quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma reflexão negativa sobre os intelectuais


Cresci num mundo assolado pela incultura intelectual. Um dia, sem que ninguém me guiasse, cheguei por acaso a uma estante de livros e esse fato mudou radicalmente minha vida. Através dos livros, dos autores que li e transfiguraram minha vida infeliz e corroída pela rotina e o tédio, passei a ver o mundo com outros olhos. Graças à literatura, expandi imaginariamente os horizontes de minha vida e a solidão, que até então fora uma fonte de sofrimento e carência, tornou-se um modo intraduzível de convívio simbólico com mundos remotos e sonhados, não obstante reais para o ser extraviado que eu era.
Mais tarde descobri a figura do intelectual como agente de transformação política da realidade e me persuadi de que ele era a consciência de um mundo alienado, um mundo no qual sempre me senti estrangeiro. Os intelectuais que então me pareciam modelares foram combatentes de ditaduras e tiranias, defensores, por conseguinte, da liberdade e de um mundo mais justo, quando não utopicamente além das formas de dominação que têm castigado a história humana através de milênios. No século XX, muitos desses intelectuais foram marxistas militantes, nas suas muitas e variáveis facções, ou pelo menos companheiros de viagem, com perfil ideológico igualmente variável.
Despertei para a política exatamente quando irromperam os anos de chumbo da última ditadura brasileira. Mero companheiro de viagem, eclético e cético por formação e talvez temperamento, nunca aderi ao marxismo. O mundo dividido pela guerra fria enfim desintegrou-se em 1989. Embora há muito fosse crítico com relação ao marxismo, foi depois disso que conheci as formas mais brutais das tiranias impostas em nome do comunismo ao longo do século XX.
Lendo a historiografia mais recente, renovada pela revelação de arquivos até então inacessíveis, notadamente no que foi a União Soviética, tomei consciência mais precisa dos horrores perpetrados em nome de belos ideais utópicos que marcaram de forma profunda a minha geração e algumas precedentes. Esse balanço crítico, também uma revisão de minhas ilusões humanistas, convenceu-me de que os intelectuais são antes cúmplices e agentes da tirania do que a consciência libertária da sociedade. Em suma, não mais me iludo com eles. O que me conforta na minha descrença é saber que são desmascarados também por intelectuais. De tudo resta, portanto, minha percepção do intelectual como figura ambígua.
No momento em que escrevo, assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos. A expressão “traição dos intelectuais” é uma alusão, claro, ao livro famoso de Julien Benda. No meu entender, e sigo aqui parcialmente a noção do intelectual adotada e defendida por Benda, o papel do intelectual é defender os valores universais do espírito orientados para a busca da verdade, ainda que esta seja sempre parcial e até enganosa. Por isso o intelectual sempre trai sua função quando se converte à militância em nome de uma causa ou ideologia particular. O exemplo mais catastrófico dessa traição consistiu na adesão do intelectual ao comunismo no século XX. Iludido pela crença de servir a uma concepção científica da história, ele negou a religião compreendida no seu sentido tradicional e sagrado para converter-se a uma religião secular que nunca ousou dizer o seu nome.
Muitos intelectuais continuam recusando veementemente essa noção de religião secular. Críticos impenitentes das formas tradicionais de religião, que para eles não passam de formas de conformismo político e alienação humana, teimam em defender e adotar teorias sociais teleológicas, ou indissociáveis de um finalismo utópico, como se fossem baseadas em fundamentos científicos e portanto puramente seculares. A matriz dessa concepção é, claro, a obra de Karl Marx. Marx e Engels, e no rastro deles uma infinidade de seguidores intelectualmente admiráveis, presumiam haver descoberto os mecanismos objetivos do desenvolvimento histórico das sociedades, redutíveis a leis científicas. O materialismo histórico e científico, formulado por ambos, seria a expressão da teoria soteriológica que, no frigir das fantasias revolucionárias, é apenas a transposição do céu judaico-cristão para este mundo.
Se esse suposto procedimento científico fosse de fato adotado pelos intelectuais que se supõem seguidores de uma concepção científica da história, seria muito fácil desmenti-la. Bastaria submeter a história do comunismo às leis postuladas por Marx e Engels. A primeira evidência que salta aos olhos é que nenhuma revolução comunista seguiu nem de longe a escrita traçada pela teoria marxista. Se ela se cumprisse, a revolução teria irrompido nas economias mais avançadas do capitalismo (Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos...). Ora, ela irrompeu precisamente na periferia do capitalismo, fato que em nada abalou a fé dos comunistas. Aliás, todos foram profetas malogrados. Marx, Engels, Lenin e Trotsky, entre tantos, nunca se cansaram de profetizar a revolução na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos...
A história humana é tão indissociável da indeterminação e do imprevisível que a revolução alemã, tão ardentemente sonhada por Lenin e todos que comandaram a Revolução Russa, resultou na ascensão de Hitler e do nazismo, graças em parte às lutas autofágicas da esquerda alemã: comunistas, social-democratas e anarquistas. Enquanto se matavam, os primeiros seguindo fielmente a política imposta por Stalin, abriam o caminho para Hitler e suas tropas brutais chegarem ao poder. Enredo semelhante ocorreu na guerra civil espanhola, culminando na vitória de Franco e seus seguidores fascistas, que impuseram à Espanha uma longa ditadura. Também no contexto espanhol se repete o que aconteceu antes na Alemanha sob as ordens de Stalin: os comunistas suprimiram seus aliados anarquistas e socialistas facilitando assim a ascensão de Franco. Quem leu o livro de George Orwell com olhos livres, há muito sabe disso. Por pouco Orwell, combatente do grupo anarquista POUM, não foi assassinado. Desde então tornou-se inimigo intransigente de Stalin e do comunismo.
Em suma, as reviravoltas e desastres da história foram tão imprevisíveis que a teoria marxista da história teria sido completamente descartada, se de fato fosse concebida como formulação científica e submetida à prova dos fatos. Como acima observei, é apenas uma religião secular que não ousa dizer o seu nome. De resto, no Brasil continua fresca e renovável, ironicamente nos segmentos mais intelectualizados, sobretudo na universidade pública. Bastaria considerar a crise política e econômica que no momento sofremos. A esquerda tradicional, nas suas múltiplas facções, inventa narrativas golpistas e toda sorte de explicação delirante para justificar o injustificável. É inútil contrapor-lhe os argumentos racionais do tipo que acima intentei esboçar. Razão e fé são ontologicamente excludentes. Por isso desisti de argumentar.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A muralha


