no cerne da cultura universal. O fato é um problema fascinante e aparentemente insolúvel para os estudiosos, digamos os sociólogos da arte e da cultura, que precisam explicar como um país regido por uma autocracia impiedosa, povoado por uma massa de camponeses castigados pela servidão e uma elite alienada da cultura do seu povo foi capaz de produzir gênios de força criativa impressionante como Pushkin, Gogol, Turgueniev, Dostoiévski, Tolstói e Tchecov. É claro que poderia acrescentar a estes, sem dúvida maiores, alguns outros também incorporados à mais alta tradição literária do Ocidente. A obra de Joseph Frank Dostoevsky – A Writer in his Time, e também Natasha´s Dance, do historiador da cultura Orlando Figes, fornecem o mais denso e impressionante painel histórico para que melhor apreciemos essa experiência artística singular. A elas acrescentaria uma obra de Isaiah Berlin já traduzida no Brasil: Os Pensadores Russos (Russian Thinkers).

A adaptação cinematográfica de Onegin é em larga medida um empreendimento da família Fiennes cujo nome mais célebre é Ralph Fiennes, que interpreta Onegin com talento excepcional, como de hábito. Ralph foi também o produtor executivo do filme. A diretora é Martha Fiennes, irmã de Ralph, e a música é de autoria de Magnus Fiennes. Aliás, importa registrar a beleza da trilha sonora, notadamente a valsa que constitui o núcleo temático da trilha. Ressaltaria por fim o roteiro, coassinado por Michael Ignatieff, biógrafo de Isaiah Berlin. Ambos, Ignatieff e Berlin, são intelectuais de ascendência russa. Embora canadense, Ignatieff é filho de um diplomata russo e viveu muitos anos na Inglaterra onde se distinguiu como apresentador de um programa de televisão da BBC simplesmente inconcebível na mídia brasileira dada a excelência do seu nível intelectual. Refiro-me ao programa The Late Show que me conferiu a oportunidade de ver e ouvir pouco antes das frias e solitárias meias-noites inglesas intelectuais do porte de Isaiah Berlin, Christopher Lasch, Harold Pinter, Simon Schama, Martin Amis, Salman Rushdie, Ewan McEwan... Ressaltaria, por fim, o romancista e poeta D. M. Thomas, responsável pela tradução e adaptação das cartas de Onegin e Tatiana incorporadas ao roteiro do filme. Seu romance de maior repercussão é O Hotel Branco (The White Hotel), já traduzido no Brasil.

Onegin e Tatiana (Liv Tyler) são filhos russos de Rousseau. Quero dizer, expressam nos seus modos de sensibilidade a sensibilidade romântica cuja paternidade pode ser atribuída à obra de Rousseau. É certo que antes e sobretudo depois dele houve quem expressasse, na vida quanto na obra, esse modo de sensibilidade que vincou de forma profunda a ascensão da burguesia no século 19. Mas ninguém superou Rousseau na radicalidade filosófica e estética com que reivindicou a soberania da sensibilidade individual contraposta à tradição dos costumes da nobreza, ao racionalismo e ao materialismo e utilitarismo burgueses. Portanto, não é à toa que Onegin e Tatiana, já na primeira conversa que travam, sintomaticamente na livraria do primeiro, aludem explicitamente a Rousseau. Onegin recomenda a Tatiana a leitura de A Nova Heloísa (La Nouvelle Héloïse), romance em forma epistolar que causou efeitos devastadores à época em que vivem os protagonistas de Paixão Proibida (Onegin).

Tatiana é uma jovem bela, reclusa na solidão impregnada pela ficção romântica que mudou radicalmente os modos de sensibilidade dominantes estendendo seus efeitos à própria atmosfera da cultura contemporânea, quando agora mergulha numa crise dilacerante que evidentemente não teria como considerar nos limites desta crítica baseada no filme. Sua concepção do amor, fundada na idealização do objeto amoroso e na autenticidade radical da sensibilidade de quem ama, atesta o quanto simboliza a sensibilidade romântica consagrada na obra de Rousseau. Sugerindo um paralelo com outra personagem fundamental da tradição literária, Madame Bovary, seria possível afirmar que ela está para a estética romântica assim como Madame Bovary está para a realista.