Não se apresse, disse o Fado.
Você anda anda
Você corre corre
Mas esbarra sempre na muralha.
Desce, amor, diz o caçador.
Sobe, amor, diz a sua caça.
Tanto relutam e esperam
Que enfim se rompe a muralha
Caindo-lhes sobre a cabeça.
Ai de quem busca ou espera
Ai de quem vive, pois vida
É o que é e já era.
Outubro 2014.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Anulação do desejo


Queria telefonar
Dizer cheguei a Isabel
Mas essas nuvens no ar
Fecham-me as portas do céu.

Queria sair com ela
Levá-la pra passear
Quem sabe no céu perdê-la
Com outro modo de amar.

Queria rodar na pista
Corpo no dela apertar
Mas um receio despista
A vida pra um lugar

Que é a solidão deste quarto
Desejo de só ficar.
Sou quem deseja o desejo
De nada mais desejar.

Curitiba, 12 de abril 2013.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

No Mural do Facebook XXI


A Solidão e seus Avessos:

Leio uma pesquisa sobre os efeitos nocivos da solidão. Esses efeitos seriam não apenas psíquicos, mas também orgânicos. Não discuto isso, até por não ter competência para tanto. O que discuto é o conceito de solidão implícito nessas pesquisas que ocasionalmente leio. É como se o sentido da solidão fosse evidente. E daí para as confusões rotineiras a passada é bem curta. Por exemplo: o solitário, compreendido negativamente, é o que vive ou está sozinho. No Brasil em particular, onde ainda são fortes os vínculos de família e gregarismo, o solitário é visto com um vinco de preconceito inegável. Se você é solitário, não casado ou não casou, não tem família identificável, é provável que seja uma pessoa difícil, complicada, no limite deslize para a misantropia.
Como sou parte da categoria dos solitários reconhecíveis, esclareço que os momentos mais belos e prazerosos de minha vida foram momentos de convívio, momentos inconcebíveis sem o outro que é meu semelhante e amo ou amei. Por isso fico à vontade para desmentir os preconceitos acima, embora pouco articulados. Além disso, falo um poucos dos que estão do outro lado da cerca, para que fique claro que essas distinções nunca são simples.
Não conheço nenhuma família feliz, contrariando o inesquecível capítulo de abertura de Anna Karenina, de Tolstoi. Também ressalto a solidão dos que vivem em família, como foi meu próprio caso. A solidão dos amantes, mesmo os que se amam de verdade. E quantas vezes não ouvi confissões intransmissíveis de amigos de ambos os sexos no momento em que desce o pano das convenções hipócritas?
Só um exemplo recente: a meio de uma consulta médica com um amigo, disse que gostaria de casar. Aleguei estar ficando velho, etc. Ele retrucou imediatamente: "Não faça uma loucura dessas. Estou casado há 25 anos e vivo de mentiras e conflitos. Não me separo porque não sei viver sozinho, como você".
Em suma, não recomendo solidão a ninguém. O que sei é que amo a minha, na medida em que é voluntária, na medida em que a tornei parte dos meus mais rotineiros e indispensáveis ofícios e prazeres: a leitura, a arte, a música, a reflexão, a carência pura e simples de ser comigo o que somente comigo posso ser. Mas existe também a solidão involuntária, que é dolorosa, mesmo na vida de quem escolheu e ama a solidão. Quem acaso tiver interesse em refletir melhor sobre o assunto, recomendo o livro Solitude, de Anthony Storr. Soube que foi traduzido no Brasil, não sei se com o mesmo título. É um livro belo, sensato e isento dos preconceitos correntes sobre a solidão e seus avessos.
(Publicado no Facebook, 10 de julho de 2016).