Onegin vive em São Petersburgo uma vida reduzida ao tédio (o ennui romântico tão característico de Byron e Musset) e à dissipação nos círculos aristocráticos. As cenas iniciais recortam de forma nítida esses traços românticos do protagonista. O tédio se expressa antes de tudo na sedução mórbida da morte. Mas ele é bruscamente deslocado desse ambiente aristocrático e dissoluto para o mundo rural russo. A morte do tio transforma-o em herdeiro de uma invejável riqueza traduzida em terras e muitas almas (a população de camponeses servis da Rússia).

Instalado solitariamente na propriedade herdada, Onegin se rende à vida indolente, ao modo de vida típico do “homem supérfluo”, personagem célebre na tradição literária da Rússia. Logo um encontro acidental com Vladimir Lensky (Toby Stephens) introduz na trama uma amizade tensa e crivada de antagonismos que espelha nos valores e atitudes dos dois personagens tensões e impasses da própria realidade cultural do país. A mais nítida é observável na tensão entre a cultura citadina de Petersburgo, símbolo da cultura europeia servilmente assimilada pela aristocracia, e a cultura rural aderente a valores eslavos. Lensky, na verdade, não traduz fielmente essa oposição aqui sugerida, pois nele notamos o timbre da cultura alemã, já evidente no lied de Schubert que horrivelmente canta na cena em que conhece Onegin. Além disso, é um poeta provinciano deslumbrado pela cultura de Petersburgo. É este de resto o ponto de imediata ambivalência na sua relação com Onegin, já que a seus olhos este representa valores que inveja, mas lhe são vedados, daí suas reações de hostilidade e ressentimento diante do amigo.

Retomando a tensão acima aludida entre a cultura europeia e a tradição eslava correntemente invocada pelos nacionalistas russos como símbolo de uma identidade oposta à cultura ocidental assimilada pela aristocracia, nenhum dos personagens encarna valores que seriam tipicamente russos. A própria Tatiana, embora celebrada por Dostoiévski como o tipo ideal russo, está impregnada do ocidentalismo que este tanto odiava. Já acima notei como ela foi profundamente influenciada pela sensibilidade romântica assimilada na obra de Rousseau e certamente outros heróis românticos da época. Dostoiévski, de resto, ilustra essa mesma contradição entranhada na ideologia do nacionalismo cultural onde quer que se manifeste. Não é portanto sem razão que Nabokov observa provocativamente ser Dostoiévski o mais europeu dos escritores russos.

Outro personagem que bem evidencia a subserviência das camadas letradas russas à cultura europeia, antes de tudo francesa, é Monsieur Triquet (Simon Mcburney) tutor da família Larin (Tatiana, Marsha, sua mãe, e Olga, sua irmã noiva de Lensky). Essa subserviência é tão patente que Triquet se sente à vontade para de forma arrogante opor o refinamento e a delicadeza francesas, índices de alta civilização, à incivilidade russa. Embora não passe de um sedutor arrogante e afetado, Triquet enfrenta resistência apenas de Onegin.

A questão da servidão é também introduzida no filme. Onegin declara-se contrário à sua permanência, ponto de vista incomum à época e portanto ousado. Vai além da oposição retórica e adianta estar determinado a arrendar suas terras a seus próprios servos. Se Tatiana desde o início já se sentia atraída por Onegin, este fato desperta de forma decisiva sua sensibilidade romântica. Reforça o ponto de vista de Onegin ao acentuar a injustiça de um sistema que condena milhões de pessoas à opressão em decorrência de um acidente de origem social. Quando mais tarde Tatiana pergunta a Onegin se ele irá de fato arrendar suas terras a seus servos, ele responde afirmativamente, mas acrescenta fazê-lo por força apenas de sua ociosidade.
Perdidamente apaixonada, Tatiana cede ao impulso romântico e à autenticidade da sensibilidade romântica ao escrever uma carta a Onegin na qual candidamente expressa seu amor. Este a recusa, mas procede com cavalheirismo louvável e até surpreendente num herói de hábitos dissolutos e ociosos, ao argumentar de forma honesta contra a possibilidade do amor que Tatiana lhe oferta e ardentemente deseja. O diálogo que travam espelha nitidamente o conflito entre a jovem de coração romântico e o homem cético ou entediado diante do que lhe parece a realidade do amor. Esta cena ocorre a meio da festa de aniversário de Tatiana.

De volta à festa, onde os convidados animadamente dançam, Onegin flerta com Olga (Lena Headey). De caráter bem distinto da irmã, Olga é volúvel e facilmente se deixa atrair por Onegin ante os olhos ciumentos e exaltados do noivo, Lensky. Este episódio se agrava precipitando o desafio que Lensky lança contra Onegin para que decidam a disputa num duelo. Daí o filme marcha para a situação de desenlace que transforma radicalmente o andamento da trama: Onegin mata Lensky, Olga logo lava o luto da alma ao casar com um militar, Onegin parte para o estrangeiro e Tatiana é negociada pela tia astuta, segundo as normas culturais da época, nos salões aristocráticos de São Petersburgo. Encurtando a história, casa com o príncipe Nikitin (Martin Donovan).

Os anos transcorrem e eis que enfim Onegin reaparece durante um baile oferecido por Nikitin e Tatiana. A ironia cruel da vida, ou da trama romântica, reverte agora os papéis. Onegin apaixona-se obsessivamente por Tatiana, que ainda o ama, mas ama acima de tudo seus deveres de fidelidade a um homem que reconhece não amar, mas é afinal seu marido. Rejeitado por Tatiana e sua inflexível e atormentada fidelidade, Onegin sofre sem pausa a dor do amor, o mesmo amor romântico que antes rejeitou na mulher que ainda o ama, mas o amor já não é mais possível. Agora é ele quem lhe escreve cartas de amor saturadas de dor e desespero, cartas que ela rasga e depois queima.

A cena do encontro final entre os amantes impossíveis é uma das cenas românticas mais dolorosas e patéticas do cinema. Parecem-me sugestivamente simbólicas as cores antagônicas que vestem: ela inteiramente de branco, ele de preto. O branco simboliza a pureza atormentada de Tatiana, sua fidelidade ao dever posta acima do amor desejado e insofreável, mas adúltero; o preto é o símbolo do sombrio e desesperado amor de Onegin, condenado a conduzir sua vida esvaziada de sentido pelas ruas desertas e geladas de São Petersburgo.

Créditos:
Título: Paixão Proibida (Onegin)
Baseado na obra de Alexander Pushkin.
Roteiro: Michael Ignatieff e Peter Ettedgui
Direção: Martha Fiennes.
Música: Magnus Fiennes
Elenco: Onegin (Ralph Fiennes)
Tatiana (Liv Tyler)
Lensky (Toby Stephens)
Olga (Lena Headey)
Nikitin (Martin Donovan)
Marsha (Harriet Walter)
Triquet (Simon McBurney).
Recife, 11 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Tchecov - As Três Irmãs


As três irmãs Prozorov que conferem título à peça de Tchecov – Olga, Masha e Irina - sofrem o tédio e a infelicidade da vida provinciana num país atrasado de organização política autocrática ainda baseada no trabalho servil. Essa realidade, a do servo doméstico privado de autonomia e portanto dependente de senhores no geral despóticos, transparece em Anfisa, serva da família Prozorov, e em Ferapont, outra personagem de condição servil. Já idosa e desamparada de recursos, Anfisa vive exposta à tirania de Natasha, mulher de Andrei Prozorov. É certo que Olga (Rosalie Crutchley) a ama e protege, assim como suas irmãs. Afinal, foram provavelmente amamentadas e criadas por Anfisa que delas cuidou a vida inteira, realidade social também corrente no patriarcalismo escravocrata nordestino tão singularmente examinado por Gilberto Freyre. Embora a ação da peça seja posterior à abolição da servidão, importa lembrar que a abolição teve efeito antes formal do que real. A lei que aboliu a escravidão no Brasil em 1888 encerra uma realidade histórica muito similar à da servidão russa.