Literatura não é biografia:

O poema não é um documento biográfico, me disse meu amigo poeta. A frase lhe saiu com sabor de queixa, do desânimo de quem se sente incompreendido pelo leitor. Como todo autor, ele precisa do leitor, é em parte por este que escreve, mas seus poemas não são documentos biográficos. Lidos nestes termos, o leitor concluiria que seus poemas são a confissão de um homem solitário e insone, atormentado por memórias dolorosas. Foi isso o que lhe disse uma amiga com a comovente intenção de o consolar de suas dores derivantes do modo como ela leu o poema. Era um poema, claro, sobre a solidão e a insônia.
Mas o poema, repisa o poeta, não é um documento biográfico. Ele dorme bem, vive em paz com sua memória, embora sofra a carência do amor, a aridez desses tempos difíceis que vivemos: tanta infelicidade e solidão gritadas e dissimuladas nas redes sociais contra os políticos corruptos, com perdão da redundância, contra as mazelas insanáveis do Brasil.
O poeta, ser sensível decerto em demasia, lamenta não apenas a incompreensão da leitora que desastradamente o consola, mas a realidade sem vias de fuga. Ora, dirá quem me lê, como um poeta não encontra na imaginação vias de fuga da realidade? É outra incompreensão que também desola o poeta. Como é banal o preconceito de que a poesia é uma fuga do real. Lembrou-me o dia em que, cuidando de um amigo operado num hospital, recebeu a visita de uma médica enquanto lia Drummond para o enfermo, gravemente enfermo. Nunca esqueceu o que ela disse: "Por favor, não me fale de Drummond. Estou farta de realidade".
Em suma, todo poema verdadeiro é necessariamente belo, mas talvez insuportável para quem se contenta em viver na superfície da realidade ou simplesmente não suporta a provação do mergulho para o fundo da superfície. Por fim, reiterando ainda a queixa do poeta, o poema não é o reflexo do que o poeta vive. O poeta é uma antena do que é humano, não Narciso enamorado de si próprio nas águas da arte.
(Publicado no Facebook, 14 de julho de 2016).

terça-feira, 12 de julho de 2016

A voz da insônia


O que farei de mim quando a tristeza
Baixar na solidão do meu outono
E a noite dissolver tua beleza
Que o mar resserenava no meu sono?
Eu me reviro como um cão sem dono
Na noite insone do meu abandono.

Se a memória mais e mais me assalta
Vertendo uma corrente de sucessos
Que extremam minha dor da tua falta
Eu rezo na insônia os longos terços
Que antes o ateu nos seus avessos
Negava na paixão da noite alta.

E agora eu me pergunto em meu tormento
Se antes de morrer algum alento
Virá apaziguar a minha dor.
Por fim o sono desce e tudo é treva
No abismo que não sei aonde me leva
O hiato entre a vigília e o desamor.

sábado, 9 de julho de 2016

No Mural do Facebook XX


Marilena Chaui e a normalidade do fanatismo:

No frigir dos nervos, quando leio certas coisas cretinas aqui no Facebook, já afirmei que Marilena Chuá Chuá, vulgo Chaui, era uma desvairada. Não retiro o qualificativo, mas esclareço que o desvairismo dela é perfeitamente normal. A universidade brasileira, suposta consciência esclarecida do Brasil, age massivamente em defesa da "narrativa" conspiratória de Marilena. Aspeio a narrativa por se tratar de um termo de origem literária que hoje contamina a terminologia das chamadas ciências sociais, que no Brasil tornaram-se ideologia descarada.
Marilena narra uma conspiração que não me espanta porque conheço um pouco a história do comunismo no século XX. Perto das conspirações inventadas por Lenin, Trotsky, Stalin e outros tiranos, a historinha dela é até pouco imaginativa. O que a compromete é o contexto histórico, algo desconcertante numa pensadora marxista que muitos consideram a maior do Brasil.
A Santíssima Trindade da revolução era genial. Tiranos impiedosos, com perdão do truísmo, escreveram um capítulo fundamental da história sanguinária do século XX. Além disso, viveram num mundo de conflitos extremos, mais tarde desdobrados na guerra fria que dividiu o mundo em duas frações antagônicas e belicosas entredevorando-se durante mais de quatro décadas.
Marilena e grande parte da esquerda brasileira continuam tramando conspirações como se a gente vivesse ainda no contexto da guerra fria. Seu delírio é antes de tudo o delírio dos fanáticos, que nenhuma razão tem o poder de despertar. A esquerda brasileira sonha ainda as revoluções que outros já fizeram e a história dissolveu em ruína. É uma esquerda que não despertou ainda das ilusões sepultadas em 1989.
(Publicado no mural do Facebook, 5 de julho de 2016).

Uma reflexão negativa sobre os intelectuais

Cresci num mundo assolado pela incultura intelectual. Um dia, sem que ninguém me guiasse, cheguei por acaso a uma estante de livros e esse fato mudou radicalmente minha vida. Através dos livros, dos autores que li e transfiguraram minha vida infeliz e corroída pela rotina e o tédio, passei a ver o mundo com outros olhos. Graças à literatura, expandi imaginariamente os horizontes de minha vida e a solidão, que até então fora uma fonte de sofrimento e carência, tornou-se um modo intraduzível de convívio simbólico com mundos remotos e sonhados, não obstante reais para o ser extraviado que eu era.
Mais tarde descobri a figura do intelectual como agente de transformação política da realidade e me persuadi de que ele era a consciência de um mundo alienado, um mundo no qual sempre me senti estrangeiro. Os intelectuais que então me pareciam modelares foram combatentes de ditaduras e tiranias, defensores, por conseguinte, da liberdade e de um mundo mais justo, quando não utopicamente além das formas de dominação que têm castigado a história humana através de milênios. No século XX, muitos desses intelectuais foram marxistas militantes, nas suas muitas variáveis facções, ou pelo menos companheiros de viagem, com perfil ideológico igualmente variável.
Despertei para a política exatamente quando irromperam os anos de chumbo da última ditadura brasileira. Mero companheiro de viagem, eclético e cético por formação e talvez temperamento, nunca aderi ao marxismo. O mundo dividido pela guerra fria enfim desintegrou-se em 1989. Embora há muito fosse muito crítico com relação ao marxismo, foi depois disso que conheci as formas mais brutais das tiranias impostas em nome do comunismo ao longo do século XX.
Lendo a historiografia mais recente, renovada pela revelação de arquivos até então inacessíveis, notadamente no que foi a União Soviética, tomei consciência mais precisa dos horrores perpetrados em nome de belos ideais utópicos que marcaram de forma profunda a minha geração e algumas precedentes. Esse balanço crítico, também uma revisão de minhas ilusões humanistas, convenceu-me de que os intelectuais são antes cúmplices e agentes da tirania do que a consciência libertária da sociedade. Em suma, não mais me iludo com eles. O que me conforta na minha descrença é saber que são desmascarados também por intelectuais. De tudo resta, portanto, minha percepção do intelectual como figura ambígua.
No momento em que escrevo, assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos. A expressão “traição dos intelectuais” é uma alusão, claro, ao livro famoso de Julien Benda. No meu entender, e aqui sigo tendencialmente a noção do intelectual adotada e defendida por Benda, o papel do intelectual é defender os valores universais do espírito orientados para a busca da verdade, ainda que esta seja sempre parcial e até enganosa. Por isso o intelectual sempre trai sua função quando se converte à militância em nome de uma causa ou ideologia particular. O exemplo mais catastrófico dessa traição consistiu na adesão do intelectual ao comunismo no século XX. Iludido pela crença de servir a uma concepção científica da história, ele negou a religião compreendida no seu sentido tradicional e sagrado para converter-se a uma religião secular que nunca ousou dizer o seu nome.

Recife, 5 de julho 2016.



terça-feira, 5 de julho de 2016

Eu é você


Você meu outro eu
Você eu fora de mim
Meu modo único de me saber refletido.
Você que me amou como ninguém
E por isso me doeu e me perdeu
Como ninguém mais perdi.
E depois de tudo
À parte nossas vidas apartadas
Esse cão odioso ladra na tarde deserta
Uma bomba explode
E o mundo segue seu curso
Inconsciente de tudo e de nós que nos perdemos.
Mas vivo em você
E você em mim durante
O êxtase do orgasmo
Que se prolonga em memória
Até.