Além das afinidades culturais acima indicadas, seria possível fixar muitos outros paralelos culturais pertinentes e iluminadores entre a Rússia e o Brasil, esta Rússia dos trópicos. Gilberto Freyre, nosso mais refinado historiador social, chamou nossa atenção para esse veio comparativo. Mas ao salientá-lo tenho em mente antes de tudo Natasha´s Dance, de Orlando Figes. Figes foi minha grande descoberta no campo da história cultural. Lendo essa obra extraordinária, admirável painel da história cultural russa que se estende da época de Pedro O Grande ao século 20, aprendi muito sobre a Rússia e através dela sobre o Brasil. Na sua obra, assim como na de Gilberto Freyre, a história social torna-se uma leitura tão apaixonante quanto um romance das proporções de Guerra e Paz.

Orlando Figes é especialista em história cultural russa. Além de Natasha´s Dance, escreveu A People´s TragedyThe Russian Revolution, 1891-1924 e The Whisperers, uma história da vida privada na Rússia durante a era estalinista. Além de escrever com admirável clareza e precisão, Figes dá provas de uma erudição impressionante ao recompor cerca de três séculos da história cultural russa. Também ele ressalta em Natasha´s Dance o tédio e a infelicidade que oprimem as vidas das três irmãs, assim como das demais personagens. O fato de Tchecov não expor razões precisas para a atmosfera abafante da peça induziu alguns críticos a proporem explicações simplistas do tipo: mudem-se para Moscou e isso será o bastante para que suas vidas infelizes também mudem. Propor esse tipo de explicação é confundir a doença espiritual das personagens, como acentua Figes, com um simples estado de desenraizamento geográfico.

As três irmãs sonham com Moscou, onde nasceram e viveram os primeiros anos de suas vidas. Na imaginação exacerbada pelo tédio do horizonte provinciano que as sufoca, Moscou é antes um símbolo, um lugar de nostalgia e sonho pairando no avesso do presente real. Irina, a que mais padece da nostalgia de Moscou, é interpretada por Lynn Redgrave. Como a peça foi produzida pela Rádio BBC e transmitida pela primeira vez em 1965, tinha então 22 ou 23 anos de idade. É impressionante como sua voz soa irreconhecível, aparentando ser a voz de uma mulher muito mais jovem. Não a identificaria de modo algum, não fossem as informações fornecidas pela BBC. No entanto, identifiquei perfeitamente as vozes de Paul Scofield e Ian McKellen, que interpretam respectivamente o tenente-coronel Vershinin e o barão Tuzenbach.

Além do tédio que repassa essas vidas frustradas - e ressalto não aludir apenas às irmãs Olga, Masha (Jill Bennett) e Irina – são muitas as vias de fuga a que recorrem como um antídoto para a realidade que as aprisiona. Esses estados psíquicos e morais tão frequentes nas personagens malogradas da dramaturgia de Tchecov não expressam apenas uma condição metafísica, tédio e malogro próprios à condição humana abstratamente considerada. Como bem observa Elisaveta Fen esboçando um paralelo entre a atmosfera psicossocial da Rússia e a da Inglaterra – aquela caracterizada na realidade russa durante o vintênio em que Tchecov produziu sua obra, esta durante o vintênio correspondente ao entreguerras mundiais – é fácil nelas apreender um estado de espírito assinalado pelo desencantamento em face da vida, o desânimo espiritual, a opressiva sensação de descrença em si próprias e no futuro.