Recife, junho 2016.

sábado, 2 de julho de 2016

No Mural do Facebook XIX


O exemplo de Drummond:

Penso que Drummond é o maior poeta brasileiro. Por isso leio seus poemas rotineiramente. Sua obra é a minha bíblia que não tenho e por isso não rezo. Quando irrompeu talvez a mais extrema crise da civilização nos anos 1930 e 1940, com o mundo dilacerado por totalitarismos de direita e esquerda, Drummond se engajou engajando também sua poesia. Disso resultou A Rosa do Povo, a obra poética que melhor harmonizou a estética e a política. Não tardou para que se desiludisse com o Partido Comunista Brasileiro e desistisse da política militante. Continuou participando enquanto cidadão e escritor público. Como todo intelectual liberto de fantasias ideológicas, foi sempre tentado pelo ceticismo e até o niilismo. Os exemplos contidos na sua obra poética são muitos. Cito o primeiro que me vem à memória: o belo Cantiga de enganar.
Um dia ele escreveu num poema: "meu verso é minha cachaça".
Também Freud, modelo no qual igualmente me inspiro, afirmou que o ser humano não suporta viver sem algum tipo de droga. O mundo é uma sucessão de desastres porque poucos são capazes de inventar um modo criativo de droga, o tipo de droga que concorre para melhorar o mundo ou pelo menos frear nossas pulsões destrutivas. Muitos dos que militam na política, notadamente os intelectuais, confundem-na com uma forma secular de religião. São idealistas, arrogantes portadores de ideologias libertadoras do povo oprimido e alienado. Não há como avaliar as devastações que provocaram ao longo da história humana, sempre, claro, em nome dos mais belos ideais. Confesso que a experiência ensinou-me a fugir desses idealistas. Aprendi a fugir deles, também a temê-los, pois sei que seus ideais sempre acabam em banhos de sangue e opressão.
Há quem louve a falta de convicção e caráter da maioria dos brasileiros. Alegam que isso nos imuniza contra a tentação das soluções extremas. Será que têm razão? Será que os males de formação do nosso povo nos poupam de males ainda maiores? Ainda que isso seja verdade, não me conformo em viver num país tão injusto e cruel ao ponto de me obrigar a reconhecer que o instituto da delação premiada, por exemplo, é um mal necessário. Quer dizer, o bandido faz carreira e fortuna corrompendo e roubando, depois grava tudo que conversa com os cúmplices, entrega todos à polícia e é premiado com prisão domiciliar numa mansão com garagem para dez carros, quadra de tênis e outros privilégios. Pensando bem, não vale a pena seguir o exemplo de Drummond.
(Postado no Facebook, 29 de junho de 2016).

Do Petrolão ao Safadão

Dizem que o Ministério Público e a Polícia Federal começaram a escavar o esquema de corrupção no poço dos megashows que se tornaram rotina em cidades interioranas. Se os serviços já são o que são nas capitais, imagine-se nos grotões que hoje fornecem circo eletrônico ao povo faminto. Espero que escavem o poço, todos os poços da bandidagem e depredação do Estado que vai do Petrolão ao Safadão. Logo ficará claro por que tantos artistas militam em defesa do PT alegando belas razões ideológicas. É claro que a corrupção também envolve os outros partidos, todos os partidos e o conjunto da sociedade brasileira.
Quem pensa que a podridão do reino da Dinamarca é obra do PT, nada sabe do país onde vivemos. Se brincarem, a única alma honesta que vai sobrar será a minha, não a de Lula. A culpa não é minha, mas de quem não tentou me corromper.
Por fim, já que tantos andam clamando contra a cultura do estupro, lembro que muito mais grave é o estupro da cultura. Só Deus sabe o que ela sofre todos os dias neste país de artistas safadões e políticos que reafirmam a genial criatividade brasileira. Sem serem cineastas (o Brasil tem algum?), os políticos inventaram um novo gênero cinematográfico: o da Política Mafiosa. Está em cartaz 24 horas por dia em todo o noticiário midiático. Censura livre, almoço grátis e delação premiada.
Como diria Macunaíma, o Safadão da cultura brasileira, tem mais não. Isto é, digo eu, tem ainda: ou os políticos acabam com a Lava Jato ou esta transformará o Brasil no país da da prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Quem sobrará para jogar bola e batucar o samba no pé no país do futebol e do carnaval?
(Postado no Facebook, 24 de junho 2016).