Uma das vias de fuga ou consolação para essas vidas malogradas é bem desenhada no comportamento do tenente-coronel Vershinin. Suas divagações filosóficas – ele sempre acentua em certo tom irônico estar “filosofando” – não passam de fato de puro devaneio, figuração imaginária de um futuro inapreensível tendente ao puro delírio. Das dobras do seu discurso reponta sempre um futuro radiante que será usufruído pelas gerações futuras, enquanto os vivos estão condenados a vidas fracassadas que logo afundarão no esquecimento dos pósteros. Também o barão Tuzenbach compõe variações à volta da mesma rota de fuga. Embora nunca tenha trabalhado na vida, fato que denota sua condição social privilegiada, já que é um nobre montado sobre um vasto exército de trabalhadores servis, vive divagando sobre a excelência do trabalho, sobre o trabalho como necessidade e fundamento da vida ideal que transpira de suas falas.

Masha, casada com o professor Kulighin, padece das mesmas frustrações de suas irmãs. Infeliz com Kulighin, infeliz no ambiente provinciano que tende a acentuar sua nostalgia de Moscou, apaixona-se por Vershinin, tão volúvel nos sentimentos com que a seduz quanto nos devaneios que confunde com projeções filosóficas da realidade. Assim, desmente seus supostos sentimentos de paixão por Masha com a mesma leviandade com que de início os soprara nos ouvidos da sua presa carente. Ele se despede dela e em seguida parte apagando com uma mão o que com a outra antes compusera no avesso das linhas em que os sentimentos se anulam. Quero dizer, onde antes supostamente palpitava a paixão, agora resta apenas a despedida sem pesar real e a inconsciência da dor sofrida por Masha.

No prefácio que escreveu para As Três Irmãs, incluído no volume Prefaces to the Experience of Literature, Lionel Trilling começa por observar que é uma das obras mais tristes da literatura, também uma das mais entristecedoras. Acrescenta, em defesa do seu ponto de vista, que vários membros do Teatro de Arte de Moscou, a companhia dirigida por Constantin Stanislavsky, choraram quando da primeira leitura da peça. O intrigante no episódio, que de resto ilustra o argumento geral de Trilling, consiste no fato de que para Tchecov a peça era uma comédia, quase uma farsa. E o mais intrigante consiste na admissão de que sua apreciação era sincera, não uma contradição provocativa formulada com a intenção de confundir ou contrariar interpretações infundadas ou pelo menos discutíveis. Tanto é verdade que, a julgar pelo testemunho de amigos íntimos, a começar pelo próprio Stanislavsky, manteve até o fim sua convicção.

Trilling empenha-se em desatar esse nó insolúvel. Ao fazê-lo acentua a ambiguidade da obra, assim como seu contexto de recepção. Compreendida no registro ambíguo que caracteriza toda grande obra literária, a peça de Tchecov contém inegáveis traços de comédia. Encaradas num registro irônico, personagens como Vershinin, com suas filosofices devaneantes, assim como sua complicada vida conjugal, o barão Tuzenbach, o Dr. Chebutykin e o capitão Soliony, que mata o barão num duelo estúpido, aniquilando assim o noivado do barão com Irina, são sem dúvida também figuras cômicas. Resta, portanto, a leitura ambígua da peça aqui sugerida e antes sublinhada por Lionel Trilling no seu prefácio. Essa perspectiva amplia a gama de sentidos e possibilidades da obra, o que constitui um modo sumário de reconhecimento da sua excelência estética.

As palavras finais de Sônia em Tio Vânia e as de Olga em As Três Irmãs expressam um doloroso murmúrio de resignação estoica, uma pungente incerteza diante do sofrimento e da vida. Salvo variantes acidentais, o sentido substancial do que dizem nas duas peças é o mesmo. Nada podemos fazer, a não ser continuar vivendo. Precisamos continuar vivendo, não obstante a inevitável sucessão de dias e noites tediosas. E assim continuaremos trabalhando sem pausa, sofrendo as adversidades que o destino nos impõe. E assim viveremos até o dia da nossa morte, quando afinal Deus terá alguma piedade de nós. E então Sônia, que acredita numa vida transcendente, prefigura o repouso que neste mundo nunca conheceremos. O que acabo de escrever é uma paráfrase ou tradução livre das passagens mencionadas neste parágrafo, notadamente a fala de Sônia que encerra Tio Vânia.
Recife, 25 de novembro de 2010.